Grande Estética

György Lukács


Volume 1 – Questões preliminares e de princípio
3- Questões prévias e de princípio relativas à separação da arte e a vida cotidiana(1)


Ao atentarmos para o reflexo estético da realidade tropeçamos logo com um generalíssimo princípio de diferenciação análogo ao visto no caso da ciência: em ambos encontramos uma separação muito lenta, contraditória e irregular a respeito da vida, do pensamento, a emotividade, etc., da cotidianidade. É preciso uma evolução muito grande para que cada um desses reflexos se torne independente (no âmbito, naturalmente, da divisão do trabalho social em cada caso), explicite a particularidade do modo especifico de refletir a realidade objetivo e torne conscientes suas leis, primeiro na prática, depois também na teoria. Também se deve considerar aqui o processo inverso, a volta das experiências recolhidas no reflexo diferenciado ao campo comum da vida cotidiana. E já na análise do reflexo científico podemos observar que essa influência na vida cotidiana em geral é tanto maior, extensiva e intensivamente, quanto mais enérgicas possam desenvolver cada esfera especializada sua particularidade própria.

Apesar dessa analogia geral, os dois processos de diferenciação apresentam também grandes diferenças. Somente no curso do seguinte estudo concreto da particularidade do reflexo estético poderemos iluminar realmente as causas dessas diferenças. Antecipando o referido estudo nos limitaremos em indicar um determinado momento do problema: a perfeição inicial que às vezes se apresenta, de forma surpreendente e até impressionante, em certas atividades artísticas de níveis muito primitivos (pinturas rupestres, determinados enfeites primitivos, etc.). Estes fatos são tanto mais importantes quanto se encontram indissoluvelmente unidos com as tendências, basicamente dominadoras do desenvolvimento, segundo as quais a atividade artística em seu conjunto se constitui unitariamente muito mais tarde do que a ciência, ou seja, se separa muito mais lenta e vacilantemente que esta do pano de fundo geral da prática cotidiana, mágica (religiosa).

Esta diferença tem causas muito materiais e perceptíveis. O alcance de conhecimentos sobre o mundo externo circundante, a incipiente descoberta de suas ligações, é uma parte tão integral da prática cotidiana que inclusive os homens mais primitivos têm que empreender essa rota, sob pena de perecer. Por mais profundamente imersa na cotidianidade da era mágica que esteja essa ciência incipiente, por mais lentamente que se desenrole nos homens a consciência de que objetivamente fazem, o próprio movimento é irresistível, pois se liga profundamente na proteção e a reprodução da simples existência. A necessidade social da arte não tem, por outro lado, raízes tão sólidas e óbvias. O decisivo não é que todo exercício da arte suponha certo ócio, certa liberdade – por mais que relativa – em relação às preocupações cotidianas, em relação das coercitivas reações imediatas da cotidianidade às necessidades elementares. Também os começos da ciência, em absoluto reconhecidos conscientemente como tais, pressupõem um ócio assim. Porém sua conexão mais estreita e evidente com as exigências do dia impõe duplamente o ócio que necessitam. Em primeiro lugar, porque a imperiosa necessidade desses postulados da cotidianidade influi na comunidade e impõe uma divisão do trabalho, sem dúvida primitiva, porém já com o ócio para a reflexão sobre esses problemas; em segundo lugar, porque o conhecimento que assim nasce procura por si mesmo o começo de um domínio sobre os homens. Produz-se certa técnica do trabalho e, com ela, certa elevação do homem que trabalha acima de seu nível anterior de domínio de suas próprias capacidades somáticas e mentais.

Tudo isso – uma determinada altura, por mais modesta, da técnica e da reeducação dos homens que a manejam – é também pressuposto dos começos de uma atividade artística, por mais inconsciente que seja esteticamente. Que se pense na Idade da Pedra. A fase na qual se procuram e conservam pedras para algum uso supõe já ligações do tipo de reflexo da realidade da qual em seguida nasce a ciência. Pois é preciso já certa capacidade de abstração, de generalização das experiências do trabalho, de superação das impressões subjetivas, pouco ordenadas, para poder apreciar claramente a ligação entre a forma da pedra e sua adequação para determinadas ações. Por outro lado, nesse nível é ainda impossível que se produza algo parecido com a arte. Para tanto é necessário, de início, que a pedra seja lascada ou polida, transformada em ferramenta pela mão humana; mas sequer basta isto: pois a técnica utilizada talvez não permita nem talvez a recepção inconsciente de motivos artísticos senão em um nível relativamente alto. [Franz – ndt] Boas indica acertadamente que é preciso uma técnica de entalhamento ou polimento relativamente desenvolvida para que a pedra tenha a forma correta, isto é, para que sua superfície esteja constituída pela igualdade, o paralelismo, etc., destas(2). Isto não supõe de início qualquer intenção estética, mas apenas uma boa adaptação técnica-artesã à finalidade prática imediata do trabalho. Mas está obvio claramente que antes do que o olho humano seja capaz de arrancar da pedra os necessários paralelismos, equidistâncias, etc., se carece necessariamente de todos os pressupostos imprescindíveis inclusive para a ornamentística mais primitiva.

O grau objetivo da técnica é, pois, ao mesmo tempo um grau evolutivo do homem que trabalha. Engels descreveu um quadro muito plástico sobre os traços decisivos dessa evolução: “Podem haver passado tempos dilatadíssimos, comparados com os quais os tempos históricos que conhecemos nada parecem, até que a mão humana converteu em faca pela primeira vez uma pedra. Mas esse foi o passo decisivo: a mão havia se libertado e podia, a partir de então, conquistar constantemente habilidades novas; a flexibilidade assim conquistada herdou-se e enriqueceu de geração em geração. E assim a mão não é só órgão do trabalho, mas também produto seu”(3). Engels mostra, além disso, que o desenvolvimento da mão teve efeitos importantes sobre o restante do organismo. Falamos já da relação do trabalho, da habilidade conseguida nele e da comunidade superior que assim nasce com a linguagem. Podemos acrescentar aqui que Engels sublinha com energia a peculiaridade humana do refinamento e a diferenciação dos sentidos. E nisto não se trata em primeiro lugar de um aperfeiçoamento fisiológico. Pelo contrário: deste ponto de vista muitos animais são superiores ao homem. Mas o que importa é que a capacidade de perceber as coisas se modifica qualitativamente, se amplia, aprofunda e calibra graças às experiências do trabalho. Aludimos já em outro contexto a este problema. Também neste ponto sublinha Engels a interação deste desenvolvimento com o trabalho, a linguagem e as capacidades de abstração e inferência, etc.

Uma concretização posterior do processo de diferenciação dos sentidos se encontra na antropologia de Gehlen, cuja análise correta de determinados fatos e ligações é tanto mais valiosa para nós quanto que seus pressupostos e consequências de natureza filosófica se opõem frequentemente diametralmente aos nossos. Mas como o único interesse aqui é comprovar a existência de alguma tendência concreta evolutiva prescindiremos já de toda polêmica ou crítica detalhada. Ao leitor bastará a terminologia de Gehlen para dar-se conta de onde se encontram as oposições de princípio e de detalhe entre uma antropologia idealista moderna e uma materialista-dialética. Gehlen fala da progressiva divisão do trabalho entre os sentidos, e aqui será para nós irrelevante que ele observe esse processo no desenvolvimento da criança, enquanto que, em nossa opinião, o processo essencial teve lugar na infância da humanidade; pois consideramos – com Hegel e Engels – que “o desenvolvimento da consciência individual através de seus diversos níveis (...) (é) (...) uma reprodução resumida dos níveis que atravessou historicamente a consciência do homem (...)”(4). Escreve, pois. Gehlen: “O resultado deste processo, no qual colaboram movimentos de todos os tipos, especialmente das mãos, e especialmente o da visão, é uma ‘elaboração’ do mundo circundante, precisamente no sentido da disposição sobre ela e sua utilização: as coisas se põem uma depois da outra no uso e disposição, mas, enquanto se manipulam assim, se enriquecem inconscientemente com um intenso simbolismo, de tal modo que no final a visão por si só, que é um sentido sem fadiga, domina essas e vê nelas seus valores de uso e aplicação. Valores que antes teve de experimentar fatigosamente com aquela atividade e movimento próprios”(5). Não podemos sequer esboçar aqui uma crítica da concepção e do jargão idealistas dessa citação; observaremos simplesmente que depois disso Gehlen concebe como no simbolismo se encontra um problema essencial da origem da visualidade particularmente humana e de seu desenvolvimento até a arte figurativa. O conceito e a expressão do “simbolismo” não é de modo algum “acrescentado” pelo sujeito de maneira objetiva do aparecimento dos objetos, mas um desenvolvimento posterior, a elaboração e sutilização de seu reflexo. Quando dizemos que a visão humana já desenvolvida é capaz de captar visualmente o peso, a estrutura material, etc., sem tem de apelar ao tato, veremos como explicação para este fato a circunstância de que as características visuais dessas propriedades não são diretamente gritantes, razão pela qual o olho não as percebe em um nível primitivo, mas que, em geral, se captam mediante o tato. Mas objetivamente são elementos da captação visual dos objetos. O idealismo exprime com a palavra “simbolismo” essas descobertas realizadas pelo processo do trabalho, pela divisão do trabalho. No estrito terreno da estética as possibilidades são, naturalmente, ainda mais amplas. Adiante, ao considerar teoria influente, como a de Konrad Fiedler, poderemos ver que o idealismo filosófico estreita o terreno da percepção sensível com meta de dar ligar a suas construções subjetivistas.

O mais importante na exposição de Gehlen é a enérgica apresentação da divisão de trabalho entre a visão e o tato no trabalho. Citamos já esta exposição dele. O valor dessa análise é de princípio e também pelo detalhe. De princípio, porque esta análise exprime claramente a distância entre o homem, que trabalha e elabora as experiências do trabalho, e os animais superiores, e situa precisamente a diferença na divisão do trabalho e cooperação dos sentidos. Gehlen oferece boas descrições à respeito, as quais exigem, entretanto, complementação, sobretudo porque a diferença aparece como um abismo metafísico, dado por toda a eternidade, e a ligação entre o ser do homem e do animal não passa pelo trabalho: ou seja, os resultados do trabalho – a humanização do homem – não são expostas como resultado desse processo, mas como pressuposto do mesmo.

Dentro desses limites, Gehlen oferece observações e descrições sumamente fecundas sobre o caráter da visão humana. Mais tarde nós referiremos de sua importância para a arte. Pelo momento nos limitaremos a aduzir uma importante citação que ilustra claramente a divisão dos sentidos pelo trabalho, como o olho capta as funções do tato. Escreve Gehlen: “Por exemplo, usando um objeto, um copo, costumamos passar por alto as luzes e sombras, assim como os ornamentos, enquanto a vista capta outra parte dos citados elementos como indicações auxiliares da concepção do espaço o da forma, ou seja, para ‘possuir’ indiretamente as partes posteriores e orientadas para outros lados. Da mesma maneira se avaliam as sobreposições. Por outro lado, a estrutura material (‘porcelana fina’) e o peso são elementos plenos do visto, mesmo sem dúvida de um modo diferente e, por assim dizer, mais ‘predicativo’ que a personalidade posta de início, que é a do ‘recipiente’, ou seja, do vazio e o redondo, ou o ponto ‘manual’ da forma total, sugestões de movimentos para o uso. A vista capta todos estes dados com uma olhadela. É preciso reconhecer, inclusive, que nossa vista é muito indiferente ao material sensível elementar e ao sentido como fundo, enquanto que é profundamente sensível à alusões complexas”(6). Gehlen reconhece também muito corretamente o papel do hábito nesse processo, mesmo sem ter em conta o trabalho (nem ainda o da arte, a um nível superior).

Antecipamo-nos muito ao desenvolvimento real e temos já inevitavelmente que continuar algo mais nesta antecipação dos resultados finais, feita para iluminar os estados iniciais – desconhecidos e, provavelmente, não conhecidos seus fatos – da diferença ou desprendimento paulatino do reflexo artístico em relação daquele da vida cotidiana, considerando agora sua independência não somente a respeito desta, mas também em relação à ciência (e, sobretudo, em relação da magia e da religião). Também aqui se trata do principio metodológico marxista segundo o qual a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco, que os estados iniciais desconhecidos e sem poder ser investigados, podem se reconstruir com a ajuda dos impulsos por eles desencadeados, somente visíveis em níveis superiores, e que permitem apreciar, pela consequências reconhecíveis, sua qualidade, sua orientação, sua tendência, etc.: se trata de percorrer para trás a evolução, partindo de seu estado atual e tomando em conta as etapas intermediárias que assim nos são conhecidas, para poder inferir do tipo de diferença hipotética sobre o estado primitivo indiferenciado, de sua dissolução, das sementes do futuro nele presentes.

