Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
6 – O caminho para o mundanismo
6.2 – Os pressupostos do mundanismo da obra de arte


Se meditarmos sobre a diferença entre esta arte e o que consideramos próprio de uma infância normal poderemos nos dar conta de outra determinação da gênese do estético que desempenha também um importante papel em seu desenvolvimento posterior: a superação das barreiras naturais, o domínio exercido pelas determinações procedentes da união social dos homens, determinações cuja existência está arraigada nas relações entre os homens e o intercâmbio deles – socialmente condicionado e cada vez mais rico – com a natureza. O inimitável de Homero é – entre outras coisas, mas não em último lugar – que esse recuo das barreiras naturais começou já, mas ao mesmo tempo a crescente vida social dos homens se revela já como uma nova “natureza” criada pelo homem e para o homem. Na contraditória beleza das pinturas rupestres impera ainda essa obscuridade; a barreira da natureza não aparece ainda como tal, apenas como perfil inato da própria vida humana. Como é natural, objetivamente o homem superou com seu primeiro ato de trabalho e com seu primeiro conceito e sua primeira palavra articulada a total vinculação com a natureza. Mas lhe é preciso percorrer um enorme caminho de grande comprimento para converter esse Em-si da saída da natureza para um consciente Para-si. Precisamente a magia como “concepção do mundo”, que acompanha post festum [ndt – posteriormente] os primeiros passos nesse recuo das barreiras naturais na consciência dos homens, iluminando e obscurecendo ao mesmo tempo, impossibilita um Para-si explícito tanto no pensamento quanto na criação de figuras. Na normalidade dos traços infantis de Homero se baseia em que já não haja influência desse tipo que possa impedir a reflexão do homem sobre si mesmo, enquanto que para a maioria dos demais produtos dessa etapa continuam sendo eficazes essas forças; por isso vale a palavra de Marx: “Há crianças mal educadas e crianças maduras. Muitos povos antigos pertencem a esta categoria”(1). Como é natural, este recuo da barreira natural é sempre relativo e essa relatividade contém uma contradição insuprimível e insuperável, e, portanto, extremamente fecunda. Pois o homem não sair totalmente da natureza, nem objetiva nem subjetivamente. Objetivamente, porque o campo decisivo de sua atividade social é sempre necessariamente o intercâmbio da sociedade com a natureza. Por muito que submeta a natureza a suas finalidades e por mais que a domine, este domínio põe a insuperabilidade da natureza como objeto da prática do homem. Subjetivamente, porque por mais socializado que esteja o homem, biologicamente tem de existir sempre como ser da natureza. Como homem é sem dúvida produto de seu próprio trabalho, mas o tornar-se homem apenas pode transformar seus dados biológico-animais energicamente, e produzir de muitos pontos de vista algo que não existia na natureza antes desse processo de autoprodução; mas continua presente o vínculo indissolúvel com superiores capacidades, das mais distanciadas da natureza, à sua base biológica. Com isso se relativiza ainda mais a contradição básica e se reproduz aos níveis cada vez mais superiores. Pois, por um lado, o se antropológico do homem não experimenta desde a humanização alterações essenciais, qualitativas, e, por outro, no curso da evolução se fixam qualidades e formas de representação produzidas, de tal modo que se enfrentam “naturalmente” enquanto formando uma “segunda natureza” a toda novidade nascente. Por isso na evolução real o recuo de barreira natural é frequentemente indistinguível de uma luta contra a “segunda natureza” nascida do hábito social.

A dialética deste laborioso e combativo caminho para cima é de especial importância para o reflexo estético. O reflexo científico da realidade, nascido do trabalho e frequentemente capaz de influenciar diretamente neste, tem de abrir, de acordo com sua essência desantropomorfizadora, uma luta frontal contra as limitações biológico-antropológicas do homem. A evolução do princípio estético tem de assumir nesse complexo de contradições uma posição muito mais complicada. Pois tanto o aferrar-se às forças que se reúnem na “segunda natureza” e se constituem nela enquanto a aliança com o novo, que tenta destruir, ou transformar pelo menos, essa segunda natureza, podem ser, segundo a situação e de comum inclusive segundo a personalidade do artista, favoráveis ou desfavoráveis para a evolução da arte. Considerado segundo uma ampla perspectiva histórica, o princípio progressista, que toma posição contra uma “segunda natureza” cristalizada terá pelo comum razão, mas nenhuma incondicionalmente. Pois o recuo da barreira natural é uma lei geral da evolução da humanidade, e por mais que siga irregularmente a arte essa evolução ou lhe preste serviços de indicador, em última instância tem de produzir-se uma convergência.

Pois – para voltar a nosso problema – o conteúdo do mundo mimeticamente formado cresce ininterruptamente no curso desse movimento. Somente a expressão verbal é negativa quando se fala do recuo das barreiras naturais; na verdade se trata sempre de uma intensificação e de um enriquecimento do intercambio da sociedade com a natureza, do que se conclui necessariamente que o sujeito desse processo, os homens que constituem a sociedade, tem de desenvolver mais e mais complicadas relações entre eles, a qual aumentará, complicará e refinará também suas determinações internas. A pergunta de quando e em quais circunstâncias essa evolução exerce uma influência promotora ou confusionista, inibidora, etc., na cultura em geral e nas artes em particular é um problema que tem de resolver o materialismo histórico tanto em casos singulares concretos quanto em sua formulação universalizada. De qualquer forma, com isso surgem na vida cotidiana dos homens novos problemas, novos conteúdos com os quais tem de enfrentar a mimese estética na formação artística. Assim – contemplando de novo os fatos segundo uma ampla perspectiva histórica – a configuração definitiva do mundo próprio das obras de arte, a riqueza e o abrangente caráter de sua mundanidade, será uma resultado dessa evolução. A força progressista da evolução da arte é precisamente – em última instância – essa sua relação com a vida cotidiana; a arte tem de resolver no sentido artístico os novos problemas que posiciona a vida cotidiana.

Também é uma pergunta concreta histórica a de se esses novos problemas se posicionam diretamente pelo lado do conteúdo ou se sob a influência de tal missão social precedente da vida cotidiana aparecem imediata e aparentemente tentativas de renovação das formas. Essa pergunta não nos preocupa aqui. Em princípio pode se dizer simplesmente de que os posicionamentos estéticos mais formais em seu modo imediato de manifestação pode sempre se reconduzir, em última instância, a uma nova constelação objetiva da realidade social, aos reflexos vivenciais desta na vida cotidiana; inclusive quando os artistas desempenhas nisso um extremo papel de pioneiros, ou seja, inclusive quando transpõem a seguir em alterações das formas tendências que ainda atuam somente germinalmente, como conatos. Para esclarecer algo mais no sentido filosófico da gênese da mundanidade das obras de arte miméticas, aludiremos a um problema no qual se trata aparentemente de uma pergunta formal pura: a origem da cor local na pintura. Cronologicamente nos afastaremos com isso muito das pinturas rupestres recém-estudadas; mas como após o fundamento da excepcional cultura que as produziu seguiu um longo período de domínio da ornamentística, que é também sem mundo, podemos continuar tratando, como fizemos até agora, como os problemas da gênese filosófica no terreno dos princípios e sem preocupações cronológicas, tanto mais quando se trata de transformações que pelo que faz a sua última estrutura e mesmo sempre de modos diversos, se repetem constantemente no curso da história.

Wickhoff estudou o problema da cor local na arte greco-romana. Baseando-se em amplas análises históricas, chegou ao resultado de que o tratamento da cor continuava sendo puramente decorativo inclusive em um obra relativamente tão tardia como o sarcófago de Alexandre, ou seja, que o tratamento da cor continuava se baseando nas leis da seleção fisiológica das cores sobre a base da complementaridade (amarelo claro e violeta, vermelho e verde, etc.). Escreve Wickhoff: “No espectador, que vivia nas mesmas condições fisiológicas que o pintor, a observação dessa lei, igual, por exemplo, que a das proporções aritméticas simples na arquitetura, produzia de modo inconsciente, uma gozosa impressão tranquilizadora”(2). Muito paulatinamente aparecem alguns detalhes (faces, corpos, armas, etecetera) cores locais corretas, primeiro sem chegar a por o essencial da composição cromática sobre novas bases. Wickhoff identifica a base dessa transformação revolucionária da história da pintura na presença da necessidade de representar o objeto indissoluvelmente unido ao espaço que o rodeia: “Enquanto se consumou a elaboração do fundo, como paisagem ou como interior, se tornou impossível à arbitrariedade da distribuição das cores ou, pelo menos, ficou limitada de um novo modo. A paisagem, com o céu acima, o mar e os rios, os edifícios por dentro e por for, seus revestimentos, as ferramentas, etc., não ocorriam compreensíveis em sua ligação apenas se representavam imitando suas cores naturais, e isto tinha que levar rapidamente a uma representação plenamente natural das figuras que se movimentavam naquele ambiente”(3).

Como se vê essa questão se enlaça, mesmo de um modo não direto historicamente, se por sua essência estética, com os problemas que estudamos antes a propósito das pinturas rupestres do paleolítico: com a mundanidade da pintura. Pois é claro sem mais que a mimese pictórica da realidade visível não pode exigir o caráter de um “mundo” apenas se os objetos representados se encontram em uma interação real, derivada de sua própria objetividade, entre ela e seu meio ambiente. O espaço pictoricamente conformado como unidade concreta sensível-intelectual de tais complexos relacionais é o único fator capaz de evocar artisticamente a existência de um mundo. Se não existe essa unidade contraditória e concreta, a imagem carece daquela profundidade que lançamos também a faltar na ornamentística, tem que ficar no decorativo-ornamental, como as imagens dos bosquímanos e muitas pinturas rupestres do sul da Espanha, diferente do que ocorre com representações de animais que analisamos. Provavelmente não é por acaso que as primeiras se inclinem na colorização muito decididamente frente ao condicionamento puramente fisiológico, mesmo alguns objetos – considerados abstratamente – estejam coloridos de acordo com modelos reais, enquanto que as últimas, apesar de sua limitada escala cromática, se aproximam mais à coloração local. E tampouco será certamente casual que no primeiro caso, inclusive quando as figuras estejam formadas apaixonadamente e dramaticamente relacionadas entre ela, não surgem mais do que superfícies encaixadas, enquanto que no segundo se apresenta uma plástica movimentação ante a qual se tem a impressão de que o espaço no qual vive o animal foi eliminado a posteriori, diferente do primeiro caso, no qual um espaço, ainda quando contenha homens e animais referidos uns aos outros, não existe nem pode existir.

É evidente que todos os homens, apesar de seu desenvolvimento muito diverso, dominaram praticamente o espaço que lhes cerca de modo imediato e, portanto, lhe conheceram também. Por conseguinte, quando aparece a necessidade de sua mimese figurativa o que tem lugar não é de modo algum uma “descoberta” do espaço. A pintura “sem espaço” descrita por Wickhoff, com sua composição cromática fisiológico-decorativa, alcança inclusive a épocas nas quais a cultura greco-romana levou já o domínio geométrico do espaço muito além dos primeiro inícios empírico-práticos, e até conseguiu lhe dar uma formulação teórica. Com isto se desenvolve uma nova necessidade ditada pela vida, e não somente um novo modo de observar a natureza – menos ainda um simples desenvolvimento da técnica. A propósito das uva amarelas sobre o fundo violeta de que fala Wickhoff nem os criadores nem os receptores acreditaram que se tratasse da reprodução de uma correlação de cores da realidade. Precisamente a simultaneidade do novo posicionamento figurativo – cor local dos objetos e configuração de um espaço concreto ocupado por objetos – mostra que a necessidade nascida da vida cotidiana se orientava mais ao conjunto dessas duas determinações que uma nova qualidade no reflexo artístico da realidade. A observação mais exata das cores locais, fruto dessa necessidade, o esforço para dominar tecnicamente a configuração espacial (perspectiva, etc.), são outras consequências a mais, e não propriamente pontos de partida do novo.

