Conceitos Fundamentais de O Capital
Manual de Economia Política

I. Lapidus e K. V. Ostrovitianov


Livro quarto: A teoria do lucro e o preço de produção
Capítulo IV - A mais-valia na URSS
24. A questão da mais-valia na indústria estatal da URSS


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A categoria da mais-valia aplica-se à indústria de Estado? Até que ponto tinha Lenine razão de relacionar esta indústria com os elementos socialistas da economia soviética? Estas questões interessam-nos acima de tudo. Devemos, para as responder, reportar-nos às relações de produção, que se descobrem por detrás da mais-valia, a fim de as comparar às relações de produção existentes na indústria estatal da URSS.

Que relações de produção se dissimulam por detrás da mais-valia? A mais-valia supõe:

  1. existência do valor em geral, isto é, a troca de mercadorias;
  2. a concentração, nas mãos dos capitalistas, dos meios de produção, o monopólio capitalista;
  3. o trabalho assalariado.

O conjunto destes fatores condiciona a criação da mais-valia, de que se apropria o capitalista. Este e o mecanismo da exploração capitalista. Sem esta razão especifica, não há nem pode haver capitalismo.

Vejamos, agora, as relações existentes nas nossas indústrias estatais e comparemo-las às relações capitalistas. Comecemos pela primeira condição da mais-valia, pelas relações comerciais regidas pela lei do valor. Parece-me que este fantasma não tem influência decisiva, por menos que seja, sobre a resposta a dar à questão da existência da mais-valia na URSS. É verdade que é absurdo falar de mais-valia quando falta o comércio, quando não há valor em geral; mas, por outro lado, o comércio não supõe necessariamente as relações capitalistas e a existência da mais-valia. Limitemo-nos a mencionar a simples produção de mercadorias, que estudamos no capitulo do valor e, um pouco, no capítulo da mais-valia. Vemos aí relações comerciais regidas pela lei do valor, mas não vemos mais valia. Tudo isto pode ser aplicado sem restrições à indústria estatal da URSS A existência de relações comerciais na indústria da URSS e tudo o que dai decorre — circulação monetária, sistema bancário, etc. — não demonstra o caráter capitalista desta indústria. Podemos, pois, cortar a questão da aplicação ou não aplicação da categoria da mais-valia à indústria estatal da URSS independente da medida em que as relações comerciais dominam, e em que a lei do valor atua na economia da URSS em geral, e da indústria de Estado em particular(1).

Não teremos razão de considerar a nossa indústria estatal como um elemento do capitalismo ou do capitalismo de Estado, se não descobrirmos nela, além das relações comerciais, os dois outros índices característicos da mais-valia: a existência de uma classe capitalista e a do trabalho assalariado.

Detenhamo-nos no segundo índice, a existência de uma classe capitalista, de possuidores dos meios de produção. Esta classe falta na nossa indústria estatal, que pertence à classe operária organizada em Estado. Assim, o índice decisivo das relações sociais especificamente capitalistas — a existência de uma classe capitalista — não se aplica à nossa indústria estatal.

