A História como aporia
Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

Robert Kurz


6. Capitalismo e Religião


No seu pretenso "exame" da reflexão sobre a teoria da história orientada pelo conceito de fetiche, Gerold Wallner ocupa-se também com a relação histórica entre capitalismo e religião. Antes que o modo de abordagem por si apresentado possa por sua vez ser examinado, há que recapitular com brevidade como esta relação foi tratada até hoje na elaboração teórica da crítica do valor-dissociação e que problemática daí emerge.

Um primeiro contacto com o conceito de "história de relações de fetiche" levou de certa maneira a aproximar o capitalismo, o patriarcado moderno produtor de mercadorias, das constituições religiosas pré-modernas; a denunciá-lo por assim dizer como "continuação da religião por outros meios", sendo a "religião" aqui entendida já como a relação (fetichista) de constituição e de reprodução na pré-modernidade, incluindo as relações sociais e o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx), e não apenas como fenómeno ideal, de concepção do mundo. A relação capitalista de valor-dissociação, como moderna relação de fetiche, surgiu assim, cum grano salis, no seu próprio carácter de metafísica real, como uma espécie de constituição religiosa, cujos representantes e ideólogos simplesmente não querem reconhecer tal facto.

Jörg Ulrich desenvolveu estas ideias com mais detalhe no livro "Individualität als politische Religion [A Individualidade como Religião Política]" (Albeck bei Ulm 2002), onde ele declara "errado" "designar a sociedade actual como ‘pós-religiosa’ e ‘pós-metafísica’", e continua a desenvolver a argumentação no artigo "Gott in Gesellschaft der Gesellschaft [Deus em Sociedade com a Sociedade]" (Exit 2), onde procura definir o conceito de secularização como "enganoso" (Exit 2, p. 25) e a valorização do valor, o "sujeito automático" como "deus-processo". Ulrich refere-se aqui a Christoph Türcke e Stefan Breuer, entre outros, mas sobretudo ao célebre fragmento de Walter Benjamim sobre o "Capitalismo como Religião" (Exit 2, p. 26-32), isto é, como "caso de um culto não de absolvição, mas de inculpação" (p. 29), com o que se poderia falar de uma "identidade substancial, ou essencial, entre capitalismo e religião" (p. 26).

O pensamento de Benjamim ulteriormente desenvolvido contém ricas implicações. Contudo, esta argumentação tem de ser submetida a uma crítica, sob determinado aspecto. Pois, no afã de desvendar o carácter de metafísica real da modernidade, os conceitos de capitalismo (relação de valor-dissociação), religião (constituição de forma religiosa) e fetiche (relação de fetiche) foram apresentados como simples sinónimos e a sua necessária diferença (de outro modo não seriam conceitos diferentes) foi parcialmente nivelada. Com isto, a profunda ruptura que a modernidade consumou em relação às constituições religiosas pré-modernas não desaparece inteiramente, mas de repente, sem mediação, é quase omitida. Por outras palavras: o momento da qualidade comum é acentuado em demasia, quando se descreve o capitalismo simplesmente como uma espécie de "religião" sui generis e com conceitos quase religiosos.

Esta divergência conceptual surge também quando determinadas "práticas" de constituições históricas diferentes são analogicamente pensadas em conjunto, como é o caso do conceito de "magia", que se pode encontrar em todos os textos de Petra Haarmann até à data. No artigo "Copyright e copyleft" ela equipara imediatamente, sob o signo do "mágico", os modos de agir pré-modernos / religiosos com os modernos / na lógica do valor-dissociação. Nas relações ditas medievais sempre se teria tratado de "reproduzir a ‘ordo’, a ordem salvadora, e se necessário comprometer-se com ela ritualmente, em termos declaratórios ou para reafirmar ligações antigas. Para tal recorria-se a formas de realização ‘mágicas’, com cujo auxílio eram provocadas ou renovadas mudanças, sentidas como reais no mundo exterior…" (Exit 1, p. 190). Haarmann faz agora, acto contínuo, um salto não mediado para o presente: "Mesmo que não se queira, há que reconhecer que ainda hoje ocorrem em grande número tais formas de realização, juntamente com a experiência de uma realidade modificada. Pense-se apenas nas subidas e descidas das taxas de referência dos juros pelo "mágico" Greenspan, na força criadora das sentenças judiciais, nas eleições etc." (Exit 1, p. 190). Naturalmente, pode-se conceder no caso uma retórica da metáfora, mas a expressão não é meramente retórica. Tanto para Haarmann como para Ulrich, trata-se sim, e com razão, de apreender um momento comum e abrangente das relações pré-modernas e das modernas. Mas esse momento não é correctamente levado ao seu conceito, ao ser representado nas categorias da constituição religiosa em geral ou das práticas mágicas.

