A Teoria do Romance

Georg Lukács


I - As formas da grande literatura épica examinada em relação as formas da civilização enquanto fechadas ou problemáticas
2. Os Problemas da Filosofia da História das Formas


Como um resultado de tal transformação de tópicos da orientação transcendental, as formas da arte tornaram-se sujeitas à dialética histórico-filosófica; o curso dessa dialética dependerá, contudo, da gênese a priori ou “casa” de cada gênero. Pode ocorrer que a mudança afete somente o objeto e as condições sobre as quais vem a ser uma dada forma, e não indaga sobre as relações definitivas da forma do seu direito de existência transcendental; quando é assim somente mudanças formais ocorrerão, e, todavia elas possam conflitar em cada detalhe técnico, elas não anularão o princípio formal original de dar forma. Às vezes, entretanto, as mudanças acontecem exatamente na totalidade determinada principium stilisationis do gênero, e então outras formas de arte devem necessariamente, por motivos histórico-filosóficos, corresponder à mesma intenção artística.

Este não é assunto para a mudança no pensamento dando surgimento a um novo gênero, tal como aconteceu na história grega quando o herói e seu destino tornaram-se problemáticos e assim deram origem ao drama não-trágico de Eurípides. Neste caso há uma completa correspondência entre as necessidades a priori do sujeito [sujeito neste livro significa artista ou escritor], seu sofrimento metafísico, que fornece o impulso para a criação, e o lugar pré-estabilizado e eterno com os quais a obra completa coincide. O princípio da criação do gênero que se entende aqui não implica qualquer mudança na mentalidade, antes, força a mentalidade voltar-se para um novo propósito que é essencialmente diferente do antigo. Significa que o velho paralelismo da estrutura transcendental do sujeito que dá forma e o mundo das formas criadas foi destruído, e as bases finais da criação artística tornaram-se fora do lugar.

O Romantismo alemão, embora nem sempre esclarecesse completamente seus conceitos de romance, estabeleceu uma intima ligação entre este e o conceito de Romântico; e com razão. Pela forma nova do romance ser, como nenhuma outra, uma expressão deste fora de lugar transcendental. Para os gregos, o fato de sua história e a filosofia da história coincida significava que toda forma de arte nasceu apenas quando o relógio do sol da mente mostrava que a hora havia chegado e tinha de desaparecer quando as imagens fundamentais não eram mais visíveis no horizonte. Essa periodicidade filosófica perdeu-se em anos posteriores. Os gêneros artísticos agora penetravam através dos outros com uma complexidade que não poderia ser desemaranhada, e tornam-se traços de uma busca autentica ou errada de um objetivo que não é mais claramente e inequivocamente dado; sua soma total é apenas uma totalidade histórica do empírico, em que podemos buscar (possivelmente encontrar) as condições empíricas (sociológicas) para os modos pelos quais cada forma surgiu, mas onde o significado histórico-filosófico da periodicidade nunca mais se concentra nas próprias formas (que se tornaram simbólicas) e onde este significado pode ser decifrado e decodificado das totalidades de vários períodos, mas não descobertas nestas totalidades. Contudo enquanto a menor perturbação das correlações transcendentais deve fazer com que a imanência do sentido da vida desapareça além da recuperação, uma essência que é divorciada e alheia à vida pode coroar-se com sua própria existência de tal forma que essa consagração, mesmo após um motim mais violento, possa empalidecer, mas nunca desaparecerá completamente. É por isso que a tragédia, embora tenha mudado, nunca sobreviverá em nossa época com uma natureza intocada, enquanto a epopeia nunca desaparecerá e ainda tem seu lugar completamente assegurado numa nova forma: o romance.

Sem dúvida, uma completa transformação do conceito de vida e sua relação com a essência também modificaram a tragédia. Uma coisa é a imanência do sentido à vida desaparecer como uma clareza catastrófica e abandonar à essência um mundo puro por nada perturbado; outra é quando essa imanência é banida do cosmos como que pela ação gradual de um sortilégio; quando a nostalgia por sua reaparição permanece insatisfeita e viva, e nunca uma indubitável desesperança; quando se tem de supor o que foi perdido em cada fenômeno, por mais confuso e inapreensível que ele seja no momento, à espera da palavra redentora; quando a essência é incapaz de erguer um palco trágico com troncos abatidos na floresta da vida, mas tem ou de despertar para uma breve existência da chama no fogo em que ardem todos os restos mortos de uma vida em ruínas, ou, em áspera recusa a todo esse caos, voltar às costas e refugiar-se na esfera abstrata da mais pura essencialidade. É a relação da essência com a vida, em si, além do drama que torna necessária a dualidade estilística da tragédia moderna cujos polos opostos são Shakespeare e Alfieri.

