O Estado e a Revolução

Vladimir Ilitch Lénine


II. A Experiência dos Anos 1848-1851


1. A Véspera da Revolução

As primeiras obras do marxismo maduro, a Miséria da Filosofia e o Manifesto Comunista, datam precisamente da véspera da revolução de 1848. Devido a esta circunstância, paralelamente à exposição das bases gerais do marxismo, temos aqui, em certa medida, um reflexo da situação revolucionária concreta de então. E, por isso, o mais racional seria, creio, analisar o que os autores dessas obras disseram acerca do Estado, imediatamente antes das suas conclusões da experiência dos anos 1848-1851.

«... A classe operária — escreve Marx na Miséria da Filosofia — substituirá, no curso do desenvolvimento, a velha sociedade burguesa por uma associação que exclui as classes e o seu antagonismo, e deixará de haver um autêntico poder político, pois precisamente o poder político é a expressão oficial do antagonismo de classes no seio da sociedade burguesa» (p. 182 da ed. alemã de 1885)(1).

É instrutivo comparar com esta exposição geral da ideia do desaparecimento do Estado depois da supressão das classes a exposição que é dada no Manifesto Comunista escrito por Marx e Engels alguns meses depois, precisamente em Novembro de 1847:

«... Enquanto traçamos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, seguimos de perto a guerra civil, mais ou menos oculta no seio da sociedade existente até ao ponto em que estala abertamente uma revolução e o proletariado estabelece o seu domínio pelo derrube violento da burguesia ...

«... Já atrás vimos que o primeiro passo na revolução operaria é a passagem» (à letra: elevação) «do proletariado a classe dominante, a luta pela democracia.

«O proletariado usará o seu domínio político para ir arrancando todo o capital das mãos da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a totalidade das forças produtivas» (pp. 31 e 37 da 7ª edição alemã de 1906)(2).

Vemos aqui a formulação de uma das ideias mais notáveis e mais importantes do marxismo na questão do Estado, precisamente a ideia da «ditadura do proletariado» (como começaram a dizer Marx e Engels após a Comuna de Paris), e em seguida uma definição extremamente interessante do Estado e que pertence também ao número das «palavras esquecidas» do marxismo. «O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante

Esta definição do Estado não só nunca foi explicada na literatura de propaganda e de agitação dominante dos partidos sociais-democratas oficiais. Mais ainda. Foi precisamente esquecida por ser absolutamente inconciliável com o reformismo, é uma bofetada na cara para os preconceitos oportunistas habituais e as ilusões filistinas quanto ao «desenvolvimento pacífico da democracia».

O proletariado precisa do Estado — isto repetem todos os oportunistas, sociais-chauvinistas e kautskianos, asseverando que é essa a doutrina de Marx, e «esquecendo-se» de acrescentar que, em primeiro lugar, segundo Marx, o proletariado só precisa de um Estado em extinção, isto é, constituído de modo a que comece imediatamente a extinguir-se e não possa deixar de se extinguir. E, em segundo lugar, os trabalhadores precisam de um «Estado», «isto é, o proletariado organizado como classe dominante».

O Estado é a organização especial da força, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer. Qual é então a classe que o proletariado deve reprimir? Naturalmente apenas a classe dos exploradores, isto é, a burguesia. Os trabalhadores precisam do Estado apenas para reprimir a resistência dos exploradores, e dirigir esta repressão, realizá-la na pratica, só o proletariado está em condições de o fazer, como única classe revolucionária até ao fim, única classe capaz de unir todos os trabalhadores e explorados na luta contra a burguesia, no seu completo afastamento.

As classes exploradoras precisam do domínio político no interesse da manutenção da exploração, isto é, no interesse egoísta de uma minoria insignificante contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam do domínio político no interesse da completa supressão de toda a exploração, isto é, no interesse da imensa maioria do povo contra a minoria insignificante dos escravistas contemporâneos, isto é, os latifundiários e os capitalistas.

