A História como aporia
Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

Robert Kurz


10. Alinhar com o processo de desmoronamento da filosofia burguesa da história?


Como já se viu relativamente à “visão da história” do ponto de vista específico da modernidade, Gerold Wallner ignora em grande parte as referências teóricas no seu raciocínio; a sua argumentação em lado nenhum está mediada com o progresso da reflexão burguesa sobre a teoria da história e não faz qualquer referência à respectiva literatura, pelo contrário, permanece solta, ao estilo de um “pensamento próprio” que nunca sabe que já está sempre num contexto, correndo o risco de se adaptar inconscientemente a uma tendência que já está pré-determinada e leva muito longe de qualquer intenção crítica. Se Wallner no posfácio de seu artigo diz com orgulho: “Audaciosamente contei a história pertencente ao paradigma moderno, quase ao fóssil característico da modernidade” (Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história com as gentes], ibid.), pois isso não será assim tão “audacioso”, ou aparecerá como “audacioso” apenas no interior do discurso até aqui havido da crítica da dissociação-valor, ao passo que na realidade o argumento se liga simplesmente a um discurso burguês há muito definido fora do nosso campo de crítica. Wallner parece assim um pouco como aquele homem famoso que isolado na selva reinventa a roda e com isso fica feliz, quando já há auto-estradas cá fora.

O seu raciocínio refere-se implicitamente a um discurso que já circula há 150 anos pela discussão académica da teoria da história. Trata-se da oposição entre “verdade da história” (universalismo) e “historicidade da verdade” (relativismo), entre “explicar” (filosofia da história) e “compreender” (hermenêutica), entre continuidade teleológica (metafísica do progresso numa base ontológica) e descontinuidade/ruptura (metafísica da contingência), entre universalidade (ponto de vista trans-histórico) e particularidade (“individualidade” das épocas, sucessão em série de “práticas”) da história. Para uma crítica radical, o importante seria, como em todas as oposições polares do pensamento burguês, decifrar a sua identidade negativa e chegar a uma maneira de pensar para além dela. Wallner, no entanto, toma partido visivelmente apenas por um lado da polaridade burguesa, ou seja, pelo relativismo, pela “dimensão da compreensão” ou hermenêutica, pela metafísica da contingência ou da descontinuidade e pela singularidade/individualidade ou particularidade abstracta do objecto. Na sua ânsia de subsumir denunciatoriamente o conceito de “história de relações de fetiche” sob a clássica metafísica da história no sentido de Hegel ou do materialismo histórico, ele cai apenas do outro lado da imanência polar da teoria da história do pensamento burguês.

No entanto, esta polaridade imanente tem um conteúdo ideológico perfeitamente definido. É a oposição interna reencontrada entre iluminismo burguês e contra-iluminismo burguês (que deve ser entendido como a outra face do próprio iluminismo), entre racionalidade capitalista (androcêntrica) e irracionalismo (igualmente androcêntrico), entre pensamento progressista e reacção romântica, como também de algum modo na discussão da teoria da história enquanto oposição entre universalismo e relativismo, entre explicação (quase naturalista) e compreensão (intencional), entre continuidade “de acordo com uma lei” e descontinuidade contingente etc., oposição em que o lado contra-iluminista teve os seus principais representantes entre os filósofos, historiadores e teóricos da história no contexto da “ideologia alemã” ou dos seus antecedentes; e de facto com profundas repercussões na pós-modernidade, em parte através dos desvios franceses, onde elementos deste pensamento figuram agora por todo o mundo como suplantação meramente aparente da velha oposição, coincidindo cada vez mais com um apagar das oposições entre “esquerda” e “direita”, “liberal” e “conservador”. Este apagamento das antigas oposições mostra indiretamente a crise fundamental das bases sociais comuns, crise donde surge a exigência de uma crítica categorial da modernidade com base na teoria da dissociação-valor, que não tem nada a ver com a corrente contra-iluminista e que também tem de ser formulada justamente em termos de teoria da história. Uma vez que Wallner agora, sem reflectir sobre isto, se junta unilateralmente à corrente burguesa da teoria da história ligada à tendência do contra-iluminismo e aí enraizada, está a dirigir-se, é preciso dizê-lo desde já, para um terreno pantanoso no qual a crítica radical só pode perder-se.