Leonardo da Vinci resumiu acertadamente o fundamento estético-filosófico das novas necessidades que provocam as revolucionárias transformações da forma e o conteúdo da arte: “Enquanto a poesia roça a filosofia moral, a pintura se encontra em cheio na filosofia da natureza; àquela descreve as operações do espírito observador, esta atua no espírito dos movimentos”(4). Basta dar ao conceito de movimento, à maneira de Leonardo, para que possa conter todas as interações do homem com seu meio ambiente visualmente perceptível (entendendo também aquelas interações no sentido de princípio e mais amplo). Mas também é preciso ter clareza que aquelas necessidades visuais, aparte de nascer espontaneamente, podem ser conscientes até certo ponto do ponto de vista da atividade e a receptividade artísticas, mesmo nos participantes estéticos – ativos e passivos – não sejam capazes de formular conceitualmente o que vivenciam e fazem. Por último, também deve estar claro que a falta de clareza conceitual que possa apresentar-se nessa situação não anula em absoluto a profunda ligação, corretamente vista por Leonardo, entre a arte figurativa e a filosofia da natureza. Como é natural, a propósito deste último ponto é preciso levar em conta também o paralelismo e a divergência. A inter-relação entre a filosofia da natureza e as artes figurativa era em época de Leonardo mais intensa e também mais consciente do que na Antiguidade. Mas é indubitável que os artistas, já antes de Leonardo, utilizaram para sua prática artística resultados e métodos da ciência natural que naquela época estavam muito mais relacionados com a filosofia natural do que em tempos posteriores. Uma relação análoga, mesmo mais frouxa e menos consciente, existe também na Antiguidade. Mas o problema da ligação objetiva não se esgota nem histórica nem esteticamente como a comprovação de tais relações conscientes ou semiconscientes. Sempre partimos de que a vida cotidiana posiciona a ciência e à arte determinados problemas, os move a resolvê-los – mesmo que isso não chegue em absoluto à consciência ou se expresse em formas errôneas –, enquanto, por outro lado, todos os resultados desses dois âmbitos objetivadores enriquecem através das mais diversas mediações, a vida cotidiana, seu pensamento, sua sensibilidade, e profundidade e ampliam tudo isso, com o qual a ciência e a arte tornam a se ver obrigadas a conceber de novo seu campo de ação, etc., etecetera. Nosso problema figurativo do espaço pode compreender desde a atalaia de umas condições evolutivas ricamente complicadas. Sem dúvida a prática cotidiana, nas primeiras etapas de um pensamento científico (filosófico-natural) que se liberta de preconceitos mágicos e (a seguir) religiosos, recebe impulsos decisivos deste pensamento; aludimos já várias vezes à importância da geometria neste contexto. A concepção do espaço, baseada primeiro na intuição e representação, se ergue assim ao nível da pura conceitualidade, com o qual se abrem para a vida do homem perspectivas até então inimagináveis: que se pense no caminho que leva da busca de conserto em cavernas naturais, etc., até a construção de casas seguras e permanentes. Os homens ao aprender desse modo a dominar intelectual e praticamente o espaço que o cerca surge neles um complexo vivencial completamente novo, no qual no período da vida selvagem tinha por necessidade que ser desconhecido: a vivência do domínio absoluto sobre o meio ambiente, sobre o mundo circundante, a vivência do mundo como pátria do homem. O fundamento material dessa vivência se desenvolve no curso de muitos milênios; com o avanço a consciência de certa segurança de vida, da segurança como fator objetivo e subjetivo da existência “normal”, pois é impossível superar comoções, catástrofes, etecetera da imagem objetiva da vida humana normal, por mais limitado que seja seu âmbito a princípio, significa uma revolução da sensibilidade humana, sensibilidade que hoje já se tornou para nós coisa tão óbvia que mal conseguimos imaginarmos a vivência de seu real e rigoroso contrário”(5).

Mas isso não significa que não sejam historicamente registráveis com maior ou menor exatidão alguns pontos nodais dessa linha. Consideramos o salto aqui descrito da história da pintura, a figuração do espaço no quadro, como uma importante etapa dessa evolução. Uma vez que os êxitos práticos, econômicos, sociais e técnicos introduziram um determinado grau de segurança na vida normal dos homens, uma vez que o pensamento científico levou às alturas, teórica e praticamente, as relações espaciais, pode surgir o sentimento de que o espaço circundante ao homem não era nada que por princípio lhe fosse alheio ou até hostil, senão ao contrário seu mundo próprio, algo que lhe corresponde, algo que constitui – em certo sentido e até certo ponto – uma ampliação de sua própria personalidade. Com a ornamentação das ferramentas, o homem voltou a conquistar neste sentido, converteu no elemento de uma ampliação de seu eu, objetos que do ponto de vista técnico-prático já constituíam de antes um prolongamento de seu raio de ação subjetivo. A difusão geral da ornamentação das ferramentas entre os povos primitivos mostra que o próprio fato é um fato elementar da vida. Mas mesmo apreciando como se merece esse importante passo para a constituição pelo homem, em si e ao seu redor, de um mundo que lhe seja adequado, não pode tampouco se esquecer que, enquanto não supere este nível, nem o maior acúmulo de tais objetos é capaz de constituir em sua totalidade um mundo humano, do mesmo que, todavia o mais belo ornamento do corpo pode fazer deste uma personalidade verdadeira. É preciso para isso um grau superior de interpenetração do mundo circundante imediato do homem pelos princípios vitais de sua existência, e isto é exatamente o que ocorre na evolução à que estamos aludindo.

É certo que com isso se produz uma rutura com o imediato, certo distanciamento do homem em relação de si próprio, de sua própria atividade e de sua própria existência. Neste trabalho surge a primeira e autêntica relação sujeito-objeto, e com ela um sujeito no autêntico sentido da palavra. Já Hegel indicou com razão que com isso termina a imediata ausência de distância entre o simples desejo e sua simples satisfação: “Na ferramenta estabelece o sujeito um ponto médio entre si e o objeto, e este ponto médio é a racionalidade verdadeira do trabalho”(6). É claro desde já que a ornamentação das ferramentas é um passo a mais nesse distanciamento, exatamente – e isto é o essencial para nós – em direção diferente da estudada antes brevemente. Já pelo seu simples estar posto dá o quadro ou a imagem a essa nova distância uma intensificação nova, qualitativamente pronunciada: surge uma configuração criada pelo homem e que serve apenas a um fim: esclarecer ao homem sobre si próprio mediante o reflexo de seu mundo interno e seu meio ambiente, e lhe levantar assim sobre si enquanto dado na vida cotidiana, ajudar-lhe a obter consciência de si. O homem chega verdadeiramente a ser ele mesmo ao criar seu mundo se o apropriando no seio do mundo por ele refletido.

Este problema figurativo – o descobrimento da cor local de todas as coisas para representar mimeticamente seu conjunto com um espaço concreto –, que à primeira vista pode parecer puramente técnico, se converte em um modelo maduro desse sentimento vital no estético, ou seja, da criação de um mundo próprio do homem. A palavra “próprio” tem neste contexto três significados, e os três são de igual importância para o conhecimento do fenômeno estudado. Trata-se, em primeiro lugar, de um mundo do homem criado para si, para o humano-progressista que há nele; em segundo lugar, do mundo, da realidade objetiva, mas de tal modo que a secção do mesmo, inevitavelmente reduzida e recortada, que constitui imediatamente o conteúdo da imagem, cresce até se converter em uma totalidade intensiva das determinações decisivas de cada caso, levantando assim uma reunião em si talvez acidental de poucos objetos à altura de um mundo necessário em si; em terceiro lugar, se trata de um mundo próprio no sentido da arte, ou seja, em nosso caos, de um mundo visualmente próprio, no qual os conteúdos e as determinações da realidade objetiva se evocam mimeticamente, se despertam para a existência estética e podem manifestar-se somente na medida em que transpõem em visualidade pura. A obra de arte e sua totalidade intensiva de determinações pressupõem tal meio homogêneo para seu modo de manifestação sensível-intelectual. Por isso a pluralidade das artes não é nenhum resultado da diferença de um princípio estético unitário (ou da ideia estética, como diriam os grandes filósofos idealistas); é antes o fato originário do estético, e o princípio estético não possa se conquistar – intelectualmente, não ao nível do imediatamente estético – mas que levando a consciência filosoficamente o que tem em comum aqueles meios homogêneos. Nem a correlação sistemática das artes pode se deduzir sem demora do dito princípio, senão que nasce do sistema das necessidades da vida humana que possibilitam e promovem o posterior desenvolvimento até o estético.

Mais tarde estudaremos os problemas miméticos que suscita esse mundo próprio – e assim entendido – das obras de arte. Tivemos de antecipar o ponto de partida porque sem ele teria sido incompreensível a identificação da gênese da arte no nível superior de sua objetivação, de seu ser-posta sobre-si-mesma. Voltemos agora aos problemas filosóficos da gênese. Ao considerar a passagem de uma coloração essencialmente fisiológica até as cores locais fiéis ao objeto, a reflexão filosófica vê nessa transição, sobretudo o anúncio de que a imediação está a ponto de se terminar e, portanto – segundo a acertada concepção de Hegel –, um caminho que leva do abstrato ao concreto, “pois o imediato e o abstrato são idênticos”(7). Nosso estudo da ornamentística confirmou a verdade dessa sentença hegeliana. Para tratar corretamente da dialética é preciso considerar, de todos os modos, também neste contexto, a relatividade dessas determinações. Pois a imediação é sem dúvida abstrata comparada com a concretização que significa sua superação; o desenvolvimento da mundanidade das obras de arte – visto na perspectiva histórico-universal e passando por cima da irregularidade do processo, suas involuções, etc. – empreende sem dúvida alguma esse caminho. Nele se exprime uma lei geral da evolução da arte. Mas com isso não se nega que certas realizações da imediação ocupem um lugar privilegiado precisamente pelo que faz a sua identidade e sua abstração. Assim ocorre, sobretudo com a ornamentistica na qual a total identificação entre a imediação e abstração se converte em princípio constitutivo de sua peculiaridade, de seu lugar no sistema das artes. Mas inclusive quando não se produz tal fixação definitiva, como no caso, agora tratado, da coloração fisiologicamente condicionada, os começos, ocupam sempre um lugar especial: por uma parte, a superação de seu domínio absoluto supõe tal passagem qualitativa na evolução que a história da pintura propriamente mimética começa, estritamente falando, com ela; por outo lado, como mais tarde veremos detalhadamente, essa superação contem um momento decisivo de conservação ou preservação, de elevação a um nível superior na nova ligação. Tudo isso complica sem dúvida a identificação hegeliana de imediação e abstração, mas não diminui em nada sua verdade geral. Precisamente na pintura dos tempos mais recentes podemos ver que toda tentativa resoluta de voltar à imediação produz uma abstração, uma perda de mundo, e que, ao contrário, a tendência à abstração pura têm como consequência necessária uma imediação pré-objetiva e sem mundanidade.

