Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás

Vladimir Ilitch Lénine


i) O Parágrafo Um dos Estatutos


Citámos já as diferentes fórmulas à volta das quais se desenrolaram interessantes debates no congresso. Estes debates ocuparam cerca de duas sessões e terminaram com duas votações nominais (durante todo o congresso houve somente, se não me engano, oito votações nominais apenas em casos de particular importância, devido à enorme perda de tempo que acarretam). A questão aqui abordada era sem dúvida uma questão de princípio. O interesse do congresso pelos debates era imenso. Participaram na votação todos os delegados, facto raro no nosso congresso (como em qualquer grande congresso) e que assim testemunha do interesse dos participantes na discussão.

Qual era, pois, a essência da questão em disputa? Já disse no congresso, e repeti-o depois mais de uma vez, que «não considero de modo nenhum a nossa divergência (sobre o §1) tão essencial que dela dependa a vida ou a morte do partido. Se houver um mau artigo nos estatutos, não vamos, de modo algum, morrer por isso!» (p. 250)(1). Esta diferença em si mesma, ainda que revelando matizes de princípio, não pôde de modo nenhum provocar a divergência (na realidade, para falar sem rodeios, a cisão) que se declarou depois do congresso. Mas qualquer pequena divergência pode tornar-se grande se insistirmos nela, se a colocarmos em primeiro plano, se nos pusermos a investigar todas as suas raízes e ramificações. Qualquer pequena divergência pode tomar uma enorme importância, se servir de ponto de partida para uma viragem para certas concepções erradas e se a estas concepções vierem juntar-se, em virtude de novas divergências complementares, actos anárquicos que levam o partido à cisão.

Esta era precisamente a situação no caso que examinamos. Uma divergência relativamente pouco importante sobre o §1 tomou agora uma importância enorme, porque foi precisamente o que serviu de ponto de viragem para subtilezas oportunistas e para a fraseologia anarquista da minoria (sobretudo no congresso da Liga, e depois também nas colunas do novo Iskra). Esta divergência marcou o início da coligação da minoria iskrista com os anti-iskristas e com o pântano, que adquiriu precisamente formas acabadas no momento das eleições, e sem a compreensão da qual é impossível compreender a divergência essencial, fundamental, a da questão relativa à composição dos centros. O pequeno erro de Mártov e Axelrod a propósito do § um, constituía uma ligeira fenda no nosso vaso (como eu disse no congresso da Liga). Teria sido possível amarrar o vaso mais solidamente, com um duplo (e não com um nó corrediço, como tinha julgado ouvir Mártov que, no congresso da Liga, se encontrava num estado próximo da histeria). Poder-se-ia orientar todos os esforços para aumentar a fenda, para quebrar o vaso. Foi o que aconteceu, em consequência do boicote e de todas as outras idênticas medidas anárquicas dos zelosos partidários de Mártov. A divergência sobre o § l teve um papel considerável na questão da eleição dos centros, e a derrota de Mártov neste ponto levou-o à «luta no terreno dos princípios» por meios grosseiramente mecânicos e até escandalosos (os discursos do congresso da Liga da Social-Democracia Revolucionária Russa no Estrangeiro).

Hoje, depois de todos esses acontecimentos, a questão do § um tomou assim uma enorme importância, e devemos compreender com exactidão, tanto o carácter dos agrupamentos no congresso ao ser votado este §, como - o que é incomparavelmente mais importante - o verdadeiro carácter dos matizes de opinião que se revelaram ou tinham começado a revelar-se com o § um. Hoje, em consequência dos acontecimentos conhecidos pelo leitor, a questão apresenta-se como se segue: ter-se-á reflectido na fórmula de Mártov, defendida por Axelrod, a sua (ou a deles) instabilidade, vacilação e a sua falta de carácter em política, como disse no congresso do partido (333) o seu (ou o deles) desvio para o jauressismo e o anarquismo, como supunha Plekhánov no congresso da Liga (p. 102 e outras das actas da Liga)? Ou será que a minha fórmula, defendida por Plekhánov, reflectia uma concepção falsa, burocrática, formalista, em estilo pompadur(2) e não social-democrática do centralismo? Oportunismo e anarquismo ou burocracia e formalismo?: assim está colocada a questão agora, quando a pequena divergência se tornou grande. E examinando o fundo dos argumentos a favor e contra a minha fórmula, devemos ter presente precisamente esta maneira de colocar o problema - eu diria historicamente determinada se não receasse expressões demasiado pomposas - que os acontecimentos nos impuseram a todos.