O processo de diferença do reflexo artístico – assim reconstruível como problema – oferece muitas dificuldades inclusive em comparação com o da ciência. Estas dificuldades complementares se devem, sobretudo, a sua passagem tardia à consciência. Já na história grega podemos apreciar que a forma consciente do comportamento científico, a forma concepção-do-mundo, ou seja, a filosofia desempenha um papel de pioneira em relação ao das ciências particulares propriamente ditas. Como é natural, é preciso um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, da técnica correspondente às diversas ciências, para que possa se produzir tal reflexão consciente. Porém, uma vez produzida, supera, sobretudo na Grécia, como generalização das experiências, o grau alcançado e por alcançar – dadas as relações de produção – pela técnica e pelas ciências particulares. Sequer no período de florescimento da Renascença e subsequente a ele a filosofia deixou de exercer esta função. Engels escreveu o seguinte sobre o papel da filosofia no desenvolvimento das ciências da natureza: “É um grande mérito da filosofia da época o não se haver deixado confundir pelos limites do conhecimento da natureza, e desde Spinoza até aos grandes materialistas franceses, o fato de insistir em explicar o mundo por si, deixando à ciência natural do futuro a justificação do detalhe”(7). A filosofia da arte, a estética, nunca pode desempenhar um papel parecido para facilitar a tomada de da arte. Inclusive em suas maiores figuras, como Aristóteles, a filosofia da arte sempre aparece post festum [depois – n.d.t], e seus resultados principais, como precisamente ocorre em Aristóteles, foram o estabelecimento conceitual de algum nível já alcançado pela evolução da arte. Isto não é casual. Pois apesar do caráter paulatino e contraditório do processo de separação do reflexo científico daquele da cotidianidade (e da magia e a religião), a separação entre eles é suficientemente gritante tanto para ser suscetível – se as condições sociais são favoráveis – da rápida generalização filosófica com no essencial, correta. Por outro lado, contemplada diretamente, a particularidade do reflexo artístico se separa muito menos chamativamente do que aquela base comum produz duradouras formações transitórias, pode manter, mesmo em níveis muito desenvolvidos, o vínculo íntimo com a cotidianidade, a magia e a religião, e até se fundir com elas segundo a aparência externa imediata.

Também aqui é instrutivo estudar esta constelação em níveis já desenvolvidos. Que se pense na história grega. Vemos, por um lado, que a literatura e a arte podem se desenvolver de modo relativamente autônomo (em comparação com o Oriente), livres de preceitos teocráticos. Mas precisamente este fato permite ver quanto tardiamente que se produziu a separação da arte e da religião, a independência da primeira. Por mais cedo que se queira datar este fenômeno, não se poderá ir mais além de Sófocles, e a consciência real da separação aparece apenas em Eurípedes. Em outro lugar indicamos que este fato é o fundamento intelectual do comportamento crítico-negativo da filosofia inicial, tentado livrar-se, com a ciência, em relação a arte e os artistas (Heráclito, etc.). Estes filósofos veem no princípio estético – e não sem razão- uma antropomorfização, e como consideram inimigo do seu antropomorfismo a religião, a fábula, etc., o estético – desta vez sem razão – os converte em aliado ou instrumento da superstição antropomorfizadora. A dificuldade, para a arte, de uma independência tão decidida como a conquistada pela filosofia e a ciência se deve, sem dúvida, ao foto de que o princípio estético – do qual falaremos detalhadamente – é, efetivamente, de caráter antropomórfico. E se, como vimos, não foi fácil separar de todo antropomorfismo o princípio desantropomorfizador do reflexo científico da realidade, mas que necessitou um processo de muitos milênios, quantos esforços teve de custar a compreensão de que o reflexo artístico é essencialmente antropomorfizador, porém com tal particularidade que se diferencia gritantemente – do ponto de vista material e daquele do método, pelo conteúdo e pela forma – tanto do reflexo da vida cotidiana quanto daquele da magia ou da religião?

Permitir-nos-emos aqui somente uma observação para esclarecer os conceitos. Como sublinhamos várias vezes, a antítese entre princípio antropomorfizador e principio desantropomorfizador do reflexo desempenha para nós um papel decisivo. Caracterizamos inequivocamente a essência do segundo, e também falamos da dialética das questões de concepção do mundo que se relacionam com ele. Muitas mais ambiguidades são possíveis quando se trata de antropomorfização. Existem, por exemplo, pesquisadores que não reconhecem uma antropomorfização senão enquanto o homem projeta explícita e diretamente n cosmos suas próprias formas e propriedades. Desse forma o fez recentemente Gehlen: “A magia é, por princípio, algo animado pelo egoísmo de grupo, ou egocêntrica, e não necessita em absoluto para sua técnica entes antropomorfos humanizados. Quase nunca seus símbolos são humanos: a magia pode comprazer-se utilizando espíritos animais, a chuva, as nuvens, as presas da caça; os emblemas do pajé são o pássaro, o cavalo, a árvore da vida, etecetera. Isto não muda até o estado do politeísmo: quando os deuses tomam figura humana se convertendo finalmente e realmente em deuses, isto é, fica claro que eles são os que governam (...). O deus antropomórfico é precisamente aquele cuja ação deixou de ser antropocêntrica (...)”(8). Gehlen aqui confunde o objeto da antropomorfização com seu método. (Não poderemos aqui entrar em uma discussão das causas dessa confusão, que se encontram em sua filosofia da história). Sem dúvida alguma de que as religiões com deuses, especialmente o monoteísmo, representam formas de antropomorfismo superiores às da magia. Enquanto que o mundo é governado por Deus ou por deuses, fica claro que diminui a imaginária influência da magia sobre o curso do mundo e se fixa ideologicamente o funcionamento deste com independência do homem. Mas fica superada realmente a “concepção mágica do mundo”? O próprio Gehlen se vê obrigado a reconhecer o contrário, acompanhando nisso a Eduard Meyer e Jacob Burckhardt: “Sempre o aprofundamento ético vai acompanhado por uma volta às formas mais primitivas de religião; que pareciam completamente superadas”(9). Mas esta preservação de importantes momentos mágicos nas religiões não é, de modo algum, casual. E não somente se vale do politeísmo antigo e oriental, como também de religiões monoteístas; até o calvinismo não se produziu uma tentativa séria de liquidar radicalmente os restos da magia. Por isso as “quedas” registradas por Meyer e Burckhardt não são mais do que em um sentido quantitativo; também em tempos anteriores a elas coexistiam pacificamente muitos restos mágicos com novas representações teológicas. E assim o resultado é que Gehlen não somente sobrestima a oposição religião entre religião e magia, senão que, além disso, pelo que faz ao princípio antropomorfizador, introduz uma oposição inexistente entre ambas. De início os objetos da magia se concentram em fenômenos naturais (animais, forças, etc.); mas de onde a magia toma sua concepção da essência desses fenômenos? Sem dúvida das experiências do homem consigo mesmo, e das experiências de suas relações com a natureza circundante. Que estas experiências estejam frequentemente menos abertamente “personificadas” que as características das religiões posteriores se deve, simplesmente, a que a personalidade humana esteja menos desenvolvida, devido ser muito menos consciente de si mesma. Por exemplo, que a figura do demiurgo apareça tardiamente se explica sem dificuldade pelo fato de que na época da coleta simples e o predomínio da caça, da pesca, etc., se atribua necessariamente às “forças impessoais” é uma influência da conservação do homem em etapas posteriores muito mais nas quais se reconhece o papel do trabalho. Mas isto influi somente nos objetos que se projetam como causas no mundo externo, em sua estrutura e natureza, etc., mas não no próprio ato de projeção das experiências internas do homem sobre a realidade objetiva. Antropomorfização e desantropomorfização se separam exatamente neste ponto: ou se parte da realidade objetiva, levando à consciência seus conteúdos, suas categorias, etc., o tem lugar uma projeção de dentro para fora, do homem para a natureza. Deste ponto de vista o culto de animais ou das forças naturais é tão antropomorfizador como a criação de deuses antropomórficos.

Este problema da antropomorfização desempenhará mais à frente um papel central em nossas considerações, de acordo com sua importância real. Aqui a introduzimos somente – nesta forma forçosamente abstrata e antecipatória – para poder apresentar em grandes traços determinadas propriedades do processo de separação: em primeiro lugar, a dificuldade e a complicação desse processo objetivo, o modo como – que se consiga independente da consciência simultaneamente – se produz na prática artística uma específica objetividade estética que, mesmo também ela antropomorfizadora, se distingue qualitativa e essencialmente das formas de objetividade da cotidianidade, a religião e a magia. Em segundo lugar, o caráter post festum da consciencialização desta forma de reflexo, que, mesmo seja a este nível tão abstrato, fica um pouco mais solidamente estabelecida. Compreende-se que neste terreno se manifeste de forma extrema o princípio geral da prática incipiente, o “não sabem, mas fazem”. O modo particular da objetividade estética, o comportamento especificamente estético em relação a ela, se desenvolveu já praticamente com anterioridade que se possa observar o primeiro avanço intelectual um pouco sério para separação conceitualmente clara e teoricamente fundada entre as diversas formas do reflexo antropomorfizador da realidade, ao nodo como se tivesse por fazer contradições desantropomorfizadora no marco da filosofia. É preciso uma evolução milenar – com poucas como, desde já, Aristóteles – para eliminar dos critérios das “verdades” estéticas os elementos da científica, para não avaliar a “verdade” do reflexo estético – nem positiva nem negativamente – segundo esses critérios.

A dificuldade aumenta mais ainda pelo fato de que as primeiras formas de expressão do reflexo científico e filosófico da realidade se apresentam misturas com elementos estéticos. Estes procedem sem dúvida diretamente do período mágico, no qual, as tendências mais tardes diferenciadas apareciam ainda indissoluvelmente unidas. Que se pense na antiga poesia oriental, na qual esta tendência se conservou durante muito tempo essencialmente orgânica. Mas inclusive na Grécia, onde a separação de conteúdo, e até a objetividade, se constituiu em um período relativamente cedo, achamos frequentemente produções científicas ou filosóficas escritas em linguagem poética e, às vezes, com original intuição poética; tais como os poemas filosófico dos pré-socráticos, ou os diálogos juvenis de Platão. É claro que daí parte uma dupla evolução, com diferenciação muito lenta e irregular: por um lado o poema filosófico como gênero particular dentro da lírica (Schiller), e, por outro, a eliminação da expressão poética na ciência e filosofia. Nem mesmo obras tão poderosas como o De rerum natura de Lucrécio tem realizada a separação claramente diferente, e até em Dante se encontram restos dessa imperceptível conversão ou confusão do reflexo científico e poético da realidade.

Mesmo mais tenazmente se impõe aquela junção primitiva em muitos modos de manifestação das ciências sociais e da vida pública. Bastará, no que faz a esta, mencionar a antiga retórica. Não há dúvida de que a Antiguidade a considerou uma arte. Não é aqui o local adequado para expor com detalhes as contradições que resultam dessa concepção. Talvez baste observar que, em consequência da mesma, a retórica exige um caráter formalista que as vezes cai no maneirismo; pois na retórica não se pode ter o tratamento formal baseado no conteúdo que se encontra objetivamente presente na poesia, mesmo não seja de um modo sempre consciente, e que garanta a determinação unívoca dos problemas formais concretos através da determinação genérica do conteúdo concreto. Por outro lado, a concepção “estética”, puramente formalista, da retórica que assim se constitui leva a que seus elementos de argumentação, ou “científicos”, exijam por sua vez um caráter sofístico, pois se contemplam unilateralmente do ponto de vista de sua imediata eficiência (emocional), e se descuida, ou até se elimina às vezes completamente, seu próprio conteúdo verídico, sua precisa concordância com os fatos.

Não é difícil apreciar à vista deste problema que ainda hoje se disponha de uma diferenciação teorética exata neste terreno. Isso significa uma dificuldade para toda estética que queira distinguir claramente, sem passagens – ou seja, metafisicamente – seu terreno das manifestações vitais externas ao mesmo. Estas contradições se resolvem por outro lado sem violência por uma concepção como a nossa – expressa até agora de um modo abstrato que irá se concretizando -, que supõe um constante processo de interações entre a cotidianidade e a arte; nesta os problemas da vida tomam formas especificamente estéticas, se resolvem esteticamente de acordo com elas, e assim as conquistas estéticas da realidade desembocam ininterruptamente na vida cotidiana enriquecendo-a objetiva e subjetivamente. Assim fica claro que o discurso judiciário, como o da publicidade, a reportagem, etc., são importantes elementos da vida prática cotidiana. Seu pertencimento à vida cotidiana, sua incapacidade de cristalizar em firmes – mesmo que mutáveis – leis de um gênero estético, se deve a que neles a finalidade decisiva é, para a estrutura do todo e para a execução dos detalhes, a unidade imediata de teoria e prática. Um discurso tem de conseguir sobretudo um determinado, concreto e singular objetivo: levar aos ouvintes a condenar ou a absolver a X, a votar ou recusar o projeto de lei Y, etc. Isto se diferencia tanto da jurisprudência científica, a qual estuda as regras gerais sob as quais se ordena tal caso particular, quando do drama ou do romance, que em conformidade de um determinado caso singular, se esforçam por explicar artisticamente a tipicidade de personagens e situações contidas neles. Esta separação por ambos os lados não se pode superar por meios artísticos nem por meios científicos. O princípio ordenador e decisivo da essência da totalidade é a finalidade, a mobilização imediata dos meios os mais diversos, heterogêneos, para atingir um objetivo prático imediato.