Por isso nos desviaríamos a seguir da dialética aqui fixada se víssemos em sua universalidade um único ato e definitivo. Todo o imediato está objetivamente mediado, e as mais complicadas mediações acabam por produzir constantemente novas imediações. Também é esse o caso aqui; pois a imediação do uso das composições cromáticas fisiológicas para fins artístico-decorativos se deriva, naturalmente, das meras necessidades fisiológicas da vida através de uma longa e complicada série de mediações. Essa composição não é em absoluto no terreno da cor um verdadeiro começo, do mesmo modo que a percepção primitiva de superfícies e silhuetas não constitui ainda uma ornamentística. Isto é – se é que há algum – o verdadeiro fenômeno paralelo daquele da coloração fisiológica na história da arte. Em lugar antes citado, Wickhoff fala de “as simples proporções aritméticas da arquitetura” como analogia esclarecedora do efeito cromático em apreço; cremo que ainda seria mais acertada a comparação com a ornamentística tanto mais quanto que em ambos os modos de exposição artística costuma se apresentar juntos, reforçando-se mutuamente, por exemplo, nos tapetes orientais. Por outro lado, vale a pena aludir brevemente ao fato de que na posterior evolução da pintura a desempenha não poucas vezes o papel de uma imediação que é necessária superar, como na gênese do claro-escuro ou ainda mais na pintura ao ar livre.

Essa relatividade insuperável da imediação e da mediação é uma lei geral da dialética objetiva igual que a da subjetiva. Na estética, sem que por isso perca validade essa lei, se acrescenta ainda o fato particular de que toda obra de arte representa por princípio uma imediação, ou seja, que a criação artística destrói velhas imediações da vida se desprende delas, precisamente para produzir na obra uma nova imediação assimilando as novas complicações de cores locais. Como complemento da dialética concreta que aqui aparece observaremos que seria totalmente errado inferir do condicionamento fisiológico do colorido superada pela cor local da imediação absoluta da primeira, ou seja, crer que esteja diretamente derivável da natureza fisiológica do homem como ser da natureza. Kant indicou que as cores puras do espectro não contêm somente “sentimento sensível”, “senão que também permitem reflexão sobre a forma dessas modificações”(8), e por isso podem ser imediatamente, em seu simples ser-assim, expressão dessa reflexão. É suficiente esta alusão à tese de Kant, relevante para nosso problema. Como o próprio Kant vê nessa idealidade imediata das cores um problema da beleza natural, teremos que estudar sua opinião detalhadamente quando falarmos deste complexo de problemas. Indiquemos já aqui que Kant se propõe explicar o vínculo emocional de conteúdos morais com cores puras por uma influência da natureza no homem. Do ponto de vista de esclarecimento estético do problema de como impressões puramente fisiológicas podem converter-se em portadoras de conteúdos humanos, morais, sociais, e, portanto, em veículos de uma atividade e uma recepção miméticas, a tese de Kant, não diz muito. Pois se ela contivesse o essencial, a significação moral seria tão fisiologicamente imediata como a ação da cor pura, a qual está em contradição com todas as experiências antropológicas sobre a origem dos sentimentos morais e dos sentimentos estéticos.

Mais concretamente se situou Goethe diante deste problema em sua Teoria da cores, na qual dedica ao problema uma secção inteira sob o significativo título de “a ação sensível-moral da cor”. As considerações de Goethe superam amplamente as de Kant no sentido de que a unificação, por ambos registrada de conteúdos naturais e sociais não se toma no pensamento de Goethe simplesmente pelo seu lado fisiológico para fazer mudar esse lado diretamente em sua moralidade, apenas que, em seus exemplos ao menos e mesmo que ele não elabore com consciência metodológica, Goethe permite adivinhar uma interação das duas componentes. Assim fala “do zelo dos reis pela cor roxa”(9) ou diz: “A cor preta devia recordar ao nobre veneziano a igualdade republicana”(10), etc. A propósito do uso alegórico da cor, Goethe sublinha que “há nisto mais elemento causal e arbitrário, convencional se pode dizer, porque temos de receber primeiro da tradição no sentido do signo para que possamos saber o quê significa, o quê há, por exemplo, da cor verde que se atribuiu à esperança”(11). Mas se são possíveis tais efeitos “sensíveis-morais” – e etnografia mostra que o são eficazmente e que aparecem muito cedo –, nem por isso tem que ser unívoca à correlação das duas componentes, em si heterogêneas. Sabemos, por exemplo, que a cor da dor é em muitos o preta, mas em outros muitos o branco, e que também muitas outras cores podem desencadear imediatamente o efeito sensível-moral do luto. Certamente em sua Teoria das cores Goethe não se contenta em estudar o efeito das cores simples e de sua complementaridade. Também supera a Kant amplamente pelo fato de que para ele não há nenhuma cor que constitua uma unidade metafísica definida. Em sua opinião, ao contrário, matizes mínimos, e até a natureza do material ao qual se aplica a cor, podem fazer que se mude no oposto o efeito “moral”. Que se pense como exemplo disto sua exposição sobre o amarelo: “Mediante um movimento reduzido e imperceptível, a bela impressão do fogo e do ouro se transforma na sensação de sujeira, e a cor da honra e da alegria em cor da vergonha, do asco e do mal estar”(12). De tudo isso se segue que as cores singulares não atuam de um modo simples e diretamente fisiológico nem no estado da colorido fisiológico, apenas que, em consequência do desenvolvimento social do povo que os utiliza se enchem diversamente de significação. A complementaridade, como modo normal decomposição neste período, está sem dúvida fundada fisiologicamente; mas, é claro que as associações de sua eficácia, fixadas pelo hábito e os costumes sociais, têm que desempenhar um papel nada desprezível.

Mesmo esse começo imediato é em si extremamente mediado, e mesmo sua essência fisiológica está atravessada por muitas determinações sociais, o fato é que a passagem à cor local e à conformação da pintura do espaço constitui um verdadeiro salto. O aspecto de conteúdo, a tarefa social que aqui se impõe à pintura – a criação de um mundo próprio para o homem – já foi objeto de nossas breves considerações. Os problemas formais que se originam se concentram em torno à reprodução mimética de uma totalidade intensiva, a qual posiciona a tarefa que todos os elementos singulares da forma, e ainda mais toda relação entre eles, mesmo preservando plenamente sua simplicidade imediata como partes do todo, se convertem em portadores de diversos e múltiplos efeitos evocadores. Pois não pode surgir um mundo nas obras de arte, mas que se os detalhes e sua vinculação suscitam no contemplador a vivência de uma inesgotabilidade comparável com a dos objetos e suas interações na vida real, e exacerbam e condensam essencialmente frente a esta aquela emoção. Porque na realidade cada objeto prova com sua existência suas relações com os demais, a lei que rege seu movimento, sua existência também, etc.; ou, para melhor dizer: na vida real tudo isso não necessita prova alguma, pois o homem da cotidianidade aprende por sua conta a respeitar o ser de cada ente. O conhecimento ou a vivência da infinitude das determinações dos objetos, de suas relações, etc., é sem dúvida também na vida cotidiana uma componente importante da correta atitude dos homens para com a realidade objetiva. Mas somente com a arte – e somente com ela – essa inesgotabilidade das propriedades, das relações, etc., se converte em princípio constitutivo e, ao mesmo tempo, em critério da existência (no sentido da estética).

Pois somente a evocação dessas estruturas produz a duplicidade do mundo artístico-formado (ou seja, seu caráter de mundo): é um mundo independente de mim e que a mim se opõe como inesgotável, mas, entretanto – junto com essa substantividade – vivo como meu mundo.

Como é natural, também essa infinitude intensiva está em grande medida determinada histórico-socialmente. O conteúdo, a qualidade, a riqueza das determinações aqui concentradas, tudo isso está determinado pela própria vida: ela é a que o propõe ao artista como programa formal de sua tarefa social. Nesta categoria pode se produzir, pois, tanto um enriquecimento quanto um empobrecimento, um aumento ou diminuição da intensidade, tudo isso do ponto de vista histórico. Quando recusamos vivencialmente alguns produtos da arte por primitivos, etc., o ficamos insatisfeitos da vivência produzida, o fundamento de nossa reação é geralmente que esses produtos artísticos, naquele processo histórico se encontrem em um ramo descendente, ou que descuidam exatamente das determinações que cada presente considera decisivas para a existência estética da obra de arte. Visto em perspectiva de uma história universal da arte, a linha evolutiva é, no entanto, ascendente. Por isso – em caso de nosso problema – nada há que questione contra o salto qualitativo, mesmo na criação de mundo próprio na pintura, junto às cores e a formação do espaço, faltem ainda algumas determinações visuais que no curso posterior da história da pintura chegarão a ser transformações revolucionárias naqueles pontos de inflexão. Este salto qualitativo existe sem dúvida alguma em relação à concepção fisiológico-decorativa da cor. Pois simplesmente uma classe e associação (de reflexos condicionados) aquilo que Goethe chama a ação sensível-moral das cores é desenvolvida pelo hábito social; por isso, sobre essa base, a combinação compositiva das cores tinha de recorrer à complementaridade, mais ou menos diretamente fundada no fisiológico. Ao tratar os problemas compositivos da ornamentística mencionamos já a sua relativa simplicidade, a suas relativas cores locais e aparece com isso o problema da pintura de sua estrutura material, de sua dureza ou maciez, de seu peso ou leveza, etc., tem de ceder também na composição a barreira natural, que neste caso é fisiológica. Quantas propriedades mais de um objeto revela o colorido que o conforma, tanto mais complexa tem de ser o vínculo compositivo das cores, tanto mais dilatados os rodeios pelos quais pode realizar-se sua harmonia final na totalidade da imagem, e quanto mais se afasta dessa harmonia deum simples acorde imediato sobre a base da complementaridade. Também nisto o conteúdo sensível-visual e sua conformação na pintura superam o âmbito da validade dos reflexos condicionados, exigem do contemplador uma capacidade que alcança, enquanto faculdade sintética de captação e enquanto à precisão, o nível de conceitualidade, mesmo sem transcendê-lo de modo algum. (Este é um problema que tampouco poderá se tratar detalhadamente apenas em um capítulo posterior). Trata-se de uma fase universal de independência da arte, fase que principalmente se funda na essência do estético. Que tenhamos posicionado a propósito da pintura se deve somente ao desejo de contar com um exemplo fácil. Mas em todas as artes podem se indicar passagens desse tipo(13).