Comecemos o exame destes argumentos por uma análise dos debates no congresso. O primeiro discurso, o do camarada Egórov, só nos interessa pelo facto de a sua atitude (non liquet, isto ainda não é claro para mim, não sei ainda onde está a verdade) ser muito característica de bom número de delegados, a quem não era fácil orientar-se numa questão efectivamente nova, bastante complexa e minuciosa. O discurso seguinte, o do camarada Axelrod, põe imediatamente a questão no terreno dos princípios. É o primeiro discurso com este carácter, ou melhor, é em geral o primeiro discurso do camarada Axelrod no congresso, e é difícil considerar particularmente feliz a sua estreia com o famoso «professor». «Creio - dizia o camarada Axelrod - que devemos delimitar os conceitos de partido e organização. Ora estas duas noções são aqui confundidas. Esta confusão é perigosa.» Tal é o primeiro argumento contra a minha formulação. Mas examinai-o mais de perto. Quando digo que o partido deve ser uma soma (não uma simples soma aritmética, mas um complexo) de organizações(3), quer isto dizer que eu «confundo» dois conceitos, partido e organização? É evidente que não. Exprimo assim, de maneira absolutamente clara e precisa, o meu desejo, a minha exigência de que o partido, como destacamento de vanguarda da classe, seja algo o mais organizado possível, que o partido só aceite nas suas fileiras aqueles elementos que admitam, pelo menos, um mínimo de organização. Pelo contrário, o meu contraditor confunde no partido os elementos organizados e os não organizados, aqueles a quem se pode dirigir e os que se não pode, os elementos avançados e os que são incorrigivelmente atrasados, porque os atrasados corrigíveis podem entrar na organização. É esta confusão que é verdadeiramente perigosa. O camarada Axelrod invoca em seguida as «organizações estritamente conspirativas e centralistas do passado» («Terra e Liberdade» e «A Vontade do Povo»): à volta destas organizações «agrupava-se uma quantidade de pessoas que não pertenciam à organização, mas que a ajudavam de uma forma ou de outra e eram consideradas membros do partido... Este princípio deve ser aplicado ainda mais estritamente na organização social-democrata». Cá chegamos a um dos pontos-chave da questão: «este princípio» que permite que se intitulem membros do partido pessoas que não pertencem a nenhuma das suas organizações e que somente «o ajudam de uma maneira ou de outra» será efectivamente um princípio social-democrata? E Plekhánov deu a esta pergunta a única resposta possível: «Axelrod não tinha razão quando aludia à década de 70. Havia então um centro bem organizado e admiravelmente disciplinado; este centro tinha à sua volta organizações de diferentes níveis, criadas por ele próprio, e o que estava fora dessas organizações era caos e anarquia. Os elementos que constituíam este caos auto-intitulavam-se membros do partido, mas a causa, longe de ganhar com isso, só perdia. Não devemos imitar a anarquia da década de 70, mas evitá-la.» Assim, «este princípio», que o camarada Axelrod queria fazer passar por social-democrata, é de facto um princípio anárquico. Para refutar isto, é preciso demonstrar a possibilidade do controlo, da direcção e da disciplina à margem da organização, é preciso demonstrar a necessidade de atribuir aos «elementos do caos» o título de membros do partido. Os defensores da fórmula do camarada Mártov não demonstraram, e não podiam demonstrar, nem uma coisa nem outra. O camarada Axelrod citou, a título de exemplo, «um professor que se considera social-democrata e o declara». Para levar até ao fim o pensamento ilustrado por este exemplo, o camarada Axelrod deveria perguntar em seguida: os próprios sociais-democratas organizados consideram tal professor um social-democrata? Como não levantou esta segunda questão, Axelrod deixou a sua argumentação a meio. De facto, das duas uma. Ou os sociais-democratas organizados reconhecem o professor em questão como um social-democrata, e então porque não haviam de incluí-lo nesta ou naquela organização social-democrata? Só na condição de tal integração as «declarações» do professor estarão em conformidade com os seus actos e não serão apenas frases ocas (ao que de resto se reduzem com demasiada frequência as declarações professorais). Ou os sociais-democratas organizados não reconhecem o professor como um social-democrata, e neste caso carece de sentido e é absurdo, insensato e prejudicial conferir-lhe o direito de usar o título honroso e cheio de responsabilidade de membro do partido. Trata-se pois de aplicar consequentemente o princípio de organização, ou consagrar a dispersão e a anarquia. Estamos a construir o partido tomando como base um núcleo já formado e consolidado de sociais-democratas, núcleo que, por exemplo, organizou o congresso do partido, e que deve ampliar e multiplicar todo o tipo de organizações do partido, ou contentamo-nos com a frase tranquilizadora de que todos os que nos ajudam são membros do partido? «Se adoptamos a fórmula de Lénine - prosseguiu o camarada Axelrod - deitaremos pela borda fora uma parte dos que, embora não possam ser admitidos directamente na organização, são, no entanto, membros do partido.» A confusão de conceitos de que queria acusar-me o camarada Axelrod, aparece agora com plena clareza nas suas próprias palavras: considera já como um facto que todos os que nos ajudam são membros do partido, enquanto é exactamente este o ponto contestado, e os contraditores devem primeiro, provar a necessidade e a utilidade de tal interpretação. Qual o significado desta frase à primeira vista tão terrível: deitar pela borda fora? Se considerarmos membros do partido apenas os aderentes às organizações que reconhecemos como organizações do partido, então as pessoas que não possam entrar «directamente» em nenhuma organização do partido podem, no entanto, militar numa organização que não seja do partido, mas que esteja em contacto com ele. Por consequência, não se trata de modo algum de deitar pela borda fora ninguém, isto é, afastar do trabalho, da participação no movimento. Pelo contrário, quanto mais fortes forem as nossas organizações do partido, englobando verdadeiros sociais-democratas, quanto menos hesitação e instabilidade houver no interior do partido, mais larga, mais variada, mais rica e mais fecunda será a influência do partido sobre os elementos das massas operárias que o rodeiam e por ele são dirigidos. Com efeito, não se pode confundir o partido, como destacamento de vanguarda da classe operária, com toda a classe. Ora, é justamente nesta confusão (característica do nosso economismo oportunista em geral) que cai o camarada Axelrod quando diz: «Naturalmente, estamos a criar, antes de tudo, uma organização dos elementos mais activos do partido, uma organização de revolucionários; mas como somos um partido de classe, devemos fazer as coisas de modo a não deixar fora do partido os que, conscientemente, ainda que talvez sem se mostrarem absolutamente activos, tenham uma ligação com esse partido.» Primeiro, no número dos elementos activos do partido operário social-democrata, de modo algum figurarão apenas as organizações de revolucionários, mas toda uma série de organizações operárias, reconhecidas como organizações do partido. Segundo, por que razão ou em virtude de que lógica se poderia deduzir do facto de sermos um partido de classe a consequência de não ser preciso estabelecer uma distinção entre os que pertencem ao partido e os que têm uma ligação com o partido? Muito pelo contrário: precisamente devido à existência dos diferentes graus de consciência e actividade, é necessário estabelecer uma diferença no grau de proximidade do partido. Nós somos um partido de classe, e é por isso que quase toda a classe (e em tempo de guerra, num período de guerra civil, absolutamente toda a classe) deve agir sob a direcção do nosso partido, deve ter com o nosso partido a ligação mais estreita possível. Mas seria manilovismo(4) e «seguidismo» pensar que sob o capitalismo quase toda a classe, ou mesmo toda a classe, estará um dia em condições de se elevar ao ponto de alcançar o grau de consciência e de actividade do seu destacamento de vanguarda, do seu partido social-democrata. Nunca nenhum social-democrata de bom senso duvidou de que sob o capitalismo, mesmo a organização sindical (mais rudimentar, mais acessível ao grau de consciência das camadas não desenvolvidas) não está à altura de englobar quase toda ou toda a classe operária. Seria unicamente enganar-se a si próprio, fechar os olhos sobre a imensidade das nossas tarefas, restringir essas tarefas, esquecer a diferença entre o destacamento de vanguarda e toda a massa que pende para ele, esquecer a obrigação constante do destacamento de vanguarda de elevar camadas cada vez mais amplas ao seu nível avançado. E é precisamente esse fechar dos olhos e esse esquecimento que se comete quando se apaga a diferença que existe entre os que têm ligação e os que entram, entre os conscientes e os activos, por um lado, e os que ajudam, por outro.