Que dizer do terceiro índice, da exploração capitalista do trabalho assalariado? Desde que não há entre nós capitalistas e que os meios de produção pertencem à classe operária, não se pode falar de trabalho assalariado. Esta conclusão pode parecer estranha a muitos, mesmo depois do que já lemos dito. Como negar a existência de trabalho assalariado nas nossas empresas estatais, quando todos sabem por experiência própria que os nossos operários assinam contratos, recebem salários, etc., como no regime capitalista? Mas sabemos que formas exteriores idênticas dissimulam muitas vezes relações sociais profundamente diferentes. As relações existentes nas nossas empresas estatais poderão ser consideradas como pertencentes ao salariato no sentido em que o compreendemos, tratando-se do capitalismo? A noção do salariato implica a transformação da força de trabalho em mercadoria. A mercadoria supõe a troca entre dois possuidores de mercadorias, isto é, no caso, entre o capitalista possuidor dos meios de produção e o operário, possuidor da força de trabalho. Na nossa indústria estatal, a classe operária organizada em Estado é o possuidor dos meios de produção e de subsistência. Nossos diretores vermelhos não são, como os dirigentes e administradores dos órgãos econômicos das nossas empresas estatais, mais do que funcionários ou comissários da classe operária. Cada operário representa uma parcela da classe operária. A quem vende ele a sua força de trabalho? Na verdade, vende-a à classe operária, de que ele próprio é uma parcela e que é a proprietária de todas as empresas estatais. Para melhor elucidar esta ideia, comparemos o operário (na nossa indústria estatal ao artesão. Por analogia com o modo capitalista de produção, podemos dividir o trabalho do artesão do mesmo modo que o do operário da fábrica capitalista. Podemos considerar a parte do trabalho que o artesão despende para produzir os artigos que consome, como representando o valor da sua força de trabalho; o que além disso ele cria e despende, por hipótese, no melhoramento e desenvolvimento do seu ofício, nós podemos comparar à mais-valia. Mas estas relações do artesanato terão alguma coisa de comum com as do modo capitalista de produção? Só terão de comum a aparência. Pode-se dizer outro tanto da nossa indústria estatal, com esta diferença ainda: que a empresa do artesão é individual enquanto a do proletariado é coletiva. Na indústria soviética estatal do proletariado, os operários são coletivamente possuidores dos meios de produção e subsistência e, assim, como o artesão, não podem explorar-se a si mesmos e não se podem vender a si mesmos a sua força de trabalho coletiva. Se, pois, empregamos em relação à nossa indústria estatal, expressões capitalistas como o termo “salário”, isto não caracteriza mais que a forma exterior dos fenômenos, sob os quais se dissimulam já novas relações sociais socialistas. Não importa o fato de que a parte da produção social que entra no consumo pessoal do operário dependa, em larga escala, do valor dos meios de consumo, que se determina sobre a base habitual das relações comerciais, isto é, do mesmo modo que o valor da força de trabalho em regime capitalista. A parte da produção consumida pelo artesão depende também do mercado. Nem por isto consideramos o artesão como operário assalariado.

O quarto índice do capitalismo consiste na apropriação do trabalho suplementar do operário, sob a forma de mais-valia, pelo capitalista possuidor dos meios de produção. O capitalista emprega esta mais-valia cm satisfazer as suas próprias necessidades, a conservar uma população de não produtores que o ser vem, e diversas instituições burguesas cujo objetivo é manter a sua dominação e, enfim, a desenvolver a sua própria produção. Ao contrário, para que serve o trabalho suplementar do operário em nossa indústria soviética estatal? Serve para melhorar as condições dos operários, para fundar escolas, jardins de infância, cursos para adultos, faculdades operárias, estabelecimentos de ensino superior, hospitais, construção de habitações operárias, criação de institutos culturais para satisfazer à necessidades da classe operária. Grande parte do produto suplementar é consagrada ao desenvolvimento da indústria socialista estatal, mas é ainda a classe operária que terá, com isto, os benefícios. O produto suplementar assim colocado lhe será restituído com o tempo. Uma parte deste produto é ainda absorvida pelas necessidades do Estado operário: administração, defesa do Estado proletário, etc.

No Estado capitalista, os capitalistas exercem o poder. A manutenção do Estado e suas instituições servem aos interesses da burguesia. Na URSS os operários estão no poder e é, por consequência, servir aos interesses da classe operária o prover as necessidades do Estado(2).

Assim, as relações de produção das nossas empresas nada têm de comum, senão a forma, com as relações capitalistas e não podemos falar, no que concerne às nossas industrias estatais, nem de exploração, nem de mais-valia. Como chamar então o produto do trabalho suplementar dado pelo operário ao Estado? Uns propõem o nome de “produto suplementar”; outros propõem a manutenção do antigo termo capitalista de “mais-valia”; outros, enfim, propõem a denominação nova de “mais-valia socialista”. Nenhuma dessas expressões corresponde à natureza das relações de produção existentes em nossa industria estatal. A expressão “produto suplementar” é inadequada, porque supõe relações naturais, enquanto que a troca permanece entre nós. A mais-valia supõe, como já expusemos, a exploração capitalista, que não existe em nossas empresas. A expressão “mais-valia socialista” encerra uma contradição interior, porque o socialismo não conhecerá nem valor, nem, com mais forte razão, mais-valia. Forçoso é resignarmo-nos, por enquanto, à inexistência de uma expressão correspondente às relações de produção que se estabelecem em nossa indústria estatal. Assim, c preciso, usando de alguns desses termos, ter sempre em mente o que eles têm de convencional e inadequado às relações estabelecidas em nossa industria de Estado.

Convenhamos em usar em nossa exposição, a expressão “produto suplementar”, embora considerando seu caráter convencional. Esta expressão tem ao menos a vantagem de indicar com justeza a tendencia do desenvolvimento de nossa economia para as relações naturais da economia socialista.