Limitar-nos-emos em mencionar brevemente a uma situação análoga em tudo o que se refere a nosso problema genético, mesmo diferente de todos os pontos de vis concretos, que se apresenta na arte da palavra. Já em outros contextos sublinhamos o fato de que muitas formações verbais arcaicas parecem ter para nós um caráter, por assim dizer, originariamente pitoresco porque não designam com uma palavra de traço conceitual complexos de impressões sensíveis, como cores, apenas que o fazem parabolicamente, ao nível de uma percepção que passara à representação; recorde-se exemplos já aduzidos, como o da fala “como um corvo” ao invés de “preto”, etc. Já então polemizamos com a tendência romântica de crítica cultural que vê este tipo de expressão linguística algo “mais poético” e se compraz em opor às linguagens posteriores, tendentes a univocidade conceitual. Em realidade, não pode nascer uma língua autenticamente poética senão quando se superou radicalmente aquele modo de expressão primitivo que reflete o mundo interno e externo de um modo simplesmente imediato, “natural”. E isso não ocorre até que cada palavra, com a perda inclusive da sensibilidade imediata, se levantou ao nível de conceito, quando a evocação se consegue por meio de palavras unidas sintaticamente na frase, ou seja, mediante um conjunto de signos verbais de reflexo que concordem uns com os outros, se reforçam ou debilitam uns aos outros em seus efeitos. A analogia estética com o problema das cores recém tratado aparece aqui claramente si nos dermos conta de que tal “efeito sensível-moral” das totalidades sintaticamente sintetizadas se põe em simultaneidade inseparável com a multiplicidade da função evocadora de todos seus elementos. Precisamente assim se supera poeticamente a “prosa” que consegue a palavra pela univocidade conceitual de seu significado, de tal modo que a transformação em poesia não aniquila de modo algum a precisão intelectual da palavra ou da frase; ao contrário, sua preservação é também um motivo no sistema de múltiplas significações e relações semânticas que faz dessas tonalidades, totalidades em sentido estético. Nunca se deve esquecer que na série de meios de evocação linguísticos desempenham um papel nada desprezível o que Goethe chama de laconismo da poesia popular, a expressão reduzida ao imprescindível, frequentemente aparentada externamente com a definição. O caráter conceitual da palavra não se reabsorve, pois simplesmente se transformando no signo evocador de percepções sensíveis; sem dúvida se produz também essa retansformação, mas é um momento do fenômeno, entre muitos outros e ao mesmo título que a preservação do conteúdo significativo lógico-objetivo: a múltipla carga funcional de cada palavra, de cada ligação sintática de palavras, de toda síntese lógico-rítmica, pictórico-plástica, na frase e na ligação das frases, a unidade orgânica do som evocador de significações e estados de ânimo, elevada a nova imediação, a superação de encobrimentos já convencionais da palavra e o conseguinte despertar de sua significação originária tão fresca quanto sensivelmente, etc., todos esses momentos de seu colorido serão capazes de criar uma estrutura verbal cuja ação evocadora – inclusive no poema mais curto – produza como encanto um mundo próprio, próprio em seu conteúdo e em sua forma (verbal).

É, pois, profundamente errôneo que a evolução da língua – que necessariamente tende a univocidade e precisão lógicas – tenha que debilitar sua força sensível. Isto ocorre, sem dúvida, em grande medida na vida cotidiana de sociedades desenvolvidas, nas quais a linguagem se mumifica muitas vezes como puro meio de comunicação tecnicista e se esquematiza assim em grande medida; e sem dúvida ocorre muitas vezes em casos que inclusive a língua da poesia se deforma e cai em lugares comuns, ou que em consequência de um processo abstrato dirigido contra essa evolução, sem ir ao fundo no problema, se põem – pour épater le bourgeois [para tapear o patrão – ndt] – rebuscados esquemas de acentos invertidos no lugar dos esquemas já desgastados. Aqui também vamos ter de contentar-nos com uma simples menção a essas recaídas, pois a linha histórico-universal do desenvolvimento poético da linguagem explana do modo antes indicado da criação do mundo sobre a base de uma crescente polifonia das significações sempre nascentes com a multiplicidade cada vez maior da evocação de efeitos rítmicos, sonoros, de imagens, etc.; em sua síntese se expressam relações objetivas, cada vez mais complicadas, dos homens em sociedade e seu reflexos na vida anímica. Mas seria desconhecer a situação histórica estética, em seu passado e em seu devir, o descuidar, pela crescente complexidade de conteúdo e, portanto, dos meios de expressão, a natureza essencial da língua poética, simplificadora, criadora de nova imediação na síntese. Precisamente nessas ligações cada vez mais refinadas podem conservar os mais simples e grandes sentimentos uma expressão adequada, de suprema simplicidade e podem palavras ou através dos giros aparentemente desgastados, já triviais, se converter em portadores de novos e significativos modos de comportamento humano e os conformar – exatamente em sua aparição verbal cotidiana – de um modo poeticamente adequado, criador de mundo. Basta lembrar a este respeito às célebres réplicas finais do Thoas goethiano na Ifigênia: “Ide, pois!”, “Adeus!”.

Indicaram-se pelo menos alguns traços essenciais da estrutura da obra, fixando assim mais claramente que até agora a expressão ad quem da separação do estético da vida cotidiana. Mas o que, sobretudo importa era esclarecer a orientação de princípio desse processo no qual o estético se encontra a si e se objetiva como formação autônoma. O que expusemos em forma muito abstrata será concretizado posteriormente nas discussões seguintes em relação às categorias filosoficamente decisivas. Mas como toda primeira parte desta obra se concentra na explicitação da particularidade da estética segundo o método do materialismo dialético, o resultado de sua totalidade consiste em mostrar histórico-sistematicamente em sua necessidade a obra de arte como formação central da esfera estética. Sua estrutura concreta de categorias, com seu detalhe, será o objeto de nossa segunda parte, e, desde logo, tampouco então com toda a concretude dos diversos gêneros, estilos, etc. Aquilo que já aqui, no estudo da gênese, antecipamos tanto das últimas considerações, é consequência de nosso método geral, que tenta conceber as tendências evolutivas, os pontos de partida genéticos visíveis nas etapas iniciais, a partir das objetivações plenamente desenvolvidas. Mas o problema central das presentes considerações é a gênese do estético.

Para resumir todo o enumerado até agora e avançar no problema da gênese nos será permitido um breve retrospecto do caminho percorrido do ponto de vista de nosso atual problema. Com nossas últimas análises da mundanidade do reflexo mimético da realidade nos vimos chegados a certos problemas da composição, sobretudo em sua forma mais simples e original: o vínculo dos reflexos de diversos objetos na vaidade da vivência, impositiva da vivência de um mundo formado. Expondo um resumo arqueológico e histórico da formação de grupos nas artes figurativas, Hoernes deu um conceito muito instrutivo da situação que se produz ao nível evolutivo que estamos estudando. Como é natural, se trata somente em registrar fatos da evolução histórica. Não poderemos atentar aqui às explicações e avaliações de Hoernes. “As mais antigas obras recebidas da arte figurativa contêm inumeráveis testemunhos da incapacidade de conseguir já a mais simples composição de grupos. Essa incapacidade reina tanto no âmbito das formas figurativas como daquelas que não o são. O ritmo e a simetria, princípios de alguém tende a imaginar como eficácia decisiva no começo da evolução, desempenham neles um papel assombrosamente modesto. A imagem isolada, o signo isolado, tem um ser separado extremamente curioso e alienado a nossos conceitos, nossos hábitos, uma existência tenaz sem vínculos recíprocos, sem coordenações nem subordinações, sem acento de um pelo outro, etc. Este é um dos traços característicos essenciais do imaginário paleolítico ou diluvial. A arte pós-diluvial se comporta de um modo completamente distinto e até contrário. A tendência dominante nesta última, a ornamentística está totalmente baseada nas leis mais simples do ritmo e da simetria”(14). Voltemos a escolher a pintura para exemplificar esta situação porque nela aparece do modo mais direto e claro a ligação decisiva; mais tarde falaremos de problemas muito mais mediados que se suscitam nas demais artes.

Ocorre, pois que os reflexos estéticos, por comum inconscientes, da realidade analisados em nossas considerações anteriores, as duas correntes sem mundanidades e magicamente encobertas – a mimese de objetos isolados e a ornamentística abstrata – coincidem e podem se elevar a certa unidade sintética. É obvio que esta ideia se faz completamente errada e esquemática se, como frequentemente ocorre na história da arte e na estética, as diversas correntes da criação artísticas se feiticizam como se fossem entidades dinâmicas; entendidas deste modo feiticista como se fossem entidades dinâmicas; entendidas deste modo feiticista a mimese primitiva e a ornamentística pura se excluiriam radicalmente uma da outra, se oporiam, e sua unificação sintética apenas poderia se conseguir por um salto teórico. Mas sabemos que no mundo real do homem real esses feitiços substantivos existem somente, no extremo, imaginariamente. O que chamamos uma tendência artística surge sempre da realidade cotidiana dos homens; a aspiração essencial, o modo como tal tendência reflete evocativamente a realidade, é por seu conteúdo não o resultado de uma enigmática “vontade da arte”, apenas produto de sua forma da realidade social de cada caso, tal como esta se apresenta conscientemente na cotidianidade; e isso em forma de necessidades que em seu modo positivo de manifestação aparecem muito borradas, sem perfil, indeterminadas, de tal modo que os homens da cotidianidade não seriam capazes de formulá-las de alguma forma mais do que em casos extremos excepcionais, mas que, pelo seu conteúdo essencial, possuem intenções muito precisas. Isto se revela em sua grande resolução negativa, em sua capacidade defensiva: quando a resposta da arte às missões sociais que assim se percebem não concordam com o posicionamento – errôneo ou implícito inclusivo –, recebe uma recusa resoluta que frequentemente não conhece o menor matiz nem o menor vacilo. Não é coisa, desde já, para imaginar nisto o funcionamento de um mecanismo perfeito. Inclusive esta segurança negativa, se deve entender somente como uma tendência histórico-social, eficaz com muitas irregularidades e oscilações, e que têm de se esclarecer em cada caso concreto por meio de uma análise concreta da situação histórica. Além, pois, da oscilação universal enquanto à clareza dos modos de manifestação dessas necessidades influentes no caminho da arte, é preciso indicar que o desejo que se manifesta nelas é pela natureza uma “exigência do dia”. A resposta artística a essa exigência pode se orientar – coletando-a – à significação do momento de que se trate na história da humanidade: nesses casos pode muito facilmente tomar lugar uma ignorância ou má interpretação do significado real, ou seja: a conquista artística é aceita somente como satisfação do dia, enquanto o valor real não se torna consciente senão muito depois (efeito de Shakespeare em sua época); e até pode ocorrer uma recusa ou insensibilidade completa. Todas essas complicações, cujo número, natureza, etecetera, mesmo poderiam se aumentar muito, não alteram o fato de que se trata de um dado estrutural e básico da origem das correntes artísticas. Sobretudo porque os traços essenciais e fundamentais dessa situação são muito mais universais que a simples relação entre criação artística e as necessidades intelectuais humanas da cotidianidade. Melhor, trata-se do esquema genético de toda novidade, seja teórica ou prática, na ciência, na política na moral, ou na arte. Hegel descreveu acertadamente momentos dessas situações: “O Espírito oculto que chama ao presente, que, mesmo subterrâneo, não amadureceu até a existência presente e quer sair dela, é o Espírito, para o qual o mundo presente é somente uma couraça que abriga em si um núcleo diferente do que pertencia a essa cápsula (...). É difícil saber o que se quer; se pode querer algo de feito, e estar, entretanto em uma atitude negativa, não estar satisfeito; pode perfeitamente faltar à consciência do afirmativo”(15). A concepção idealista do Espírito do Mundo se reflete manifestamente no fato de que a nova Ideia, como Espírito, é a que tem a iniciativa, em ver de ser produzida pelas necessidades do momento histórico. O materialismo histórico, que deriva tais transformações e flexões partindo das transformações de base, da necessidade em que está a superestrutura de se adequar a essas alterações, da explicação adequada desse problema. Do ponto de vista de nosso problema é importante, por um lado, sublinhar o comum a todas as esferas de ocupações humano-sociais: os sentimentos de prazer ou desagrado, a satisfação ou a inquietação diante ao que é a simples existência, o desejo do novo, etc.; e por trás desses atos subjetivos, frequentemente muito heterogêneos, está sempre um conteúdo social comum, do qual nascem e ao qual se orientam. Para simplificar a exposição não coletamos as complicações classistas dessas situações. A descrição aqui dada vale sempre, aproximadamente, para uma classe que seja decisiva no momento histórico dado. A cisão entre o ser e a consciência se referirá na maioria dos casos a todas as classes, de tal modo que em quase todas elas surgirão, de comum, novas necessidades, etc. Porém o conteúdo e a orientação destas, etecetera, serão diversos e opostos(16).