Alegar que somos um partido de classe para justificar a dispersão orgânica, para justificar a confusão entre organização e desorganização, é repetir o erro de Nadéjdine, que confundia «a questão filosófica e histórico-social das “profundas raízes” do movimento com uma questão técnica de organização». (Que Fazer?, p. 91)(5). É esta confusão, cujo feliz iniciador foi o camarada Axelrod, que dezenas de vezes repetiram os oradores que defendiam a fórmula do camarada Mártov. «Quanto mais se difundir o título de membro do partido, tanto melhor» diz Mártov, sem no entanto explicar qual a utilidade da ampla difusão de um título que não corresponda ao seu conteúdo. Pode negar-se que o controlo dos membros não pertencentes à organização do partido seja uma ficção? Uma larga difusão de uma ficção não é útil, antes prejudicial. «Só temos que nos congratular se cada grevista, cada manifestante, tomando a responsabilidade dos seus actos, puder declarar-se membro do partido» (p. 239). Será verdade? Qualquer grevista deverá ter o direito de declarar-se membro do partido? Com esta tese, o camarada Mártov leva de uma assentada o seu erro até ao absurdo, rebaixando a social-democracia ao grevismo, repetindo as desventuras dos Akímov. Só temos que nos alegrar se a social-democracia conseguir dirigir cada greve, porque é seu dever directo e absoluto dirigir todas as manifestações da luta de classe do proletariado, e a greve é uma das manifestações mais profundas e vigorosas desta luta. Mas seremos seguidistas se admitirmos que se identifique esta forma elementar de luta, que ipso facto não é mais que uma forma trade-unionista, com a luta social-democrata, multilateral e consciente. Oportunisticamente, legitimaremos uma manifesta falsidade, se dermos a cada grevista o direito de «se declarar membro do partido», porque tal «declaração», num grande número de casos, será uma declaração falsa. Estaremos a embalar-nos com sonhos manilovianos se tentarmos persuadir-nos a nós próprios e persuadir os outros que cada grevista pode ser social-democrata e membro do partido social-democrata, dada a infinita fragmentação, opressão e embrutecimento que, sob o capitalismo, inevitavelmente continuarão a pesar sobre sectores muito amplos de operários «não instruídos», não qualificados. Justamente o exemplo do «grevista» mostra com particular clareza a diferença entre a aspiração revolucionária de dirigir cada greve de uma maneira social-democrata, e a fraseologia oportunista, que declara cada grevista membro do partido. Nós somos um partido de classe, na medida em que dirijamos efectivamente de um modo social-democrata quase toda ou mesmo toda a classe do proletariado, mas só os Akímov é que podem deduzir disso que devemos identificar em palavras o partido e a classe.

«Não receio uma organização de conspiradores», disse no mesmo discurso o camarada Mártov; mas, acrescentava, «a organização de conspiradores, para mim, só tem sentido se envolvida por um amplo partido operário social-democrata» (p. 239). Para ser exacto deveria ter dito: se envolvida por um amplo movimento operário social-democrata. Sob esta forma, a tese do camarada Mártov não só é indiscutível, como é também um verdadeiro truísmo. Se me detenho neste ponto, é unicamente porque do truísmo do camarada Mártov os oradores seguintes deduziram o argumento muito corrente e muito vulgar, de que Lénine queria «reduzir todo o conjunto de membros do partido a um conjunto de conspiradores». Esta conclusão, que só nos pode fazer sorrir, foi tirada tanto pelo camarada Possadóvski, como pelo camarada Popov, e quando Martínov e Akímov a retomaram, o seu verdadeiro carácter, ou seja, o carácter de frase oportunista, tornou-se manifesto. Actualmente, este mesmo argumento é desenvolvido no novo Iskra pelo camarada Axelrod, para dar a conhecer aos leitores os novos pontos de vista da nova redacção sobre organização. Já no congresso, na primeira sessão em que se examinou o § l, dei-me conta de que os contraditres se queriam servir desta arma barata, e é por isso que no meu discurso fiz este aviso (p. 240): «Não devemos pensar que as organizações do partido devam ter apenas revolucionários profissionais. Nós precisamos das mais diversas organizações, de todas as espécies, de todos os níveis e de todos os matizes, desde as organizações extremamente restritas e conspirativas, até às extremamente amplas e livres, lose Organisationen(6) É uma verdade tão patente e evidente que considerei supérfluo deter-me nela. Mas nos tempos que correm, quando já nos arrastaram para trás em muitas e muitas coisas, somos forçados, também aqui, a «repisar o que já foi dito». Por isso, reproduzirei algumas passagens de Que Fazer? e da Carta a Um Camarada:

... «Para um círculo de corifeus como Alexéiev e Míchkine, Khaltúrine e Jeliábov, são acessíveis as tarefas políticas no sentido mais real, mais prático do termo, precisamente porque, e no grau em que, a sua propaganda ardente encontra eco na massa, que desperta espontaneamente, porque a sua fervente energia é secundada e apoiada pela energia da classe revolucionária.»(7) Para ser um partido social-democrata é preciso conquistar o apoio precisamente da classe. Não é o partido que deve envolver a organização de conspiradores, como pensava o camarada Mártov; é a classe revolucionária, o proletariado que deve envolver o partido, que tanto abrangerá as organizações de conspiradores como as organizações não conspiradoras.

... «As organizações operárias para a luta económica devem ser organizações sindicais. Todo o operário social-democrata deve, dentro do possível, apoiar estas organizações e nelas trabalhar activamente... Mas é absolutamente contrário aos nossos interesses exigir que só os sociais-democratas possam ser membros das uniões profissionais já que isso reduziria a nossa influência sobre a massa. Que participe na união profissional todo o operário que compreenda a necessidade da união para a luta contra os patrões e o governo. O próprio objectivo das uniões profissionais seria inexequível se não agrupassem todos os operários capazes de compreender, ainda que mais não fosse, esta noção elementar, se estas uniões profissionais não fossem organizações muito amplas. E quanto mais amplas forem estas organizações, tanto mais ampla será a nossa influência nelas, influência exercida não somente pelo desenvolvimento “espontâneo” da luta económica, mas também pela acção consciente e directa dos membros socialistas das uniões sobre os seus camaradas» (p. 86)(8). Diremos de passagem que o exemplo dos sindicatos é particularmente característico para emitir um juízo sobre o problema em discussão respeitante ao §1. Que os sindicatos devam trabalhar «sob controlo e direcção» das organizações sociais-democratas, a este respeito não pode haver duas opiniões entre os sociais-democratas. Mas partir desta base para dar a todos os membros destes sindicatos o direito de «se declararem» membros do partido social-democrata seria um absurdo evidente e representaria a ameaça de um duplo dano: por um lado, reduzir as dimensões do movimento sindical e enfraquecer a solidariedade operária neste domínio. Por outro lado, abrir as portas do partido social-democrata à confusão e à vacilação. A social-democracia alemã teve que resolver um problema semelhante em circunstâncias concretas aquando do famoso incidente dos pedreiros de Hamburgo que trabalhavam à tarefa(9). A social-democracia não hesitou um momento em reconhecer que o a acção dos fura-greves era indigna do ponto de vista de um social-democrata, ou seja, em reconhecer a direcção das greves, o apoio às mesmas como coisa sua própria; mas ao mesmo tempo rejeitou com não menos decisão a exigência de identificar os interesse do partido com os interesses das uniões profissionais, de fazer o partido responsável dos diversos passos dos diferentes sindicatos. O partido deve aplicar-se, e aplicar-se-á, a impregnar do seu espírito, a submeter à sua influência as uniões profissionais, mas precisamente no interesse desta influência deve distinguir nestas uniões os elementos plenamente sociais-democratas (que pertencem ao partido social-democrata) dos que não são inteiramente conscientes nem inteiramente activos sob o ponto de vista político, e não deve confundir uns e outros, como quer o camarada Axelrod.