Não se trata aqui apenas de uma polaridade estrutural do discurso moderno da teoria da história, mas também do seu tratamento em ligação com o desenvolvimento da sociedade, isto é, com a ascensão e crise do moderno patriarcado produtor de mercadorias. Estamos portanto perante uma “história da teoria da história” (ou da filosofia da história) que é mediada com a história interna do capitalismo e com os “interesses condutores do conhecimento” a ela associados, no sentido da respectiva auto-afirmação do sujeito masculino e branco ocidental (MBO), e que também se manifestou na visão da história e nas suas modificações.

Como “grandes orientações” aqui no essencial “cristalizaram-se três tipos de pensamento histórico: filosofia da história, historicismo e pós-história... A filosofia da história dominou do século XVIII até ao início do século XIX, o historicismo é essencialmente um fenómeno do século XIX e início do século XX, a crítica radical da filosofia da história e a pós-história pertencem à segunda metade do século XX” (Johannes Rohbeck, Geschichtsphilosophie [Filosofia da História], Hamburgo 2004, p. 21). Claro que isto é uma divisão esquemática, mas que pode ser útil para uma orientação básica, como visão geral. Na verdade, essas três “grandes orientações” sobrepõem-se, há vários remakes e, como na história sócio-económica da sociedade (história da modernização) também na história da teoria da história se encontram “dessincronizações”. Mas essas diferenciações não podem ser aqui abordadas.

A filosofia da história em sentido estrito, como já se viu, pertence primeiramente ao iluminismo e à sua continuação até Hegel. Caracteriza-se por duas marcas essenciais, a saber, em primeiro lugar, por um fundamento ontológico trans-histórico e, em segundo lugar, por uma determinação teleológica; a história como “colectivo singular” deve, por conseguinte, ter uma orientação. O fundamento ontológico já foi lançado nos princípios do iluminismo como ontologia a-histórica ou trans-histórica da razão; ou seja, “da” razão “do” homem como tal, em que o “homem” era explicitamente entendido como o sujeito masculino e branco ocidental (MBO) (como em Kant). Daí resultou também no contexto da colonização externa a desqualificação racista da humanidade não-europeia, especialmente dos negros africanos, como semi-homens “irracionais”.

Este fundamento ontológico foi posteriormente completado por uma teleologização da história culminante em Hegel; como já foi mencionado, em conexão com a expansão social do “trabalho abstracto” e com base na sua entrada indirecta para a reflexão histórica, à medida que começou o desenvolvimento do capitalismo sobre os seus próprios fundamentos com a industrialização. De acordo com o desenvolvimento real, foi assim dinamizada a ontologia da “razão” e do “trabalho abstracto” e estendida para trás na história como sua “orientação final”, como processo ascendente de formas inferiores para formas superiores. Esta filosofia da história moderna clássica aproveitou a ideia pré-moderna de uma analogia entre o processo de crescimento dos indivíduos e o desenvolvimento histórico das sociedades (nisso um momento de continuidade na reflexão); mas agora já não no sentido do tempo agrário cíclico, como processo de ascensão e declínio, mas no sentido do tempo linear moderno do “trabalho abstracto”, como processo de desenvolvimento ascendente, justamente como metafísica do progresso. O fim temporal, a morte cai aqui significativamente fora da observação; a história linear só deveria percorrer a subida do estado irracional através das idades imaturas até à “situação definitiva” do MBO maduro, “adulto” (até Marx se refere nos Grundrisse aos gregos antigos como “crianças precoces”). Esta filosofia da história burguesa clássica, determinada ontológica e teleologicamente, pertence claramente ao optimismo capitalista desde a Revolução Francesa, cuja metafísica do progresso se referiu cada vez mais à encarnação da “razão” na ciência e na indústria, tendo a “razão” sido logo reduzida ao positivismo.