Tal modo de proceder antes obscurece o problema. Assim Haarmann recorre de novo ao conceito de "mágico", na crítica da ideologia do copyleft: "Com isto também a forma de realização (‘mágica’) de exercer influência sobre a projecção fetichista, em vez de ser criticada como concretização de um objecto do pensamento socialmente objectivado, é ideologicamente reinterpretada como ‘hack’ [Palavra inglesa no original. Hack (corte) é a raiz de hacker (pirata informático) — NT] jurídico supostamente genial, qual cavalo de Tróia" (Exit 1, p. 199). A intenção da crítica é aceitável, e o adjectivo "mágico", que já está posto entre aspas, pode aqui ser entendido como metáfora legitimamente irónica; mas, perante o pano de fundo da analogização apressada das práticas mágicas com a moderna lógica do valor-dissociação, a metáfora adquire logo à partida um tom teoricamente enviesado.

O problema torna-se ainda mais claro no artigo de Petra Haarmann "O direito do cidadão à tortura". Também aí se encontra a mesma analogização apressada entre magia e modernidade, neste caso em relação com o direito moderno: "Os aplicadores do direito autorizados, portanto juízes, procuradores e advogados, apresentam-se no seu agir de certa maneira como os mágicos do tempo. A referência à realidade e a modificação da realidade pela magia parece ser em geral a mais antiga maneira de as socialidades humanas executarem o convívio, tanto com a natureza circundante como entre si. Entra-se em contacto com os poderes da natureza através de actuações mágicas, como apaziguamento, invocação, sacrifício de vítimas, e rituais do conhecimento, como observação das vísceras, observação do voo das aves, lançamento dos dados ou de cacos etc…" (Exit 2, p. 58). Uma vez mais, a identificação dos procuradores com os áugures poderia aqui passar por mera ironia, mas não parece ser essa a ideia. Petra Haarmann estabelece, sim, uma continuidade transhistórica, já quase uma ontologia com as práticas mágicas pré-antigas e antigas. Assim, à primeira vista o cristianismo teria eliminado a magia: "Todos os sacrifícios de vítimas foram tornados para sempre desnecessários com o sacrifício histórico de Cristo" (Exit 2, p. 61). No entanto, a salvação vinda com Cristo em nada teria alterado o real decurso da vida: "Em vez disso começou uma nova espécie de história, a história da salvação, que não consegue ver-se livre do elemento mágico, contra o qual se apresentara. A proclamação da salvação não é o mesmo que a sua consumação. Permanece apenas a invocação mágica, a repetir sem cessar, para que ela venha a realizar-se" (Exit 2, p. 61). O "segredo da fé cristã" é portanto "esconjurar a magia através da magia" (Exit 2, p. 70).

Também a mudança histórica seguinte, a ruptura na passagem à proto-modernidade, idealmente representada no protestantismo, ocorre para Haarmann novamente na continuidade do "mágico": "A campanha de Lutero contra a magia revela-se… como a sua apoteose (elevação a Deus) na forma da crítica radical… a magia é racionalizada através de uma ilusão argumentativa, de tal modo que os sacrificados se convencem de que ela não é o que é: a magia vestida de camuflado, a auto-reflexão como auto-obscurecimento" (Exit 2, p. 76). Se retomarmos a analogização feita por Haarmann das práticas mágicas com os procedimentos de procuradores e presidentes de bancos centrais dos nossos dias, ficamos com uma "trans-historicidade" completa da magia, desde as relações pré-históricas na Mesopotâmia até aos dias de hoje, que acaba por ser concatenada com o conceito de fetiche de um modo antes de mais associativo: "E como sempre em toda a história anterior, quando a magia do fetiche é ‘secularizada’ tal significa saber ainda menos que o princípio constitutivo, agora totalmente irreconhecível e autonomizado, tanto mais pode abrir caminho sem que nada se lhe oponha" (Exit 2, p. 79).