...«A centralização das funções mais clandestinas pela organização dos revolucionários não debilitará, antes reforçará, a amplitude e o conteúdo da actividade de uma grande quantidade de outras organizações destinadas ao grande público e, por consequência, o menos regulamentadas e o menos clandestinas possível: sindicatos operários, círculos operários de auto-didactas e de leitura de literatura ilegal, círculos socialistas, círculos democráticos para todos os outros sectores da população, etc., etc. Estes círculos, sindicatos e organizações são necessários por toda a parte, é preciso que sejam o mais numerosos e as suas funções as mais variadas possível, mas é absurdo e prejudicial confundir estas organizações com a dos revolucionários, apagar as fronteiras que existem entre elas» ... (p. 96)(10). Esta passagem mostra quão despropositadamente o camarada Mártov me recordou que amplas organizações operárias devem envolver a organização de revolucionários. Eu já tinha assinalado isso em Que Fazer? e desenvolvi esta ideia de forma mais concreta na Carta a Um Camarada. Os círculos de fábricas, escrevia eu na referida carta, «são particularmente importantes para nós; com efeito, a principal força do movimento reside no grau de organização dos operários das grandes fábricas, visto que as grandes empresas (e fábricas) englobam a parte predominante da classe operária, não só pelo seu número mas mais ainda pela sua influência, pelo seu desenvolvimento, pela sua capacidade de luta. Cada fábrica deve ser uma fortaleza nossa... O subcomité de fábrica deve esforçar-se por englobar toda a fábrica, o maior número possível de operários, numa rede de todo o tipo de círculos (ou agentes)... Todos os grupos, círculos, subcomités, etc., devem ter o estatuto de organismos dependentes do comité ou de filiais do mesmo. Alguns deles declararão francamente o seu desejo de entrar no Partido Operário Social-Democrata da Rússia, e passarão a fazer parte do partido no caso de serem aprovados pelo comité; assumirão (por indicação do comité ou de acordo com ele) certas funções, comprometer-se-ão a submeter-se às disposições dos organismos do partido, receberão os direitos de todos os membros do partido, serão considerados os candidatos mais próximos a membros do comité, etc. Outros não entrarão para o POSDR, continuarão na situação de círculos, organizados por membros do partido, ou pessoas ligadas a este ou aquele grupo do partido, etc.» (pp. 17-18)(11). Das palavras que sublinhei ressalta com particular clareza que a ideia da minha formulação do § l está já integralmente expressa na Carta a Um Camarada. As condições de admissão no partido são aqui claramente indicadas, a saber: 1. um certo grau de organização e 2. confirmação por um comité do partido. Uma página mais abaixo, indico aproximadamente os grupos e organizações que devem (ou não devem) ser admitidos no partido e por que razões: «Os grupos de distribuidores devem pertencer ao POSDR e conhecer um determinado número dos seus membros e dos seus funcionários. Os grupos que estudam as condições profissionais do trabalho e elaboram projectos de reivindicações profissionais não têm necessariamente que pertencer ao POSDR. Os grupos de estudantes, de oficiais do exército, de empregados que fazem a sua auto-educação com a colaboração de um ou dois membros do partido, por vezes não devem sequer saber que estes pertencem ao partido, etc.» (pp.18-19)(12).

E aqui tendes novos materiais sobre a questão da «viseira levantada»! Ao passo que a fórmula do Projecto do camarada Mártov nem sequer toca nas relações entre o partido e as organizações, eu indicava já acerca de um ano do congresso que certas organizações deviam entrar no partido e outras não. Na Carta a Um Camarada destaca-se já claramente a ideia que defendi no congresso. A questão poderia apresentar-se graficamente da seguinte forma. Segundo o grau de organização em geral, e do grau de clandestinidade da organização em particular, podemos aproximadamente distinguir as categorias seguintes: 1. organizações de revolucionários; 2. organizações de operários, tão amplas e variadas quanto possível (limito-me à classe operária, supondo como coisa que se subentende por si própria o facto de que certos elementos de outras classes delas façam igualmente parte em certas condições). Estas duas categorias formam o partido. A seguir, 3. organizações operárias ligadas ao partido; 4. organizações operárias não ligadas ao partido, mas de facto submetidas ao seu controlo e direcção; 5. elementos não organizados da classe operária que em parte se submetem igualmente, pelo menos durante as grandes manifestações da luta de classes, à direcção da social-democracia. Eis como aproximadamente se apresentam as coisas do meu ponto de vista. Pelo contrário, do ponto de vista do camarada Mártov as fronteiras do partido ficam absolutamente indeterminadas, porque «qualquer grevista» pode «declarar-se membro do partido». Qual é o proveito de tal imprecisão? A ampla difusão do «título». O seu prejuízo consiste em provocar a ideia desorganizadora da confusão da classe com o partido.

Para ilustrar os princípios gerais que expusemos, lançaremos ainda uma breve vista de olhos à posterior discussão no congresso acerca do §1. O camarada Brúker (para alegria do camarada Mártov) pronunciou-se a favor da minha fórmula, mas verificou-se que a sua aliança comigo, contrariamente à aliança do camarada Akímov com Mártov, baseava-se num mal-entendido. O camarada Brúker «não está de acordo com os estatutos no seu conjunto nem com todo o seu espírito» (p. 239), e defende a minha fórmula como base da democracia que desejavam os partidários da Rabótcheie Dielo. O camarada Brúker ainda não se elevou ao ponto de vista de que na luta política, por vezes, é preciso escolher o mal menor; o camarada Brúker não se apercebeu de que era inútil defender a democracia num congresso como o nosso. O camarada Akímov mostrou-se mais perspicaz. Colocou a questão de modo absolutamente exacto quando reconheceu que «os camaradas Mártov e Lénine discutem a questão de saber qual (das fórmulas) atinge melhor o seu objectivo comum» (p. 252). «Brúker e eu - continua - queremos escolher a que menos atinja o objectivo. Eu, neste sentido, escolho a fórmula de Mártov.» E o camarada Akímov explicou com franqueza que «o próprio objectivo deles» (de Plekhánov, Mártov e meu; isto é, a criação de uma organização dirigente de revolucionários) o considera «irrealizável e prejudicial»; tal como o camarada Martínov(13) defende a ideia dos economistas de que não é necessária «a organização de revolucionários». Ele «tem uma profunda fé em que a vida acabará por impor-se na nossa organização de partido, independentemente de lhe fechardes o caminho com a fórmula de Mártov ou com a fórmula de Lénine». Não valeria a pena que nos detivéssemos nesta concepção «seguidista» da «vida» se não tropeçássemos com ela também nos discursos do camarada Mártov. O segundo discurso do camarada Mártov (p. 245) é, em geral, tão interessante que vale a pena examiná-lo em pormenor.