Neste problema sempre confundiu muito as coisas o fato de que também a arte tende a conseguir um efeito imediato. Mas se pode ver sem dificuldade que o sentido do imediato é muito diferente nos dois casos. O propósito final da retórica é conseguir algo imediatamente prático, sem ter de especificar sempre se os meios apelam diretamente ao imediato. Na arte, pelo contrário, o destacado é precisamente o efeito imediato conseguido pelos meios de construção; por outro lado, sua passagem ao prático – o efeito educador da arte, do qual falaremos adiante detalhadamente – é algo muito complicado e desigualmente mediado. É claro que essas delimitações não excluem casos de transitoriedade. Num discurso ou em um artigo de publicidade o método científico, a matéria cientificamente captada e agrupada por ele, pode predominar de tal modo, ser tão decisiva e revolucionária no sentido científico, que o rendimento seja em substância científico e sua forma retórica ou publicitária se apresente como mero adorno secundário. Ou também um trabalho retórico, um escrito publicitário, pode elaborar tão energicamente a tipicidade do caso tratado que desencadeie um efeito artístico, muito independente assim de sua ocasião. Mas é claro que se trata de casos limítrofes nos quais – coisa essencial – o critério se toma da metodologia da ciência ou da estética; esses resultados se alcançam pela superação dos limites normais da retórica, não mediante o cumprimento de suas regras. Por isso não suprimem a oposição indicada, mas voltam a apontar – exatamente como casos limite – o fato básico já acentuado de que existe uma interação ininterrpta entre a cotidianidade, a arte e a ciência.

Não menos lenta é a constituição do modo propriamente científico do reflexo na historiografia. Durante todo o desenvolvimento antigo são muito tênues os limites que a separam da conformação estética, e constantemente se manifesta certo predomínio do estético. O agrupamento e narração dos fatos, anedótico ou de romance, que predomina a princípio (em Heródoto, por exemplo) se debilita, desde o início, intensamente, mas continua pesando muito a influência de elementos pseudo-estéticos-retóricos, como já vimos. A decisiva constituição da história como ciência é tardia, fruto da Idade Moderna. O fato se deve a que a tendência, cada vez mais intensa, ao reflexo científico da realidade aspira captar em sua necessidade os fatos do decurso histórico, mas também em seu histórico ser-assim, sem afetar pela subjetividade do historiador(10). Nisto se manifesta, como pode se ver, a vitória do princípio desantropoformizador no reflexo da realidade: a aspiração de reproduzir os fatos da realidade em seu objetivo ser-em-si, e assim eliminar o mais possível a subjetividade humana na investigação, a seleção e a ordenação dos fatos. Esta tendência se baseia na crescente compreensão de após a transformação qualitativa dos fatos da vida, das relações entre os homens, das condições de sua ação, de sua psicologia, de sua moral, atuam forças sociais objetivas, cientificamente encontradas e explicadas, a saber, a estrutura de cada formação social, suas transformações e suas causas. O qualitativo ser-assim desses fatos não aparece pois como simples dado imediato, como abstrato ser-assim, mas com um ponto crucial, como interação de leis objetivas. A historiografia antiga pouco sabia disto e, por isso, não atendeu apenas a isso. Por esta razão os elementos artísticos desempenham um papel tão amplo na representação do ser-assim dos fatos e acontecimentos. A liberdade artística com a qual se compõem os discursos das personagens históricas é um sintoma gritante desta situação. O antigo nível da evolução diferente fica bem ilustrado pela comparação que Aristóteles estabelece entre a poesia e a história pelo que faz a capacidade de generalização: como é sabido, a comparação é desfavorável à história. Não vamos considerar aqui os problemas da relação entre a filosofia da história e a história positiva – relações cujo papel de transitoriedade é importante –, porque são no fundo todos os problemas situados no âmbito do reflexo científico da realidade. Como indicado, a historiografia não se constitui em ciência consequente até que os fatos sejam respeitados como tais – em vez de tipifica-los ou estilizá-los esteticamente – mas que, além disso, se compreendam e representem como modos de manifestação, pontos cruciais, entrecruzamentos, inter-relações, etc., das leis da evolução histórica. Que a expressão literária frequentemente apele para meios artísticos confirma de um novo ponto de vista o princípio, já formulado, da interação. (Na segunda parte, ao falar da obra de arte e os tipos de comportamento criador, trataremos detalhadamente do papel dos elementos científicos na arte).

Mas estas interações não suprimem a decisiva diferença estrutural das diversas esferas. A historiografia pode seguir sendo puramente científica (isto é, desantropomorfizadora) mesmo utilizando em grande medida meios expressivos estéticos na representação literária, igualmente a arte como tal não é afetada na pureza de seus efeitos pelo simples fato de que para apropriar-se da matéria da vida se apoie em métodos e resultados da ciência. A primeira possibilidade pode se apreciar nas obras históricas, e até nas econômicas, de Karl Marx, o qual, entretanto se esforçou ao máximo para fundar teoricamente e impor o princípio desantropomorfizador objetivo na metodologia das ciências sociais; pelo que concerne a segunda possibilidade, a obra tardia de Thomas Mann oferece um exemplo característico. Aqui se deveria referi pelo menos à complexidade desta situação com objetivo de destacar claramente a dificuldade com que a esfera estética se separa da cotidianidade, a religião e a ciência.

Não por acaso tentamos esclarecer nossas considerações sobre tais interações e transições utilizando exemplos de expressão verbal a níveis já relativamente desenvolvidos. A dificuldade da separação conceitual das diversas esferas também parece muito grande; mas a crescente consciência, especialmente sobre a ciência e a prática dirigida por ela, faz mesmo possível desvendar a situação. Basta mencionar a dificuldade desta tarefa referir-se a estados primitivos do desenvolvimento. É óbvio que a compreensão de princípio conseguida para aqueles outros níveis tem que dirigir-nos também nestes, sobretudo o fato de que se observam separações realizadas e iniciada objetivamente, de fato, quando ainda muitas vezes há ausência da consciência da diferença. E aqui vale a pena recordar algo já visto, mesmo que seja brevemente: que é muito mais fácil praticar a distinção, conceitualmente pelo menos, nas misturas do princípio estético com o científico produzidos pela vida social que no primitivo tronco comum de arte e magia, ou da religião. Pois no primeiro caso, como já mostramos, se contrapõem os modos desentropomorfizador e antropomorfizador do reflexo da realidade, enquanto que no segundo se trata de variedades da antropomorfização, variedades sem dúvida opostas em seus últimos princípios, mas que na prática surgiram unidas durante milênios, e cuja separação, além de ser um processo muito lento, contraditório e irregular, desperta, para a própria arte, com muita problematicidade e crises internas.

Antes de passar destas observações introdutórias para a análise filosófica do processo pelo qual a arte se separa da originária e indiferenciada prática humana, é preciso assentar outra observação de princípio. Como dizíamos, tomamos como exemplos formas de expressão verbal, mesmo sabendo que com isso não abarcamos nem de longe todo o terreno do estético. Mas já neste terreno artificialmente reduzido se pode vera gravidade que é para a conceitualização filosófica da essência e a origem da arte o obstáculo constituído pelo atual princípio da maioria das estéticas, isto é: a concepção da essência do estético como algo originário e unitário desde o primeiro momento; a gravidade do obstáculo se manifesta sobretudo quando se pensa na ornamentística e nas artes figurativas, na música e na arquitetura.

Ao enunciar estas reservas não pretendemos negar a unidade última e de princípio do estético. Pelo contrário. O resultado último de nossas considerações aponta precisamente a uma fundamentação correta desta unidade de princípio, mas não pela insegura via da hipótese, supra histórica e apriorística, de uma “original” capacidade estética do homem. Esta hipótese domina, como é natural, em todas as concepções idealistas da estética. Todo idealismo parte necessária e acriticamente do estado atual da consciência humana, o institui como “eterno”, e inclusive quando concede sua origem de fato, histórica, a evolução histórica assim construída é somente aparente. Por um lado, é somente externa: o processo histórico aparece, no melhor dos casos, para “realizar” no empírico o que já se estabeleceu a priori na análise da consciência; diante da dedução a prior, é superficial e casual. Como o idealismo subjetivo – qualquer que seja sua terminologia – parte da oposição entre ser e validade e considera esta sem ser afetada pelo desenvolvimento histórico sensível, não pode haver entre ambos os membros da constituição e modificação da validade. Por outro lado, também o idealismo objetivo – inclusive quando, como ocorre em Hegel, situa o devir histórico, a humanização do homem, no centro da metodologia -, ao considerar a ciência e a arte, tem de partir de um conceito fixo do homem (no sentido corrente ou, pelo menos, no sentido do homem já constituído histórico-socialmente). É certo que Hegel antepõe o período chamado simbólico, como uma espécie de prólogo, à evolução propriamente artística. Mas já nesse período se supõem implicitamente todas as categorias da arte posterior y propriamente dita, e a evolução consiste simplesmente em sua explicitação, e pois – precisamente segundo o conceito hegeliano dialético e geral de evolução – um movimento simplesmente aparente, que nada pode acrescentar de essencial, qualitativamente novo. Por seu turno, o materialismo mecanicista opera com um conceito do homem tão supra histórico que sequer pode se colocar estes problemas genéticos. A situação não muda em absoluto com a ideia de Darwin, segundo a qual as categorias do estético se encontram já dispostas nos animais superiores, de tal modo que são para o homem herança de seu passado pré-humano. Como vimos este dogma está tão arraigado no pensamento estético anterior, que mesmo, como veremos, foi o marxismo que rompeu com ele, inclusive Franz Mehring considera a “primeira exigência de uma estética científica” o “mostrar que a arte é uma capacidade própria e original da humanidade”(11). Não é sem dúvida por acaso que Mehring apele nessa passagem a Kant.

A base dessas concepções foram durante muito tempo o desconhecimento da humanização e, com relação a isto, uma estilização da idade primitiva, dos começos da evolução humana, até fazer dela uma “Idade do ouro”. Não é aqui p lugar adequado para estudar os diversos fundamentos sociais dessas concepções, muito diversas, de outra forma, entre elas, e até opostas. O principal para nós é lançar um golpe de vista nas concepções que nasceram frequentemente da oposição ao caráter antiartístico das sociedades capitalistas e que por isso projetam sobre os começos da humanidade uma “idade de ouro” estética original. A civilização, nascida da dissolução desta idade, tem, portanto, para o próprio presente, a tarefa de realizar conscientemente os princípios que nasceram em outras épocas de modo espontâneo e inconsciente. Como ilustração disso bastará recordar o célebre aforismo de Hamann na Aesthetica in nuce: “A poesia é a língua materna do gênero humano; como a jardinagem é mais antiga do que a agricultura; e a pintura do que a escritura e o canto que a declamação; e as comparações que os juízos; a troca que o comércio. O descanso de nossos antepassados era uma dança arrebatada. Se mergulhavam durante sete dias no silêncio da reflexão o do assombro; e depois abriam a boca, com sentenças aladas”(12).

Não é muito difícil mostrar o caráter ilusório desta ideia de Hamann. Inclusive quando é verdade que a “jardinagem” é mais velha do que a agricultura, se tratamos de simples formas desta, e não da jardinagem no sentido estético. A pintura de que fala Hamann neste texto (hieróglifos, etc.) é expressão imaginativa do pensamento, complexo significativo mágico, e em absoluto precursor da posterior pintura, etc. E quando se manifestam imaginativamente certas analogias na linguagem e no pensamento, elas contem germens tanto das comparações quanto dos juízos, e não em absoluto da “poesia” como modo de expressão predominantemente de um período “pré-lógico” ou estético. Já falamos do caráter aparente da espontâneo imaginário que se dá nas línguas primitivas (mesmo, como também já recordamos, conhecemos estas línguas em um nível de certo desenvolvimento). O fato de ver nelas uma língua materna poética da humanidade é como projetar nossas atuais sensações diante de expressões pitorescas sobre velhas palavras, as quais eram essencialmente tão abstratas como as posteriores, sem ser por isso já capazes de uma síntese realmente generalizadora. A significativa e simples beleza de velhas canções populares, que com razão admiramos como exemplares, se arraiga em uma etapa muito mais desenvolvida, uma etapa na qual a oração, a conexão domina a palavra singular, aperfeiçoada por sua vez pela generalização conceitual, e produz efeitos poéticos, pitorescos, etc., graças a um temperamento geral que abrange tudo.