Numa fase inicial, tudo isto apenas pôde passar em branco porque o debate em torno da concepção de uma "história de relações de fetiche" se encontrava ainda num estádio incipiente e pouco clarificado. Assim se tolerava tanto a analogização conceptual da religião com o capitalismo em Ulrich (na esteira de Benjamin), como a trans-historicidade associativa do "mágico" em Haarmann, pois parecia tratar-se de esforços legítimos, no sentido de evidenciar o momento comum das diferentes relações de fetiche históricas. No entanto, assim perdeu-se a relação entre identidade e diferença. É que a constituição religiosa não pode ser simplesmente transferida para o capitalismo com os seus próprios conceitos específicos; nem sequer as práticas mágicas, pelos vistos, caracterizam todas as constituições religiosas por igual, pelo que aqui a analogização com as relações pré-modernas ainda se torna mais forçada. O discurso da "magia do fetiche" é decerto bem-intencionado, no sentido da crítica do fetiche, mas o contexto permanece associativo e sem clareza conceptual.

A questão que agora se coloca é como pode este erro ser corrigido. Trata-se de precisar o relacionamento entre os três campos conceptuais de capitalismo, constituição religiosa e relação de fetiche e diferenciar os planos de abstracção teóricos. Aqui é óbvio que as constituições religiosa e capitalista representam formações históricas de base diferente, em que, num processo contingente, o capitalismo cresceu a partir da constituição religiosa e deixou esta para trás. O capitalismo, portanto, já não pode ser adequadamente definido com a imagem de uma constituição [Verfasstheit] religiosa; de facto trata-se aqui apenas de uma imagem, de uma equiparação meramente associativa. Isto serve porque assim o capitalismo se deixa denunciar facilmente, o que em todo o caso pressupôs novo empréstimo associativo à crítica da religião feita pelo iluminismo e pelo marxismo tradicional. E o conceito de fetiche também é trazido à mistura de um modo não menos associativo; afinal até o próprio Marx o tinha declarado uma "analogia" com a "região nebulosa do mundo religioso".

Por isso aqui é importante, em primeiro lugar, definir o conceito de relação de fetiche reflectido pela crítica do valor-dissociação (já não entendido no sentido do pensamento iluminista) na sua relação com os conceitos de cada formação histórica. Ele não significa algo que possa pertencer a diferentes formações acidentalmente, ou exterior e aleatoriamente, por exemplo determinadas técnicas de cultura. Significa, sim, a verificação de certo modo de uma meta-qualidade essencial (negativa), que contudo se torna possível apenas ao olhar comparativo sobre a reflexão correspondente a outro plano de abstracção da teoria da história, reflexão essa a que apenas a negatividade do capitalismo nos constrange, e que precisamente por isso abre um campo conceptual próprio, que não deve ser confundido com os campos conceptuais específicos, no sentido de constituições históricas específicas (religião, capitalismo). Este é um nível de abstracção mais elevado, não no sentido de um progresso histórico regular, no qual também o capitalismo teria o seu lugar ao sol, mas no sentido daquela contingência de um processo global, em que a "história mundial" se formou negativamente e que obriga agora a uma reflexão comparativa da teoria da história, que tem mais o carácter de uma legítima defesa teórica do que reproduz uma "atitude sobranceira" do rei do filósofos moderno clássico.

Trata-se portanto daquilo que as constituições religiosa e capitalista têm de comum neste nível de abstracção fundamental, sem negar a ruptura existente entre elas, nem as qualidades próprias, em cada caso fundamentalmente diversas. Este problema e o nível de reflexão a ele associado apenas podem aflorar depois de o capitalismo ter surgido com a pretensão de uma superação "emancipatória" das constituições religiosas, desafiando a uma comparação crítica de um novo tipo, que no primeiro assalto (capitalismo "como religião") permaneceu insuficiente; muito mais assim é no caso da identificação por Haarmann do conceito de fetiche com as práticas mágicas, em que estas últimas na realidade ainda são sediadas abaixo do plano de abstracção das constituições religiosas como tais. Haarmann salta não apenas um, mas logo dois níveis de abstracção. A insuficiência destas falsas equiparações (também verificada no caso da analogização de Marx) vem de que o novo e diferente plano de reflexão do conceito de fetiche (e com ele de uma "história de relações de fetiche") ainda não foi elaborado enquanto tal, e só com base nele pode então ser aclarada a relação entre diferença e comunhão.