Primeiro argumento do camarada Mártov: o controlo das organizações do partido sobre os membros do partido não pertencentes a essas organizações «é realizável porquanto o comité ao atribuir a qualquer pessoa uma função determinada pode controlar o seu cumprimento» (p. 245). Esta tese é altamente característica, pois «denuncia», se é que nos podemos permitir esta expressão, a quem é necessária e a quem servirá na realidade a fórmula de Mártov: a intelectuais isolados ou a grupos operários e às massas operárias? Porque da fórmula de Mártov são possíveis duas interpretações: 1) tem o direito de «se declarar» (palavras do próprio camarada Mártov) membro do partido todo aquele que lhe preste uma colaboração pessoal regular sob a direcção de uma das suas organizações; 2) qualquer organização do partido tem o direito de reconhecer como membro do partido todo aquele que lhe preste uma colaboração pessoal regular sob a sua direcção. Só a primeira interpretação permite, com efeito, a «qualquer grevista» dizer-se membro do partido, e, por isso mesmo, só esta interpretação conquistou imediatamente os corações dos Líber, dos Akímov e dos Martínov. Mas esta interpretação é manifestamente uma frase, porque pode englobar toda a classe operária, e a diferença entre o partido e a classe é apagada; só «simbolicamente» se pode falar em controlo e direcção de «qualquer grevista». Eis porque o camarada Mártov, no seu segundo discurso, se desviou logo para a segunda interpretação (ainda que, diga-se entre parêntesis, ela tenha sido explicitamente rejeitada pelo congresso, que não aprovou a resolução de Kóstitch(14), p. 255): o comité atribuirá funções e controlará o seu cumprimento. Naturalmente, tais missões especiais nunca existirão em relação à massa dos operários, aos milhares de proletários (de que falam o camarada Axelrod e o camarada Martínov); mas, muitas vezes elas serão confiadas precisamente aos professores mencionados por Axelrod, aos estudantes de liceu com quem se preocupavam o camarada Líber e o camarada Popov (p. 241), à juventude revolucionária de que falava o camarada Axelrod no seu segundo discurso (p. 242). Numa palavra: ou a fórmula do camarada Mártov ficará reduzida a letra morta, a frase oca, ou então servirá principalmente e quase exclusivamente «a intelectuais completamente imbuídos de individualismo burguês» e que não querem entrar numa organização. Em palavras, a fórmula de Mártov parece defender os interesses das largas camadas do proletariado. Mas, de facto, esta fórmula servirá os interesses da intelectualidade burguesa, que receia a disciplina e organização proletárias. Ninguém ousará negar que o que caracteriza, de um modo geral, a intelectualidade como uma camada especial nas sociedades capitalistas contemporâneas é justamente o seu individualismo e a sua incapacidade para se submeter à disciplina e à organização (ver, por exemplo, os conhecidos artigos de Kautsky sobre a intelectualidade); nisso é que reside, entre outras coisas, a diferença desvantajosa entre esta camada social e o proletariado; nisto reside uma das razões que explicam a fraqueza e instabilidade da intelectualidade, que o proletariado tantas vezes sentiu. E esta particularidade da intelectualidade está inseparavelmente ligada às suas condições habituais de vida, ao seu modo de ganhar a vida, que se aproximam em muitíssimos aspectos das condições de existência pequeno-burguesa (trabalho individual ou em colectivos muito pequenos, etc.). Enfim, também não é por acaso que justamente os defensores da fórmula do camarada Mártov tiveram que citar o exemplo de professores e estudantes de liceu! Nos debates sobre o §1 não foram os campeões de uma ampla luta proletária que se levantaram contra os campeões de uma organização radical conspirativa, como pensavam os camaradas Martínov e Axelrod, mas os partidários do individualismo intelectual burguês que se defrontaram com os partidários da organização e disciplina proletárias.

O camarada Popov disse: «Em toda a parte, em Petersburgo como em Nikoláiev ou em Odessa, há, segundo o testemunho dos representantes dessas cidades, dezenas de operários que difundem literatura, que fazem agitação oral e que não podem ser membros da organização. Podemos acrescentá-los à organização, mas não considerá-los membros» (p. 241). Porque não podem ser membros da organização? Só o camarada Popov conhece o segredo. Já citei atrás uma passagem da Carta a Um Camarada, que demonstra que justamente a admissão de todos estes operários (às centenas e não às dezenas) nas organizações é possível e necessária, e que grande número destas organizações podem e devem pertencer ao partido.

Segundo argumento do camarada Mártov: «Para Lénine, não há no partido outras organizações que as do partido» ... Absolutamente exacto!... «Na minha opinião, pelo contrário, tais organizações devem existir. A vida cria e multiplica organizações muito mais rapidamente do que nós conseguimos integrá-las na hierarquia da nossa organização combativa de revolucionários profissionais» ... Isto é falso em dois sentidos: 1) a «vida» cria muito menos organizações eficientes de revolucionários do que as que são necessárias ao movimento operário; 2) o nosso partido deve ser hierarquia, não só das organizações de revolucionários, mas também da massa das organizações operárias... «Lénine crê que o CC só concederá o título de organizações do partido às que forem absolutamente seguras no campo dos princípios. Mas o camarada Brúker compreende muito bem que a vida (sic!) se imporá, e que o CC, para não deixar numerosas organizações fora do partido, será obrigado a legalizá-las mesmo que não sejam completamente seguras. É precisamente por isso que o camarada Brúker se junta a Lénine» ... Esta é uma concepção realmente seguidista da «vida»! É evidente que, se o CC fosse obrigatoriamente composto por pessoas que se deixam guiar, não pela sua própria opinião, mas pelo que dizem os outros (ver o incidente do CO), nesse caso a «vida impor-se-ia» no sentido de os elementos mais atrasados do partido poderem predominar (como também aconteceu agora que se formou uma «minoria» no partido com os elementos atrasados). Mas é impossível invocar um único motivo racional que possa obrigar um CC inteligente a admitir no partido elementos «que não sejam seguros». É precisamente com esta alusão à «vida» que «cria» elementos não seguros que o camarada Mártov põe em evidência o carácter oportunista do seu plano de organização!... «Quanto a mim, pelo contrário - prossegue - penso que se uma organização deste tipo (que não é completamente segura) consente em aceitar o programa do partido e o controlo do partido, nós podemos admiti-la no partido, sem que, por isso, façamos dela uma organização do partido. Consideraria um grande triunfo do nosso partido se, por exemplo, qualquer união de «independentes» decidisse aceitar o ponto de vista da social-democracia e o seu programa, e entrar no partido, o que todavia não significaria que integrássemos essa união na organização do partido» ... Eis aqui a que confusão leva a fórmula de Mártov: organizações sem partido que pertencem ao partido! Imaginai só o seu esquema: o partido = 1) organizações de revolucionários, + 2) organizações operárias reconhecidas como organizações do partido, + 3) organizações operárias não reconhecidas como organizações do partido (principalmente formadas por «independentes»), + 4) indivíduos encarregados de diversas funções, professores, estudantes de liceu, etc., + 5) «qualquer grevista». Ao lado deste notável plano só podemos colocar as palavras do camarada Líber: «A nossa tarefa não é exclusivamente organizar uma organização (!!), mas podemos e devemos organizar o partido» (p. 241). Sim, com certeza, podemos e devemos fazê-lo, mas para isso são necessárias não as palavras vazias de sentido sobre «organizar organizações», mas sim exigir directamente aos membros do partido que realizem efectivamente um trabalho de organização. Falar de «organizar o partido» e defender que se encubra com a palavra partido toda a espécie de desorganização e dispersão é falar por falar.