A tragédia grega ultrapassava a alternativa de proximidade à vida contra a abstração porque, para ela, a plenitude não era um problema de proximidade à vida, e transparência do diálogo não negava sua imediatidade. Quaisquer que tenham sido os acidentes ou necessidades históricas que produziram o coro grego, seu significado artístico consiste em conferir vida e plenitude à essência situada fora e além de toda a vida. Assim, o coro foi capaz de fornecer um contexto que fecha a obra da mesma forma que o espaço atmosférico de mármore entre figuras em relevo fecha o friso, mas o fundo do coro também está cheio de movimento e pode se adaptar a todas as variações aparentes da ação dramática não nascida de qualquer esquema abstrato, pode absorvê-las em si, enriquecendo-as com sua própria substância, pode devolvê-las ao drama. Pode fazer o sentido lírico de todo o drama soar em esplêndidas palavras; pode sem sofrer um colapso, combinar em si mesma a voz da baixa razão-criatura, que exige refutação trágica, e a voz da ultra-razão do destino. Protagonista e coro na tragédia grega são da mesma essência fundamental, eles são completamente homogêneos um com o outro e podem, portanto, cumprir funções completamente separadas sem destruir a estrutura do trabalho; todo o lirismo da situação, do destino, pode ser acumulado no coro, deixando aos atores as palavras expressivas e o gesto abrangente da trágica dialética desnuda — e, no entanto, nunca serão separados uns dos outros por nada, além de transições suaves, a priori.

A vida não está organicamente ausente do drama moderno; no máximo, pode ser banido dela. Mas o banimento que os classicistas modernos praticam tem por consequência um reconhecimento, não apenas da existência do que está sendo banido, mas também de seu poder; está lá em todas as palavras nervosas, todos os gestos superando-se mutuamente no esforço de manter a vida a distância de não ser contaminada por ela; invisível e ironicamente, no entanto, a vida rege a gravidade nua e calculada da estrutura baseada a priori na abstração, tornando-a estreita ou confusa, racionalizada ou inconsciente.

O outro tipo de tragédia consome a vida. Coloca seus heróis vivos no meio de uma massa de seres aparentemente vivos, de modo que um destino possa gradualmente possa emergir incandescente da confusão da ação dramática, pesada com o peso da vida – de modo que seu fogo pode reduzir a cinzas tudo o que é apenas humano, de modo que a vida inexistente de simples seres humanos possa desintegrar-se em nada e as emoções afetivas das figuras heroicas se dilatem em uma paixão trágica que as reciclará, em heróis livres da escória humana. Assim, a condição do herói tornou-se polêmica e um problema; ser um herói não é mais a forma natural de existência na esfera da essência, mas o ato de elevar-se acima do que é meramente humano seja na massa circundante ou nos próprios instintos do herói. O problema da hierarquia entre a vida e a essência, que, para o drama grego, era uma formação a priori e, portanto, nunca se tornou objeto da ação dramática, é assim atraído para o próprio processo trágico; ela transforma o drama em duas partes completamente heterogêneas que são unidas apenas pela sua recíproca negação e exclusão, fazendo assim o drama polemico e intelectual tão perturbador em seus próprios fundamentos. A largura da planta assim forçada sobre o trabalho e o comprimento da estrada que o herói deve percorrer em sua alma antes de descobrir-se como um herói está em desacordo com sua esbelteza da construção que a forma dramática exige e trazem mais perto das formas da epopeia; e a ênfase polemica no heroísmo (mesmo na tragédia abstrata) leva por necessidade a um excesso de lirismo poético.

