Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

II — Origens naturais da idéia de Deus no selvagem


Perorar contra o catolicismo, como os livre-pensadores, ou prescindir de Deus como os positivistas, não quebranta a persistência na crença em Deus, a-pesar-do progresso e da vulgarização dos conhecimentos «científicos e a-pesar-das diatribes de Voltaire e das perseguições dos revolucionários.

É fácil perorar e prescindir, mas difícil explicar, pois, para isso, deve esforçar-se por indagar como e porquê a crença em Deus e porque as idéias espiritualistas penetraram na cabeça humana, aí encontrando raízes e se desenvolvendo.

E só pode fazer-se uma contestação adequada a estas questões, remontando-se ao estudo da metafísica dos selvagens, nos quais imperam, manifestamente, as idéias espirituais que embaraçam o cérebro dos civilizados.

A idéia da alma e da sua sobrevivência é invenção dos selvagens, os quais forjaram um espírito imaterial e imortal para explicar os fenômenos do sonho. O selvagem, que não duvida da realidade de seus sonhos, supõe que, se em sonhos caça, se bate ou se vinga, e ao acordar se acha no mesmo lugar a que se encostou, é que um outro, ou seja um doble indivíduo, segundo a sua própria expressão, impalpável, invisível e leve como o ar, abandonou seu corpo adormecido para ir caçar ou bater-se. E como se dá o caso de vêr em sonhos, seus ascendentes e seus companheiros falecidos, deduz que foi visitado pelos seus espíritos, que sobrevivem à destruição de seus cadáveres.

O selvagem, êste menino do gênero humano, como lhe chama Vico, tem, como o menino, noções puéreis sôbre a natureza; acredita que pode mandar nos elementos como nos seus membros, que lhe é possível, com palavras e práticas mágicas, ordenar à chuva que caia, ao vento que sôpre... Se teme, por exemplo, que a noite o surpreenda no caminho, áta de determinado modo certas ervas para deter o Sol, como fez o Josué da Bíblia com o seu rôgo. Tendo os espíritos dos mortos êste poder sôbre os elementos num grau muito maior que os vivos, invoca-os para que produzam o fenômeno quando tem precisão dele. Possuindo um valente guerreiro e um bruxo hábil mais acção sôbre a natureza que os simples mortais, seus espíritos, quando estejam mortos, devem, por conseqüência, ter sôbre aqueles um poder muito maior que o doble da generalidade dos homens. Por isso o selvagem os escolhe entre a multidão de espíritos para honra-los com oferendas e sacrifícios, e para suplicar-lhes que façam chover quando a seca põe em perigo a colheita, para pedir-lhes a victória quando entra em luta, ou para que o curem quando está doente.

Partindo duma explicação errônea do sonho, os homens primitivos elaboraram os elementos que mais haviam de servir para a criação de um Deus único, o qual não é, definitivamente, mais do que um espírito mais poderoso que os outros.

A idéia de Deus não é à priori, mas à posteriori, como o são todas as idéias, pois o homem só pode pensar depois de haver-se posto em contacto com as idéias do mundo real, que explica como pode.

Não é possível expor num trabalho destas dimensões, a maneira logicamente deductiva segundo a qual a idéia de Deus tenha saído da idéia da alma, inventada pelos selvagens.

Colecionando e resumindo Grant Allen as observações e as investigações dos exploradores, dos folkloristas e dos antropólogos, e interpretando-as e aclarando-as mediante a sua crítica engenhosa e fecunda, seguiu nas suas principais etapas o modo de formação da idéia de Deus na sua obra notável «Evolution de l'idée de Dieu».

Demonstrou, igualmente, mediante provas, que o cristianismo primitivo, com o seu Homem-Deus, morto e ressuscitado, sua Virgem-Mãe, seu Espirito Santo, suas lendas, seus mistérios, seus dogmas, sua moral, seus milagres, e suas cerimônias, não fez mais que recolher e organisar numa religião idéias e mitos que circulavam, havia séculos, pelo mundo!


Inclusão 01/02/2010