Os democratas pequeno-burgueses, esses pretensos socialistas que substituíam a luta de classes pelos sonhos de entendimento das classes, concebiam a própria transformação socialista de um modo sonhador, não sob a forma do derrubamento do domínio da classe exploradora, mas sob a forma da submissão pacífica da minoria à maioria que ganhou consciência das suas tarefas. Esta Utopia pequeno-burguesa, indissoluvelmente ligada ao reconhecimento de um Estado colocado acima das classes, conduzia na prática à traição dos interesses das classes trabalhadoras, como o mostrou, por exemplo, a história das revoluções francesas de 1848 e 1871, como o mostrou a experiência da participação «socialista» nos ministérios burgueses em Inglaterra, em França, em Itália e em outros países no fim do século XIX e no princípio do século XX(3).

Marx lutou durante toda a sua vida contra este socialismo pequeno-burguês ressuscitado hoje na Rússia pelos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Marx levou a doutrina da luta de classes de modo consequente até à doutrina do poder político, do Estado.

O derrubamento do domínio da burguesia só é possível pelo proletariado, como classe especial, cujas condições económicas de existência a preparam para este derrubamento, lhe dão a possibilidade e a força para o realizar. Ao mesmo tempo que a burguesia fracciona e pulveriza o campesinato e todas as camadas pequeno-burguesas, agrupa, une, organiza o proletariado. Só o proletariado — devido ao seu papel económico na grande produção — é capaz de ser o chefe de todas as massas trabalhadoras e exploradas que a burguesia explora, oprime e esmaga muitas vezes não menos mas mais fortemente que os proletários, mas que são incapazes de uma luta independente pela sua emancipação.

A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx à questão do Estado e da revolução socialista, conduz necessariamente ao reconhecimento do domínio político do proletariado, da sua ditadura, isto é, de um poder não partilhado com ninguém e que se apoia directamente na força armada das massas. O derrubamento da burguesia só pode ser realizado pela transformação do proletariado em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de economia todas as massas trabalhadoras e exploradas.

O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semi-proletários, na obra da organização da economia socialista.

Educando o partido operário, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e de organizar uma nova ordem, de ser o educador, o dirigente e o chefe de todos os trabalhadores e explorados na obra da organização da sua vida social, sem a burguesia e contra a burguesia. Pelo contrário, o oportunismo hoje dominante educa no partido operário representantes dos trabalhadores mais bem pagos, que se desligam da massa, que se «arranjam» bastante bem sob o capitalismo, que vendem por um prato de lentilhas o seu direito de primogenitura, isto é, renunciam ao papel de chefe revolucionários do povo contra a burguesia.

«O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante» — esta teoria de Marx está indissoluvelmente ligada a toda a sua doutrina sobre o papel revolucionário do proletariado na história. O remate deste papel é a ditadura proletária, o domínio político do proletariado.

Mas se o proletariado precisa do Estado como organização especial da violência contra a burguesia, então daqui impõe-se por si uma conclusão: será concebível a criação de tal organização sem suprimir previamente, sem destruir a máquina do Estado que a burguesia criou para si própria? É a esta conclusão que conduz directamente o Manifesto Comunista e é desta conclusão que Marx fala quando faz o balanço da experiência da revolução de 1848-1851.

2. O Balanço da Revolução

Quanto à questão do Estado, que é a que nos interessa, Marx faz o balanço da revolução de 1848-1851 no seguinte raciocínio da obra “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte”:

«... Mas a revolução é profunda. Ela ainda vai na viagem pelo purgatório. Ela faz o que tem a fazer com método. Até 2 de Dezembro de 1851» (dia da realização do golpe de Estado de Louis Bonaparte) «tinha realizado metade da sua preparação, e agora realiza a outra metade. Ela começou por aperfeiçoar o poder parlamentar para o poder derrubar. Agora, que o conseguiu, aperfeiçoa o poder executivo, redu-lo à sua expressão mais pura, isola-o, contrapõe-no a si como único objecto de censura, para concentrar contra ele todas as suas forças de destruição» (sublinhado nosso). «E quando tiver completado esta segunda metade do seu trabalho preparatório, a Europa saltará do seu lugar e gritará com júbilo: Bem revolvido, velha toupeira!

«Este poder executivo com a sua imensa organização burocrática e militar, com a sua máquina de Estado de múltiplos degraus e artificial, uma hoste de funcionários de meio milhão ao lado de um exército de outro meio milhão, este terrível corpo de parasitas que, como uma retina, envolve o corpo da sociedade francesa e lhe obstrui todos os poros, nasceu no tempo da monarquia absoluta, no declínio do sistema feudal que ele ajudou a acelerar.» A primeira revolução francesa desenvolveu a centralização, «... mas ao mesmo tempo o volume, os atributos e os serventuários do poder do governo. Napoleão completou esta máquina do Estado». A monarquia legítima e a monarquia de Julho «nada lhe acrescentaram a não ser uma maior divisão do trabalho ...

