Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo IV - Os Filósofos Idealistas, Irmãos de Armas e Sucessores do Empiro-Criticismo


25. A Dupla Critica de Dühring


Observemos ainda um pequeno traço característico da incrível deformação do materialismo por parte dos discípulos Mach. Embora Engels esteja nitidamente separado de Büchner, Valentinov supõe derrotar os marxistas comparando-os a Büchner que, observai, apresenta grandes afinidades com Plerrânov. Bogdanov, abordando a mesma questão, mas sob outro aspecto, parece defender o "materialismo dos naturalistas", do qual "se fala, comumente, com certo desprezo’" (Empiromonismo, t. III, p. X). Valentinov e Bogdanov caem aqui, ambos, em imperdoável confusão. Marx e Engels sempre "falaram com desprezo" dos maus socialistas, mas observe-se tão somente que o seu espírito é o do verdadeiro socialismo científico e não o das migrações do socialismo para as doutrinas burguesas. Marx e Engels sempre condenaram o mau materialismo (antidialético, sobretudo), mas inspirando-se no materialismo dialético, mais desenvolvido, mais elevado, e não nas ideias de Hume ou de Berkeley. Marx, Engels e Dietzgen falavam dos maus materialistas, mas contavam com eles, pretendiam corrigir seus erros; quanto aos discípulos de Hume e de Berkeley, quanto a Mach e a Avenarius, não teriam sequer falado e se teriam limitado a uma simples nota mais desdenhosa ainda a respeito de toda essa corrente. Assim também, todos os arreganhos e toda a afetação dos nossos discípulos de Mach, dirigidos a Holbach & Cia., a Büchner & Cia., etc., não objetivam senão embasbacar o publico, afim de se dissimularem o abandono, por toda a doutrina de Mach, das bases do materialismo em geral e o receio de uma ruptura aberta e franca com Engels.

Aliás, seria difícil exprimir-se mais nitidamente sobre o materialismo francês do seculo XVIII, sobre Büchner, Vogt e Moleschott, do que o fez Engels no final do capítulo II do seu Ludwig Feuerbach. É impossível não compreender Engels, a menos que se queira deformar o seu pensamento.

"Somos, Marx e eu — diz Engels –, materialistas".

E ele esclarece, nesse capítulo, a diferença fundamental entre todas as escolas do materialismo e o conjunto dos idealistas, isto é, todos os kantistas e todos os discípulos de Hume em geral. Engels reprova em Feuerbach certa falta de coragem, certa leviandade de espírito que o fez abandonar, por vezes, o materialismo, a proposito de deficiências de alguma escola materialista.

Feuerbach "não tinha o direito" (dürfte nicht), diz Engels, "de confundir as doutrinas dos pregoeiros ambulantes do materialismo (Büchner & Cia.) com o materialismo em geral" (p. 21).

Os cérebros obliterados pela leitura dos professores reacionários alemães e a confiança depositada em seu ensino apenas puderam não compreender caráter dessas criticas feitas por Engels a Feuerbach.

Engels também diz claramente que é possível que Büchner e seus similares "não tenham ultrapassado as lições de seus mestres", isto é, dos materialistas do seculo XVIII, que não tenham dado um passo à frente. É isso e somente isso o que ele reprova; ele não os critica por terem sido materialistas, como supõem os ignorantes, mas por não terem feito progredir o materialismo, por "não terem pensado em desenvolver sua teoria". Essa é a única critica que Engels faz a Büchner & Cia. Engels enumera, nessa mesma passagem, ponto por ponto, as três "limitações" (Beschränktheit) fundamentais que inibiam o pensamento dos materialistas franceses do seculo XVIII, limitações eliminadas por Marx e Engels, mas das quais Büchner & Cia. não souberam desembaraçar-se. Primeira limitação: a concepção dos antigos materialistas era "mecanicista" no sentido de que "não aplicavam aos processos da natureza química e orgânica senão a escala mecânica" (p. 19). Veremos no capítulo seguinte como a incompreensão dessas palavras de Engels desviou certas pessoas, através da nova física, para os caminhos do idealismo; Engels não condena o materialismo mecanicista pelos motivos indicados pelos físicos da corrente idealista "contemporânea" (e também da corrente de Mach). Segunda limitação: as concepções dos antigos materialistas eram metafísicas na medida do caráter antidialético de sua filosofia. Essa limitação é tanto de Büchner & Cia. como dos nossos discípulos de Mach, que, como vimos, nada compreenderam, absolutamente nada, da dialética de Engels aplicada à gnoseologia (exemplo: a verdade absoluta e a verdade relativa). Terceira limitação: o idealismo subsiste "no alto", no domínio da ciência social: ininteligibilidade do materialismo histórico.

Depois de ter enumerado e explicado essas três "limitações" com uma clareza que esgota a questão (pp. 19 e 21). Engels acrescenta: "Büchner & Cia. não ultrapassaram essas limitações" (über diese Schranken).

É exclusivamente por tais motivos, exclusivamente nesses limites, que Engels rejeita o materialismo do seculo XVIII e a doutrina de Büchner & Cia. A respeito de todas as outras questões mais elementares, do materialismo (deformadas pelos discípulos de Mach), não há e nem pode haver nenhuma diferença entre e Marx e Engels de um lado e todos esses antigos materialistas do outro. Os discípulos russos de Mach são os únicos a introduzir a confusão nessa situação absolutamente clara, enquanto os seus correligionários da Europa ocidental verificam perfeitamente a divergência radical entre a corrente de Mach & Cia. e a dos materialistas em geral. Nossos discípulos de Mach obscureceram conscientemente a questão para dar à sua ruptura com o marxismo e à sua transição para a filosofia burguesa a aparência de "correções de pouca importância" introduzidas no marxismo!