Neste aspecto, para já, tem que bastar a remissão para que tanto as sociedades constituídas religiosamente como a socialização capitalista são por igual "estranhamente heterodeterminadas", em cada caso de modo próprio e diferente, através de uma matrix apriorística autonomizada face aos seres humanos empíricos, matrix que designámos por relação de fetiche. Este conceito de matrix apriorística autonomizada junta capitalismo e religião num determinado novo nível de abstracção, e apesar disso pode simultaneamente reconhecer a diferença fundamental nas respectivas relações de reprodução, nos planos das respectivas constituições em cada caso completamente diferentes.

Ora um entendimento do capitalismo "como religião" estabelece um curto-circuito entre o plano de reflexão dos diferentes conceitos de formação histórica (e mesmo das diferentes relações internas entre uns e outros, por exemplo no que respeita às "práticas mágicas") e o plano de abstracção completamente diferente do conceito de fetiche. Porém, uma correcção desta equiparação apressada não significa abandonar o plano de reflexão do conceito de fetiche; este tem mas é que ser colocado no lugar certo. O capitalismo não é a "continuação da religião por outros meios", e muito menos uma reprodução de "práticas mágicas"; mas, noutro plano de abstracção, tem uma comunhão negativa com a constituição religiosa. Portanto, como já foi dito, podemos talvez utilizar expressões como "mágico", ou "deus-processo", como metáforas ironico-retóricas; mas apenas se este carácter metafórico ficar reconhecível no contexto, e se ao nível conceptual ficarem bem claras a ruptura entre a constituição religiosa pré-moderna e a constituição capitalista moderna, por um lado, e as suas qualidades fundamentalmente díspares, por outro. Um entendimento do capitalismo "como religião", como no caso de Ulrich na sua referência a Benjamin e outros fiadores, ou mesmo como "magia", como no caso de Haarmann, expõe-se porém ao perigo, não só de cair numa analogização banal, mas também de com isso precisamente mistificar o capitalismo.

Estes problemas sempre saltam à vista nos vulgarizadores. É o caso do autor da Krisis residual Ernst Lohoff, que como plagiador notório (obviamente sem identificar as referências) se apropriou dos motivos, pensamentos e argumentações dos artigos de Ulrich e Haarmann (Exit 1 e 2), e mais uma vez simplificou as analogizações erróneas, arvorando-as em trunfo e empertigando-se dessa forma que lhe é tão própria. Afirma Lohoff: "A vitória da mercadoria e da razão sobre a fé clássica ocorreu… no interior do universo das práticas mágicas e do pensamento mágico…" (Ernst Lohoff, Die Verzauberung der Welt [O encantamento do mundo], in: Krisis 29, p. 13). Petra Haarmann manda cumprimentos. No capitalismo, segundo Lohoff, há "ritos do além (!) como o ganhar dinheiro ou o direito" (ob. cit. p. 14). Assim "o objectivo emancipatório também pode ser apreendido como consequente profanação (!) da realidade social" (ob. cit. p. 14). Realmente delicioso: A crítica do capitalismo "crítica do valor" como revivalismo directo da crítica iluminista da religião. Ulrich e Haarmann obtiveram aqui, por assim dizer, um eco grosseiro similar a um arroto. Pois, apesar de todas as truncagens, é de esperar que não tenham querido dizer isso. O capitalismo é, na realidade, completamente "profano" de um modo falso e miserável; ele dessacralizou de facto o mundo, mas apenas para colocar no lugar do sagrado outra espécie de fetiche.

A problemática de semelhantes analogizações, incluindo o postulado de Lohoff de uma "consequente profanação", faz lembrar um pouco a polémica de Marx e Engels com os jovens hegelianos, tal como ela foi conduzida n’ "A Ideologia Alemã": "Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner se limitou à crítica das ideias religiosas. Partia-se da religião real e da teologia propriamente dita. Posteriormente definiu-se de formas díspares o que seriam a consciência religiosa e as ideias religiosas. O progresso consistiu em subsumir as ideias supostamente dominantes da metafísica, da política, do direito, da moral e outras também sob a esfera das ideias religiosas ou teológicas; tratou-se de declarar a consciência política, jurídica ou moral como sendo uma consciência religiosa ou teológica, e em última instância declarar o ser humano político, jurídico ou moral, ‘o ser humano’ em suma, como sendo religioso. Foi pressuposta a dominação da religião. Cada relação de dominação foi sucessivamente explicada como uma relação da religião e transformada em culto, culto do direito, culto do estado etc.… Os velhos hegelianos tinham percebido tudo, desde que fosse reconduzido a uma categoria lógica hegeliana. Os jovens hegelianos criticaram tudo, imputando-lhe um fundo de ideias religiosas ou proclamando-o teológico" (Die Deutsche Ideologie [A Ideologia Alemã], Berlim, 1960, p. 15).