«... A república parlamentar viu-se finalmente obrigada, na sua luta contra a revolução, a reforçar os meios e a centralização do poder do governo com medidas repressivas. Todas as revoluções aperfeiçoaram esta máquina em vez de a quebrarem» (sublinhado nosso). «Os partidos que alternaram na luta pelo domínio viam na posse deste imenso edifício do Estado o despojo principal do vencedor» (O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, pp. 98-99, 4ª ed., Hamburg, 1907)(4).

Neste notável raciocínio, o marxismo dá um imenso passo em frente em comparação com o Manifesto Comunista. Aí a questão do Estado é ainda posta de uma maneira extremamente abstracta, nas noções e nos termos mais gerais. Aqui a questão é posta de maneira concreta e a conclusão é extraordinariamente precisa, definida, praticamente tangível: todas as revoluções anteriores aperfeiçoaram a máquina do Estado, mas é preciso demoli-la, quebrá-la.

Esta conclusão é o principal, o fundamental na doutrina do marxismo sobre o Estado. E precisamente esta coisa fundamental não só foi completamente esquecida pelos partidos sociais-democratas oficiais dominantes mas francamente deturpada (como veremos mais adiante) pelo teórico mais destacado da II Internacional, K. Kautsky.

No Manifesto Comunista faz-se o balanço geral da história, que obriga a ver no Estado o órgão de dominação de classe e conduz à conclusão necessária de que o proletariado não pode derrubar a burguesia sem ter conquistado primeiro o poder político, sem ter alcançado a dominação política, sem ter transformado o Estado em «proletariado organizado como classe dominante», e que este Estado proletário começará a extinguir-se logo após a sua vitória, porque numa sociedade sem contradições de classe o Estado é desnecessário e impossível. Aqui não se coloca a questão de como deve ser, do ponto de vista do desenvolvimento histórico, esta substituição do Estado burguês pelo proletário.

Marx coloca e resolve precisamente esta questão em 1852. Fiel à sua filosofia do materialismo dialéctico, Marx toma como base a experiência histórica dos grandes anos da revolução — 1848-1851. Também aqui a doutrina de Marx, como sempre, é um balanço da experiência iluminado por uma profunda visão filosófica do mundo e um rico conhecimento da história.

A questão do Estado é posta de maneira concreta: como surgiu historicamente o Estado burguês, a máquina de Estado necessária à dominação da burguesia? quais as suas transformações, qual a sua evolução no decurso das revoluções burguesas e face às acções autónomas das classes oprimidas? quais as tarefas do proletariado em relação a esta máquina de Estado?

O poder de Estado centralizado, próprio da sociedade burguesa, surgiu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais características desta máquina de Estado são: o funcionalismo e o exército permanente. Nas obras de Marx e Engels fala-se repetidas vezes de como mil laços ligam estas instituições precisamente à burguesia. A experiência de cada operário ilustra esta ligação com uma evidência e um relevo extraordinário. A classe operária aprende a conhecer esta ligação na sua própria pele — eis porque capta tão facilmente e assimila tão solidamente a ciência da inevitabilidade desta ligação, ciência que os democratas pequeno-burgueses ou negam por ignorância e por leviandade, ou ainda mais levianamente reconhecem «em geral», esquecendo-se de tirar as conclusões práticas correspondentes.

O funcionalismo e o exército permanente são um «parasita» no corpo da sociedade burguesa, parasita gerado pelas contradições internas que dilaceram esta sociedade, mas precisamente um parasita que «obstrui» os poros vitais. O oportunismo kautskiano hoje dominante na social-democracia oficial considera que esta concepção do Estado como um organismo parasitário é um atributo particular e exclusivo do anarquismo. Evidentemente, esta deturpação do marxismo é extraordinariamente vantajosa para os filisteus que conduziram o socialismo à vergonha inaudita de justificar e embelezar a guerra imperialista por meio da aplicação a ela da noção de «defesa da pátria», mas tudo isto é uma deturpação incontestável.