Por outro lado, a satisfação dessa necessidade comum se exprime de modos muito diferentes nos diversos campos da atuação humana. Surgem novos métodos e novos resultados científicos, novas reivindicações políticas, novas formas de organização, novas finalidades, novas formas éticas e novos modelos morais, novos costumes, novos modos de comportamento na vida cotidiana, etc. Na arte essa é a hora de nascimento de formas novas. Não podemos descrever aqui o complicadíssimo processo de nascimento das formas a partir dos conteúdos (o qual será um dos problemas centrais da segunda parte dessa obra). Limitar-nos-emos em indicar que – do mesmo modo que a inteira vida dos homens decorre sempre em cada caso da mesma realidade objetiva – o novo conteúdo que nasce da transformação da estrutura social tem de ser em última instancia o mesmo nos diversos campos sociais de atuação. O particular da forma artística consiste “simplesmente” em que tem de dar resposta a uma necessidade vital que nasce dessa situação, em que está destinada a satisfazê-la. Precisamente o novo e abrangente conteúdo pega todas as esferas da vida, que provoca transformações qualitativas no homem inteiro, produz tal universalidade de novas necessidades vivenciais, diante às quais se encontram de comum formas evocadoras muito mais antigas e que são já incapazes de receber o conteúdo. Como são exatamente os artistas aqueles cuja sensibilidade se desenvolve profissionalmente nesse sentido, eles reagirão com especial refinamento a essas transformações; sempre há artistas que continuam recebendo e representando artisticamente a realidade à velha maneira porque esta atitude é neles um hábito incomovível; mas isso em nada altera o fato básico. Ao responder os artistas a seu modo aos novos fenômenos da transformação social, se produz neles próprios a ilusão de que se trata somente e um novo e puro problema formal nascido da evolução da própria arte às necessidades de sua própria autorealização artística, etc. Imediata e subjetivamente, além disso, essa ilusão é relativamente verdadeira; mas com uma verdade puramente imediata e subjetiva, que não é capaz de penetrar até a descoberta das causas objetivas do próprio comportamento. E certamente não é casual que frequentemente – mesmo não sempre – sejam precisamente os grandes artistas os que possuam certa conjetura da tarefa social que deu vida a suas particulares soluções formais. (Aqui não poderemos estudar na medida em que se formula intelectualmente essa sensibilidade, ou a medida na qual representa uma consciência errada). Acrescentemos, por último, que as transformações da base mostram uma evolução também irregular com suas consequências ideológicas descritas. Para nossas finalidades bastará destacar, do inesgotável complexo que estamos nos aproximando, o fato de que a mudança das relações sociais dos homens entre eles, do metabolismo da sociedade com a natureza, afeta necessariamente com intensidade diferente os complexos vivenciais que influem imediatamente nos fundamentos do modo de evocação das diferentes artes e dos diferentes gêneros artísticos. Isto tem como consequência que as transformações formais mencionadas não costumem se apresentar simultaneamente e com a mesma força no inteiro terreno da arte, apenas que a evolução social influa, favoravelmente ou não, algumas vezes em uma arte ou gênero artístico e outras vezes em outro.

O nascimento propriamente dito da pintura – da pintura no sentido que se conservou até hoje apesar de todas as transformações históricas – pode, pois, se entender partindo do encontro e da unificação das tendências miméticas e decorativo-ornamental. Nossas considerações precedentes mostram de que modo pode ter havido lugar esse encontro de tendências artísticas ao princípio de todo heterogêneas. O contraditório desta situação – contraditória que parece ineliminável enquanto se opõem ambas as tendências como plenamente desenvolvidas e acabadas – se supera se se descobre o ponto de partida – nascido sobre a base de transformações histórico-sociais da vida dos homens em suas relações entre eles – no intercâmbio da sociedade de que se trate com a natureza. O que na fixação mumificada como formação definitiva aparece como oposição excludente pode perfeitamente reconduzir-se desde a caótica necessidade da cotidianidade à condição de elemento e movimento da própria vida, e aparecer sem contradição alguma, com nova unidade, como nova exigência do dia. Nesses processos se aprecia claramente a viva e fecunda interação entre o reflexo artístico da realidade, e a vida e o pensamento cotidianos. O que configura a arte, reproduzindo o mundo a sua maneira, levanta, sobretudo dados da existência humana social a um nível de clareza e consciência muito superior ao acessível com os meios próprios da cotidianidade para os homens dessa esfera. Este efeito se desempenha em duas direções intimamente vinculadas uma com a outra: em primeiro lugar, a imprecisão evocadora que faz da formação artística uma vivência do receptor, do homem da cotidianidade, mudando em conteúdo tanto mais profundamente quanto mais intensa é a vivência. A nova realidade que a obra de arte torna vivenciável de um modo universal pelo seu reflexo evocador, se converte assim em um elemento da vida cotidiana, elemento enriquecedor, que amplia o horizonte e reforça a capacidade perceptiva para a apreensão de novos fatos e novas ligações da vida. Mas – em segundo lugar – seria uma simplificação excessiva esquecer do primado da realidade do conteúdo da influência direta ou indireta das novas formas da realidade cotidiana. O desenvolvimento superior da capacidade receptiva do novo não pode ter lugar sem que o homem da vida cotidiana desenvolva também posteriormente as formas de suas observações, e sua ordenação, sua capacidade de relatar os fatos e as relações entre eles.

Por maior que seja a tensão entre essas percepções na cotidianidade e sua conversão em forma na arte, nos dois casos se trata do reflexo da mesma realidade objetiva, e até das mesmas novas estruturas e tendências nesse reflexo. Como a arte do passado agiu desse modo sobre a cotidianidade, transformou desse modo a seus homens, é fácil compreender que, quando a vida social produz novidade e essa novidade altera o comportamento dos homens, seus sentimentos, suas ideias, etc., as influências da arte do passado estão contidas nas novas necessidades que surgem independentemente de que os homens que apresentam agora as novas exigências tenham ou não consciência disso. Segue-se naturalmente da estrutura da cotidianidade, estudada antes, que as inter-relações entre ela e a arte não possam se reduzir a essas duas esferas. Além das influências diretas exercidas sobre o desenvolvimento da arte pelos resultados do trabalho, a técnica, a ciência, etc., é óbvio que tampouco deixarão intactas as necessidades nascidas da cotidianidade e a tarefa social oriunda para a arte. A tarefa do dia, aparentemente sem forma, nasce da totalidade de novas experiências, na qual têm evidentemente que desempenhar um grande papel os momentos procedentes do anterior exercício artístico, os quais apresentam por sua natureza uma intenção específica de novidade artística. (É óbvio que as experiências artística do passado também podem ter nesse processo uma função conservadora, inibidora ou obstáculo ao novo). Mas o estudo detalhado das complicações subsequentes pertence à consideração histórico-materialista da evolução eficaz da arte.

Ao falar da ornamentística mencionamos já à sua prematura culminação e a relativa atemporalidade de suas posteriores influências. Também tentamos mostrar de que modo sua natureza e a atração que exercem tem muita a ver com o primeiro e magnífico domínio intelectual da realidade objetiva, ou seja, com o ordenamento de seus fenômenos segundo leis de acordo com a geometria. Como se trata não apenas de um período multimilenário da evolução da humanidade, mas, além disso, da inflexão talvez mais decisiva desse caminho – a passagem do período coletor ao da produção propriamente dita –, os efeitos desses caos tendem a ser mais duradouros. Por pouco desenvolvida que seja ao princípio a produção, objetivamente se produz com isso um salto qualitativo que tende a influir antes ou depois em toda a cultura material e intelectual dos homens até constituir seu fundamento permanente. O aparecimento e o predomínio cada vez mais intendo dos princípios ordenadores como reflexo e, ao mesmo tempo, estímulo do novo domínio da natureza, sua promoção a elementos estruturais constitutivos das concepções do mundo que se vão libertando das vinculações mágico-religiosas, se manifestam esteticamente na influência da ornamentística, a qual é de longa duração, determinante e até exclusiva. Os restos da mimese própria da idade dos caçadores não lançam verossimilhança alguma na continuidade com antigas conquistas, nascidas por uma situação excepcional e jamais repetida. Gordon Childe afirmou acertadamente sobrea à passagem à nova formação: “Outros povos, que não deixaram tão brilhante memória de si mesmos, criaram por outro lado a nova economia produtora de alimentos” E indica, também com toda razão o fato de que as culminações da mimese realista dos caçadores não pode tampouco ser de muita duração. A seguir da idade do gelo, a representação artística se orienta no sentido da convencionalidade: “O artista não se esforçava já por refigurar um cervo individual vivo, ou por lhe mencionar pelo menos; se contenta já com o mínimo possível de traços, com pretensão de indicar os atributos essenciais que permitem reconhecer um cervo”(17).

A consolidação da nova formação influiu como é natural ainda mais intensamente nesse sentido. Scheltema tem razão quando afirma uma completa “passagem da imagem mnemônica contemplada até a ‘imagem intelectual’ construída, a qual se limitava a simples comunicação, a identificação dos objetos de que se trate”(18). Scheltema tenta provar também que quando a plástica, já desenvolvida no sul, chegou à Europa setentrional, se encontrou nela “praticamente com um vazio”; “depois uma inicial imitação, a forma figurativa estrangeira se desnaturaliza e chega finalmente a cristalizar em um esquema geométrico sem figuração”(19). Essas afirmações tem para nós certo valor, porque mostram o quanto estava firmemente impregnado na cultura dos agricultores e vaqueiros primitivos o reflexo ornamental, abstratamente geométrico, da realidade: inclusive quando entravam em contato com obras de culturas mais desenvolvidas, a vida cotidiana daqueles homens recusava com espontânea obviedade a mimese expressa naquelas influências e a adequava instintivamente às próprias necessidades estéticas, ou seja, praticava uma involução da mimese em ornamentística abstrata. (Também um exemplo negativo como este confirma nossa exposição anterior sobre as relações entre a estrutura e as tendências evolutivas na cotidianidade e as correspondentes correntes artísticas). Mas Scheltema deforma suas corretas avaliações dos fatos muito rápido ao estilizar essa etapa evolutiva fazendo dela um modelo absoluto, como quando escreve: “Ainda mais claramente se comprovará que a ornamentistica, por sua particular fidelidade ao objeto, será por princípio abstrata e geométrica. Já com isto se entende que a antiga ornamestística nórdica nunca será, por esses motivos, representação da natureza, e somente raras vezes simbólica”. Por outro lado, segundo Scheltema, se conclui dessa “situação real” a necessidade de desprezar o realismo mimético, sobretudo na Antiguidade, do ponto de vista estético: e assim a atitude defensiva, historicamente compreensível, de uma cultura de origem e desenvolvimento orgânicos, mas inferior, contra as influências de outra cultura superior para alcançar a qual mesma não contava com fundamentos sociais nem, portanto, estéticos se converte por obra de nosso autor em um princípio superior artístico “teutônico” deduzido dela. De acordo com Scheltema, “também nesse ponto pode se falar, a propósito desta ornamentistica pura e em certas circunstâncias, de uma recusa do ‘antropomorfismo’ meridional”(20). Scheltema conduz coerentemente até o final a filosofia da história que assoma nessas considerações. Segundo a moda em voga desde Chamberlain e Splenger, se lança a um ataque “contra a absurda articulação do percurso da na Antiguidade, Idade Média e Moderna”(21), ataque que se conclui na tese de que a arte medieval abrange diretamente o pré-histórico; isto não somente anula o papel da Antiguidade, como, além disso, suprime arbitrariamente as tendências mimético-realistas da Idade Média.