Vede Dühring. Dificilmente se poderia imaginar apreciação mais humilhante do que a de Engels a seu respeito. Mas pôde-se ver como Leclair criticava o mesmo Dühring simultaneamente com Engels, elogiando a "filosofia de alcance revolucionário" de Mach. Para Leclair, Dühring representa a "extrema esquerda" do materialismo, "que declara, sem rodeios, que a sensação é, como em geral toda manifestação da consciência e da razão, uma secreção, uma função, uma flor sublime, um efeito de conjunto, etc., do organismo animal" (Der Realismus, etc., 1879, pp. 23 e 24).

Por essa razão é que Dühring foi criticado por Engels? Não. O acordo de Engels com Dühring, como com todo materialista, era absoluto, nesse ponto. Ele criticou Dühring de um ponto de vista diametralmente oposto, pelas inconsequências do seu materialismo, por suas fantasias idealistas que deixavam a porta aberta ao fideísmo.

"A própria natureza trabalha no seio do ser provido de apresentações mentais, bem como fora dele, para produzir, segundo suas leis, concepções coerentes e para criar o saber necessário da marcha das coisas".

Citando essas palavras de Dühring, Leclair ataca com furor essa concepção materialista, a "metafísica extremamente grosseira desse materialismo, o seu "engodo", etc., etc. (pp. 160, 161 e 163).

Por essa razão é que Dühring foi criticado por Engels? Não Engels ridicularizou-lhe a enfase, mas o seu acordo com Dühring como com qualquer outro materialista, era absoluto no tocante ao reconhecimento das leis objetivas da natureza refletidas pela consciência.

"O pensamento é o aspecto superior de toda a realidade.

A independência e a distinção do mundo material real em relação ao grupo dos fenômenos de consciência que se originar* nesse mundo e que o concebem, constituem o postulado fundamental da filosofia".

Citando essas palavras de Dühring, ao mesmo tempo que diversos ataques do mesmo autor contra Kant e outros, Leclair acusa Dühring de cair na "metafísica" (pp. 218, 222), de admitir o "dogma metafísico", etc.

Por essa razão é que Dühring foi criticado por Engels? Não. No que diz respeito à existência do universo independentemente da consciência, no que diz respeito ao erro dos kantistas ou dos discípulos de Hume e de Berkeley que se afastam dessa verdade, o acordo de Engels com Dühring, como com qualquer outro materialista, era absoluto. Se Engels tivesse visto de que lado Leclair vinha, em combinação com Mach, criticar Dühring, ele teria dirigido contra esse dois filósofos reacionários epítetos cem vezes mais desdenhosos do que os que dirigiu a Dühring! Dühring encarnava, para Leclair, o realismo e o materialismo maléficos (cf. Beiträge zu einer monistischen Erkenntnistheorie (Contribuições a uma teoria monista do conhecimento), 1882, p. 45. W. Schuppe, mestre e companheiro de lutas de Mach, reprovava em 1878, em Dühring, o seu "realismo delirante" (Traumrealismus)(1), replicando desse modo à expressão de "idealismo delirante" de que se serviu Dühring contra todos os idealistas. Para Engels, ao contrário, Dühring, como materialista, não era nem suficientemente firme, nem suficientemente claro, nem suficientemente consequente.

Marx e Engels, e igualmente J. Dietzgen, intervieram nas lutas filosóficas numa época em que o materialismo preponderava entre os intelectuais avançados em geral e, mais particularmente, nos meios operários. Marx e Engels focalizaram então, muito naturalmente, toda sua atenção, não sobre a repetição do que já havia dito, mas sobre o desenvolvimento sério do materialismo, sobre sua aplicação à história, isto é, sobre o acabamento até teto do edifício da filosofia materialista. Limitaram-se, naturalmente, no domínio da gnoseologia, a corrigir os erros de Feuerbach, a ridicularizar as banalidades do materialista Dühring, a criticar os erros de Büchner (e de J. Dietzgen), a frisar que a dialética fazia falta sobretudo a esses escritores mais populares e mais difundidos nos meios operários. Quanto às verdades fundamentais do materialismo, proclamadas por muitos pregoeiros ambulantes em dezenas de publicações, Marx, Engels e Dietzgen delas não cuidaram muito, dirigindo toda sua atenção para que não fossem vulgarizadas, simplificadas ao extremo e não conduzissem à estagnação do pensamento ("materialismo por baixo, idealismo por cima"), ao esquecimento do fruto precioso dos sistemas idealistas, ao esquecimento da dialética Hegeliana, perola que os Büchner, os Dühring & Cia. (inclusive Mach, Avenarius e muitos outros) não souberam extrair da abjeção do idealismo absoluto.

Considerando-se, por pouco concretamente que seja, tais condições históricas do trabalho filosófico de Engels e de J. Dietzgen, compreende-se muito bem por que esses autores se premuniram contra a vulgarização das verdades fundamentais do materialismo mais do que defenderam essas mesmas verdades. Marx e Engels também encaminharam, mais do que defenderam, as reivindicações fundamentais da democracia política.

Somente os discípulos dos filósofos reacionários puderam "não perceber" esse fato e apresentar as coisas aos leitores como se Marx e Engels não tivessem compreendido o que significa ser materialista.


Notas de rodapé:

(1) Dr. Wilhelm Schuppe, Erkenntnistheoretisehe Logjk (Lógica da teoria do conhecimento), Bonn, 1878, pág. 56. — N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 22/12/2014