O desenvolvimento, o aperfeiçoamento, a consolidação deste aparelho burocrático e militar prosseguem através de todas as revoluções burguesas que a Europa viu muitas vezes desde o tempo da queda do feudalismo. Em particular, precisamente a pequena burguesia é atraída para o lado da grande e é submetida a ela, em grau significativo, por meio deste aparelho, que dá às camadas superiores do campesinato, dos pequenos artesãos, dos comerciantes, etc., lugarzinhos relativamente cómodos, tranquilos e honrosos, que colocam os seus possuidores acima do povo. Vede o que se passou na Rússia durante o meio ano que se seguiu a 27 de Fevereiro de 1917: os lugares de funcionários, que antes eram dados de preferência aos cem-negros, tornaram-se objecto de caça dos democratas-constitucionalistas, dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. No fundo, não se pensava em quaisquer reformas sérias, procurando-se adiá-las «até à Assembleia Constituinte» — e adiar a Assembleia Constituinte pouco a pouco até ao fim da guerra! Mas para a partilha da presa, para a ocupação dos lugarzinhos de ministros, de vice-ministros, de governadores-gerais, etc., etc., não perderam tempo nem esperaram por qualquer Assembleia Constituinte! O jogo das combinações em relação à composição do governo era apenas, no fundo, a expressão desta distribuição e redistribuição da «presa» que se fazia tanto em cima como em baixo, em todo o país, em todas as administrações centrais e locais. O resultado, o resultado objectivo do meio ano de 27 de Fevereiro a 27 de Agosto de 1917 é incontestável: as reformas são adiadas, realizou-se a distribuição dos lugarzinhos burocráticos, e os «erros» da distribuição foram corrigidos com algumas redistribuições.

Mas, quanto mais se procede às «redistribuições» do aparelho burocrático entre os diversos partidos burgueses e pequeno-burgueses (entre os democratas-constitucionalistas, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, para tomar o exemplo russo), tanto mais claro se torna para as classes oprimidas, com o proletariado à cabeça, a sua hostilidade irredutível em relação a toda a sociedade burguesa. Daí a necessidade para todos os partidos burgueses, mesmo para os mais democráticos e «revolucionário-democráticos» entre eles, de reforçar a repressão contra o proletariado revolucionário, de consolidar o aparelho de repressão, isto é, a própria máquina de Estado. Tal curso dos acontecimentos obriga a revolução a «concentrar todas as suas forças de destruição» contra o poder de Estado, obriga a colocar a tarefa não de melhorar a máquina de Estado mas de destruí-la, de suprimi-la.

Não foram raciocínios lógicos, mas sim o desenvolvimento real dos acontecimentos, a experiência viva dos anos 1848-1851, que levaram a colocar assim a tarefa. Até que ponto Marx se atém estritamente à base factual da experiência histórica, vê-se pelo facto de que em 1852 não pôe ainda concretamente a questão de saber pelo quê substituir esta máquina de Estado que deve ser suprimida. A experiência não tinha ainda dado, então, materiais para tal questão, colocada pela história na ordem do dia mais tarde, em 1871. Em 1852 apenas se podia constatar, com a precisão da observação própria da história natural, que a revolução proletária se aproximou da tarefa de «concentrar todas as suas forças de destruição» contra o poder de Estado, da tarefa de «quebrar» a máquina de Estado.

Aqui pode surgir a questão de se é justo generalizar a experiência, as observações e as conclusões de Marx, transplantá-las para limites mais amplos do que a história de França durante três anos, 1848-1851? Para analisar esta questão, lembraremos em primeiro lugar uma observação de Engels, e passaremos depois aos factos.

«A França — escrevia Engels no prefácio à 3ª edição do 18 de Brumário — a França é o país em que as lutas históricas de classes foram sempre levadas, mais do que em qualquer outra parte, até à decisão final, o país em que, portanto, também as formas políticas em mudança, no seio das quais aquelas se movem e nas quais os seus resultados se resumem, estão marcadas com contornos mais precisos. Centro do feudalismo na Idade Média, país modelo da monarquia una de estados desde a Renascença, a França desmantelou o feudalismo na grande Revolução e fundou o domínio puro da burguesia com uma classicidade como em nenhum outro país europeu. E também a luta do proletariado em ascensão contra a burguesia dominante surge aqui numa forma aguda que é desconhecida em qualquer outra parte» (p. 4 na ed. de 1907).