Estas frases também se aplicam a Ulrich, a Haarmann e sobretudo ao papagueador Lohoff, que pretende dedicar-se à crítica do sujeito, fanfarronando com a "religião do sujeito" (Krisis 30, p. 44), com uma "igreja do sujeito" (ibidem, p. 49), ou com o "santo trabalho" (ibidem, p. 53) e acabando por descrever, uma vez mais, a superação do capitalismo como o "programa comunista de uma secularização radical da sociedade" (ibidem, p. 89), ou seja, como uma simples duplicação da crítica iluminista da religião. Se contra esta tendência de substituir o capitalismo por uma constituição religiosa se traz a terreiro a crítica de Marx aos jovens hegelianos, não se deve esquecer, apesar de tudo, que esta polémica não foi formulada ainda no contexto da problemática do fetiche, mas no contexto do esquema "materialista" de base e superstrutura. Assim sendo, Marx aqui ainda concebe a religião como um mero fenómeno ideal "da superstrutura". Apenas em "O Capital " e seus trabalhos preparatórios Marx aduziu o conceito de fetiche, que finalmente começou a suplantar este rude "materialismo". O que permanece válido e irrenunciável da intenção d’ "A Ideologia Alemã" é a contextualização das ideias relativamente às instituições e relações históricas de reprodução dos seres humanos; e neste contexto também a crítica às analogizações erróneas entre religião e capitalismo. À luz do conceito de fetiche, do qual decorre a ideia de uma "história de relações de fetiche", por outro lado, também a religião é agora identificada como algo que não é uma simples "ideia" e "superstrutura" sobreposta à forma de desenvolvimento histórico da ontologia do trabalho, mas que foi em tempos uma relação de reprodução histórica, uma determinada constituição das relações de vida. É neste sentido que a reflexão de Benjamin adquire significado, não na sua própria identificação do capitalismo "como religião", mas sim no outro plano de abstracção do conceito de fetiche. Deste modo pode ser honrada a crítica feita em "A Ideologia Alemã", tal como pode ser feita justiça ao que a argumentação de Benjamin tem de pertinente.

É óbvio, portanto, que tem de ser corrigida a equiparação da religião ou da "magia" com o capitalismo, que em Lohoff apenas resulta particularmente pateta. A correcção introduzida por Gerold Wallner (e entretanto também por Jörg Ulrich e mesmo por Petra Haarmann), porém, em nada se assemelha à acima esboçada, acabando por conduzir à liquidação do problema colocado. Wallner começa por criticar a analogização com todo o acerto: "Se, porém, agora se tornou moderno… dissecar o capitalismo recorrendo ao trecho de Marx sobre o fetiche, para ver se não se esconderá nele afinal uma tradição religiosa, quase que revelando uma actuação de Deus no seu seio (pois é assim que se tem de encarar um empreendimento que critica o capitalismo por no fundo ter permanecido uma religião, pretendendo esclarecê-lo acerca de si mesmo), se a compra e a venda não serão actos de culto, se o direito não será uma metafísica e o acto de ganhar dinheiro uma adoração, sendo esta religiosidade incompreendida de facto lançada contra ele para o desacreditar, … então o resultado pecará por outros defeitos. A modernidade não continua a desenvolver irreflectidamente o instrumentário de uma explicação religiosa do mundo, estabelecendo antes uma explicação do mundo completamente nova que lhe permite descobrir um mundo novo" (Exit 3, p. 56).

Ou seja, Wallner reintroduz o momento da diferença fundamental contra a excessiva insistência no comum, expressa numa conceptualidade quase religiosa ou mágica; mas apenas o faz para logo cair no erro contrário: "A própria maneira de ver moderna exige que… se veja continuidade onde ela não existe. Deus já deu o que tinha a dar… Aqui pode entrar em jogo o fetiche da nossa constituição, aqui o valor pode fazer-nos crer o que conseguimos e a que reconhecemos valor uns nos outros, mas já não é a religião que o faz" (ibidem, p. 56 sg.). A definição apressada de uma comunhão de religião e capitalismo no plano do conceito de Deus (ou mesmo das "práticas mágicas" como em Haarmann e Lohoff), portanto no sentido de uma "continuação da religião por outros meios", surge assim simplesmente como o erro de "ver continuidade onde não a há" (ou seja, mesmo nenhuma). Juntamente com a errónea analogização da religião (constituição religiosa) com o capitalismo pretende-se eliminar o momento de uma definição abrangente enquanto tal.