«A nossa fórmula - diz o camarada Mártov - exprime a aspiração de que exista entre a organização de revolucionários e a massa uma série de organizações.» Não é isso, precisamente. Esta aspiração, verdadeiramente obrigatória, é justamente o que a fórmula de Mártov não exprime, pois não estimula a organizar-se, não contém a exigência de organizar-se, não separa o organizado do inorganizado. Não dá senão um título(15), e a propósito disto não podemos deixar de lembrar as palavras do camarada Axelrod: «Não há decretos que possam proibi-los (aos círculos da juventude revolucionária, etc.), e a pessoas isoladas, de se dizerem sociais-democratas» (santa verdade!) «ou até de se considerarem parte integrante do partido»... Isto já é absolutamente falso! Proibir alguém de se dizer social-democrata é impossível e é inútil, porque esta palavra apenas exprime directamente um sistema de convicções, e não relações determinadas de organização. Proibir círculos e pessoas isoladas de «se considerarem parte integrante do partido» é possível e necessário, quando esses círculos e pessoas prejudicam a causa do partido, o corrompem ou o desorganizam. Seria ridículo falar de um partido, como de um todo, como de uma grandeza política, se ele não pudesse «proibir por decreto» a um círculo «considerar-se parte integrante» do todo! De que serviria então fixar um método e condições para a expulsão do partido? O camarada Axelrod levou com evidência ao absurdo o erro fundamental do camarada Mártov; erigiu mesmo este erro em teoria oportunista quando acrescentou: «Na fórmula de Lénine, o §1 está manifestamente em contradição de princípios com a própria essência (!!) e com as tarefas do partido social-democrata do proletariado» (p. 243). Isto significa, nem mais nem menos, o seguinte: o exigir mais do partido que da classe contradiz de princípio a própria essência das tarefas do proletariado. Não é de espantar que Akímov tenha defendido com todas as suas forças semelhante teoria!

A justiça exige que se diga que o camarada Axelrod, que agora quer converter esta fórmula errada, que manifestamente tende para o oportunismo, em gérmen de novas opiniões, no congresso, pelo contrário, mostrou-se disposto a «negociar» tendo dito: «Mas dou-me conta de que estou a arrombar uma porta aberta» ... (disto mesmo me dou eu conta no novo Iskra)... «porque o camarada Lénine, com os seus círculos da periferia, que se consideram partes integrantes da organização do partido, antecipa-se à minha exigência» ... (e não só com os círculos da periferia, mas também com toda a espécie de uniões operárias: cf. p. 242 das actas, o discurso do camarada Strákhov, e as passagens citadas anteriormente de Que Fazer? e da Carta a Um Camarada)... «Restam ainda as pessoas isoladas, mas também nisto poderíamos negociar.» Respondi ao camarada Axelrod que, falando em geral, não era contrário a negociar(16), e tenho de esclarecer agora em que sentido o disse. É precisamente no respeitante às pessoas isoladas, todos esses professores, estudantes de liceu e outros, que eu teria feito menos concessões; mas se se tivesse tratado de uma dúvida acerca das organizações operárias, eu consentiria (apesar de tais dúvidas carecerem absolutamente de fundamento, como demonstrei mais atrás) em acrescentar ao meu § l uma nota aproximadamente do seguinte teor: «As organizações operárias que aceitarem o programa e os estatutos do Partido Operário Social-Democrata da Rússia devem ser no maior número possível incluídas nas organizações do partido.» É claro que, falando com rigor, o lugar de tal desejo não é nos estatutos, que devem limitar-se a definições jurídicas, mas em comentários de esclarecimento, em brochuras (e já referi que, muito antes dos estatutos, eu tinha dado explicações neste sentido em brochuras minhas; mas, pelo menos, tal nota não encerraria nem sombras dessas ideias falsas, que pudessem levar à desorganização, nem sombras de raciocínios oportunistas(17), nem de «concepções anarquistas» que a fórmula do camarada Mártov contém indubitavelmente.

A última expressão, que citei entre aspas, pertence ao camarada Pavlóvitch que, com muita justeza, qualificou de anarquismo o facto de reconhecer como membros elementos «irresponsáveis e que se incluem a si próprios no partido». «Traduzida em linguagem corrente - dizia Pavlóvitch, explicando a minha fórmula ao camarada Líber - ela significa: “Se queres ser membro do partido, tens que reconhecer também as relações de organização, e não apenas de uma maneira platónica.”» Ainda que simples, esta «tradução» mostrou, no entanto, não ser supérflua (como o demonstraram os acontecimentos posteriores ao congresso), não só para os diversos professores e estudantes de liceu duvidosos, mas também para os mais autênticos membros do partido, para as pessoas de cima... O camarada Pavlóvitch assinalou com não menos razão a contradição entre a fórmula do camarada Mártov e o princípio indiscutível do socialismo científico, que com tanta infelicidade citou o camarada Mártov: «O nosso partido é o intérprete consciente de um processo inconsciente.» Exactamente. E é precisamente por isso que é errado querer que «qualquer grevista» possa intitular-se membro do partido, porque, se «qualquer greve» não fosse simplesmente a expressão espontânea de um poderoso instinto de classe e de luta de classes que conduz inevitavelmente à revolução social, mas fosse uma expressão consciente deste processo, então... então a greve geral não seria uma frase anarquista, então o nosso partido englobaria imediatamente, de uma só vez, toda a classe operária e, por consequência, acabaria também, de uma só vez, com toda a sociedade burguesa. Para ser verdadeiramente um intérprete consciente, o partido deve saber estabelecer relações de organização que assegurem um certo nível de consciência e elevem sistematicamente este nível. «Para seguir o caminho de Mártov - diz o camarada Pavlóvitch - é preciso primeiramente suprimir o ponto relativo ao reconhecimento do programa, porque, para aceitar um programa, é preciso assimilá-lo e compreendê-lo... Reconhecer o programa implica um nível bastante elevado de consciência política.» Jamais admitiremos que o apoio à social-democracia, que a participação na luta por ela dirigida sejam artificialmente limitados seja por que exigência for (assimilação, compreensão, etc.), porque essa mesma participação, pelo simples facto de se afirmar, eleva a consciência e os instintos de organização; mas já que nos agrupamos num partido para um trabalho metódico, devemos cuidar de assegurar este carácter metódico.