Marx e o marxismo viraram esta filosofia burguesa da história “de modo materialista” numa história da dialéctica de “forças produtivas e relações de produção”. Como noutras questões da reflexão filosófica, da política, da economia etc., também relativamente à filosofia da história este pensamento se concebe como “herdeiro” legítimo do iluminismo e do idealismo alemão, enquanto “a burguesia” teria atraiçoado a sua própria “herança”. Para Marx, este desenvolvimento é bastante fragmentário e de modo nenhum claro, porque também a este respeito o Marx “exotérico” e o “esotérico” não condizem; mas no marxismo do movimento operário encontra-se uma continuação muito linear e frequentemente mecânica da metafísica do progresso burguesa em trajes “materialistas”.

De facto, a filosofia burguesa da história, em paralelo com a viragem materialista do marxismo (e em defesa furiosa contra ele) continuou a desenvolver a sua “visão da história” de uma forma completamente diferente. Mesmo Hegel e a metafísica do progresso se tornaram objecto da crítica burguesa formulada na teoria da história do chamado historicismo. O historicismo negou cada vez mais o continuum de uma história de desenvolvimento ascendente da humanidade e, portanto, a “história dum colectivo singular”. Em vez disso, ele enfatizou a “individualidade” e “espírito” específico de cada época, épocas que já não podem ser ligadas por qualquer laço interior, mas devem estar numa sequência meramente contingente. O conhecimento histórico não será possível no sentido de uma “verdade da história” universal através do “esclarecimento” objectivo da teoria da história segundo o modelo das ciências naturais, mas apenas através de um “entendimento” (hermenêutica) como “empatia divinatória” (Dilthey) com o espírito da época e a sua “intencionalidade”. Como instrumento para esta compreensão foi desenvolvida a crítica das fontes (que Wallner refere de modo completamente errado; voltarei ao assunto no final com mais detalhe); como legitimação teórico-metodológica, o reconhecimento do carácter historicamente relativo da própria posição e do carácter interpretativo da ciência da história, que não poderia reivindicar nenhuma objectividade (ao contrário das ciências naturais).

Aqui também deve ser procurada a raiz do discurso das “duas culturas” (C. P. Snow), da oposição entre as ciências naturais e as ciências humanas; outra polaridade imanente ao pensamento burguês que deve ser suplantada, envolvendo a reflexão crítica as condições sócio-históricas de ambas as formas do saber. Se o historicismo se retirou para o entendimento como empatia (interpretativa), ele subjectivou a teoria da história de modo igualmente unilateral, tal como nas concepções positivistas ela foi inversamente transformada numa ciência pseudo-natural (à semelhança do que aconteceu no desenvolvimento da economia política). A polaridade imanente ao pensamento burguês emergiu a partir de então na teoria da história como oposição entre positivismo e hermenêutica, generalizada como a diversidade das abordagens de “ciências naturais” e “ciências humanas”. Implicitamente, com a subjectivação do pensamento da teoria da história através do historicismo, também a fundamentação ontológica trans-histórica do processo histórico foi questionada, mas ao mesmo tempo foi ainda mais reelaborada com conceitos ontológicos e categorias modernas ontologizadas. A dialéctica sujeito-objecto do pensamento moderno constituído na lógica do valor e da dissociação reproduz-se também na teoria da história; a subjectivização e relativização hermenêutica vira-se com rigidez ontológica em lei pseudo-natural (e vice-versa), como também se verá com mais detalhe em Wallner & Cª.

O reconhecimento pelo historicismo da relatividade da historicidade e da contemplação da história não seguiu qualquer interesse crítico contra o capitalismo, pelo contrário, estava ligado à sua afirmação incondicional. A modificação da “visão da história” burguesa seguiu aqui dois pontos de vista em função do interesse. Por um lado, essa relativização reflecte as contradições capitalistas gerais agravadas na industrialização e no surgimento do imperialismo nacional, sob cuja impressão a metafísica do progresso clássica começou a desaparecer. Após o marxismo do movimento operário ter “herdado” esta metafísica do progresso na forma invertida “de modo materialista”, o pensamento académico oficial virou-se, no sentido da afirmação, e não apenas em termos de teoria da história, num gesto de relativismo e cepticismo “doutos”.