A última observação envelheceu, na medida em que, a partir de 1871, começou uma interrupção na luta revolucionária do proletariado francês, embora esta interrupção, por mais longa que seja, não exclua de maneira nenhuma a possibilidade de que a França se revele, na revolução proletária do futuro, como o país clássico da luta de classes até ao fim decisivo.

Mas lancemos um olhar geral à história dos países avançados no fim do século XIX e no princípio do século XX. Veremos que esse mesmo processo se operou mais lentamente, sob formas mais variadas, numa arena muito mais ampla: por um lado, elaboração de um «poder parlamentar» tanto nos países republicanos (França, América, Suíça) como nos monárquicos (Inglaterra, Alemanha até certo ponto, Itália, países escandinavos, etc.); por outro lado, luta pelo poder entre os diversos partidos burgueses e pequeno-burgueses que distribuíam e redistribuíam a presa dos lugarzinhos burocráticos, deixando imutáveis os fundamentos da ordem burguesa; finalmente, aperfeiçoamento e consolidação do «poder executivo», do seu aparelho burocrático e militar.

Não há dúvida alguma de que são estes os traços gerais de toda a evolução moderna dos Estados capitalistas em geral. Em três anos, 1848-1851, a França mostrou de uma forma rápida, brusca, concentrada, os mesmos processos de desenvolvimento que são próprios de todo o mundo capitalista.

E, em particular, o imperialismo, época do capital bancário, época dos gigantescos monopólios capitalistas, época de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado, mostra o reforço extraordinário da «máquina de Estado», o crescimento inaudito do seu aparelho burocrático e militar em ligação com o reforço da repressão contra o proletariado, tanto nos países monárquicos como nos países republicanos mais livres.

A história mundial conduz agora inevitavelmente, numa escala incomparavelmente mais ampla do que em 1852, à «concentração de todas as forças» da revolução proletária para a «destruição» da máquina de Estado.

Pelo que a substituirá o proletariado? A Comuna de Paris deu sobre isto o material mais instrutivo.

3. Como Marx Colocava a Questão em 1852(5)

Mehring publicou em 1907, na revista Neue Zeit(6) (XXV, 2, 164), extractos da carta de Marx a Weydemeyer de 5 de Março de 1852. Esta carta contém, entre outros, o seguinte raciocínio notável:

«Ora, no que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a luta que travam entre si. Já muito antes de mim historiógrafos burgueses tinham apresentado o desenvolvimento histórico desta luta das classes e economistas burgueses tinham apresentado a anatomia económica das mesmas. O que fiz de novo foi, 1.°, demonstrar que a existência das classes está meramente ligada a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2°, que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3.°, que esta mesma ditadura constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes...»

Nestas palavras, Marx conseguiu exprimir com um relevo surpreendente, em primeiro lugar, a diferença principal e radical entre a sua doutrina e a doutrina dos pensadores avançados e mais profundos da burguesia e, em segundo lugar, a essência da sua doutrina acerca do Estado.

O principal, na doutrina de Marx, é a luta de classes. Assim se diz e se escreve muito frequentemente. Mas é incorrecto. E desta incorrecção muitas vezes resulta uma deturpação oportunista do marxismo, a sua falsificação num espírito aceitável para a burguesia. Pois a doutrina da luta de classes foi criada não por Marx mas pela burguesia antes de Marx, e, falando em geral, é aceitável para a burguesia. Quem reconhece unicamente a luta de classes, esse ainda não é marxista, esse pode encontrar-se ainda dentro dos limites do pensamento burguês e da política burguesa. Limitar o marxismo à doutrina da luta de classes significa truncar o marxismo, deturpá-lo, reduzí-lo ao que é aceitável para a burguesia. Só é marxista aquele que alarga o reconhecimento da luta de classes ate ao reconhecimento da ditadura do proletariado. Nisto consiste a diferença mais profunda entre o marxista e o vulgar pequeno (e também grande) burguês. É nesta pedra de toque que é preciso experimentar a compreensão e o reconhecimento efectivos do marxismo. E não é de estranhar que, quando a história da Europa colocou a classe operária na prática perante esta questão, não só todos os oportunistas e reformistas mas também todos os «kautskianos» (pessoas que vacilam entre o reformismo e o marxismo) se tenham revelado lamentáveis filisteus e democratas pequeno-burgueses, que negam a ditadura do proletariado. A brochura de Kautsky A Ditadura do Proletariado, publicada em Agosto de 1918, isto é, muito tempo depois da primeira edição da presente obra, é um modelo de deturpação filistina do marxismo e da sua infame renegação de facto, simultaneamente com o seu reconhecimento hipócrita em palavras (ver a minha brochura: A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, Petrogrado e Moscovo, 1918).