Wallner confunde mais uma vez os níveis de abstracção; ele não quer ver que aquela analogização teórica de curto alcance deve ser corrigida, de modo que o comum entre capitalismo e religião seja definido a outro nível da reflexão, a saber, ao nível do conceito de (diferentes) relações de fetiche. Em vez disso, a crítica da identificação de capitalismo e religião torna-se de novo um simples veículo para o propósito de rejeitar a concepção de uma "história de relações de fetiche"; "(Assim) agora apresentamos a história como história de relações de fetiche e — tal como os antigos portugueses — fazemos dos deuses fetiches… O fetiche não é deus, o valor não é a criação" (ibidem, p. 61 sg.). Wallner despeja o bebé com a água do banho; ele não reconhece o conceito de relação de fetiche como outro nível de abstracção, no qual se pode identificar um momento comum, abrangente, de "relações de relacionamento com Deus" e "relações de valor-dissociação", apesar da constituição completamente diferente das respectivas relações de reprodução e da ruptura entre elas existente. Nas formulações de Wallner de novo se pode reconhecer o apriorismo que consiste em reservar sem adequada fundamentação o conceito de fetiche só para a constituição moderna; conceito que, nesta confusão dos níveis de abstracção, poderia com igual razão e inversamente ser reservado em exclusivo para a constituição religiosa e rejeitado para a modernidade. Wallner esforça-se simplesmente por negar todo e qualquer conceito abrangente da teoria da história e, portanto, por deixar deitar a perder por completo o conceito de "história de relações de fetiche".

Jörg Ulrich começa ainda por se defender um pouco de se deixar implicar na queda conceptual de Wallner. Ele vê que Wallner pretende denunciar a linha de pensamento de Benjamin simplesmente como ideologia do iluminismo, não corrigi-lo, mas denunciá-lo totalmente: "A explicação do ‘capitalismo como religião’ permanece para Wallner… um empreendimento profundamente iluminista e assim ideológico, pois aqui o capitalismo é esclarecido apenas sobre si mesmo, dizendo-se-lhe que não suplantou realmente e religião, e que portanto não passa de uma nova forma de explicação religiosa do mundo, ou seja, o iluminismo não teria atingido o seu objectivo de classe e teria agora de ser empurrado para além de si mesmo e ser conduzido à verdadeira superação da religião… A ser assim, então, o debate conduzido em no seguimento do fragmento ‘Capitalismo como religião’ de Walter Benjamin seria um combate aparente pseudo-crítico, totalmente imbuído do espírito do iluminismo, num campo que o próprio iluminismo e a modernidade há muito abandonaram…" (Jörg Ulrich, „Der" Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter ["O" ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora - http://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=251/t_blank]).

Ulrich pressente que aqui o bebé é despejado juntamente com a água do banho; mas para já limita-se a defender o seu velho princípio da analogização: "Ora, parece-me que a questão que aqui se põe é se não podem ser ambas pensadas em conjunto: o dado incontestável do obsoletismo do Deus tradicional e a ‘divindade’ ou a "fixação em deus’ da moderna relação de fetiche, precisamente no e através do estranhamento do mundo por ela imposto. Não me parece que tenha sido refutada pela tese de Wallner a minha tese de que a moderna ‘queda de Deus no abismo do seu próprio conceito’ abole radicalmente este Deus na sua forma tradicional (o Deus-patriarca de barba e careca), mas que este se conserva precisamente nesta abolição e através dela, apenas de modo diferente, já não como o Deus existente, que garante a salvação, mas como um deus ainda a devir" (ibidem).