Nota-se nas palavras de Hamann um longínquo eco de Vico(13). Mas neste a estilização estética da idade primitiva é muito mais crítica. Também Vico fala, certamente de uma idade “poética” da evolução da humanidade, mas sua concepção da mesma oscila entre um realista reconhecimento de seu cabal primitivismo, de sua indiferenciação comparada com posteriores estados, e uma identificação deste primitivismo sensivelmente expresso com a poesia e a arte já desenvolvidas. Vico pede que os filósofos e filólogos partam do autêntico “primeiro homem”, isto é, de “bestas idiotas, estúpidas e terríveis”; aduz para comparação com a antiguidade primitiva as descrições de viagens por terras de indígenas, os escritos de Tácito sobre os antigos alemães, etc.(14) Há em tudo isto sérios cognatos de compreensão verdadeira do ponto de partida da cultura humana. Vico vê também que as posteriores formas de atividade estavam já contidas, mesmo que em germes, no período inicial. Tal é a origem da concepção viquiana da idade primitiva: “assim nos vemos obrigados a reconduzir a sabedoria poética a uma rude metafísica, a moral, a economia e a política, todas de natureza poética; em outro ramo a física também poética; ela é a mãe da cosmografia e depois da astronomia, a qual dá ordem certa a suas duas filhas, a cronologia e a geografia(15)”. Também para Vico fica um obstáculo insuperável de que se vê obrigado a deduzir a dialética evolutiva da atividade humana partindo da mudança estrutural da subjetividade. Assim chega a seu exagerado contraste entre as abstratas reações intelectuais de tempos posteriores e as dos homens primitivos, “os quais não possuíam reflexão, mas sim sentidos intensos e uma poderosa fantasia”(16). Compreende-se que esta oposição fundada na simples subjetividade conduza também a uma idealização do estado primitivo, teoria que Vico – seja dito em sua honra – não leva tão consequentemente até o final como Hamann mais tarde; o que em Vico é uma ideia genial para a periodização da história da cultura, apresenta-se já em Hamann como uma fábula, superada ao método subjetivista. Assim nas Sokratischen Denkwürdigkeiten [Memoráveis socráticas – ndt]: “Mas talvez seja a história inteira como diz este filósofo [Bolingbroke] e, o mesmo que a natureza, um livro fechado, um testemunho encoberto, um enigma que não pode se resolver –se se não é arando com um boi diferente de nossa razão”(17). Em muitos filósofos a declaração de que o estético é uma “capacidade original da humanidade” não contém nenhum elemento conscientemente fabuloso: mas isto não impede que a tese, objetivamente, seja uma fábula.

Somente a descoberta do trabalho como veículo da humanização pode acrescentar neste ponto uma reorientação essencial para a realidade. Como é sabido, Hegel foi o primeiro a apresentar esta ideia, na Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do espírito]”(18). Porém a concepção não pode desempenhar nele toda sua fecundidade por causa dos preconceitos e limitações idealistas de seu pensamento. Marx escreveu sobre a teoria hegeliana – também vendo nela uma razão da grandeza da Fenomenologia do Espírito -: “o único trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho abstrato intelectual”(19). A maioria dos erros de Hegel em todo este ciclo problemático pode reconduzir ao básico preconceito idealista de sua atitude. A origem, a formação e o desempenho das atividades humanas não pode se entender senão em sua interação com o desenvolvimento do trabalho, como a conquista do mundo circundante, com a transformação do próprio homem graças a esta conquista. Esboçamos já brevemente os princípios das interações referidas, observando a respeito que já hoje inclusive antropólogos e psicólogos que desconhecem o marxismo ou o recusam têm que reconhecer cada vez mais claramente essa função transformadora do homem que o trabalho tem, mas que – precisamente por causa de sua atitude para com o marxismo – não são capazes de captar esse complexo em sua agitada totalidade histórica. Bastar-nos-á aqui indicar que Marx sublinhou explicitamente também no que se refere ao estético esta concepção da humanização, da elevação humana do homem até ao nível atual. Escreve, por exemplo, a propósito da música: “Por outro lado, e dito subjetivamente: como é a música que desperta o sentido musical do homem, como o ouvido não musical, a música mais bela não tem sentido algum, não é objeto, porque meu objeto não pode ser senão a confirmação de uma das minhas energias essenciais, e não pode, portanto, ser para mim mais do que é enquanto para si, como capacidade subjetiva, minha energia essencial, porque o sentido de um objeto para mim (somente tem sentido para um sentido que o corresponda) não alcança aonde alcance meu sentido, por tudo isto, os sentidos do homem social são diferentes do não social; somente pela riqueza objetivamente desempenhada da essência humana nasce a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, nasce um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em resolução, nascem sentidos capazes de gozos humanos, sentidos que atuam como energias essenciais humanas, se formam em parte, em parte se produzem. Pois não somente cinco sentidos, senão também os sentidos chamados intelectuais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.) em uma palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, nasce pela existência de seu objeto, pela natureza humanizada. A educação dos cinco sentidos é um trabalho da inteira história universal. O sentido preso nas mudas necessidades práticas não tem senão um sentido limitado. Para o homem faminto não existe a forma humana do alimento somente sua existência abstrata como alimento: ocorreria o mesmo encontrá-lo em sua forma cruel, e não se vê em quê se possa distinguir da alimentação dos animais (...) fez falta, pois, a objetivação da essência humana, tanto teórica quanto praticamente, para tornar humano o sentido do homem e para produzir um sentido humano correspondente a toda riqueza do ser humano e natural”(20).

Reproduzimos tão extensamente esta citação de Marx, sobretudo, porque contem uma clara e inequívoca tomada de posição diante nosso presente problema, a evolução histórico-social dos sentidos e as atividades espirituais humanas, e, consequentemente, uma posição clara diante a todas as afirmações relativas ao sentido artístico “primitivo”, “eterno”, etc. do homem. No texto de Marx expõe a concepção da origem paulatina, histórica de todas estas capacidades e de seus correspondentes objetos. E é preciso sublinhar especialmente – por se tratar de uma diferença importante em relação ao reflexo científico – que não somente a receptividade, mas inclusive os próprios objetos são produtos da evolução social. Os objetos da natureza existem em si, independentemente da consciência humana, assim como de sua evolução social; porem é necessária a atividade dessa evolução, transformadora da consciência, para que os objetos naturais sejam conhecidos, convertidos no reflexo científico, de objetos em-si em objetos para-nós. A música, a arquitetura, nascem, inclusive objetivamente, no curso desse processo. Suas interações com a consciência produtora e receptora tem de mostrar, consequentemente, traços diverso dos simplesmente destinados à conversão do em-si para-nós. O conhecimento científico da sociedade tem, sem dúvida, também um objeto socialmente produzido: mas uma vez produzido, este objeto é tão em-si como os objetos naturais. Por diferentes que sejam sua estrutura objetiva e as leis de sua eficácia relativa as da natureza, seu reflexo científico procede igualmente pelo caminho direto que vai do em-si ao para-nós. O fato de que neste campo seja mais difícil de conseguir a forma pura da objetividade, e que a discrepância relativa desta esteja também determinada pela evolução histórica, são fatos que não alteram em de essencial a situação metodológica. O marxismo sublinha aqui com a mesma ênfase ambos os aspectos, a identidade e a diversidade relativa ao conhecimento da natureza. Toda a metodologia dos escritos científicos-sociais de Marx mostra que os objetos dela se concebem como processos que funcionam com plena independência da consciência humana. Por outro lado, Marx – a pelando a Vico – recorda que “a história humana se diferencia da história natural pelo fato de que fizemos uma e não a outra”(21). Na medida em que os produtos da atividade artística se consideram puramente como produtos dessa evolução, a qual, corresponde , sem dúvida, aos próprios fatos, ou seja, na medida em que se considerem exclusivamente como parte do ser social dos homens, o reflexo científico desse ser está submetido as mesmas leis que já indicamos.

Porém dentro desse ser social, considerado em si, aparecem traços completamente novos e particulares cuja explicitação e elaboração vai ser, precisamente, a principal tarefa dessas considerações. Pôr-se agora a enumerar esses traços seria somente antecipar abstratamente argumentações que somente podem se entender em seu pleno sentido se são considerados concretamente, na oportuna ligação teórica e histórica. Por isto nos limitaremos em nossa antecipação em indicar que interações entre a objetividade e a subjetividade pertencem à essência objetiva das obras de arte. Não se trata nisto da influência exercida sobre X ou Y, mas da estrutura objetiva da obra de arte como algo que opera deum modo determinado. O que em qualquer outro campo da vida humana seria idealismo filosófico – isto é, que não pode existir objeto algum sem sujeito – é na estética um traço essencial de sua objetividade particular. (Como é natural, o bloco de mármore trabalhado na escultura existe , como pedaço de mármore, tão independentemente do sujeito como existia antes de sua elaboração, à maneira própria de qualquer objeto natural ou social. A relação sujeito-objeto a que acabamos de referir e que mais tarde estudaremos com detalhe nasce exclusivamente por obra do trabalho do escultor).

As palavras de Marx que antes citamos esclarecem precisamente essa objetividade particular do terreno; sua interação com o nascimento de uma subjetividade estética. Diferentemente do historicismo burguês, que reconhece no máximo uma evolução da inteligência humana, Marx sublinha que precisamente a evolução de nossos sentidos é um resultado de toda a história universal. Essa evolução compreende, naturalmente, bastante mais que o desempenho de uma receptividade estética: este é claramente o fundamento das considerações de Marx. O exemplo dos alimentos mostra que em sua concepção se trata antes de tudo de manifestações elementares da vida, cuja elevação objetiva e subjetiva é produto da evolução do trabalho. Não se trata de um processo retilíneo; os exemplos de Marx mostram como as relações de produção, a divisão social do trabalho, podem ser, inclusive aos níveis superiores, obstáculos opostos às corretas relações subjetivas com os objetos. A gênese histórica da arte, no sentido produtivo e na da receptividade artística, têm que se tratar no âmbito da gênese dos cinco sentidos, que é o âmbito da história universal. O princípio estético se apresente assim como resultado da evolução histórico-social da humanidade.

Em razão de tudo isto, é claro que não se pode falar de uma capacidade artística primitiva da humanidade. Esta capacidade – como todas as demais – se constituiu paulatina e historicamente. Hoje em dia, ao cabo de uma longa evolução cultural, é impossível eliminá-la inclusive da imagem antropológica do homem. Porém a ruptura como idealismo consiste, entre outras coisas, também o saber evitar que propriedades humanas hoje já evidentes, “naturais”, se inchem e convertam em abstratas essencialidades supra históricas.

A lição que nos oferecem aquelas ideias de Marx superam o simples reconhecimento da historicidade radical da arte, da receptividade artística, etc. Ao elaborar a interação entre os sentidos humanos e seus objetos, Marx não se esquece de chamar a atenção sobre o fato de que os sentidos, qualitativamente diferentes, têm de possuir relações (e, portanto, interações) também qualitativamente diferentes com o mundo dos objetos. “Ao olho”, afirma Marx, “um objeto se constitui diversamente que ao ouvido, e o objeto do olho é um objeto diferente daquele do ouvido.”(22). Provavelmente ninguém negará o fato. Porém não basta em não negá-lo: é preciso inferir dele as consequências necessárias. E essas consequências se concentram em torno do seguinte posicionamento: os pontos e fontes genéticos da arte tem que ser necessariamente diversos. Também neste ponto o idealismo filosófico inverte em estética todas as conexões reais. Para o idealismo ocorre como se o princípio estético unitário, “primitivo” (apriorístico), se diferenciara conceitualmente e se sistematizara em um sistema das artes, enquanto que em realidade nascem, da realidade objetiva desta e em diversidade qualitativa de órgãos receptivos e seu desenvolvimento histórico-social, diversas atividades, objetividades, receptividades, etc., artísticas. Em nada se altera este fato básico pela circunstância de que essas atividades, em consequência da unidade da realidade objetiva e de seus próprios fundamentos, funções, etc., sociais, convergem historicamente com tal intensidade que seus princípios comuns decisivos podem se considerar como unitariamente estéticos. Enquanto não partamos desses fatos, estaremos impotentes ante a tarefa de conceber filosoficamente a gênese da arte.