Tal lirismo tem, entretanto, ainda outra fonte além de brotar deslocada entre a vida e a essência. Para os gregos, o fato de que a vida ter deixado de ser a casa do significado transferia apenas da proximidade mútua, o parentesco dos seres humanos, para outra esfera, mas não a destruía: toda figura no drama grego está à mesma distância do todo – manter a essência e, portanto, está relacionada, em suas raízes mais profundas, a qualquer; todos se entendem porque fala a mesma língua, todos confiam uns nos outros, pois todos estão se esforçando do mesmo modo para o mesmo centro, e todos caminham para um mesmo nível de existência que é essencialmente a mesma. Mas quando, como no drama moderno, a essência pode se manifestar e se afirmar somente depois de vencer uma disputa hierárquica com a vida, dramatis personae [a personagem] poder ser ligada ao destino que lhe dá nascimento apenas pelo seu próprio fio; então cada um deve elevar-se da solidão e deve, na solidão irremediável, apressar-se, no meio de todas as outras criaturas solitárias, para a última e trágica soledade; então, todo trabalho trágico deve voltar-se para o silêncio sem jamais ser compreendido, e nenhum ato trágico pode encontrar uma ressonância que o absorverá adequadamente.

Mas uma contradição atribui à solidão no drama. A solidão é a própria essência da tragédia, pois a alma que alcançou através de seu destino pode ter irmãos entre as estrelas, mas nunca uma companheira terrena; no entanto, a forma dramática de expressão – o diálogo – pressupõe, para muitas vozes, verdadeiramente dialógica, um grau superior de comunhão entre esses solitários. A linguagem do homem absolutamente solitário é lírica, isto é, um monólogo; no diálogo o incógnito de sua alma torna-se muito acentuada, sobrecarrega e enche a clareza e definição das palavras trocadas. Essa solidão é mais profunda do que a exigida pela forma trágica, que lida com a relação com o destino (uma relação na qual os heróis gregos reais e vivos tinham o seu ser); a solidão tem de tornar-se um problema em si mesmo, profundamente e confusamente um problema trágico, e finalmente tomando seu lugar. Essa solidão não é simplesmente a intoxicação de uma alma tomada pelo destino e por isso feita canção; é também o tormento de uma criatura condenada à solidão e devorada por um desejo de comunidade.

Tal solidão faz surgir novos problemas trágicos, especialmente o problema central da tragédia moderna - o da confiança. A alma do novo herói, vestida de vida, mas cheia de essência, nunca pode compreender que a essência existente dentro da mesma concha de vida em outra pessoa não precise ser a mesma que a sua; sabe que todos os que encontraram um ao outro são os mesmos e não podem compreender que seu conhecimento não vem deste mundo, que a certeza interior desse conhecimento não pode garantir que ele seja um constituinte da vida. Ela tem conhecimento da ideia de seu próprio ego que anima e está viva dentro dele, e por isso deve acreditar que a multidão de pessoas que a cercam é apenas uma folia de carnaval e que, na primeira palavra da essência, as mascaras cairão e os irmãos que até então eram estranhos cairão nos braços um do outro. Ela sabe disso, procura e encontra a si mesma sozinha, no meio do destino. E assim uma nota de tristeza reprovadora e elegíaca entra em êxtase por ter-se encontrado: uma nota de desapontamento em uma vida que não foi nem mesmo uma caricatura do que seu conhecimento do destino tão clarividentemente anunciado e que lhe deu força para viajar o longo caminho sozinho e nas trevas. Essa solidão não é apenas dramática, mas também psicológica, porque não simples propriedade a priori de todas dramatis personae, mas também a vivência do homem no processo de tornar-se um herói; e se a psicologia não permanece simplesmente como matéria prima para o drama, ela só pode se expressar como lirismo da alma.

A grande epopeia literária dá forma à totalidade extensiva da vida, o drama à totalidade intensiva da essência. Eis porque, quando a essência perdeu sua espontaneidade arredondada, sensivelmente presente na totalidade, o drama pode, no entanto, em seu formal a priori da natureza, encontre um mundo que talvez seja problematizado, mas que ainda seja abrangente e fechado em si mesmo. Mas isso é impossível para a grande epopeia. Para a epopeia, o mundo é a qualquer momento um princípio supremo; é empírico em sua base transcendental mais profunda, decisiva e determinadora; pode às vezes acelerar o ritmo da vida, pode carregar algo que estava oculto ou negligenciado a um fim utópico que sempre foi imanente dentro dele, mas nunca enquanto permanece épico, transcendera amplitude e profundidade, o arredondado, sensível, ricamente ordenada natureza da vida como dada historicamente. Qualquer tentativa de uma epopeia propriamente utópica deve falhar porque está vinculada, subjetiva ou objetivamente, a transcender o empírico transbordar para o lírico ou dramático; e tal ultrapassagem nunca pode ser frutífera para a epopeia.