É perfeitamente óbvio que também Ulrich confunde os níveis de abstracção, só que de um modo exactamente inverso ao de Wallner. Uma vez que ele pretende, de certa maneira, manter a definição do capitalismo como "continuação da religião por outros meios", portanto como uma espécie de "relacionamento com Deus", "apenas diferente" (e nesta medida bem à semelhança dos jovens hegelianos), ele falha o plano da reflexão do conceito de relações de fetiche. As relações de valor-dissociação já não são fundamentalmente relações de relacionamento com Deus; nem há que procurar o momento da comunhão neste plano imediato, mas sim no plano da mediação do conceito de uma matrix apriorística, que por sua vez se tornou de outra maneira autónoma face aos seres humanos empíricos, tal como foi exposto acima com brevidade. Apenas com um conceito de relações de fetiche assim entendido na teoria da história se pode preservar a unidade de diferença e identidade, sem cair conceptualmente em uma ou outra perspectiva unilateral. Ao procurar o momento da comunhão numa espécie de falsa imediatez, no plano do conceito religioso de Deus, persistindo portanto nessa definição em curto-circuito, Ulrich coloca-se numa insustentável posição defensiva.

Não admira que Ulrich acabe por capitular, e o problema seja tratado a breve trecho com os "outros olhos" do erro simplesmente inverso de Wallner no que toca aos planos da reflexão. Já no prefácio, escrito posteriormente à sua crítica truncada a Wallner, se exprime esta capitulação incondicional: "O texto que se segue ainda não trata o tema completamente… com outros olhos. Talvez se possa dizer que aqui participa apenas um outro olho, enquanto o segundo permanece ainda mais ou menos agarrado ao ponto de vista tradicional. Mas, precisamente por isso, o texto descreve o caminho pelo qual, impulsionada pela reflexão de Gerold, a própria reflexão teórica vai mais além" (ibidem). Na realidade, Ulrich deixou-se simplesmente enredar na queda conceptual de Wallner, abandonando completamente o momento da comunhão, depois de (tal como Petra Haarmann) o ter estafado de forma errónea. De repente pretende-se que já nada pode haver de comum entre as constituições religiosa e capitalista.

O que já se manifestara em Wallner através do conceito de historicidade como "absolutização da diferença" repete-se agora com o próprio conceito de formações históricas com constituição diferente. Todo o arranjo converge numa unilateral metafísica da diferença, em que, juntamente com o conceito de "história de relações de fetiche", se pretende enterrar toda e qualquer reflexão abrangente da teoria da história. Ulrich não ousou ir até ao fundo na verificação do pressentimento de que este modo de proceder conduz numa direcção perfeitamente desesperada. Quase parece como se lhe tivesse aparecido em carne e osso a musa do desarmamento teórico, sob cujo beijo a capacidade de compreensão ameaça esmorecer. Entretanto Petra Haarmann (no último debate da antiga redacção da Exit, pouco antes de ter abandonado o círculo da Exit juntamente com Ulrich, Wallner e outros) passou-se por completo para uma posição de absolutização da diferença, depois de ela própria ter levado a "magia" a passear através dos séculos, de um modo absolutamente indiferenciado. O erro próprio não é corrigido enquanto tal, mas é imputado à concepção de "história de relações de fetiche", e assim o plano de abstracção que Haarmann tinha falhado duplamente é eliminado enquanto tal. Foi também por isso que já não houve lugar a um debate comum do problema do fetiche que fosse além das reduções de Ulrich e de Haarmann, mas a analogização errónea da religião com o capitalismo, num simples processo de inversão, foi substituída pela igualmente errónea amputação do conteúdo de teoria da história do conceito de fetiche.

Do ponto de vista de uma reflexão crítica (não de lógica identitária) da relação de diferença das constituições históricas, por um lado, e da sua generalidade negativa definível em termos de teoria da história, no sentido de relações de fetiche, por outro, Ulrich não chegou, portanto, a abrir "outro olho", mas apenas trocou um olhar truncado por outro igualmente truncado. O que se apresenta como continuação do desenvolvimento da própria reflexão teórica é de facto, por maioria de razão, um "combate aparente pseudo-crítico", no qual agora, contra a falsa hipostasiação da comunhão ("capitalismo como religião" ou como reprodução de "práticas mágicas"), é posta em campo uma igualmente falsa hipostasiação da diferença (já sem qualquer momento abrangente). Ulrich não tardou a despenhar-se no "abismo do seu próprio conceito"; é esse o destino geralmente auto-preparado do moderno rei dos filósofos, que ainda se revelará como continuação, não criticamente reflectida por Wallner, nem por Ulrich e Haarmann, da filosofia burguesa da história.


Inclusão: 004/11/2020