Por outro lado, esta viragem burguesa da “visão da história” passou por um particular florescimento no contexto da constituição nacional alemã “atrasada” e da “ideologia alemã” daí surgida. O Império Alemão recém-fundado precisava de uma legitimação histórica específica, em que era preciso provar, contra o “universalismo ocidental”, a particularidade do sangue alemão, a “individualidade histórica” da germanidade fundada “na raça”. Em termos de filosofia da história, esta ideologia foi por sua vez universalizada como “individualidade” autónoma dos “povos”, épocas e culturas; e isto recorrendo a Herder, que já no final do século XVIII tinha sublinhado este ponto de vista. A metafísica da contingência da teoria da história e a hermenêutica da história no sentido de “empatia” para com os passados dilacerados, pensados como inacessíveis a qualquer “explicação” teórica e mistificados, têm as suas raízes claramente nesta beberagem da ideologia alemã, que remonta ao final do século XVIII.

Sob o impacto das guerras mundiais e da crise económica mundial na primeira metade do século XX, o historicismo foi dar na chamada pós-história, constituindo Nietzsche e Heidegger momentos de mediação. A pós-história inicialmente significava um retorno à filosofia da história e ao seu fundamento ontológico, mas agora virada negativa; como uma espécie de metafísica do anti-progresso ou teoria ontológica do destino, da ausência de sentido e muitas vezes também da catástrofe. Spengler juntou este ponto de vista com a teoria da “individualidade” do historicismo no seu Untergang des Abendlands [A decadência do ocidente]; mais tarde a pós-história focou como ponto principal o “fim da significação” e a extinção da história no Estado de massas tecnológico, e isso de diferentes maneiras em Gehlen, de Jouvenel, Jünger, de Man, Kojève entre outros. Este pensamento da pós-história é aparentado e mediado com a ideologia da “revolução conservadora”, que também contribuiu para flanquear o nacional-socialismo no campo das ideias. A ênfase no destino (Heidegger) e na ausência de sentido refere-se tanto à crise incipiente da identidade masculina, como à autonomização unidimensional da tecnologia, dos media, do consumo de massas etc. O contexto da forma capitalista de relação de dissociação-valor é aqui em grande parte ocultado ou reinterpretado de modo anti-semita e anti-americano; nessa medida trata-se de um processamento profundamente afirmativo e virado ontológico das experiências da época catastrófica.

Também Benjamin, Horkheimer e Adorno são frequentemente atribuídos à pós-história. Encontram-se realmente momentos dela, por exemplo na Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Esclarecimento], como é o caso da ontologização da dominação tecnológica da natureza como dominação dos seres humanos e como fatalidade. Mas em Adorno estes pensamentos são sempre simultaneamente mediados com uma crítica da forma capitalista e com um impulso anti-ontológico agudo, especialmente contra Heidegger. Portanto a sua atribuição à pós-história (como em Rohbeck) é mecânica e superficial; assim apaga-se a diferença crucial.

Desde os anos 60 e 70 pode falar-se até certo ponto de uma segunda onda da pós-história no contexto da pós-modernidade. A fórmula cativante de Lyotard sobre o “fim das grandes narrativas”, tornada rifão do pensamento pós-moderno, foi aceite por este pensamento e por todo o discurso pós-moderno na reflexão sobre a teoria da história; e justamente porque se pretende que esta seja definitivamente posta de lado. Mesmo a filosofia da história tornada negativa da primeira onda da pós-história é objecto de crítica, não podendo a história como tal aparecer já nem sequer como negativa.

Dois pontos de vista são aqui aduzidos no essencial. Por um lado, qualquer pensamento abrangente é considerado como “totalitário”; a história (e a sociedade) são dissolvidas e atomizadas. Tal como no historicismo, mais uma vez o momento “explicativo” da teoria da história é objecto de rejeição; mas esta abordagem é radicalizada e virada até mesmo contra o próprio historicismo: agora já nem sequer devem existir épocas ou “culturas” entre si completamente descontextualizadas mas em si ainda coerentes, com cujo “espírito” se poderia estabelecer “empatia”, mas a “individualidade” histórica é mais uma vez degradada em fenómenos particulares como “átomos de história” (em Foucault desfazendo-se entre si em “práticas”), sem qualquer contexto abrangente, por isso também sem qualquer conceito de época ou de formação. Assim, “... Lyotard exige, em vez da grande narrativa, muitas pequenas narrativas. No lugar da história do colectivo singular deve surgir a pluralidade das histórias, em vez da unidade, a multiplicidade” (Rohbeck, ob. cit., p. 147).