Houve tempos, talvez — certos contos ainda retinham fragmentos desses mundos perdidos —quando o que hoje só pode ser alcançado através de uma visão utópica estava realmente presente ao olho visionário; poetas épicos naqueles tempos não tinham que deixar o empírico para representar a realidade transcendente como a única existente, eles poderiam ser simples narradores de acontecimentos, tal como os assírios que desenhavam feras aladas sem dúvida consideravam a si mesmos, e com razão, como naturalistas. Já no tempo de Homero, entretanto, o transcendente era inextricavelmente entrelaçado com a existência terrena, e Homero é inimitável exatamente porque, nele, esse devir-imanente foi tão completamente bem-sucedido.

Esse laço indestrutível com a realidade como ela é, a crucial diferença entre a epopeia e o drama, é uma consequência necessária do objeto da epopeia ser a vida humana. O conceito de essência leva à transcendência simplesmente por ser postulado, e então, no transcendente, cristaliza em uma nova e superior essência expressando através de sua forma uma essência que deveria ser — uma essência que por nascer da forma, permanece independente do dado conteúdo do que é simplesmente existente. O conceito de vida, por outro lado, não tem necessidade de tal transcendência capturada e mantida imóvel como um objeto.

Os mundos da essência são mantidos acima da existência pela força das formas, e sua natureza e conteúdo são determinados apenas pelas potencialidades internas dessa força. Os mundos da vida permanecem como estão: as formas somente os recebem e moldam, apenas os reduzem a seu significado inato. E assim essas formas, que aqui só podem desempenhar o papel de Sócrates no parto dos pensamentos, nunca pode, por si mesmas, encantar alguma coisa na vida que já não estivesse presente nela.

A personagem criada pelo drama (essa é somente outra maneira de expressar a mesma relação) é o “eu” inteligível do homem, a personagem criada pela epopeia é o “eu” empírico.

O ‘dever ser’, em cuja intensidade desesperada a essência busca refúgio porque se tornou um fora-da-lei na terra pode objetivar-se no intelecto como a psicologia normativa do herói, mas o “eu” empírico permanece um ‘dever ser’. O poder desse ‘dever ser’ é puramente psicológico, e nisso se assemelha aos outros elementos da alma; seus objetivos são empíricos, e aqui novamente se assemelha a outras aspirações possíveis dadas pelo homem ou por seu ambiente; seu conteúdo é histórico, semelhante a outros produzidos no decorrer do tempo, e não podem ser separado do solo onde brotaram: eles podem desaparecer, mas jamais despertarão para uma existência nova e ideal. O ‘dever ser’ mata a vida, e o herói dramático assume os atributos simbólicos das manifestações sensíveis da vida apenas para poder realizar a cerimônia simbólica da morte sensivelmente perceptível, tornando visível a transcendência; no entanto, na epopeia, os homens devem estar vivos, ou então ele destrói ou exaurem o próprio elemento que os carrega, envolve e preenche.

(O ‘dever ser’ mata a vida, e todo conceito expressa um ‘dever-ser’ de seu objeto; eis porque o pensamento nunca pode chegar a uma definição real da vida, e porque, talvez, a filosofia da arte é muito mais adequada para a tragédia do que para a epopeia.)

O ‘dever ser’ mata a vida, e o herói épico construído a partir do “dever ser” será sempre uma sombra do homem épico vivo da realidade histórica, sua sombra mas nunca a sua imagem original, e seu mundo dado de experiência e a aventura só pode ser uma cópia diluída da realidade, nunca seu núcleo e essência. A estilização utópica da epopeia inevitavelmente cria distancia, mas esta distância está entre duas instancias do empírico de modo que, a tristeza e a majestade criadas por essa distância, só podem produzir um tom retórico. Essa distância, pode produzir um lirismo elegíaco maravilhoso, mas nunca, em si, por a vida real num conteúdo que transcenda o ser, ou transformar tal conteúdo em realidade autossuficiente.

Se esta distancia leva adiante ou para trás, para cima ou para baixo da vida, nunca é a criação de uma nova realidade, mas sempre apenas um espelhamento subjetivo do que já existe. Os heróis de Virgílio conduzem a uma existência sombria, fria e medida, nutrida pelo sangue de um esplêndido ardor que se sacrificou para invocar o que desapareceu para sempre: enquanto a monumentalidade Zoliana se eleva apenas à emoção monótona diante da complexidade múltipla mas simplificada de um sistema sociológico de categorias que afirma cobrir toda a vida contemporânea.