Esta questão se apresentou às vezes também na filosofia idealista da arte, ainda que com as típicas deformações que fazem de um problema dialético uma questão metafísica. Konrad Fiedler, muito influente por algum tempo na estética alemã, escreveu na nota prévia a sua obra capital, Über den Ursprung der künstlerischen Tätigkeit [Sobre a origem da atividade artística]: “Como não existe a arte em geral, apenas somente artes, o problema da origem da capacidade artística não pode todavia se colocar senão para o terreno particular de uma arte determinada”(23). Fiedler deixa aberta aqui a questão de se os resultados de sua investigação permitem inferir algo para outros terrenos; porém o tipo de tratamento indica que nega essa possibilidade. Fiedler consuma com isto duas abstrações que, pelo seu caráter idealista e antidialético, confundem o problema e o tornam insolúvel, ou, melhor dizendo, o colocam no caminho de uma pseudo solução. Em primeiro lugar, Fiedler nega o reflexo da realidade objetiva por nossos sentidos e nosso pensamento, e vê nessa ideia um preconceito que é preciso superar: “Na vida comum, e não somente nela, mas também em numerosos terrenos da atividade intelectual superior, nos tranquilizamos com a crença de que as relações objetivas correspondem objetos da realidade (...)”(24). O que importa a Fiedler não é, pois, o mundo externo, a interação deste com os órgãos dos sentidos, mas exclusivamente a subjetividade pura: “Enquanto se compreende o absurdo que supões buscar no mundo externo algo que não se haja encontrado antes em si próprio"(25). A concreta polêmica de Fiedler se dirige neste ugar contra a necessária deficiência da expressão linguística em relação aos fenômenos concretos. E ainda que sua crítica não careça de momentos parciais acertados, passa por alto completamente do processo de aproximação indefinida a um reflexo cada vez mais adequado da realidade, processo que atravessa a linguagem com o pensamento, e ignora assim a complicada interação dialética entre o mundo dos objetos e a subjetividade que se esforça para captá-lo e dominá-lo. Com isto se subjetiviza a expressão linguística e, coisa mais grave, se feiticiza. A linguagem diz Fiedler não significa um ser (não reflete o ser), senão que é um sentido: “E como o que nasce na forma linguística não existe em absoluto fora dessa forma, a linguagem nunca se significará mais do que a si”(26).

Como Fiedler utiliza essa afirmação para opor crua, excludentemente e sem passagens, a expressão visual para a linguística, esse isolamento e essa feitização da última o são também da primeira.

Em segundo lugar – e em íntima relação com o dito até agora – Fiedler tenta separar do modo mais rigoroso possível a visualidade, como base das artes figurativas, do reflexo da realidade por outros sentidos, assim como pelo pensamento, o sentimento, etc., e descobrir para a arte figurativa (que no caso de Fiedler significa menos a arte do que a atividade artística, também artificialmente isolada) um mundo isolado da visualidade pura. A separação ou isolamento se pratica sobretudo à respeito do tato. Fiedler reclama a recusa completa de tudo o que, em sua opinião, pode chegar à consciência do homem através dessas mediações. Se o homem termina essa operação de isolamento, alcança uma situação que Fiedler descreve como segue: “Então se encontra em uma atitude muito diferente em relação do que pode chamar realidade: desapareceu lhe toda firmeza corporal, posto que agora já não nada mais visível, e a única matéria na qual pode articular sua consciência da realidade são as sensações de luz e cor que deve ao olho. Todo o gigantesco reino do mundo visível lhe descobre remetendo em sua existência à matéria mais tênue e enquanto incorpórea, e, em suas formas, às formações que o indivíduo tece com este matéria incorpórea ao máximo”(27). Neste texto podemos apreciar duas coisas: o subjetivismo extremado de Fiedler, para o qual a imagem visual assim produzida não é uma elaboração, uma síntese, etc. elaborada pelo sujeito com a realidade objetiva refletida pelos sentidos, mas, no sentido da epistemologia kantista, o produto de uma atividade “pura” do sujeito; e a redução do reflexo visual ao qual Fiedler concebe como visualidade pura (ou depurada). Neste ultimo caso e para por às claras o ponto de vista extremamente antidialético de Fiedler, bastará mencionar a nossas reflexões anteriores acerca da divisão do trabalho dos sentidos produzida no próprio trabalho. Pois a visão e o tato não estão separados metafisicamente senão do ponto de vista de uma “psicologia racional” prékantista e kantista. A importância do trabalho consiste neste ponto – e já ao nível da cotidianidade ainda sequer artística – no fato de que o olho vai assumindo progressivamente funções do tato. Assim chegam a perceber-se visualmente propriedades como o peso, a materialidade, etecetera, e se convertem em elementos orgânicos do tipo visual de reflexo da realidade. É obvio que a atividade artística intensifica qualitativamente e desenvolve essas tendências nascidas no trabalho. Assim se produz a universalidade, o caráter onicompreensivo de ver e o de plasmar artísticos, enquanto que Fiedler se converte em arauto teórico do empobrecimento objetivo e ideal das artes figurativas. Pois é claro que nisto Fiedler traça ainda mais rigidamente as fronteiras e declara que “temos de renunciar a toda consciência de algo universal e abrangente (...)”(28) com objetivo de poder experimentar “mesmo que não seja mais que aproximadamente”, o modo de intuição visual pura do artístico.

A concepção dialético-materialista tem de romper igualmente com ambos os extremos metafísicos, tanto com a dedução apriorística das artes particulares a partir de uma suposta fonte primitiva, da “essência” do homem, quanto com o rígido isolamento entre elas, para poder entender corretamente o fenômeno real do estético em seu devir e em sua essência. Por isso mesmo no tratamento filosófico da gênese da arte partimos de uma multiplicidade de origens reais e consideramos que a unidade do estético, o comum nesta multiplicidade, é um resultado da evolução histórico-social, chegamos entretanto a uma concepção completamente diferente da filosofia idealista, tanto pelo que faz à unidade do estético quanto no que se refere a diferença, a independência das artes particulares (e dos gêneros dentro de cada uma).

Pelo que faz à unidade sobretudo, enunciamos já nossa resoluta recusa de todo princípio a priori. Engels sublinhou corretamente este princípio do materialismo dialético: “Os resultados gerias da investigação do mundo aparecem no final da investigação, e não são, pois, princípios, pontos de partida, mas resultados; finais”(29). Em nosso caso vale esse princípio ainda mais intensamente. Pois no texto da citação Engels pensa sobretudo nos problemas gerais das ciências da natureza, na qual os princípios que tem de descobrir a consciência humana existiam em si já muito antes e eram ativos também muito antes que o pensamento fosse capaz de refleti, interpretar e sistematizar suas conexões, sua unidade, etc. Em nosso caso, pelo contrario, a posterioridade do princípio não reside somente no para-nós, senão já e também no em-si: a unidade do princípio surge na estética paulatinamente, histórico-socialmente, e não pode portanto conhecer-se senão posteriormente como tal, de acordo com o nível de unidade alcançado.

Já este simples fato aponto para alguns problemas do conteúdo. Mesmo os sentidos , a receptividades, etc., parecem ser heterogêneos e o são, certamente, em sua imediação, não pode, por outro lado separa-se hermeticamente uns dos outros, como o imaginam Kant e os Kantistas do tipo de Fiedler. Sempre são sentidos, desenvolve nessa sociedade suas mais elementares manifestações vitais, e consequentemente tem em seus sentidos elementos e tendências profundamente comuns as dos outros homens. A divisão do trabalho entre os sentidos, a facilidade e o aperfeiçoamento do trabalho por meio deles, a recíproca relação de cada sentido com os demais através dessa colaboração cada vez mais diferenciada, a crescente conquista do mundo externo e interno do homem em consequência dessas sutis cooperações, a difusão e profundidade da imagem cósmica, como consequência: tudo isso põe, por um lado, os pressupostos materiais e anímicos da origem e a evolução das diversas artes; por outro lado, uma vez constituída cada uma, instaura nela a tendência a desenvolver cada vez mais particularmente as próprias qualidades imanentes e a conseguir para estas tal universalidade, tal capacidade de compreensão que – sem prejuízo da independência de cada arte em particular – penetre progressivamente no que é comum a todas, o meio da estética.

As duas tendências vão unidas por uma contraditória unidade, a unidade de uma contradição: a unidade e diferença simultâneas do homem inteiro ativo em uma sociedade, o qual refina e especializa cada vez mais energicamente suas reações à natureza e à sociedade no seio da própria subjetividade, porém refere também à divisão interior do trabalho assim especializada à própria personalidade total, e assim faz a esta mais ampla e rica. Esta descrição um pouco circunstancial é necessária para distinguir do modo mais claro possível nossa concepção de todas as teorias que contemplam a plena e desenvolvida personalidade do homem com simples característica de etapas primitivas, e a veem em perigo ou até já destruída pela progressiva e incessante divisão do trabalho. É claro um fato que a divisão capitalista do trabalho produz frequentemente estagnação da personalidade por causa de uma diferenciação muito intensa. Porém em outro lugar, baseando-se em uma argumentação de Marx a propósito de Ricardo, mostramos que, vista a escalada da evolução da humanidade, a tendência que se impõe é a contrária, recém-referida por nós.

Todo o mencionado até o momento carece ainda de referência direta à arte como tal. Todos esses fenômenos aparecem na história evolutiva da humanidade muito antes que o princípio estético revele sua independência. (E também em que o desenvolvimento do indivíduo aparecem essas tendências gerias frequentemente antes que tenha consciência do estético. Porém a repetição da evolução da humanidade no desenvolvimento do indivíduo não é uma cópia ou abreviatura mecânica. O fato da existência e a influência das obras de arte significa bastante mais que a simples abreviatura de tal processo). Como já se indicou, o especificamente estético pressupõe por uma parte, objetiva e subjetivamente, uma relativa altura de desempenho dessa tendência, porém, por outro lado, se desprende lentamente do fundo comum aqui descrito e se constitui em modo independente de expressão humano-social, porque objetiva e subjetivamente possui em cada manifestação um caráter total – relativo, é claro, tendencial -, uma intenção de totalidade.

O fundamento da unidade de tais tendências não pode estar senão na materialidade, no substrato de seu ser. Tal é, naturalmente, a suprema lei geral de toda unidade real (não simplesmente subjetiva e imaginária). O afirmado por Engels sobre a unidade do mundo(30) se pode dizer de suas partes, de todos os diversos modos de dominá-las pela consciência humana por meio do reflexo. E também da arte. Sua particular natureza se destaca entre as formas gerais da realidade na vida cotidiana pelo fato de que o substrato material da existência e da atividade humana é a sociedade em seu “metabolismo com a natureza” (Marx); esta se reflete indivisa e, sem dúvida, com sentido e em real relação com o homem inteiro. Porém somente em última instância. É preciso acentuar esta restrição. Pois, por um lado, a reprodução artística da realidade reflete pelo geral imediatamente as relações de produção de uma determinada sociedade e do modo mais imediato, as relações sociais entre os homens que se desprendem daquela base da produção. O reflexo desse intercâmbio com a natureza não aparece mais que como o fundamento dessas relações, ou seja, “em última instância”. Quanto mais forte é, intensiva e extensivamente, esse intercâmbio ou metabolismo, tanto mais proeminente aparece na arte o reflexo da própria natureza. Esse reflexo não é ponto de partida senão, ao contrário, o produto de um nível já superiormente desenvolvido daquele intercâmbio. Porém, por outro lado, o reflexo do intercâmbio da sociedade com a natureza é o objeto conclusivo e realmente último do reflexo estético. Considerado em-si, esse intercâmbio contém a relação de todo indivíduo com o gênero humano e com sua evolução. Este conteúdo implícito se explicita na arte, e o em-si, frequentemente oculto, aparece como um plástico ser-para-si.

Como é natural, este é também o caso na vida cotidiana, especialmente no trabalho, porém até certo ponto de um modo mais elementar e espontâneo. O trabalho é inimaginável sem tal unidade na referência dupla à natureza, que existe com independência do homem, e, ao mesmo tempo, do homem com suas finalidades de origem social, com suas capacidades socialmente constituídas, etc. Este intercâmbio se produz aqui já materialmente. Porém no trabalho a unidade em apreço opera permanentemente, e, ao mesmo tempo, se denuncia sem interrupção, isto é: as componentes subjetiva e objetiva conseguem uma eficácia relativamente independente, se desenvolvem com relativa independência, mesmo, sem dúvida, em ininterrupta interação. O posterior desenvolvimento da componente subjetiva parece obvio sem necessidade de maior esclarecimento; o da natureza objetiva em seu intercâmbio material com a sociedade consiste em que o metabolismo manifesta constantemente aspectos novos, propriedades novas, novas leis, etc. da natureza em sua relação do homem, e inclui assim a própria natureza, intensiva e extensivamente, cada vez com mais energia naquele intercâmbio com a sociedade. A denuncia da unidade significa, pois, o abandono da unidade de uma determinada etapa do desenvolvimento para substituí-la por outra mais complicada, mais mediada, mais superiormente organizada. Este processo está em íntima interação da componente subjetiva, cujo desenvolvimento, imediata e aparentemente, é interno. A relação dos homens entre si, sua colaboração social imediata. E a frequentemente muito mediada, no trabalho e na vida, tem que transformar-se também no curso do crescimento extensivo e intensivo do intercâmbio da sociedade com a natureza, de acordo com as necessidades desse crescimento. O abandono da unidade em cada caso é, pois, sempre um momento – e um momento motor – dessa mesma unidade.

