Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

I — Religiosidade da burguesia e irreligiosidade do proletariado


Sob os auspícios dos sábios ilustres, Berthelot e Haekel, o livre-pensamento burguês teve singular interesse em levantar sua tribuna em Roma, frente ao Vaticano, para lançar sua eloqüência oratória contra o catolicismo, o qual, por meio do seu clero jerárquico e seus dogmas, julgados imutáveis, representa para ele a religião.

¿Porque fazem processo do catolicismo e crêem os livre-pensadores estar isentos da crença em Deus, base fundamental das religiões, qualquer que seja o seu nome?¿Supõem que a burguesia, classe a que pertencem, pode prescindir do cristianismo, do qual é uma manifestação evidente?

Tenha podido, embora, adaptar-se a outras fórmas sociais, o cristianismo é, por excelência, a religião das sociedades que descansam sôbre as bases da propriedade individual e da exploração do trabalho assalariado; por isso, tem sido, é e será — diga-se e faça-se o que se quizer — a religião da burguesia. Após mais de dez séculos, todos os seus movimentos, realizados só para organizar-se, para emancipar-se, ou para elevar ao poder a um dos seus, têem sido acompanhados de crises religiosas, havendo posto sempre os interesses materiais, cujo triunfo importava, sob a protecção do cristianismo que declarava querer reformar e conduzir à pura doutrina do divino mestre.

Supondo que era possível descristianizar a França, os burgueses revolucionários de 1789 perseguiram os curas com grande fúria. Os mais lógicos, pensando que nada poderia conseguir-se emquanto subsistisse a crença em Deus, aboliram êste por decreto, como se se tratasse de um funcionário e substituiram-no pela deusa Razão. Apenas, porém, a Revolução perigou, Robespierre restabeleceu por decreto o Ser Supremo, — pois o nome de Deus não era, todavia, bem considerado — e alguns meses depois os curas saíam de seus esconderijos e abriam de novo as igrejas, onde os fieis se amontoavam, emquanto Bonaparte — para satisfazer a plebe burguesa — firmava a Convenção. Então nasceu um cristianismo romântico, sentimental, pitoresco e macarrónico, acomodado por Chateaubriand ao gosto da burguesia triunfante.

Os homens de valor do livre-pensamento têem afirmado e afirmam ainda, a-pesar-da evidência, que a sciência desembaraçaria o cérebro humano da idéia de Deus, tornando-o inútil para compreender a mecânica celeste. A-pesar disso, os homens de sciência quási com poucas excepções, vivem sob o encanto desta crença. Se na sciência que constitui a sua especialidade um sábio não necessita — segundo a expressão de Laplace — da hipótese de Deus para explicar os fenômenos que estuda, não se aventura a declarar que é inútil para dar-se conta daqueles que não entram no quadro das suas investigações, e todos os sábios reconhecem que Deus é mais ou menos necessário para o bom funcionamento da engrenagem social e para a moralização das massas populares(1). Não sómente a idéia de Deus não está de todo desvanecida da cabeça dos homens, mas que até floresce a mais grosseira superstição, não só entre a gente ignorante dos campos, mas até nas capitais da civilização e entre os burgueses instruídos, alguns dos quais estão em relação com os espíritos, com a intenção de ter notícias de além túmulo, — emquanto outros se ajoelham ante Santo Antônio de Pádua, pedindo que os faça encontrar um objecto perdido ou que lhes permita adivinhar o número que hà-de ser premiado na lotaria, ou sair bem de um exame na Universidade: — isto, quando não consultam adivinhos, sonâmbulos ou os que deitam cartas para conhecer o futuro, interpretar sonhos, etc, etc. Os conhecimentos scientíficos que possuem, não os protegem, pois, contra a mais ignorante credulidade.

Enquanto, porém, em todas as camadas da burguesia, o sentimento religioso permanece vivo e se manifesta de mil formas, uma indiferença religiosa não raciocinada, mas inquebrantável, caracteriza o proletariado industrial.

Depois dum vasto inquérito realizado pela Companhia de Saúde sôbre o estado religioso de Londres, cujos higienistas visitaram distrito por distrito, rua por rua e a meúdo casa por casa, o seu general, Mr. Booth, confirma que:

«a massa do povo não professa nenhuma religião, nem sente o menor interesse pelas cerimonias do culto...

A grande parte do povo que tem o nome de classe operária, que se move entre a pequena burguesia e a classe dos miseráveis, permanece, em conjunto, fora da acção de todas as seitas religiosas. Esta classe chegou a considerar as igrejas como simples lugares de reunião dos ricos e dos que estão dispostos a aceitar a protecção dos que disfrutam uma situação melhor do que a sua.

Na generalidade, os operários da nossa época pensam mais nos seus direitos e na injustiça de que são objecto, que em seus deveres — que nem sempre cumprem.

A humildade e a consciência de achar-se em estado de pecado não são, quiçá, naturais no operário.»

Estas afirmações incontrastáveis da irreligião instintiva dos operários de Londres, considerados, geralmente, como muito religiosos, pode fazê-las o observador mais superficial nas cidades industrializadas da França.

Se se encontram nelas trabalhadores que parecem ter sentimentos religiosos, ou que realmente os têem — êstes são raros — é porque a religião se apresenta a seus olhos sob a forma de socorros caritativos; se outros são fanáticos livre-pensadores, é porque sofreram a ingerência do cura nas suas famílias ou nas suas relações com o patrão.

A indiferença em matéria religiosa, o mais grave sintoma da irreligião, segundo Lamenais, é inata na classe operária moderna. Se os movimentos políticos da burguesia se investiram duma forma religiosa ou irreligiosa, não pode observar-se no proletariado da grande indústria da Europa e da América, nenhum desejo de elaborar uma religião nova para substituir o cristianismo, nem, sequer, o menor propósito de reformá-lo. As organizações econômicas e políticas da classe operária dos dois mundos desinteressam-se de qualquer discussão doutrinária sôbre os dogmas religiosos e sôbre as idéias espiritualistas — o que os não impede de fazer guerra aos curas de todos os cultos, porque são os servidores da classe capitalista.

¿Como é que os burgueses, que recebem uma educação scientífica mais ou menos extensa, são ainda afectos às idéias religiosas das quais se emanciparam os operários que daquela carecem?


Notas:

(1) La Revue Scientifique, de 19 de Novembro de 1904, contém uma afirmação aos nossos assertos. Dando o snr. H. Pierrou conta de um livro sôbre o «Matérialisme Scientifique», reconhece que «Deus é a causa residencial cômoda de tudo o inexplicável... que a crença teve por base suprir sempre a sciência... e que a sciência nada tem de comum com as crenças e a fé...; porém, que a religião não é absolutamente incompatível com a sciência, a condição, não obstante, de encerrá-la num compartimento perfeitamente inacessível». Protesta mesmo contra «a série de sábios da nossa época, os quais não buscam na sciência mais do que provas da existência de Deus ou da veracidade da religião... ou contra o sofisma do que busca na sciência provas da não existência de Deus». (retornar ao texto)

Inclusão 29/01/2010