Existe uma grande literatura épica, mas o drama nunca requer o atributo da grandiosidade deve resistir a ele. O cosmo do drama, cheio de sua própria substancia, arredondado com substancialidade, ignora o contraste entre totalidade e fragmento, a oposição entre causa e sintoma: par o drama, existir é ser um cosmo, compreender a essência, possuir sua totalidade. Mas o conceito de vida não postula a necessidade da totalidade da vida; esta contém em si tanto a relativa independência de cada ser vivo separado de qualquer laço transcendente, quanto à relativa inevitabilidade e indispensabilidade de tais vínculos. É por isso que podem existir formas épicas cujo objeto não é a totalidade da vida, mas segmento dela, um fragmento capaz de existência independente. Mas, pela mesma razão, o conceito de totalidade para o épico não é transcendental, como o é no drama; não nasce da própria forma, mas é empírico e metafísico, combinando transcendência e imanência inseparavelmente dentro de si. Na epopeia, sujeito e objeto não coincide como no teatro, onde a subjetividade criativa, vista da perspectiva do trabalho, é apenas um conceito mas apenas a consciência generalizada, enquanto o sujeito e objeto épico são clara e inequivocamente diferentes um do outro e presente no trabalho enquanto tal. E uma vez que um sujeito empírico de uma dada-forma segue a natureza empírica do objeto que busca adquirir forma, esse assunto é sempre sujeito, este nunca pode ser a base e a garantia da totalidade do mundo representado. Na epopeia, a totalidade só pode manifestar verdadeiramente no conteúdo do objeto: meta subjetivo, transcendente, é uma revelação e graça. O homem vivo e empírico é sempre o sujeito da epopeia, mas a sua arrogância criativa e dominadora transforma-se nos grandes épicos em humildade, contemplação, prodígios sem retórica, no sentido luminoso que, tão inesperadamente, tão naturalmente, tornou-se visível para ele, um ser humano comum em meio à vida comum.

Nas formas épicas menores, o sujeito confronta o objeto de um modo mais dominante e autossuficiente. O narrador pode (não podemos, nem pretendemos estabelecer nem mesmo um sistema provisório de formas épicas aqui) adotar o comportamento frio e superior do cronista que observa o estranho funcionamento da coincidência enquanto joga com os destinos dos homens, sem sentido e destrutivo, para eles, revelador e instrutivo para nós; ou ele pode ver um pequenino canto do mundo como um jardim de flores ordenado no meio dos vastos terrenos caóticos da vida e, movido por sua visão, elevá-lo ao estatuto de realidade única; ou ele pode ser tocado e impressionado pelas experiências estranhas e profundas de um indivíduo e derramá-las no molde de um destino objetivado; mas o que ele faz, é sua própria subjetividade que destaca um fragmento da infinidade incomensurável de acontecimentos da vida dotando-os de vida independente e permitindo a totalidade da qual este fragmento foi arrancado entre na obra apenas como pensamentos e sentimentos do herói, somente como continuação involuntária de uma série de fragmentos causais, apenas como o reflexo de uma realidade que tem existência separada.

A completude nas formas épicas menores é subjetiva: um fragmento da vida é transplantado pelo escritor para o mundo circundante que o enfatiza e elimina da totalidade da vida; e essa seleção, esta demarcação, põe o selo de sua origem na vontade do sujeito e conhecimento do próprio trabalho: é mais ou menos, lírico por natureza. A relatividade da independência e laços mútuos de todos os seres vivos e suas associações orgânicas, da mesma forma vivas podem ser superadas e elevadas em fragmentos vida. O ato de dar forma, estruturante e delimitador do sujeito, seu domínio soberano sobre o objeto criado, é o lirismo daquelas formas épicas que estão sem totalidade. Tal lirismo é aqui a ultima unidade épica; não é a deglutição de um “eu” solitário na contemplação sem objeto de si mesmo. Nem a dissolução do objeto em sensações e humores; nasce for a da forma, cria forma e sustenta tudo o que foi dado em tal trabalho.