Por outro lado, como consequência lógica desta atomização da história, nega-se qualquer momento de continuidade. Não devem existir mais quaisquer transições nem processos de transformação, mas o “programa da descontinuidade” (Foucault) reconhece apenas “rupturas” repentinas entre “séries” (um conceito tomado da escola histórica francesa dos Annales) descontextualizadas. Para Foucault, que declarou francamente o “assassinato da história”, desta absolutização da descontinuidade e da ruptura decorre a “singularidade radical” dos acontecimentos históricos, como ele diz no trabalho Von der Subversion des Wissens[Da subversão do saber]. Justamente neste contexto de argumentação Foucault orienta-se, como ele mesmo diz, fundamentalmente por Nietzsche e fundamentalmente contra Marx (apesar da “fraternidade” sublinhada pelo Foucault tardio em relação à teoria crítica de Adorno, por ele descoberta tarde, ele exclui aqui explicitamente o curso dos pensamentos sobre a teoria da história, orientando-se neste aspecto também contra Adorno).

Como já se viu, Foucault não fica absorvido nesta metafísica da contingência e da descontinuidade; mas as suas elaborações conceptuais analíticas e investigações materiais susceptíveis de integração no conceito de “história de relações de fetiche” devem ser rigorosamente separadas do programa pós-moderno de fragmentação teórica e das suas conotações ideológicas. Pois a anti-teoria da história do pensamento pós-moderno, que figura como segunda onda da pós-história, como última etapa da decomposição da “visão da história” burguesa, reflecte de modo completamente afirmativo a decomposição na crise do moderno patriarcado produtor de mercadorias desde o último terço do século XX. Uma vez que se desfaz qualquer conceito de teoria da história abrangente, mesmo apenas no sentido da coerência de uma época ou formação, a crise fundamental do contexto da forma social deve ser escondida. Se não há qualquer formação coerente da modernidade, tal a “esperteza” deste raciocínio, então também não há um fim para esta formação histórica, porque não pode acabar o que não existe (ou que supostamente existe apenas num modo de pensar crítico declarado fundamentalmente obsoleto).

A renúncia a qualquer conceito abrangente de teoria da história coincide com a ausência de uma reflexão crítica sobre o todo da própria sociedade capitalista. A atomização do contexto social é reinterpretada como “diversidade”, a crise como “abertura contingente” e “ruptura”, sem questionamento do contexto formal; e esta ideologização surge novamente como atomização da história e sua dissolução em momentos individuais contingentes. Tanto em termos de teoria da sociedade como de teoria da história o pensamento dos contextos abrangentes é tornado tabu e acusado de “totalitarismo” para não ter de se estabelecer nenhuma conexão entre crise e crítica do todo negativo. A crítica deve ser obrigada à particularidade de práticas discursivas ou completamente dissolvida.

Agora seria de facto errado, contra a desintegração final da filosofia burguesa da história, querer fazer valer mais uma vez a sua “herança”, como o fez o marxismo tradicional em fases anteriores deste processo de decomposição. Pelo contrário, trata-se de suplantar a filosofia burguesa da história como tal, como expressão ideológica das relações de dissociação-valor, e esclarecer o contexto interno da “visão da história” moderna clássica, com os seus produtos de dissolução progressiva no historicismo e nas duas ondas da pós-história. Mas Wallner, Haarmann e Ulrich fazem exactamente o contrário; eles criticam a filosofia da história universalista iluminista, incluindo a de Hegel e a do materialismo histórico de Marx, apenas no sentido do pólo oposto imanente e das configurações pós-hegelianas da “visão da história” burguesa. O que se fez passar por “outro olho” completamente diferente para além da “visão tradicional”, como maneira de pensar inteiramente nova e até mesmo como um maior desenvolvimento da teoria crítica da dissociação-valor, não é senão a viragem para o processo de decadência da filosofia burguesa da história, que apenas é criticada do ponto de vista dos seus próprios produtos de dissolução. Com isso pode agora a musa inspiradora de Ulrich ser definitivamente apanhada como a do demónio da pós-modernidade.