Que a advertência do camarada Pavlóvitch sobre o programa não foi supérflua, viu-se imediatamente nessa mesma sessão. Os camaradas Akímov e Líber, que haviam feito triunfar a fórmula do camarada Mártov(18), imediatamente revelaram a sua verdadeira natureza ao exigir (pp. 254-255) que (para «ser membro» do partido) se reconhecesse também o programa apenas de um modo platónico, apenas nos «seus princípios fundamentais». «A proposta do camarada Akímov é perfeitamente lógica do ponto de vista do camarada Mártov», observou o camarada Pavlóvitch. Infelizmente, as actas não nos dizem quantos votos teve a proposta de Akímov - pelo menos sete, segundo todas as probabilidades (cinco bundistas, Akímov e Brúker). E a saída precisamente dos sete delegados do congresso transformou a «compacta maioria» (anti-iskristas, «centro» e partidários de Mártov), que se tinha começado a formar à volta do §1 dos estatutos, numa compacta minoria! A saída precisamente dos sete delegados provocou a derrota da proposta de confirmação da velha redacção, o que teria sido uma flagrante violação da «continuidade» na direcção do Iskra! E o original grupo dos sete era a única salvação e o único penhor da «continuidade» iskrista: este grupo era constituído pelos bundistas, Akímov e Brúker, ou seja, precisamente, pelos delegados que votaram contra os motivos de reconhecimento do Iskra como Órgão Central, aqueles cujo oportunismo dezenas de vezes tinha sido reconhecido pelo congresso, e designadamente por Mártov e Plekhánov, a propósito de suavizar o §1 respeitante ao programa. A «continuidade» do Iskra salvaguardada pelos anti-iskristas! - aproximamo-nos aqui do da tragicomédia posterior ao congresso.

O agrupamento de votos sobre o § um dos estatutos revelou um fenómeno exactamente do mesmo género que o incidente da igualdade de direitos das línguas: a separação de um quarto (aproximadamente) da maioria iskrista torna possível a vitória dos anti-iskristas seguidos pelo «centro». Também aqui, bem entendido, há votos isolados que alteram a perfeita harmonia do quadro: numa assembleia tão numerosa como o nosso congresso, encontram-se infalivelmente elementos «selvagens», que se inclinam por casualidade, ora para um lado, ora para outro, sobretudo a propósito de uma questão como o § um, em que o verdadeiro carácter de divergência apenas começava a desenhar-se e muitos na realidade não conseguiam ainda orientar-se (por se não ter tratado previamente do problema na literatura). Dos iskristas da maioria afastaram-se cinco votos (Rússov e Kárski, cada um com dois votos, e Lénski com um voto); em contrapartida, a ela se juntaram um anti-iskrista (Brúker) e três do centro (Medvédev, Egórov e Tsariov); daqui resultou um total de 23 votos (24 - 5+4), um voto menos que o agrupamento definitivo nas eleições. A maioria foi dada a Mártov pelos anti-iskristas, dos quais 7 eram a favor dele e um a meu favor (sete do «centro» eram também a favor de Mártov, três a meu favor). A coligação da minoria iskrista com os anti-iskristas e o «centro», que constituiu uma minoria compacta no fim do congresso e depois do congresso, começava a formar-se. O erro político de Mártov e Axelrod, que deram indubitávelmente um passo para o oportunismo e o individualismo anarquista na formulação do § um, e sobretudo na defesa dessa fórmula, logo se revelou com particular relevo graças à arena livre e aberta do congresso; revelou-se pelo facto de os elementos menos estáveis e menos firmes no campo dos princípios terem lançado imediatamente todas as suas forças para alargar a fenda, a brecha que se tinha aberto nas opiniões da social-democracia revolucionária. O trabalho conjunto no congresso por pessoas que prosseguiam abertamente, no domínio da organização, objectivos diferentes (ver o discurso de Akímov), levou imediatamente os adversários de princípio do nosso plano de organização e dos nossos estatutos a apoiarem o erro dos camaradas Mártov e Axelrod. Os iskristas, que também neste ponto se tinham mantido fiéis aos pontos de vista da social-democracia revolucionária, encontraram-se em minoria. Esta é uma circunstância de enorme importância, porque, sem a ter esclarecido, é absolutamente impossível compreender quer a luta por particularidades dos estatutos, quer a luta pela composição pessoal do Órgão Central e do Comité Central.


Notas de rodapé:

(1) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, p. 287. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(2) Pompadurismo, pompadurs: imagem satírica generalizada, criada pelo escritor russo M. E. Saltikov-Chetchdrine na sua obra Pompadures e pompaduras, na qual o escritor satírico russo estigmatizou a mais alta administração tsarista, ministros e governadores. (retornar ao texto)

(3) A palavra «organização» costuma usar-se em dois sentidos, lato e restrito. Em sentido restrito, significa uma célula individual de uma colectividade humana, e que adquiriu um grau mínimo de estruturação. Em sentido lato, significa a soma dessas células reunidas num todo. Por exemplo, a marinha, o exército, o Estado são ao mesmo tempo uma soma de organizações (no sentido restrito da palavra) e uma variedade de organização social (no sentido lato da palavra). O departamento de instrução pública é uma organização (no sentido lato da palavra) e é composto por uma série de organizações (no sentido restrito da palavra). Do mesmo modo, o partido é também uma organização, deve ser uma organização (no sentido lato da palavra); mas ao mesmo tempo o partido deve ser composto por toda uma série de organizações diversas (no sentido restrito da palavra). Daí que o camarada Axelrod, ao falar da delimitação dos conceitos de partido e de organização, primeiro, não atendeu à diferença entre sentido lato e sentido restrito da palavra organização, em segundo lugar não reparou que ele próprio confundiu num mesmo monte os elementos organizados e os não organizados. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(4) Manilovismo: do nome do latifundiário Manílov, personagem da obra do escritor russo N. V. Gógol Almas Mortas; é sinónimo da afabilidade, do sentimentalismo melífluo e da fantasia infundada. (retornar ao texto)

(5) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Três Tomos, Tomo I, p. 164. - (N. Ed.) (retornar ao texto)

(6) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, p. 287. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(7) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Três Tomos, Tomo I, p. 154. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(8) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Três Tomos, Tomo I, p. 159. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(9) Trata-se do incidente que teve lugar em Hamburgo em 1900, devido ao comportamento de um grupo de 122 pedreiros que, tendo formado a «União Livre dos Pedreiros», trabalhavam à tarefa durante a greve, apesar da proibição da organização central. A secção hamburguesa da organização dos pedreiros pôs a questão da conduta de fura-greves sociais-democratas, membros do grupo, perante as organizações locais do partido, as quais comunicaram esta questão para ser analisada pelo Comité Central da social-democracia alemã. O tribunal arbitral do partido, designado pelo Comité Central, condenou a conduta dos sociais-democratas da «União Livre dos Pedreiros», mas rejeitou a proposta de os excluir do partido. (retornar ao texto)