O poder imediato e fluente de tal lirismo é obrigado a aumentar em proporção com o significado e gravidade do segmento da vida selecionado; o equilíbrio do trabalho é aquele entre o sujeito postulante e o objeto que ele escolhe e eleva. No conto, a forma narrativa que aponta a estranheza e ambiguidade da vida, tal lirismo deve esconder inteiramente atrás de si o difícil esboço dos acontecimentos; aqui, o lirismo ainda é pura seleção; a posterior arbitrariedade do acaso, que pode trazer felicidade ou ruína embora aqueles trabalhadores nunca tenham razão estão sempre sem razão, pode apenas ser compensados pela clara, concisa, representação simplesmente objetiva. O conto é a forma mais puramente artística; expressa o significado último de toda criação artística como humor, como o próprio sentido e conteúdo do processo criativo, mas é costumeiramente abstrato por esta mesma razão. Vê o absurdo em toda a sua nudez sem disfarces e sem adornos, e o poder de exorcismar dessa visão, sem medo ou esperança, lhe confere a consagração da forma; insignificância como insignificância se torna a forma, torna-se eterna porque é afirmada, transcendida e redimida pela forma. Entre o conto e as formas épico líricas, há uma clara distinção. Tão logo um acontecimento que tenha significado por sua forma é, apenas relativamente, significativo em seu conteúdo, o sujeito, silenciando, deve novamente lutar por palavras com as quais construir uma ponte entre o significado relativo ao fato, e o absoluto. No idílio, esse lirismo se funde quase completamente com os contornos dos homens e das coisas representadas; é esse lirismo que confere a esses contornos a suavidade e a leveza de um isolamento pacífico e feliz das tempestades que assolam o mundo exterior. Somente quando o idílio transcende sua forma e torna-se epopeia, como nos ‘grandes idílios’ de Goethe e Hebbel, onde toda a vida com todos os seus perigos, embora modificado e suavizado pela distância, entre nos fatos representados, deve o próprio escritor ser ouvido e sua mão deve criar as distâncias salutares, para assegurar que a felicidade duramente conquistada por seus heróis não seja reduzida à complacência indigna daqueles que covardemente voltam as costas para a miséria demasiado presente que não superaram, mas apenas escaparam, e, igualmente, para assegurar que os perigos da vida e a perturbação de sua totalidade não se tornem um esquema pálido, reduzindo o triunfo da libertação a uma farsa trivial. E, tal lirismo se desenvolve em uma mensagem límpida, generosamente fluente e abrangente somente quando o evento, em sua objetivação épica, se torna veículo e símbolo de sentimento ilimitado; quando uma alma é o herói e o anseio dessa alma é a história (uma vez, falando de Charles-Louis Philippe, eu chamei tal forma de ‘chantefable’ [‘cantofábula’]); quando o objeto, o acontecimento que é dado, permanece isolado como de fato deveria, mas quando a vivência, que absorve e irradia o evento também traz consigo o sentido último da vida, a doação de sentido, da conquista da vida do artista, poder. Esse poder também é lírico: a personalidade do artista, consciente e autônoma, proclama sua própria interpretação do significado do universo; o artista lida com acontecimentos como se fossem instrumentos, ele não os escuta para um significado secreto. O que é dado aqui não é a totalidade da vida, mas a relação do artista com esta totalidade, sua atitude de aprovação ou condenação em relação a ela; aqui, o artista entra na arena da criação artística como o sujeito empírico em toda a sua grandiosidade, mas também com todas as limitações da criatura.

Tão pouco pode uma totalidade da vida que é por definição extensa, ser alcançada pelo objeto sendo aniquilado — pelo sujeito tornando-se o único governante da existência. Embora, por mais alto que o sujeito possa elevar-se acima de seus objetos e levá-los à sua propriedade soberana, eles são ainda e sempre apenas objetos isolados, cuja soma nunca é igual a uma totalidade real. Mesmo tal sujeito, apesar de todo o seu humor sublime, permanece empírico e sua criação é apenas a adoção de uma atitude em relação a seus objetos que, quando tudo é dito e feito, permanece semelhante em si mesmo. A alma do humorista anseia por uma substancialidade mais genuína do que a vida pode oferecer; e assim ele esmaga todas as formas e limites da frágil totalidade da vida de moda a alcançar a única fonte da vida o puro “eu” dominante no mundo. Mas à medida que o mundo objetivo se rompe, o sujeito também se torna um fragmento; apenas o “eu” continua a existir, mas sua existência é então perdida na insubstancialidade de seu mundo de ruínas criadas por ele mesmo. Tal subjetividade quer dar forma a tudo, e precisamente por esta razão só consegue espelhar um segmento do mundo.