Essas filosofias da história à la mode [da moda – ndt], como a de Worringer, que criticamos antes, desmancham e confundem exatamente os fatos evolutivos mais importantes da história da arte. Neste caso se trata do problema da mimese criadora do mundo, realmente desempenhada, ou seja, do nascimento real da arte como arte. A ornamentística dos povos camponeses primitivos é um produto orgânico do nível de produção. Considerada histórico-universalmente, se encontra acima dos começos, excepcionalmente favoráveis, da mimese originária porque já pode – de acordo com o superior modo de produção que subjaz a essa sociedade – posicionar e resolver o problema da unidade, da ordem, da hierarquia, da coordenação e subordinação, com o qual não somente é capaz de criar algo em si superior, como também de por no mundo princípios que serão acervo permanente de toda arte posterior. O importante é compreender – e contra esta concepção se aferram, cada um a seu estilo, Worringer, Scheltema e os autores aparentados com eles – que a humanidade superou objetivamente, econômico-socialmente, essa etapa da agricultura e do pastoreio primitivas e por isso teve de abandonar também na arte o princípio da ordenação abstrata por outros princípios concretamente ordenadores. Esta não é nenhuma exigência posta por uma determinada filosofia à arte. Trata-se antes de um simplíssimo fato vital, fácil de ver por qualquer consideração sem preconceitos. A vida primitiva pode seguir adiante como vida com alguns poucos princípios ordenadores. A vida de tal sociedade, as relações dos homens entre si e com sua concreta comunidade, carece ainda de problemas internos na etapa do comunismo primitivo. O intercâmbio da sociedade com a natureza é ainda extremamente simples, o domínio sobre a natureza está ainda limitado, externa e internamente, a um diminuto âmbito. Por isso, como mostramos em seu momento, o princípio do abstrato geométrico, mas absoluto e infalível em seu abstrato âmbito de validade, pode conseguir também na prática artística uma importância tão poderosa e patética que lhe permita dominar durante milênios a produção e o gozo estéticos. A série histórica, aparentemente assombrosa, de mimese sem mundo, ornamentística sem mundo e a arte criadora de mundo se esclarece enquanto se leva em conta que somente graças à universalidade do trabalho em sociedade o ritmo, por exemplo, (mas também a simetria ou a proporção), exige um poder capaz de penetrar todas as manifestações vitais. Este pode falta ainda na existência dos caçadores e coletores apesar da importância do ritmo para a dança; e durante muito tempo e apesar de toda sua difusão, fica limitado ao abstrato. Por último, a crescente universalidade do trabalho cria a possibilidade real de reproduzir fabulosamente as objetividades e relações também segundo uma ordem rítmica, reguladas pela simetria e a proporção.

Mas precisamente porque o fundamento dessa sociedade neolítica formou um modo de produção continuado e desenvolvido, a sociedade, ao menos em determinados lugares e tempos, tinha de superar constantemente essas etapas. Gordon Childe fala acertadamente de uma “revolução neolítica”, mas acrescentando com não menos acerto que sobre essa base tinha de se produzir outra, a que ele chama “revolução urbana”. Esta segunda revolução se diferencia da primeira, sobretudo porque, diferente desta, não significa um novo começo diante à cultura dos coletores, mas que, precisamente no salto qualitativo que realiza, representa ao mesmo tempo uma continuação e um desenvolvimento da formação anterior. Interessam-nos aqui as novas necessidades nascidas sobre essa base da vida cotidiana, as exigências do dia posicionadas à arte pela nova sociedade. Por um lado, o decisivo é a decomposição do comunismo primitivo: a sociedade original se dissolve, a própria vida posiciona o problema da contraditoriedade entre a sociedade e o indivíduo em formação. Mencionamos já, apelando para Marx, o fato de que o conteúdo e a forma, a estrutura e a evolução, etc., desta transformação puderam percorrer vários caminhos; particular é, por exemplo, a diferença entre a Grécia e o Egito, a Ásia Menor, etc., e entre toda esta área e os povos teutônicos. A importância decisiva da Antiguidade grega se encontra – para nossas considerações – no fato, sobretudo de que um sistema de contradições antagônicas entre a sociedade e os indivíduos se ocorre aqui pela primeira vez até o final, tem um desenvolvimento que abarca todas as determinações deste complexo de problemas. Isto diferencia já a épica homérica de poemas análogos do Oriente, mas se expressa, sobretudo na origem da tragédia como gênero. A introdução do diálogo pelo segundo ator já em Ésquilo é a expressão artístico-formal de que o princípio dialético-dialógico se converteu no drama no fundamento de uma criação mimética do mundo. E o fato universalmente conhecido de que o conteúdo deste gênero artístico totalmente novo é precisamente, em seus começos pelo menos, a luta da nova sociedade, nascida da decomposição da gentílica, com sua própria origem, confirma nossas anteriores reflexões: a contradição dialética entre o ontem e o hoje, a particularização do Hoje como resultado dessas lutas, é uma concepção completamente nova do mundo no qual o homem tem de viver. A nova forma, o drama, é a satisfação da tarefa social que se impôs à arte, de modo caótico e sem forma, a realidade social em mudanças tempestuosas.

Posto que o drama, como gênero artístico criador do mundo, só é possível no terreno de um nível social já consciente de si como vida pública, as ligações genéticas que contribuíram para seu nascimento são relativamente fáceis de estudar. Mais difícil é a situação pelo que faz à criação do espaço – e através dela, de mundo – na pintura. Aqui se trata do nascimento de necessidades cujas raízes se encontram muito mais intensamente aferradas na vida privada da cotidianidade e que, portanto, são muito mais difíceis de explicitar que os fatos, manifestados a todos, da vida pública. Permitir-nos-á, apesar disso, indicar brevemente alguns momentos. Desde a busca de abrigos nas cavernas até aos alicerces de cidades se desenvolve um longo processo em cujo percurso a crescente segurança da vida e, com ela, o ócio e a cultura crescentes, transformam o teto protetor casual em uma casa enfeitada. (E quando falamos aqui de necessidades da cotidianidade nos referimos já quase sem exceção às classes dominantes e exploradoras, resolutamente constituídas neste período). Em volta da moradia surgem – pública e privadamente – fragmentos da natureza primeiro simplesmente escolhidos, a seguir inclusive formados intencionalmente, nos quais a natureza aparece já tão submetida que começa a desempenhar o papel dominante, o aspecto pelo qual a natureza se converte em portadora de vivências, sentimentos, etc., humanos (cercas, jardins, etc.). Ainda provavelmente em tempos de Homero inclusive os jardins mais luxuosos tenham sido essencialmente hortos(22), suas descrições homéricas mostram que as relações do homem com eles não se litavam ao aproveitamento material dos frutos; essas descrições evocam vivências diversíssimas. Ainda mais gritante é o efeito dos pequenos bosques dedicados aos deuses ou aos heróis; e o fato de que os sentimentos despertados por eles sejam de conteúdo religioso também em nada afeta nossa observação.

Existem muitos mais fatos a enumerar neste contexto. Para nossos fins basta registrar que, a partir de um determinado nível cultural, os homens começam a viver prazerosamente espaços concretos povoados por objetos como um meio ambiente natural, permanente; são espaços diante cuja dominação visual tinha de ocorrer impotente como expressão evocadora a geometria por mais ornamental que houvesse sido. Esta situação se apresenta mais proeminentemente quando se pensa que, para a atividade da fantasia, todos esses templos, palácios, jardins, estão transbordantes de lembranças fabulosas de heróis, deuses, semideuses, etc., e que os dados de suas vidas e prodígios relacionados com os mencionados lugares são parte do efeito produzido, por exemplo, por um maciço de flores. Partindo desses e outros fatos anímicos análogos da vida cotidiana nasce a exigência do dia da pintura: a exigência do dia da pintura: a exigência de refiguração mimética de um espaço concreto em cada caso, povoado por objetos concretos também, abranja figuras e objetos de tal modo que pareçam ter no lugar adequado de sua existência, e de tal modo também que tudo isso tenha para o contemplador a forma aparente de ser a refiguração visível e dominável do mundo próprio do homem. As necessidades, antes esboçadas que erguem tais exigências condicionam, entretanto, ao mesmo tempo o caráter espacial e ornamental da representação mimética. Esta não reflete, pois, somente um concreto espaço animado, como que tem também a função de animar um espaço concreto e real fazê-lo ainda mais pátria do homem, mundo próprio.

A simultaneidade desses dois conjuntos de exigências determina os traços essenciais decisivos da nascente síntese artística-visual: a inseparabilidade da bidimensionalidade e da tridimensionalidade da criação artística de imagens. Recordemos: para a pintura mimética extremamente desenvolvida do paleolítico não existia bidimensionalilidade nenhuma. Todos os observadores da pintura rupestre descrevem o fato de que a representação não tem em absoluto em conta a parede em que está pintada. E essa concentração exclusiva sobre a individualidade de um objeto mimético tem uma dupla consequência negativa: a ausência da bidimensionalidade da imagem ao mesmo tempo dissolve a relação do objeto representado com outros objetos do espaço e com qualquer espaço concreto. Sem dúvida, não é por acaso que quando, como vimos, começa a se apresentar uma multiobjetividade relacional se termine ao mesmo tempo o milagre da individualidade singular e as figuras, vinculadas umas com outras, se aproximem de certa simplificação e abstração ornamental. E o outro extremo do passado, a ornamentística, elimina por seu lado totalmente a terceira dimensão: inclusive quando, por um tratamento em relevo, existe praticamente e materialmente essa dimensão, não tem relevância para o efeito artístico-visual. Os objetos representados carecem de plenitude mimética, são simples códigos reconhecíveis de uma escrita secreta, sobretudo porque, como também vimos, as relações não costumam proceder da essência da objetividade do representado.