O reflexo científico da realidade é, naturalmente, um momento importante desse movimento dialético; na medida em que se orienta para captar mentalmente o processo, o reflexo científico tem de tentar tomar categorias que aqui atuam em suas reais proporções objetivas, em sua verdadeira movimentação. O reflexo estético tem de proceder aqui por caminhos particulares de um modo imediato nesse processo de intercâmbio. Por mais que este processo determine, em última instancia, o desenvolvimento do reflexo científico da realidade, este reflexo, na media em que se manifesta, procede também por caminhos próprios que desembocam de novo naquele processo senão através de muitas amplas mediações. Por outro lado, o reflexo artístico tem sempre como base a sociedade em seu intercâmbio com a natureza, e não pode captar e plasmar a natureza com seus próprios meios senão sobre essa base. Por imediata que pareça a relação da arte (e a do receptor que desfruta a sua obra) com a natureza, objetivamente está mediada intensa e complicadamente. Por certo que essa imediação, da qual mais adiante teremos de falar detalhadamente, em concretos contextos, não é apesar de tudo simples aparência, ou, pelo menos, não é falsa aparência. Essa imediação é um elemento intensivo do reflexo estético feito forma, da obra de arte: uma imediação estética e sui generis. Porém, isto não nega nem anula o caráter objetivamente mediado que acabamos de afirmar. Trata-se aqui das contradições internas essenciais, fundamentais e artisticamente fecundas do reflexo estético da realidade. Mas, em segundo lugar, essa ligação imediata indissolúvel do reflexo estético com sua base entitativa tem como consequência uma particular materialidade de conteúdo e uma particular estrutura do objeto refletido e plasmado. O reflexo científico, por muito frequente que se reduza a problemas particulares, tem que esforçar-se sempre para aproximar-se todo o possível da totalidade extensiva e intensiva das determinações gerais de seu objeto estudado em cada caso. Por outro lado, o reflexo estético se orienta imediata e exclusivamente a um objeto particular. Esta particularidade imediata se intensifica ainda mais pelo fato de que toda arte – e na realidade estética imediata só há artes particulares, e inclusive somente obras de arte individuais, cuja comunidade estética só é captável conceitualmente, não de um modo imediatamente artístico – reflete a realidade objetiva exclusivamente em seu próprio meio (visualidade, palavra, etc.). Como é natural, afluem a esse meio conteúdos da realidade total e se elaboram nele artisticamente de acordo com suas próprias leis; já tocamos antes o como deste problema, ao falar da divisão do trabalho entre os sentidos, e mesmo voltaremos a considerá-lo com detalhes. Mas há além disso outro ponto de vista do qual se aprecia que o objeto do reflexo estético não pode ser geral: a generalização estética é a elevação da individualidade ao típico, e não, como na cientifica, o descobrimento da ligação entre o caso individual e a legalidade geral. Para nosso presente problema isto significa que na obra de arte nunca pode aparecer diretamente a totalidade extensiva de seu objeto último; se expressará em sua totalidade intensiva somente através de mediações, postas em movimento pela imediação estética evocadora. Disto se segue, além disso, que a base real subjaz a todo o reflexo, a sociedade em seu intercâmbio com a natureza, não pode manifestar-se senão desse modo recém-indicado, mediado-imediato. E seja o objeto concreto da conformação a imediação de um fragmento da natureza (como na pintura paisagística), seja de um sucedido humano puramente interno (como no drama), este traço essencial se manifesta do mesmo modo, pois em ambos os casos se tem o mesmo último fundamento, mesmo que se inverta a relação entre fundo e primeiro plano, entre o claramente expresso e o meramente aludido, etc., ou ao menos se altera.

Tudo isso indica que o reflexo estético já desenvolvido, precisamente no que diz respeito à base de seu princípio unitário, a sociedade em intercâmbio com a natureza, se encontre já longe do modo de manifestação deste fundamento na vida cotidiana, antes de tudo no trabalho. Em primeiro lugar, falta no reflexo estético a denuncia e o restabelecimento, antes explicados, da unidade fundamental no trabalho. E falta, assinaladamente, porque este traço essencial do trabalho se fundamenta profundamente em sua interação com o reflexo científico(31). Certamente que esta tendência se manifesta com toda clareza no trabalho apenas em suas etapas mais desenvolvidas, quando a ciência , que nasce dele, exigiu já uma figura independente e começa a reagir sobre o trabalho. Então se fazem eficazes as forças desantropomorfizadoras do reflexo científico da realidade em sua influência nas componentes do trabalho: sua análise científica, em separado ou referida à interação, se propõe alcançar o ótimo objetivamente alcançável em cada caso, de consequências, imposição do objeto em si, independente de todo o possível das particulares propriedade, capacidades, etc. dos homens que intervém no trabalho. O intercâmbio entre a sociedade e a natureza subjaz sem dúvida a todas essas análises do trabalho em si, determina seu grau de desenvolvimento e orientação, seu método e seus resultados, mas essa referência é cada vez menos imediatamente visível em seus reflexos subjetivos. O recuo das barreiras naturais tem necessariamente essa consequência. Esta estrutura aparece com toda clareza apenas em níveis muito desenvolvidos, mesmo que a tendência a tal desantropomorfização comece já espontaneamente com o próprio trabalho. Mas, em muitos casos, a encobrem outras tendências, ou se entrecruzam com elas. Entre essas tendências as artísticas desempenham em algum momento um papel de destaque. Quando se quer separar gritantemente as duas tendências se tropeçam com dificuldades nada desprezíveis. Assim, por exemplo, as tendências artísticas ativas no trabalho revelam muitas vezes propriedades, até então desconhecidas, do em-si, promovem a capacidade do trabalho (domínio do material, refinamento das ferramentas e de sua manipulação, etecetera),assim como a orientada a cientificidade. Ambas podem inclusive encontrar-se em uma relação de aliança consciente, como ocorreu, por exemplo, na Renascença.

Mas, apesar disso, continua sendo conceitualmente necessária e possível a distinção entre trabalho e arte, mesmo sabendo que essa diferença apenas se pode ver nas próprias objetivações, não em seus reflexos conscientes. A linha divisória corre pelos pontos nos quais termina a utilidade imediata: por exemplo, nas etapas primitivas, talvez o adorno do ser humano, a decoração das ferramentas, etc. Enquanto que o desempenho do reflexo desantropomorfizador introduz utilidades mediadas e aumenta assim o efeito útil imediato do trabalho, os elementos estéticos representam um excesso que nada acrescenta à utilidade eficaz, factual, do trabalho. (Mais tarde falaremos do grande papel que desempenha a utilidade imaginária, nascida das representações mágicas, na origem e no desenvolvimento de formações artísticas; mas precisamente isso encobre o dissimula o caráter estético objetivo dos objetos ou dos apetrechos). Isso já basta para explicar a aparição relativamente tardia do estético em comparação com o trabalho: o estético supõe materialmente um determinada altura da técnica, e, além disso, um ócio para a criação do “supérfluo”, determinado pelo aumento das forças produtivas do trabalho.

Se concebermos a primeira aparição de um princípio aparentado com o artístico – mesmo nada unívoco esteticamente – como a criação de um produto do trabalho que, em sua totalidade ou em algum aspecto não está determinado pela utilidade material, fica claro a este nível que esse princípio não pode basear-se em um reflexo desantropomorfizador da realidade. Já ao efeito útil mais primitivo põe em marcha um sistema de mediações que suspende a referência ao homem para poder realizar mais eficazmente seus fins. Em nosso caso não tem lugar nenhuma suspensão desse tipo. É claro que também esta afirmação deve ser entendida dialeticamente. A atividade artística – e não somente na arquitetura, a plástica ou artesanato de arte – conserva determinados traços do trabalho simples e do estudo da realidade objetiva vinculado sempre com o trabalho; na medida em que atua esse motivo, aquela suspensão se encontra também na arte. Por outro lado, deixando de lado este momento da produção subjetiva das obras de arte, há algumas artes que mantêm como fundamento ineliminável o momento da utilidade, de tal modo que nem sequer podem se consumar esteticamente se não realizam ao mesmo tempo objetivos de utilidade prática. Mas à medida que a atividade artística vai se constituindo como tal, vão também se convertendo esses momentos desantropomorfizadores em momentos superados, em simples meios para realizar fins de natureza bastante outra.

Pode se expressar de modo mais simples e geral esta oposição no processo produtivo e no comportamento subjetivo dos interessados utilizando as expressões “consciência de” e “autoconsciência de”. A palavra autoconsciência tem no uso cotidiano uma significação dupla, e é notável que essa duplicidade de sentido resulte adequada para iluminar o que aqui nos interessa. A palavra , de fato, significa por um lado – no firme assentamento do homem em seu ambiente concreto, e, por outo lado, a iluminação de uma consciência (e do ser que lhe subjaz) pela própria força intelectual concentrada sobre si. A concepção da autoconsciência como algo puramente interno, que abstrai do mundo e se refere somente ao sujeito, é muito tardia e enturva completamente a essência do fenômeno. O primeira dos dois significados que lhe atribuímos – e que é sem dúvida mais antigo – decorre inimaginável sem referência a um retorno concreto. Mas também está claro que a autoconsciência no segundo sentido pode se desincumbir realmente apenas se o reflexo subjetivo, orientado do modo mais completo possível. Já Goethe recusou repetidamente o conceito de autoconsciência no sentido literal de “conhece-te a ti mesmo”. Suas palavras em um diálogo com Eckermann ilustram muito bem nossa concepção da autoconsciência: “Sempre se disse e repetiu que é preciso tentar conhecer-se a si mesmo. Curiosa exigência, que ninguém satisfez até agora e que propriamente nunca se cumprirá. Com todos seus sentidos e cognatos está o homem remetido ao de fora, ao mundo em torno, e bastante trabalho tem com conhecer o mundo e pô-lo a seu serviço na medida em que necessita para seus fins. De si mesmo toma notícia o homem somente quando goza ou quando sofre, e somente a dor e a alegria lhe ensinam sobre si, o ensinam o que deve buscar ou evitar”(32).

Nessa discussão parte obviamente Goethe não tanto do comportamento artístico, que nele é espontaneamente um comportamento orientado para o mundo, quanto para a vida cotidiana. Em outro lugar o diz muito claramente: “Se agora tomamos a importante sentença Conhece-te a ti mesmo, não devemos interpretá-la em um sentido ascético. A sentença nada tem a ver com a heautognose de nossos modernos hipocondristas, humoristas e heautontimorimens, apenas que significa simplesmente: tenha um pouco de cuidado contigo mesmo, toma noticia de ti mesmo, para que te dês conta de como te manténs em relação de teus próximos e do mundo. E para isto não sã preciso refinamentos psicológicos; toda pessoa sadia sabe e entende o que significa; é um bom conselho muito benéfico para todos”(33). Apesar dessa violenta recusa da unilateral orientação à interioridade, a referência ao sujeito, ao homem real e integral, é claramente visível na descrição de Goethe desse comportamento. Mas na vida cotidiana esta autoconsciência se refere tão intensamente à pratica imediata como a consciência do mundo externo, em progressiva desantropomorfização. Vimos já em grandes traços como esta consciência se desprende da vida cotidiana, exige forma própria, desenvolve métodos próprios, mesmo que sem dúvida para influir na prática imediata através de amplas e ramificadas mediações, para transformá-la e elevá-la a um nível superior.

A gênese da estética é um análogo desprender-se da autoconsciência em relação à prática cotidiana, como a gênese da “consciência de” da independência do reflexo científico da realidade. Agora estará claro que este desprendimento não é nenhuma supressão do reflexo antropomorfizador, apenas somente a constituição de uma particular espécie do mesmo, independente e qualitativamente nova. Certamente que a tendência antropomorfizadora é tão geral que somente o reflexo científico da realidade consegue uma ruptura radical com ela: esta é, objetiva e subjetivamente (e inclusive para a posterior conceituação) uma das maiores dificuldades que se opõem a segregação do estético sobre o fundo da vida cotidiana. “O homem não chega nunca a se dar conta do antropomórfico que é”, afirmou Goethe(34).

A espontaneidade da vida cotidiana é antropomorfizadora, e o é também, como dissemos, a religião. Objeto principal de nossas posteriores considerações vai ser a exposição filosófica do complicado processo de desprendimento ou separação do estético à partir desse fundo. É portanto impossível antecipar aqui a concretude e a sistemática do estudo, e um seco índice dos principais pontos de vista, momentos, etapas, etc., produziria nesta fase de nossa compreensão mais confusão do que clareza. Antecipando no possível o que a seguir temos que concretizar queremos somente mencionar ao conceito de autoconsciência tal como o acabamos de caracterizar. Seu objeto, como já dissemos, é o meio concreto do homem, a sociedade (o homem em sociedade), o intercâmbio da sociedade com a natureza, mediado, naturalmente, pelas relações de produção; e tudo isto vivido do ponto de vista do homem integral. Isto quer dizer que por trás de qualquer atividade artística se encontra a pergunta: até que ponto é realmente este mundo um mundo do homem, um mundo que ele possa afirmar como seu mundo, adequado a sua humanidade? (Posteriores análises mais concretas mostrarão que o adorno, por exemplo, a ornamentação, ou inclusive a crítica amarga e dura do mundo circundante não constituem qualquer contradição dessa determinação, apenas que a aprofundam e concretizam dialeticamente).