Esta é a contradição da subjetividade da grande épica, seu ‘jogar fora para vencer’: a subjetividade criativa torna-se poética, mas, excepcionalmente, a subjetividade que simplesmente aceita, que se transforma humildemente em um órgão receptivo do mundo, pode contar com a graça de ter o mundo todo revelado a ele. Este é o salto que Dante fez entre Vita Nuova e a Divina Comédia, que Goethe fez entre Werther e Wilhelm Meister, o salto que Cervantes fez quando, calando-se ele mesmo, deixou o humor cósmico do Dom Quixote tornar-se ouvido; em contraste, as gloriosas vozes de toque de Sterne e Jean Paul não ofereceram mais que reflexos de um fragmento de mundo que é simplesmente subjetivo, e, portanto limitado, estreito e arbitrário.

Não se trata de um juízo de valor, mas de uma definição a priori de gênero: a totalidade da vida resiste a qualquer tentativa de encontrar um centro transcendental dentro dela e recusa a qualquer de suas células constituintes o direito de dominá-la. Somente quando um sujeito, distante de toda a vida e do empírico que é necessariamente posicionado junto com a vida, torna-se entronizado nas alturas puras da essência, quando se torna nada mais que o portador da síntese transcendental, pode conter todas as condições, para a totalidade dentro de sua própria estrutura e transformar suas próprias limitações nas fronteiras do mundo. Mas tal sujeito não pode escrever uma epopeias: o épico é a vida, a imanência, o empírico. O Paraíso de Dante está mais próximo da essência da vida do que a riqueza exuberante de Shakespeare.

O poder sintético da esfera da essência é intensificada ainda mais na totalidade construída do problema dramático: aquilo que o problema decreta como necessário, seja acontecimento ou alma, alcança a existência por meio de sua relação com o centro; a dialética imanente dessa unidade atribui a cada fenômeno individual a essência apropriada a ele, dependendo de sua distância do centro e de sua importância relativa para o problema. Este aqui é expresso, porque a ideia concreta do todo, porque somente a polifonia de todas as vozes pode carregar toda a plenitude da vida dessa personagem, e cada evento na esfera da vida pode se relacionar apenas alegoricamente ao problema. As afinidades eletivas, que Hebbel corretamente chamou de “dramática”, a arte consumada de Goethe conseguiu pesar e ordenar tudo em relação ao problema central, mas mesmo essas almas, guiadas desde o início pelos canais estreitos do problema, não podem alcançar a existência real; até mesmo essa ação, curta e reduzida para se adequar ao problema, não alcança uma totalidade arredondada; para preencher até mesmo a frágil concha desse pequeno mundo, o autor é forçado a introduzir elementos estranhos, e até mesmo se ele fosse bem-sucedido ao longo do livro quanto em determinadas passagens da organização extremamente hábil, o resultado não seria uma totalidade. Da mesma forma concentração ‘dramática’ do Cântico dos Nibelungos de Hebbel é um erro esplendido que originou pro domo: o esforço desesperado de um grande escritor para resgatar a unidade épica —desintegrando-se num mundo transformado – de um texto autenticamente épico. A figura ultra-humana de Brunhilde é aqui reduzida a uma mistura de mulher e valquíria, que humilha seu débil pretendente, Gunther, e o torna completamente questionável e débil; apenas alguns temas de contos de fadas sobrevivem na transformação de Siegfried, o dragão-assassino, em uma figura cavalheiresca. O trabalho é salvo pelo problema, da lealdade e vingança, isto é, por Hagen e Kriemhild. Mas é uma tentativa desesperada, uma tentativa simplesmente artística de criar, com outros meios de composição, estruturação e organização, uma unidade que não é mais dada organicamente: uma tentativa desesperada e um fracasso heroico. Pois a unidade pode certamente ser alcançada, mas nunca uma totalidade real. Na história da Ilíada, que não tem começo nem fim, um universo floresce com toda a vida. A unidade lucidamente composta do Canto dos Nibelungos esconde vida e decadência, castelos e ruínas, por trás de sua fachada habilmente estruturada.


Inclusão 08/08/2018