Seria muito fácil, e coerente do ponto de vista metodológico de uma dialética idealista, ver no complexo forma-conteúdo que nos ocupa agora uma síntese nascida da tese “mimese pura” e a antítese “ornamentação pura”. Mas a dialética da realidade é muito mais complicada que esses esquemas. Vimos, de fato, que as tendências artísticas descritas e as estruturas da obra artística correspondentes não nascem uma da outra, mas que são reflexos estéticos e formas de expressão estéticas de uma complicada evolução histórica. A negação da negação que aqui aparece no final não deve pois – de acordo com o que disse Engels a propósito da exposição da negação da negação por Marx em O Capital – apresentar-se como “prova” de uma necessidade histórica: “Ao contrário: uma vez que [Marx] provou historicamente que o processo te em parte lugar e em parte tem de realizar-se ainda, o qualifica além disso como processo que se desenvolve segundo uma determinada lei dialética”(23). O mesmo se pode dizer, porém mais categoricamente, pelo que diz respeito ao caso aqui tratado, posto que no assunto não é um movimento primário da vida social, o movimento da economia, mas um movimento da superestrutura, na qual, como nos esforçamos por demonstrar, toda transformação se segue das alterações econômicas fundamentais. A relação da “negação da negação” com esses momentos mostra muito claramente esta estrutura. Por um lado, no fato de que o despertar da mimese não tem já ligação histórica nenhuma com o paleolítico; não somente renasce espontaneamente partindo da nova situação vital, mas que é também qualitativamente tão diferente da paleolítica que não se pode considerar continuação desta sob nenhum aspecto. Por outro lado, tampouco a recepção do princípio ornamental-decorativo significa uma acolhida adulterada na nova síntese. Melhor ocorre simplesmente que as dilatadas experiências artísticas conseguidas na aplicação de referido princípio adequados da visualidade evocadora, se convertam, qualitativamente alteradas, no elemento essencial da nova consideração artística do mundo.

Poderia se dizer em resumo: esses princípios eram na ornamentística sem mundo os únicos princípios decisivos da ordenação artística. No novo contexto da mimese orientada à universalidade – na qual somente os objetos representados, bem como também suas relações entre eles e com o espaço que os rodeia, que eles preenchem, pelo sistema assim criado de complicadas interações, se convertem em um espaço concretamente evocador, já não, ou no máximo de modo secundário, determinável por categorias abstratamente geométricas –, os princípios ordenadores decisivos tem de ser também de caráter mimético. Na corrente capital da evolução nasce uma composição cujos princípios podem derivar-se da coexistência tridimensional de figuras e objetos, da natureza de suas relações (de seu dramatismo, por exemplo, como ocorre de modos diversos na obra de Michelangelo e a de Rembrandt, ou sua função representativa, como é frequente na obra de Rafael, etc.). E esses princípios tem a fisionomia do estético pleno desde seus começos: são irrepetíveis no concreto sem quebrar a obra de arte, do concreto ser-assim do conteúdo a conformar, e tem de universalizar sua unicidade do modo que é particular da arte. Por isso é inesgotável a variabilidade histórica e individual das composições assim nascidas. Mas isto não significa em nenhum caso um arbítrio subjetivista. Por um lado, os princípios da composição estão em cada caso determinados pelo conteúdo. E este nasce por sua vez das necessidades sociais de um povo concreto, uma classe concreta, em um tempo concreto, e de mudança, pela concepção do mundo do artista, pela sua tomada de posição diante dos problemas vivos, em forma visual. Assim a subjetividade conformadora pode sem dúvida impor-se livre e amplamente, mas sempre limitada pela natureza, o alcance, etc., do âmbito do jogo formal e de conteúdo nascido daqueles condicionamentos, e se vê movida em determinadas direções, para determinados modos e meios de expressão, etc. Por outro lado, a subjetividade criadora se move pelo caminho determinado por essas componentes. Nenhum artista pode eximir-se à coerência do começado desse modo – se é que quer ser um artista de verdade –, porque o valor estético de sua subjetividade mostra sua justificativa precisamente no fato de poder empreender e seguir até as últimas consequências um caminho audaz e insólito.

Mas essa não é senão uma face do problema da composição: a unidade da objetividade visual-evocadora, tridimensional e concreta. Mas toda imagem realiza também – independentemente da unidade concreto-espacial do múltiplo, criada nela – uma unidade bidimensional do múltiplo. É impossível exagerar a plenitude, a intimidade da coincidência desses dois sistemas, que, visto abstratamente e intelectualmente, são diferentes e até heterogêneos. Cada traço de uma imagem, cada cor, cada linha, cada sombra, etc., tem de cumprir sem excessos sua função necessária – corretamente orientadora da evocação – na unidade e na sistemática bidimensionais como nas tridimensionais. O mundanismo da pintura se deve, não em último lugar, a essa convergência. Pois a infinitude intensiva do conjunto representado, assim como de todas as suas partes, depende de que todo elemento da obra tenha de cumprir inumeráveis tarefas na conformação do detalhe e na coordenação compositiva e por isso tem de ser capaz a cada instante de revelar aspectos novos. Essa tendência se encontra germinalmente na forma inicial da mimese, mas logo se levanta a um nível qualitativamente superior, se difunde, se aprofunda e intensifica pela unidade inseparável da mimese espacial-objetiva, que tende a uma totalidade concreta, e estas novas formas do decorativo-ornamental. A indissolúvel referencia recíproca atua sobre ambos os fatores os modificando. A busca da totalidade, de fechamento de tendências frequentemente orientadas de modo extensivo em um espaço relativamente pequeno, a busca da intensidade do sistema de referências entre os objetos da representação, tem de reforçar-se ainda nessa interação. O princípio decorativo-ornamental perde em troca muito de sua abstração e falta de conteúdo (ou de seu conteúdo transcendente, que dá no mesmo). Mas como seu trabalho ao serviço do todo se reduz a por objetos concretos e suas relações também concretas em contextos bidimensionais, ou seja, a despertar suas possibilidades decorativas, o particular desse princípio recebe um acento positivo. Converte-se em princípio da consumação definitiva de uma aspiração à totalidade concreta, ao conteúdo consumado, ao próprio mundo artístico para o homem.

Remetemos ao leitor a nossa análise das formas abstratas do reflexo. Ali mostramos que – com a exceção da ornamentística puramente geométrica –, todas as formas abstratas de reflexo com conformação mimética da realidade têm um caráter simplesmente aproximativo. O aparecer dessas formas (ritmo, proporção, simetria, etc.) como princípios ordenadores de uma realidade objetiva mundana, sua aplicabilidade é ao mesmo tempo um cumprimento e uma autodissolução. Quanto mais mundana se torna uma formação mimética, tanto mais decididamente tem de ser esse caráter simplesmente aproximado das formas abstratas. Mas isto significa ao mesmo tempo uma inflexão qualitativa de toda a relação conteúdo-forma. O geométrico aparece agora simplesmente como limite extremo da concentração mimética, quase como uma “ideia reguladora” no sentido de Kant, determinada ao mesmo tempo tudo e nada na objetividade real. Que se pense um dos exemplos mais célebres desta classe de composição, a Santa Ana do Louvre. Wölfflin descreveu essa composição como triângulo equilátero: segundo ele, “todas as figuras (...) se movem concentricamente, e as direções contrárias se concentram em formas fechadas”; Leonardo teria tentado “fechar em um espaço cada vez menor, cada vez mais conteúdos de movimento”, etc.(24). Não faltará discussão especial para esclarecer a oposição entre a função artística de tal triângulo e a que teria na ornamentística verdadeiramente abstrata. Aqui se aprecia concretamente o que antes não poderia ser afirmado senão de um modo geral: que os princípios abstratos de ordenação – em consequência da universalidade do trabalho na vida dos homens – tem de reelaborar-se para dar categorias da objetividade concreta.

Quando falamos das tendências decorativo-ornamentais da imagem se trata, como mostram claramente as considerações anteriores, de algo mais do que geometria pura. Pode inclusive se dizer que na medida em que se desenvolve a pintura, na medida em que se encontra a si mesma como arte, vão exigindo maior importância o acordo decorativo das cores, a fundamentação última de suas mais complicadas funções formadoras de objetividade e espacialidade (claro-escuro, sombras, perspectiva, valeur [valor – ndt], etc.) em sua harmonia fisiológica. Esta se apresenta em formas tanto mais mediadas e ocultas quanto mais desenvolvida está a pintura enquanto tal, mas como base tem de estar sempre presente, porque em assim não sendo a totalidade da bidimensionalidade torna-se confusa, sem caráter, incoerente, etc. Esta supremacia do puramente pitoresco não se reduz, naturalmente, ao colorido, como que penetra todos os momentos da composição. Um esboço em preto e branco pode estar projetado de um modo puramente pitoresco, e em troca o esboço pode dominar perfeitamente os quadros cromáticos, até ao ponto de que as cores se degradem a puro acessório. (Que se pense em Rembrandt e em Botticelli). Por mais complicada, retorcida e oculta que seja a influência dessas determinações, sempre se produz uma harmonia bidimensional do quadro, sua ordenação e domínio passivo por princípios decorativos. Certamente que este fato não se impõe sempre de um modo imediato. Precisamente a história da pintura moderna mostra que muitas vezes novas correntes tiveram uma aceitação apaixonada ou sofreram uma grande recusa não menos acesa segundo o modo como recolheram a mimese particular do presente, com suas exigências do dia pelo que torna a conformação do mundo próprio tridimensional. Uma vez substanciadas essas lutas se formou na consciência estética geral a natureza decorativa de tais quadros. Estas e outras tendências, reforçadas pelas tendências subjetivistas e formalistas promovidas pelo idealismo filosófico na avaliação burguesa tardia da arte, conduzem a que muitos estudiosos importantes da arte identifiquem simplesmente na pintura decorativa com o pitoresco; Bernard Berenson, por exemplo, distingue em pintura entre ilustração – com o que menciona a todo conteúdo “extra-artístistico”, pertencente ao mundo externo ou ao espírito – e os princípios decorativos, únicos que considera artísticos. Ficam, diz conclusivamente, “todos os elementos decorativos, os quais, em minha opinião, são o essencial da obra de arte, acima das transformações da moda e do gosto”(25).

Uma separação tão grosseira entre o conteúdo, supostamente extraartístico, e a forma, única entidade supostamente destrói a unidade viva da obra de arte. Esse método está muito difundido na consideração da arte pelo último século, mesmo que a compreensão e a análise por parte dos historiadores dotados seja muito melhor que as considerações teóricas que lhes sejam atinentes. Também Riegl opõe rigidamente o conteúdo e a forma. “Pois o conteúdo iconográfico é completamente diferente do artístico; a finalidade (despertar de determinadas representações) a que serve o primeiro é externa, como os fins utilitários das obras artesanais e arquitetônicas, enquanto que a finalidade artística propriamente dita se orienta exclusivamente a representar as coisas na silhueta e cor, no plano e no espaço, de tal modo que suscitem o libertador e prazeroso sentimento do contemplador”. Riegl se distingue vantajosamente de muitos outros historiadores da arte porque, ao menos como problema percebe a ligação entre conteúdo artístico e conteúdo iconográfico: “Pois não pode haver dúvida de que entre as representações que o homem quer ver tornadas sensíveis na obra de arte e o modo como aspira que se tratem os meios sensíveis utilizados (as figuras, etc.) existe uma ligação íntima”(26). É, desde logo, um fato que o tratamento do conteúdo icnográfico se separa frequentemente totalmente dos problemas estéticos de dar a forma, e que, ao contrário, outras tantas vezes o conteúdo nada mais é do que pretexto para expressar efeitos pitorescos decorativos, independentemente do espaço e do tempo da história. E ao nível que alcançamos de esclarecimento do estético não pode contrastar-se convincentemente, concretamente, em mínimos detalhes, a exposição dialética do conteúdo e da forma com suas oposições mecânica. (Também isto será tarefa da senda parte desta obra).