Na cotidianidade e na religião podem, naturalmente, se encontrar tendências análogas até certo ponto. Na vida cotidiana se apresentam como necessidades espontâneas satisfeitas ou não satisfeitas pela vida. E isto é compreensível, porque a insuperável casualidade de toda a vida cotidiana, a casualidade de seus desejos nascidos da própria particularidade, etc., não pode receber senão satisfações casuais, mesmo vista objetivo-socialmente, mesmo visto para a média dos casos, não é, de início, casual o tipo de necessidades subjetivas que tem de satisfazer ou ficam sem satisfazer em uma concreta etapa social, em uma determinada situação de classe. (O conhecimento objetivo destas possibilidades gerais não suprime, desde já, aquele caráter casual que se impõe em cada caso individual). Na vida cotidiana os desejos e as satisfações se centram segundo isso no indivíduo: por um lado, nascem de sua existência individual, real e particular e, por outra, se orientam a uma satisfação real, prática, de desejos pessoais concretos. Não há dúvida que na configuração artística nasce originalmente desse solo. O adorno do homem – seja objeto independente, seja a pintura do próprio corpo-, a dança primitiva, o canto, etc. do período mágico se baseiam por sua intenção real no desejo pessoal de um homem concreto ou de uma coletividade não menos determinada na que cada homem está pessoal e diretamente interessado no êxito da atividade. O antropomorfismo mágico religioso conserva simplesmente esse vínculo da satisfação – real ou imaginária – com os desejos do individuo enquanto indivíduo ou como membro de uma coletividade concreta. Não altera em nada de essencial esta estrutura que a satisfação exija um caráter transcendente, como faz às vezes, mesmo não sempre, e especialmente aos níveis primitivos; pois inclusive a finalidade muito posterior, a salvação da alma no além, está vinculada a pessoa particular, precisamente em sua particularidade.

Segue-se naturalmente desta estrutura que o fazer-se-arte dos objetos, ações, execuções, etc., não pode ter lugar senão inconscientemente (no sentido que antes demos a esta expressão). Nasce um tipo particular de generalização e, ao mesmo tempo , um tipo particular de objetividade: ambas fazem destacar-se objetivamente esses produtos da cotidianidade, da magia e da religião, inclusive nos casos em que criadores e receptores tem a mais sincera e profunda convicção de se encontrar mesmo no terreno da cotidianidade, da magia ou da religião. O modo muito abstrato que estamos antecipando aqui um tratamento, que se fará já concretizar, desta pergunta, não nos permite mais que alusões muito genéricas. A generalização de que falamos, estritamente oposta a desantropomorfização da ciência, consiste em que o artisticamente figurado se liberta da individualidade simplesmente particular e, com isso, da satisfação prática-fatual da necessidade, mundana ou ultramundana, mas sem perder o caráter de vivência individual e imediata. Ainda mais: este tipo de generalização tem precisamente a tendência de robustecer e aprofundar este traço. Pois, preservando a individualidade no objeto e em sua recepção, sublinha o genérico, e supera desse modo a simples particularidade. Com isso fica muito mais clara que na vida cotidiana a referencia do objeto à sociedade e ao intercâmbio desta com a natureza, mesmo sem tomar uma versão conceitual. Simultaneamente se eleva ao nível superior a determinação da autoconsciência, se ergue da estreita e particular esfera do simplesmente cotidiano e exige uma generalidade muito distinta, sem dúvida, da desantropomorfizadora-científica. Trata-se de uma generalização sensível e manifesta do homem integral, conscientemente baseada em um princípio antropomorfizador.

A contraditoriedade dessa generalização – que mais tarde estudaremos detalhadamente – tem como consequência necessária que a satisfação das necessidades, dos desejos, da angústia, etecetera, perca seu caráter fatual-prático. Do ponto de vista da facticidade da cotidianidade pode se dizer que se tem uma satisfação puramente fictícia, ou, melhor dizendo, a vivência da satisfação em um caso típico, porém desprovida da realidade fatual que lhe corresponde na vida. Este é o ponto de aparente contato entre a arte e a religião. A consumação proclamada e descrita por esta não pode ser todavia, no sentido da realidade da vida, mas a evocação sugestiva, suscitadora de vivências, de uma futura consumação ultramundana . (A este respeito, a diferença entre a magia e a religião reside em que a primeira se empenha em satisfazer desejos prático-cotidianos, enquanto que a segunda, ao menos por regra geral, propõe uma satisfação ultramundana, e não orientada segundo objetivos particulares, senão pelo destino do homem integral; o único cismundo é o reflexo subjetivo do cumprimento transcendente, por exemplo, a certeza calvinista da salvação. Como é óbvio, em muitas religiões sobrevivem restos mágicos, crença na satisfação religiosa de particulares necessidades cismundanas). Mesmo mais próximo parece ser o parentesco pelo fato de que o princípio básico não pode ser senão antropomorfizador. Por isso não pode assombrar que durante milênios obras de arte hajam surgido e hajam gozado de fé, como se não tivessem mais função do que a plasmação sensível dos conteúdos da satisfação religiosa.

Mas a diferença, a oposição inclusive, é tão precisa aqui, no terreno do antropomorfizador, como o que antes comprovamos entre a antropomorfização religiosa e a desantropomorfização científica. A oposição se concentra aqui na determinação do caráter “fictício” dos objetos da satisfação ou consumação na arte e na religião. Antes aludimos brevemente à oposição geral do ponto de vista da realidade dos objetos no sentido de que o caráter “fictício” da arte se realiza sempre radicalmente até o final, enquanto que na religião esse caráter “fictício” se apresenta sempre com pretensão de ser uma realidade transcendente mais verdadeira que a da vida cotidiana. Até mais adiante, ao nível já mais rico de nossas considerações, não poderemos discutir os concretos problemas atuais desta situação.

Mas já aqui – mesmo seja também antecipadamente – temos de mencionar a um preciso problema: a cismundanidade principal da arte, seu caráter terreno-humano essencial e axiologicamente carregada. Isto fica dito, naturalmente, no sentido da objetividade, como sentido objetivo da realidade esteticamente figurada. Deste ponto de vista subjetivo, o produtor artístico pode pensar em uma transcendência, e aceitá-la o receptor, e é perfeitamente possível que o sentido objetivo do artista, baseado na essência humano-social da arte, não se imponha senão ao longo de séculos ou milênios. Pois a renúncia da formação artística a ser realidade supõe objetivamente uma recusa da transcendência, do mais além; a obra de arte cria assim formas particulares do reflexo da realidade, formas que nascem desta e regressam ativamente a ela. Inclusive quando essas formas parecem superar a fatuidade da realidade imediata dada na prática cotidiana, o fazem – como, neste ponto, igual ao reflexo científico – para voltar a captá-la, para dominá-la melhor, de acordo com sua peculiaridade específica, do que pode fazê-lo a prática cotidiana com sua subjetividade imediata. A arte é pois tão cismundana quanto a ciência; é o reflexo da mesma realidade. (Esta afirmação, aqui necessariamente genérica, será exposta e arguída mais tarde com detalhe).Essa comunidade não impede, naturalmente, que no demais a arte e a ciência tomem direções opostas em questões decisivas do reflexo. Esboçamos já a via da desantropomorfização no reflexo científico. Será tarefa das considerações seguintes o explicitar a peculiaridade específica do reflexo antropomorfizador estético tanto em relação a realidade esteticamente refletida nas obras de arte (a sociedade em seu intercambio com a natureza), quanto em relação das novas capacidades formadas no homem por este tipo de reflexo, as quais, como tentaremos mostrar, se concentram no desenvolvimento da autoconsciência no sentido antes indicado.

Expostos assim os traços mais gerais da estética há que acrescentar em seguida que o reflexo antropomorfizador nunca deve perder o contato imediato com a percepção sensível do mundo, se é que quer ser estético; suas generalizações se realizam no marco da sensibilidade humana, e até veremos que forçosamente acarretam um modo de intensificação da imediação sensível para poder executar com êxito estético o processo de generalização. Não pode haver na estética nada análogo ao papel da matemática nas ciências. Disso se segue que o princípio de outro tipo de diferença de gêneros e espécies, distinto do que tem vigência na ciência. Nesta, a natureza em si do objeto determina a diferença em ciências diversas (física, biologia, etc.). A natureza antropomorfizaora do reflexo estético tem, por outro lado, como consequência que a diferença em espécies e subespécies (artes, gêneros) se encontre vinculada à possibilidade de desenvolvimento dos sentidos humanos, entendida, desde já, no mais amplo sentido. Por mais que tenhamos que nos opor a independência mecânica dos sentidos, à maneira de Fiedler, e mesmo mais tarde mostraremos que o desenvolvimento estético de cada sentido procede para o reflexo universal da realidade, é preciso sublinhar decididamente, entretanto, que este domínio da realidade pelo reflexo já estético se desenvolve em cada sentido de modo autônomo, relativamente independente dos demais. O princípio universal da subjetividade estética, resultado, em nossa opinião, de um processo evolutivo milenar, é precisa e essencialmente um resultado. Enriquece-se e aprofunda pelas interações dos sentidos, sentimentos e pensamentos enriquecidos e aprofundados pelas diversas artes e os gêneros particulares, a independência no desenvolvimento dos diversos sentidos para a universalidade. O princípio estético, a unidade estética dos diverso tipos de reflexo estético, é pois resultado final de um longo processo evolutivo, e a gênese independente das diversas espécies e subespécies da arte, e da correspondente subjetividade estética na produção e recepção, é muito mais que um mero fato histórico: está arraigado profundamente, como veremos mais tarde, na essência do reflexo estético da realidade, e se não se leva em consideração se deforma a essência da própria estética.

Para conseguir uma primeira clareza, tivemos que expor essa diferença coma mais simples do que é em realidade. Seria, de fato, uma simplificação a ideia de que a cada sentido humano deva corresponder somente uma arte. Basta mencionar neste ponto a ampla heterogeneidade interna das artes visuais, a arquitetura, a escultura, a pintura, etc. Certamente que também aqui, desde o primeiro momento, existe interações que cada vez se tornam mais íntimas e penetrantes no curso da evolução, mais profundas e essenciais. Que se pense, por exemplo, na penetração das concepções pictóricas na escultura e a arquitetura, em determinadas circunstâncias históricas.

A situação assim constituída se complica ainda pelo fato de que o reflexo estético da realidade se encontra histórica, local e cronologicamente vinculado em um sentido qualitativamente diferente do científico. É óbvio que toda subjetividade é de caráter histórico-social, e isso têm consequências relevantes também na história da ciência. Mas a verdade objetiva de uma proposição científica depende exclusivamente de sua concordância – aproximada – com o em-si que transforma ela mesma em um para-nós. Portanto, o problema da verdade não tem aqui nada a ver com os problemas genéticos. A gênese pode sem dúvida fornecer uma explicação do como e por que as tentativas de aproximação do reflexo científico à realidade objetiva tiveram que ser incompletos, ou mais ou menos alcançados, dadas determinadas circunstâncias histórico-sociais. A situação é muito diferente quando se trata da arte. Recordamos repetidas vezes que o objeto fundamental do reflexo estético é a sociedade em seu intercâmbio ou metabolismo com a natureza. Tem-se aqui, sem dúvida, uma realidade de existência tão independente da consciência do indivíduo e da sociedade como no caso do em-si da natureza; mas se trata de uma realidade na qual o homem está necessariamente e sempre presente. Como objeto e como sujeito. O reflexo estético consuma sempre, como afirmamos, uma generalização, mas o ponto mais alto deste é o gênero humano, o típico para seu superior desenvolvimento evolutivo; mas esta tipicidade nunca aparece em forma abstrata. A profunda verdade vital do reflexo estético repousa, não em última instância, em que, mesmo sempre aponta ao destino da espécie humana, nunca separa esta dos indivíduos, que a constituem, nunca pretende fazer dela uma entidade existente com independência aos indivíduos. O reflexo estético mostra sempre à humanidade em forma de indivíduos e destinos individuais. Sua particularidade, da qual mais tarde falaremos com muitos detalhes, se expressa, de um lado, no modo como esses indivíduos possuem sua imediação sensível, que destaca da vida cotidiana precisamente pela intensificação de ambos os momentos, e, de outro lado, no modo como está presente nesses indivíduos, mesmo sem suprimir sua imediação, a tipicidade da espécie humana. Já disso se segue que o reflexo estético não pode ser nunca uma simples reprodução da realidade imediatamente dada. Mas sua elaboração não se limita à imprescindível seleção do essencial dos fenômenos (a qual também é tarefa do reflexo científico da natureza), senão que no ato do próprio reflexo aquela elaboração contêm inseparavelmente o momento de tomada positiva ou negativa de atitude em relação ao objeto esteticamente refletido.