(10) Ver Obras Escolhidas de Lénine em Três Tomos, Tomo I, p. 168. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(11) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, pp. 15, 18-19. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(12) Ver Ibidem, p. 19. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(13) O camarada Martínov, de resto, quer distinguir-se do camarada Akímov, quer demonstrar que conspirativo não quer dizer clandestino, que a diferença existente entre estas duas palavras envolve uma diferença de conceitos. Mas nem o camarada Martínov nem o camarada Axelrod, que agora segue no seu trilho, explicaram afinal em que consiste essa diferença. O camarada Martínov «faz como se» eu, por exemplo, em Que Fazer? (do mesmo modo que em As Tarefas) [ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 2, pp. 433-470. - (N. Ed.)] não me tivesse declarado terminantemente contra «reduzir a luta política a uma conspiração». O camarada Martínov quer forçar os seus ouvintes a esquecer que aqueles contra quem eu lutava não viam a necessidade de uma organização de revolucionários, como tão-pouco não a vê agora o camarada Akímov. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(14) Na resolução de S. Zboróvski (Kóstitch), que foi rejeitada pelo congresso, propunha-se a seguinte formulação do § l dos estatutos do partido: «Todo aquele que reconheça o programa do partido e preste ao partido apoio material e o seu concurso pessoal regular sob a direcção de uma das organizações do partido é considerado por esta última membro do partido.» (retornar ao texto)

(15) No congresso da Liga, o camarada Mártov expôs ainda a favor da sua fórmula um outro argumento que provoca o riso. «Nós poderíamos indicar - diz - que a fórmula de Lénine, entendida à letra, elimina do partido os agentes do CC, visto que estes não constituem uma organização» (p. 59). Esse argumento foi igualmente acolhido com risos no congresso da Liga, como consta das actas. O camarada Mártov supõe que a «dificuldade» por ele assinalada só pode ser resolvida se os agentes do CC passarem a fazer parte de uma «organização do CC». Mas o problema não consiste nisto. Consiste em que, com o seu exemplo, o camarada Mártov mostrou claramente uma total incompreensão da ideia do §1, deu o exemplo de uma crítica puramente pedante que de facto merece o riso. Formalmente, bastaria constituir «uma organização de agentes do CC», redigir uma resolução sobre a sua inclusão no partido, e a «dificuldade», que causou tantos quebra-cabeças ao camarada Mártov, desapareceria imediatamente. Mas a ideia do § l na minha fórmula consiste no estímulo: «Organizai-vos!»; em assegurar um controlo e uma direcção reais. Quanto ao fundo da questão, é ridículo perguntar se os agentes do CC se incluirão no partido, porque o controlo real da sua actividade é plena e indubitavelmente assegurado pelo próprio facto de terem sido designados como agentes, pelo próprio facto de continuarem nesse cargo. Por conseguinte, não se pode aqui falar sequer de confusão entre o organizado e o inorganizado (base do erro da fórmula do camarada Mártov). A fórmula do camarada Mártov não serve porque todos e cada um podem declarar-se membros do partido, qualquer oportunista, qualquer charlatão, qualquer «professor» e qualquer «estudante de liceu». O camarada Mártov procura em vão escamotear este calcanhar de Aquiles da sua fórmula, com exemplos nos quais não está sequer em questão que alguém se inclua a si mesmo na categoria de membro, se declare membro. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(16) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, p. 287. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(17) Entre esses raciocínios, que surgem inevitavelmente quando se tenta fundamentar a fórmula de Mártov, conta-se em particular a frase do camarada Trótski (pp. 248 e 346) de que «o oportunismo se deve a causas mais complexas (ou: é determinado por causas mais profundas) que um ou outro ponto dos estatutos; deve-se ao nível relativo de desenvolvimento da democracia burguesa e do proletariado» ... Não se trata de que os pontos dos estatutos possam dar lugar ao oportunismo, mas sim de forjar com eles uma arma mais ou menos acerada contra o oportunismo. Quanto mais profundas forem as suas causas, mais acerada deve ser essa arma. Por isso justificar com as «causas profundas» do oportunismo uma fórmula que lhe abre as portas, é seguidismo da mais pura água. Quando o camarada Trótski era contra o camarada Líber, ele compreendia que os estatutos são a «desconfiança organizada» do todo para com a parte, do destacamento de vanguarda para com o atrasado! Mas quando o camarada Trótski se colocou ao lado do camarada Líber, esqueceu-se de tudo isso e chegou mesmo a justificar a fraqueza e inconstância da nossa organização desta desconfiança (desconfiança para com o oportunismo) com «causas complexas», com o «nível de desenvolvimento do proletariado», etc. Outro argumento do camarada Trótski: «Para a juventude intelectual, organizada de uma maneira ou de outra, é muito mais fácil incluir-se a si própria (o sublinhado é meu) nas listas do partido.» Justamente. Eis a razão por que a fórmula segundo a qual até os elementos inorganizados se declaram membros do partido peca pela sua imprecisão, própria de intelectuais, e não a minha, que suprime o direito de «se incluir a si próprio» nas listas. O camarada Trótski diz que se o CC «não reconhece» uma organização de oportunistas é exclusivamente em virtude do carácter das pessoas, e se essas pessoas forem conhecidas como individualidades políticas, não serão perigosas, podem ser afastadas por meio do boicote de todo o partido. Isto é verdade apenas para os casos em que é preciso afastar do partido (e mesmo assim é apenas meia verdade, porque um partido organizado afasta por votação e não por boicote). É completamente falso para os casos, muito mais frequentes, em que é absurdo afastar, em que é preciso simplesmente controlar. Com fins de controlo, o CC pode intencionalmente admitir no partido, sob certas condições, uma organização não totalmente segura mas apta para o trabalho, para assim a pôr à prova, para tentar levá-la para o bom caminho, para paralisar, dirigindo-a, os seus desvios parciais, etc. Uma admissão deste género não é perigosa se, de um modo geral, não for permitido «incluir-se a si próprio» nas listas do partido. Uma inclusão deste tipo será muitas vezes útil para que se exprimam (e se examinem) com franqueza e responsabilidade, sob controlo, os pontos de vista errados e a táctica errada. «Mas se as definições jurídicas devem corresponder às relações reais, tem que ser rejeitada a fórmula do camarada Lénine», diz o camarada Trótski, e mais uma vez o diz como um oportunista. As relações reais não são uma coisa morta, antes vivem e se desenvolvem. As definições jurídicas podem corresponder ao desenvolvimento progressivo dessas relações, mas podem também (se essas definições são más) «corresponder» a uma regressão ou a uma estagnação. Este último caso é justamente o «caso» do camarada Mártov. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(18) Recolheu 28 votos a favor e 22 contra. Dos oito anti-iskristas, sete votaram por Mártov e um por mim. Sem o auxílio dos oportunistas, o camarada Mártov não teria podido fazer triunfar a sua fórmula oportunista. (No congresso da Liga, o camarada Mártov tinha tentado, sem sorte nenhuma, negar este facto indubitável, limitando-se, não se sabe porquê, aos votos dos bundistas e esquecendo o camarada Akímov e os seus amigos, ou mais exactamente, recordando-os somente quando tal podia testemunhar contra mim, ou seja, o acordo do camarada Brúker comigo.) (Nota do Autor) (retornar ao texto)

Inclusão: 27/12/2002
Última modificação: 04/03/2024