O oportunismo contemporâneo, na pessoa do seu principal representante, o ex-marxista K. Kautsky, cai inteiramente dentro da caracterização da atitude burguesa em Marx, porque esse oportunismo limita o domínio do reconhecimento da luta de classes ao domínio das relações burguesas. (E dentro deste domínio, nos seus limites, não existe um único liberal instruído que se recuse a reconhecer «em princípio» a luta de classes!) O oportunismo não estende o reconhecimento da luta de classes precisamente até aquilo que é o essencial, até ao período de transição do capitalismo para o comunismo, até ao período do derrubamento da burguesia e da sua completa supressão. Na realidade, este período é inevitavelmente um período de uma luta de classes de um encarniçamento sem precedentes, sem precedentes na agudeza das suas formas. E, consequentemente, o Estado deste período deve necessariamente ser um Estado democrático de uma maneira nova (para os proletários e para os não possidentes em geral) e ditatorial de uma maneira nova (contra a burguesia).

Mais. A essência da doutrina de Marx acerca do Estado só foi assimilada pelos que compreenderam que a ditadura de uma só classe é necessária não só para qualquer sociedade de classes em geral, não só para o proletariado que derrubou a burguesia, mas também para a totalidade do período histórico que separa o capitalismo da «sociedade sem classes», do comunismo. As formas dos Estados burgueses são extraordinariamente variadas, mas a sua essência é apenas uma: em última análise, todos estes Estados são, de uma maneira ou de outra, mas necessariamente, uma ditadura da burguesia. A transição do capitalismo para o comunismo não pode naturalmente deixar de dar uma enorme abundância e variedade de formas políticas, mas a sua essência será necessariamente uma só: a ditadura do proletariado.


Notas de rodapé:

(1) K. Marx, Miséria da Filosofia. (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 4, s. 182) (retornar ao texto)

(2) K. Marx e F. Engels, Manifesto Comunista (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. 4, S. 473, 481. (retornar ao texto)

(3) No fim do século XIX e começo do século XX, os círculos dirigentes da burguesia de diversos países, pretendendo cindir o movimento operário e desviar o proletariado da luta revolucionária por meio de algumas cedências, recorreram à manobra de convidar alguns dirigentes reformistas dos partidos socialistas a participarem em governos burgueses reaccionários. Na Inglaterra, em 1892, John Burns foi eleito membro do Parlamento; na França, em 1889, entrou no Governo burguês de Waldeck-Rousseau o socialista Alexandre Etienne Millerand, que ajudou a burguesia na realização da sua política. A participação de Millerand no governo burguês reaccionário prejudicou muito o movimento operário da França. V.I. Lénine caracterizou o millerandismo como apostasia e revisionismo. Na Itália, no começo do século XX os socialistas Leonida Bissolati, Ivanoe Bonomi e outros manifestaram-se abertamente partidários da colaboração com o governo. Em 1912 foram expulsos do Partido Socialista.

Durante a Primeira Guerra Mundial os dirigentes oportunistas de direita dos partidos sociais-democratas de diferentes países passaram abertamente para o lado do social-chauvinismo, participaram nos governos burgueses dos seus países e defenderam a sua política. (retornar ao texto)

(4) K. Marx, “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte” (In Karl Marx / Friedrich Engels, Werke, Bd. (, S. 196-197). Mais adiante Lénine cita o prefácio de Engels à 4ª Edição desta obra (Ibidem, Bd. 21, S. 248-249). (retornar ao texto)

(5) Acrescentado na 2ª Edição (retornar ao texto)

(6) Die Neue Zeit (Tempo Novo): revista teórica do Partido Social-Democrata da Alemanha, publicou-se em Estugarda de 1883 a 1923. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/07/2003
Última modificação: 07/03/2024