Mas seria profundamente errôneo ver nessa elementar tomada de partido, inevitável, mas somente conscientes aos níveis relativamente tardios, um elemento de subjetivismo na arte ou um acréscimo subjetivista à reprodução objetiva da realidade. Em qualquer reflexo da realidade está contido tal dualismo, que há de superar na prática correta. Somente no estético, o objeto fundamental (a sociedade em seu intercâmbio com a natureza) em sua referência a um sujeito explicitador da autoconsciência, supõe a simultaneidade inseparável da reprodução e toma de posição, de objetividade e tomada de partido. A posição simultânea destes dois objetos constitui a historicidade ineliminável de toda obra de arte. Ela não se limita em fixar simplesmente um fato em si, como a ciência, mas que eterniza um momento da evolução histórica do gênero humano. A preservação da individualidade na tipicidade, da tomada de partido no fato objetivo, etc., representa os momentos dessa historicidade. A verdade artística é, pois, como verdade, histórica; sua verdadeira gênese converge com sua verdadeira vigência, porque, est não é mais do que o descobrimento e manifestação, a ascensão à vivência de um momento da evolução humana que formal e materialmente merece ser assim fixado.

Nas seguintes considerações haverá que se mostrar concretamente que esta íntima intricação de subjetividade e objetividade, dinamicamente da essência antropomorfizadora, o objeto e o sujeito do reflexo estético, não destrói a objetividade das obras de arte, apenas, pelo contrário, põe precisamente o fundamento de sua específica peculiaridade. Também haverá que se notar a gênese do estético a partir de fontes diversas e imediatamente heterogêneas não dá lugar a uma decomposição de sua principal unidade, somente a sua paulatina constituição como unidade concreta.

Também aqui, naturalmente , é preciso entender dialeticamente a unidade. Hegel chamou de “círculos sobre círculos” à unidade das ciências; “pois cada membro, enquanto animado pelo método. É a reflexão-em-si, que, ao voltar sobre o princípio, é ao mesmo tempo começo de um novo membro. Fragmentos dessa cadeia são as ciências particulares, cada uma das quais tem um antes e um depois, ou dito mais precisamente, tem somente um antes, e mostra em sua conclusão o depois”(35). Esta estrutura de círculos sobre círculos é ainda mais evidente no terreno do estético. Em consequência de seu objeto, que já de antemão, que já antes de se converter em objeto de arte, a presenta uma elaboração pela atividade do gênero humano, e em consequência de seu sujeito, cuja função não se limita a refletir com a mais fiel aproximação possível e como para-nós consciente o em-si independente da consciência, somente que imprime a cada elemento do objeto (para não falar já de sua totalidade) uma referencialidade a si mesmo e impõe no todo como nas partes sua tomada de posição, e até, em última instância, cada obra de arte exige uma existência relativamente independente à qual não se pode aplicar o “antes” e o “depois” hegeliano senão com mediações muito complicadas e transposições. (Mais adiante falaremos frequente e detalhadamente dos problemas que aqui resultam).

Assim pois, enquanto a diferença do reflexo científico da realidade em diversas ciências está essencialmente determinado pelo objeto, na origem das diversas artes e dos distintos gêneros desempenha um papel decisivo também o momento subjetivo. Não, naturalmente, o arbítrio simplesmente particular de cada sujeito. A arte é em todas suas fases um fenômeno social. Seu objeto é o fundamento da existência social dos homens: a sociedade em seu intercâmbio com a natureza, mediado naturalmente, pelas relações de produção, das relações dos homens entre si, mediadas por elas. Tal objeto social geral não pode ser adequadamente refletido por uma subjetividade aferrada à simples particularidade; para conseguir um nível de aproximada adequação o sujeito estético tem de desenvolver em si os momentos de uma generalização em escala da humanidade: os momentos do particularmente humano. Mas, no terreno do estético, não se pode tratar do conceito abstrato de espécie, mas de homens individuais concretos, objetos sensíveis, em cujos caráter e destino estejam contidas concreta e sensivelmente, individual e imanentemente, as qualidade de cada caso e o nível evolutivo alcançado. Nisto se origina o problema do típico como um dos problemas centrais da estética que mais à frente nos ocuparão frequente e intensamente. A diferença do estético nas diversas artes e gêneros no estético, só podem se desenvolver apenas a partir da dialética dessa relação sujeito-objeto: uma arte (ou um gênero) não pode desenvolver-se nem manter-se como tal apenas quando um determinado modo de comportamento do gênero humano em relação à sociedade, e, consequentemente, em relação ao intercâmbio com a natureza, possui ou consegue um caráter duradouro e essencialmente típico.

Como se depreende claramente do visto até agora, este problema é primariamente uma questão de conteúdo, de conteúdo estético. Mas como – segundo segue também dessas considerações – a forma estética não é uma generalidade tal que possa e tenha que abranger indiferentemente uma multiplicidade de conteúdos como pode e tem de fazê-lo a forma da ciência – na qual a forma particular ligada intimamente a um conteúdo particular é precisamente a imediação que é necessária superar -, senão que chega precisamente a ser estética pelo fato de aparecer sempre como a forma específica de um determinado conteúdo, a particularidade das diferentes artes e dos distintos gêneros têm de ser tratada também como uma questão de forma. A tarefa será a este respeito, o descobrir o modo como, partindo do reflexo estético de relações sujeito-objeto essencialmente, análogas, no sentido antes afirmado, nascem formas que, como tais e com toda sua variedade histórica e individual, mostrem certa constância precisamente como formas essenciais. Por isso este problema é ao mesmo tempo problema estético de princípio e problema insuperável histórico. Não somente porque, em consequência de nossa determinação da forma, toda autêntica obra de arte volta a criar de novo, como pela primeira vez, a forma geral; não somente porque as grandes inflexões ou reorientações da evolução social produzem tipos qualitativamente novos inclusive no âmbito do mesmo gênero (drama grego, francês, inglês, espanhol, etc.); não somente porque a evolução histórico-social transforma radicalmente os gêneros particulares (o romance como epopeia burguesa); não somente por tudo isso, que, tomado sem mais em si, daria lugar a um radical relativismo histórico; senão também porque os problemas da transformação histórica ficariam por compreender, em sua ação sobre a arte, se não pudessem conceituar-se e deduzir-se da essência do reflexo estético, do princípio básico do estético, as formas permanentes. A solução correta deste problema - que costuma apresentar-se nas estéticas sob o rótulo de problema de sistematização das artes – não pode se obter satisfatoriamente apenas sobre a base conjunta do esclarecimento histórico-materialista das leis de suas transformações históricas em sua própria especificação.

Estas observações gerais e, pelo momento, bastante abstratas, mostram que o problema de um “sistema das artes” vai se apresentar sob nova luz. Não se pode tratar nem de uma acumulação empirista das artes existentes; ou melhor terá de ser fruto de uma consideração histórico-sistemática. Esta consideração renuncia a toda ordenação “simétrica” das artes e dos gêneros, assim como do aparecimento histórico de outros novos – mas também aqui sem se limitar simplesmente ,em nenhum dos casos, ao histórico-social, sem renunciar à derivação teórica. Nossas considerações mostram já que não se trata de uma simples síntese posterior de dois pontos de vista em si mesmos separados, senão que, melhor, toda análise dialético-materialista tropeça com problemas próprios do materialismo histórico, e inversamente. Em cada consideração particular ocorre simplesmente que predomina um ou outro ponto de vista.

Não pudemos aqui senão indicar sumariamente o lugar metodológico e o método de solução destes problemas. A derivação das formas a partir dos momentos recorrentes, permanentes e relativamente estáveis do reflexo foi formulado pela primeira vez por Lenine. Recolhendo uma profunda observação hegeliana que corresponde às formas lógicas de inferência de uma realidade objetiva, escreve Lenine a respeito: “Para Hegel, a ação, a prática é uma “inferência” lógica, uma figura da lógica. E é verdade. Não, naturalmente, no sentido de que a figura da lógica tenha seu ser-outro na prática do homem (= idealismo absoluto) senão no sentido inverso de que a prática humana, pelo fato de repetir-se milhares de milhões de vezes, se imprime na consciência humana como figuras lógicas. Estas figuras tem, precisamente (e somente) graças a essa repetição incontável, a firmeza de uma crença e caráter axiomático“(36). Tal é o modelo metodológico de toda teoria das artes e dos gêneros em estética. Como é natural, e de acordo com nossas refinamentos sobre a essência da forma estética, não é possível tomar sem mais essa fórmula de Lenine e “traduzí-la” à estética. A grandeza das variações possíveis e necessárias dentro de uma forma significam algo qualitativamente novo comparado com a lógica. A ideia-força de Lenine – que as formas científicas (lógicas) são reflexos do permanente e recorrente dos fenômenos – tem que concretizar-se a fundo para sua aplicação à estética, de acordo com a particularidade desse modo de reflexo da realidade(37).


Notas de rodapé:

(1) Trecho de A particularidade do estético. 3 - Questões prévias e de princípio relativas à separação da arte e a vida cotidiana. (retornar ao texto)

(2) Boas, op. cit., p. 21. (retornar ao texto)

(3) Engels, F, Dialektik der Natur [A Dialética da Natureza], Moscou-Leningrado, 1935, p. 694 e ss. (retornar ao texto)

(4) Marx, K., Grundiss der politischen Ökonomie [Esboço da economia política], Moscou 1939, I, p. 25 e ss. (retornar ao texto)

(5) GEHLEN, Der Mensch [O Homem], cit., p. 43. (retornar ao texto)

(6) Ibid., p. 67 ss. (retornar ao texto)

(7) Engels, Dialética da Natureza, cit., p. 486. (retornar ao texto)

(8) GEHLEN, Urmenschbund Spätkultur [Homem primitivo e cultura tardia], cit. pp. 274 e ss. 1955, p. 59. (retornar ao texto)

(9) Ibid. (retornar ao texto)

(10) Relacionados a isto se encontram também, naturalmente, na Antiguidade. Em especial, Tucídides se antecipou grandemente ao posterior desenvolvimento com sua história da guerra do Peloponeso. (retornar ao texto)

(11) MEHRING, Gesammelte Schriften unsd Aufsätze [ Escritos e artigos], Berlim, 1929, Band [vol.] II, p. 260. (retornar ao texto)

(12) HAMANN, Sämtliche Werke [Obras Completas], Viena Volume II,1950, p. 197. (retornar ao texto)

(13) Não se pode provar filologicamente – que eu saiba – uma relação entre Vico e Hamann. Mas estímulos viquianos podem ter-lhe chegado muito facilmente: por exemplo, através da investigação histórica inglesa sobre a Antiguidade. DESCARTES, Les principes de la philosophie [ Os princípios da filosofia], Bibliothèque de la Pleiade, p. 434. (retornar ao texto)

(14) Vico, Die neue Wissenchaft [A ciência nova] trad. alemã, cit., p. 151-152. (retornar ao texto)

(15) Ibid., p.148. (retornar ao texto)

(16) Ibidem, p. 151. (retornar ao texto)

(17) Hamann, loc. cit., p. 65 (retornar ao texto)

(18) Cfr. meu livro Der junge Hegel und die Probleme der kapitalistichen Gesellshaft [O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista]. (retornar ao texto)

(19) Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos. (retornar ao texto)

(20) Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos (retornar ao texto)

(21) Marx, O Capital Volume I, cit. p. 336. (retornar ao texto)

(22) Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos (retornar ao texto)

(23) K. FIEDLER, Schiftren über Kunst [Escritos sobre a arte] Munique,1913, Volume I, p. 185. (retornar ao texto)

(24) Ibid., p. 201. (retornar ao texto)

(25) Ibid. (retornar ao texto)

(26) Ibid., p. 205. (retornar ao texto)

(27) Ibid., p. 255 e ss. (retornar ao texto)

(28) Ibid., p. 307, 361 e ss, etc. (retornar ao texto)

(29) Engels, Trabalhos preparatórios para o Anti-Dühring, loc. cit., p. 394. (retornar ao texto)

(30) Engels, Anti-Düring, cit. p. 48. (retornar ao texto)

(31) Com isto se aprecia, coisa a que nos referimos, que a oposição clara e própria entre a arte e o trabalho não se expressa senão na obra de arte. O processo de criação artística tem muitos ponto em comum com o trabalho e com o reflexo científico da realidade. Este último é um momento insuprimível do processo. Até a segunda parte, a análise dos modos estéticos de comportamento, não se poderiam estudar concretamente os problemas que assim surgem. (nota do autor) (retornar ao texto)

(32) Eckermann, Gespräche mit Goethe [Conversando com Goethe], 10 de abril de 1829. (retornar ao texto)

(33) Goethe, Maximen und Reflexionen [Máximas e Reflexões], loc. cit., volume IV, p.236 e ss. (retornar ao texto)

(34) Ibid., p. 236 e ss. (retornar ao texto)

(35) Hegel, Wissenchat der Logik [A ciência da Lógica], cit., Band [Volume] V, p. 341. (retornar ao texto)

(36) Lenine, Cadernos Filosóficos, ed. alemã, p. 139. (retornar ao texto)

(37) Veja-se sobre isto o capítulo II de meu livro O romance Histórico, Berlim, 1955, p.88 e ss. (retornar ao texto)

Inclusão: 10/02/2021