É de notar que a contradição entre a forma e o conteúdo existe também em regime capitalista e se manifesta do mesmo modo na transição da feudalidade para o capitalismo.

Marx escreve:

A decomposição do valor, materializando o trabalho novamente ajustado em proventos sob a forma de salário, lucro e renda territorial, parece tão natural, por si mesma, originada à base do modo capitalista de produção, que este método é mesmo aplicado onde as condições primárias destas formas de proventos faltam completamente. Vale dizer que se lhes assimila, por analogia, tudo o que se quer.

Demais, estas espécies de assimilação caracterizavam igualmente os modos anteriores de produção, por exemplo o modo feudal. Fazia-se entrar nesse modo relações de produção que a ele não correspondiam de forma alguma e lhe eram completamente estranhos. (O Capital, Livro III, 2.ª parte).

Devemos, para concluir, determo-nos num erro muito vulgarizado, que consiste em tentar separar as noções de exploração e mais-valia: com efeito, diz-se, o mercado e a troca existem, portanto o valor existe também; logo, pode-se falar de mais-valia sem exploração. Examinaremos, mais tarde, em detalhe, esta questão de saber em que medida a mais-valia existe entre nós. l.imitemo-nos por ora a considerar que o valor é uma categoria presente em toda economia fundada na troca, ao passo que a mais-valia é especificamente capitalista.

A noção de exploração não pode de modo algum ser separada da de mais-valia, visto não ser a mais-valia senão a forma especificamente capitalista da exploração. Assim, os que tentam, negando a exploração nas empresas soviéticas estatais, encontrar nelas a produção de mais-valia, caem numa contradição insolúvel e transformam a mais-valia, categoria histórica própria somente do capitalismo, numa categoria mais geral própria de toda economia fundada na troca.

Mencionemos, por fim, o argumento, que se atira às vezes contra o caráter socialista das relações de produção que se estabelecem nas nossas empresas estatais, tirado do fato de viverem os nossos operários mais pobremente do que os outros dos países capitalistas mais adiantados, em vez de terem uma cultura mais alta, e do fato de viverem estes operários às vezes pior do que os das empresas capitalistas privadas. Os que formulam estas objeções confundem, mais uma vez, duas coisas diferentes. Uma coisa é o nível do bem-estar material e outra a estrutura das relações sociais.

É verdade que tivemos, por diversos motivos — e em seguida a duas guerras: guerra imperialista e guerra civil — uma diminuição tão grande do bem-estar material, que somente agora começamos a nos aproximar do nível de antes-guerra.

Mas o fato de sermos pobres não torna capitalistas as relações estabelecidas em nossa indústria estatal, do mesmo modo que o salario elevado pago em uma empresa capitalista não suprime as relações capitalistas da produção.

“Do mesmo modo — escreve Marx — que melhores roupas, uma alimentação melhor, um melhor tratamento e certa reserva de dinheiro não suprimem para o escravo as relações de dependência e exploração, eles não as suprimem também para o operário assalariado”.

A desigualdade na remuneração do trabalho qualificado e do trabalho simples, do trabalho intelectual e do trabalho físico, que existe na nossa indústria estatal, não confere também um caráter capitalista às nossas empresas, pois não se encontram aqui duas classes sociais de que uma não viva do seu trabalho, mas da exploração do trabalho da outra. Não instituímos ainda o socialismo integral, mas o socialismo integral também não é ainda comunismo: é apenas a sua primeira fase e, por isto tudo, será preciso necessariamente admitir, até certo ponto, mesmo em regime socialista, a desigualdade material.

Somente na fase superior da sociedade comunista — escreve Marx — somente quando a hierarquia servil dos indivíduos na divisão do trabalho tiver desaparecido e com ela a contradição entre o trabalho intelectual e o trabalho físico; somente quando o trabalho se tornar a primeira necessidade vital em vez de ser apenas um meio de existência; quando as forças produtoras aumentarem o desenvolvimento harmonioso da individualidade; quando todas as fontes de riqueza social se puserem a jorrar com abundância; somente então a estrita mentalidade jurídica burguesa cairá completamente em desuso e a sociedade escreverá na sua bandeira: "De cada um, segundo suas forças, a cada um, segundo suas necessidades".


Notas de rodapé:

(1) Esta questão será examinada em detalhe no § 38 "O valor na URSS". (retornar ao texto)

(2) É necessário notar que parte do produto suplementar do trabalho dos operários da indústria estatal ainda volta ao capital passado. Examinaremos esta questão ao tratarmos do capital e do lucro comerciais. (retornar ao texto)

Inclusão 16/085/2018