Há no entanto um pequeno problema. Porque, na medida em que esta tendência de viragem para os produtos da dissolução da filosofia burguesa da história ainda se legitima no contexto da teoria crítica da dissociação-valor (que começa a abandonar), ela não pode renunciar ao conceito de formações históricas, ou seja, não pode sem mais atomizar a história completamente como Foucault. O conceito de formação ou constituição histórica, como determinação em cada caso abrangente, apresenta no entanto na reflexão da crítica da dissociação-valor um momento de continuidade relativamente à teoria de Marx. O materialismo histórico de Marx, uma história de forças produtivas e lutas de classes, é transformado numa “história de relações de fetiche” com a ajuda do conceito de fetiche; e só assim pode o conceito de formações históricas ser mantido no campo da crítica marxiana. Descartando agora Wallner & Cª. fundamentalmente o conceito de “história de relações de fetiche”, eles deixam o conceito de formação implicitamente no ar. A metafísica pós-moderna da diferença, da contingência e da descontinuidade é com ele realmente incompatível.

O falatório de Wallner sobre o “ponto de vista hermenêutico” sugere como este problema deve ser resolvido, ou seja, através do recurso ao historicismo e à sua ideia de épocas, cada uma com o seu próprio “espírito”. De qualquer modo em Wallner a tendência para a “história espiritual” e para a dissolução da história na intencionalidade respectiva dos “antepassados” vai nessa direção. Este recurso positivo ao historicismo como precursor da metafísica da diferença pós-moderna também se encontra num pós-moderno liberal académico como Odo Marquard: “A história universal torna-se humana apenas através do historicismo, ou seja, através daquele modus de auto-distanciamento europeu tardio do sentido histórico, que permite aos seres humanos... terem não só uma história, mas muitas histórias, em que estão envolvidos e que podem e devem contar...” (Odo Marquard, Apologie des Zufälligen [Apologia do contingente], Stuttgart, 1986, p. 72). Este é o “som original” de Die Leute der Geschichte [As gentes da história] de Wallner, mesmo que ele talvez não o saiba. Porém a história universal não se tornou “humana” com o historicismo, mas sim realmente desumana enquanto relativismo histórico, porque mediada através da filosofia da vida e dos seus derivados aprofundados no anti-universalismo específico do nacional-socialismo. Em vez do conceito crítico de “história de relações de fetiche” agora então um conceito afirmativo de formação com o “espírito das épocas” do historicismo como pano de fundo.

Com isto, no entanto, em Wallner & Cª. o conceito de formações históricas é retirado do campo da crítica marxiana e transplantado para o campo da “ideologia alemã”, onde o historicismo radica e de que é parte integrante. O conceito de formação neste sentido confunde-se então com o conceito a-histórico de “historicidade” existencial que surge da transformação do historicismo e da hermenêutica da história em Nietzsche e especialmente em Heidegger. Só se pretende evitar a completa atomização pós-moderna da história de modo que o mais recente produto da dissolução da filosofia burguesa da história seja contraposto a um anterior em relação ao conceito de formação. Confirma-se a suspeita de que justamente as referências de Foucault que devem ser descartadas são reconfiguradas para uma falsa “salvação” do conceito de formação arrancado à força do campo da crítica marxiana. Pois como poderiam Wallner & Cª. de outro modo continuar sequer a falar de formações históricas?

Atrás do recurso implícito ao historicismo, combinado com uma adaptação da metafísica pós-moderna da diferença e da contingência, espreita uma furtiva nietzscheanização e heideggerização da crítica da dissociação-valor, que assim deixa de o ser e desiste de si mesma para desembocar numa tendência reacionária, que também já se manifestou na inversão e deturpação do conceito de metafísica. Não seria a primeira vez que um pensamento assente na crítica categorial da modernidade deriva numa direcção simplesmente contra-iluminista. Isso já aconteceu a Adorno com alguns dos que receberam a sua obra. Esta queda e esta ruptura com a crítica da dissociação-valor são dissimuladas com a pretensão presunçosa de conseguir supostamente “pensar contra si mesmo” com Adorno e Foucault, o que, contudo, mais que nunca equivale na realidade a um sacrifício da própria identidade por motivos bastante pré-teóricos, como pretendo mostrar no próximo ponto.


Inclusão: 004/11/2020