Mas em princípio já aqui é preciso indicar que aquilo que se costuma chamar conteúdo iconográfico é parte da exigência que a vida põe em cada caso à arte. Esse conteúdo abrange determinadas situações humanas, ações que as preparam e as seguem, determinadas personagens, destinos, relações entre os homens, etc. Na medida em que tal complexo se constitui como fábula, saga, escrita sagrada ou profana, a exigência de conteúdo posta à representação artística constitui, apesar de toda sua determinação como conteúdo, e inclusive em caso de possuir uma formulação teológica exata e profunda, uma matéria prima caótica, sem personalidade do ponto de vista do artista. A orientação e a forma se produzem quando o artista transforma em conteúdo artístico concreto o que lhe opõe como postulado, como imposição social, pois a conformação pitoresca – tanto a decorativa como a mimética, iguais como sua unidade na coincidência dos princípios e elementos de composição tridimensional com os bidimensionais, que já é particular, e não iconograficamente geral. Como é natural, essa relação deve ser entendidas em suas justas proporções dialéticas. Nem a pintura é uma simples realização da tarefa social iconograficamente proposta, nem essa missão social é simples pretexto de que a arte possa fazer qualquer coisa. A melhor maneira de descrever a essência dessa relação é considerá-la como uma atmosfera de jogo: concreto, porque abrange e resume de algum modo os desejos da cotidianidade, e lhes dá uma determinada figura, certa direção, etc.; abstrato, porque somente a atividade artística formadora realiza univocamente as possibilidades, frequentemente contraditórias, que dormem nele. O próprio Riegl dá um exemplo muito intuitivo e instrutivo das complicadíssimas relações de que se trata. Ele mostra que determinados conteúdos desse tipo guardam sem dúvida certa convergência com determinadas soluções formais, mas que não se trata de nenhum vínculo unívoco, nem menos constritiva, ou seja, que são necessários diversos caminhos de solução no campo do possível, sem abandonar a fundamentabilidade de cada conteúdo, mesmo este fique submetido a consideráveis variações com isso. Ele está falando dos chamados retratos de soberanos, tema predileto – e muito fundamentado socialmente – da pintura holandesa do século XVII. Riegl(27) mostra não só teoricamente, como também baseado em um grande material fatual, que esse tema promove e produz um modo de composição orientado para uma coordenação da atenção. Mas, ao mesmo tempo, mostra como Rembrandt, em suas Stallmeesters, põe em lugar da coordenação uma subordinação, porque ele também, por seu lado, seguia um princípio de concepção do mundo que “em seus esboços tende sempre a captar a semente de um conflito dramático”.

Não é necessário que nos ocupemos aqui dos detalhes posteriores detalhes deste problema. Restam-nos posicionamentos importantes: primeiro, que a tarefa social “iconográfica” oferece ao artista uma determinada atmosfera de jogo compositivo, mesmo as diferenças contidas nela não aprofundem sempre até a oposição descrita; segundo, que nessa situação apareçam princípios (coordenação e subordinação) chamados a ordenar formalmente em sua imediação a composição bidimensional como quanto a tridimensional, mas que. Enquanto se transpõem na prática artística, tomam uma direção de conteúdo decisiva para a qualidade evocadora da imagem (em nosso caso: situação estática, e tranquila, ou dramatismo interno). Esta dupla determinação conjunta mostra, por um lado, que a tomada de partido do artista diante os grandes problemas de sua época é ao mesmo tempo ponto de partida e coroamento da conformação, exatamente em relação ao problema, de aparência puramente formal, do princípio formal decorativo no quadro. A impressionante grandeza de Rembrandt se deve, não em último lugar, a que, na ascendente Holanda burguesa, na qual contemporâneos de grande valor artístico viviam uma segurança da sociedade burguesa por eles aceita, ele esbarra sempre com a dramática contraditoriedade dessa sociedade; nisso está a fonte de sua oposição compositiva entre coordenação e subordinação. (Digamos de passagem: seria um grande erro esquemático-formalista identificar com as oposições do mundo que acabamos de indicar. A subordinação pode muito bem exprimir calma e equilíbrio, como ocorre em La Madonna de Castelfranco de Giorgine, enquanto que quando, por exemplo, Pieter Brueghel dá forma tão “coordenada” a crucificação que Cristo quase desaparece no rio infinito das vítimas (vítimas do regime do duque de Alba em Flandres), se produz uma intensificação antes desconhecida e grandiosa do princípio trágico-dramático. E é obviamente claro que o aqui exposto vale para a concentração, em última instância formal, das formações miméticos-mundanas em todos os casos de aplicação de princípios de composição decorativa).

Nossas considerações mostraram que as formas abstratas do reflexo que absorve e assimila a mimese criadora de mundo não somente não se encontram na oposição antinômica alguma com as tendências mimético-realistas, senão que, em consequência de sua fecunda contraditoriedade estão chamadas as reforçar. Esta comprovação não é nova para nós. Já ao estudar o ritmo aduzimos as palavras de Schiller sobre o fato de que a aplicação conscientemente fundamentada do ritmo na obra de arte verbal serve, sobretudo para elevar a um nível superior o reflexo realista da realidade. Somente se produz uma contradição aparente quando elementos ornamentais que em um nível inicial se bastam sozinhos para aquele fim, para criar uma classe de grande arte, mesmo que sem mundo, mas perfeita precisamente nesse sem mundo e cuja validade não se terminou nem se terminará, se convertem em elementos de uma conformação mimética na pintura. Era necessário expor detalhadamente sua função na nova pintura criadora de mundo, porque precisamente nela – e, com a exceção do relevo da escultura, somente nela – exige tais funções. Em qualquer outro caso, as formas abstratas são momentos antecipados simples momentos da conformação total, sem a capacidade de formar sistemas estéticos fechados, e substantivos; e nas demais artes, na literatura ou na música, o princípio decorativo-ornamental atua somente em um sentido indireto, sinonímico. (Em seguida veremos que por trás dessa significação de aparência simplesmente metafórica se escondem reais problemas estéticos, mesmos não equiparáveis com os que acabamos de tratar).

Por isso era necessário resolver a contradição aparente estudando exatamente a pintura, mostrando que as tendências ornamentais-decorativas desta se encontram, pela sua essência estética, ao serviço da consumada conformação artística da mimese. (Que no curso da história se produzam frequentemente quadros nos quais o predomínio do princípio decorativo conduz à superficialidade ou a vacuidade, ou o do princípio mimético a uma desordem artística, é coisa que não a validade daquela afirmação). Esse serviço consiste no essencial em que o fechamento e com ele, sobretudo, o personagem típico das figuras e as situações, consegue uma intensificação inexequível em outro caso. Acabamos de indicar que os princípios ordenadores decorativos aparentemente mais abstratos e formais exigem no contexto da representação mimética um caráter de tonalidade que é concreto e de conteúdo, uma força evocadora dessa mesma natureza, com o qual o incluiu, desde motivações puramente compositivas e posicionais, no reflexo veraz pode superar consideravelmente a tipicidade presente em si. A disposição decorativo-ornamental – somente nessa unidade indissolúvel com o mimeticamente acertado – pode servir também par fazer intuídas com maior clareza a individualidade, a ligação hierárquica, o lugar da cena dramática, etecetera. Wölfflin tem toda razão quando acentua essas excelências da A última Ceia de Leonardo diante a Ghirlandaio, por exemplo(28). Exatamente a situação da mesa, paralela ao quadro, a posição de Cristo no centro exato, os apóstolos colocados a cada lado em dos grupos de três, possibilitam essa clara tipicidade clássica, essa representatividade dramática. Grandes pintores anteriores, como Giotto – que coloca as figuras em torno da mesa – ou posteriormente como Tintoretto – que coloca a mesa apontando para a profundidade – podem conseguir um dramatismo talvez mais patético, mas sem realizar aquela síntese de unidade e tipicidade ordenada, individualizada, claramente articulada e rica. Esta comparação não é um juízo de valor. Wölfflin pode ver em Ghirlandaio um cognato menos alcançado da perfeição de Leonardo, porém Giotto e Tintoretto se propõem conseguir efeitos completamente diferentes. A comparação somente é instrutiva na medida em que põe em manifesto a relação ente ordenação decorativa e o conteúdo tonal espiritual. Além disso, a unidade que estudamos produz uma intensificação da infinitude intensiva de todos os detalhes e do todo que abrange suas relações. Mas, já o crescimento das funções cujo portador é cada detalhe se move e empurra nessa direção: quanto mais se acentua tal composição, tanto é mais enérgica.


Notas de rodapé:

(1) MARX, Grundrisse [Fundamentos...] , I, cit., p. 31. (retornar ao texto)

(2) WICKHOFF, Römische Kunst [Arte Romana]. Berlim, 1912, p. 100. (retornar ao texto)

(3) Ibid., p. 102 e ss. (retornar ao texto)

(4) Leonardo da Vinci: Der Denker, Forscher und Poet [Leonardo da Vinci: o pensador, o cientista e o poeta] Iena, 1906, p. 156. (retornar ao texto)

(5) É caraterístico que as filosofias do extremo desespero próprias da idade moderna, de Schopenhauer até Heidegger, considerem como uma de suas principais tarefas polêmicas a luta contra esse sentimento de segurança, contra sua suposta cegueira, limitação, contra a “decadência” (Verfall) que segundo esses filósofos nela se manifesta. (retornar ao texto)

(6) HEGEL, Escritos de política e filosofia do direito, Leipzig, 1923, p.428. (retornar ao texto)

(7) Hegel, Filosofia da Religião. Obras. Volume XI, p. 313. (retornar ao texto)

(8) KANT, Crítica da Faculdade de Julgar, §42. (retornar ao texto)

(9) GOETHE, Fahrenlehe [ Teoria das cores] Didaktischer Teil [ Parte didática], nº 797. (retornar ao texto)

(10) Ibid., num. 843. (retornar ao texto)

(11) Ibid., num. 917. (retornar ao texto)

(12) Ibid., num. 771. (retornar ao texto)

(13) Basta remeter à excelente analise de Riegl, “Zur kunsthistorichen Stellung der Becher von Vafio” [Sobre o lugar dos vasos de Vafio na história da arte – ndt], em que estuda a formação do espaço e realismo tal como se apresentam no relevo. Publicado em Gesammelt Aufsätze [Artigos e ensaios – ndt], Augsburgo-Viena, 1929, p.71 e ss. O fato de que Riegl esteja nesse contexto muito longe do problema da gênese que aqui nos ocupa dá ainda mais valor à coincidência na análise dos fatos. (retornar ao texto)

(14) Hoernes, op. cit., p. 582 e ss. (retornar ao texto)

(15) Hegel, razão na história, Leipzig, 1917, p. 75 e 77. Veja em https://www.marxists.org/portugues/hegel/1822/mes/90.htm (retornar ao texto)

(16) Cfr. o que afirma Marx sobre os efeitos da autoalienação na burguesia e no proletariado, Obras, cit, Vol. III, p.206. (retornar ao texto)

(17) GORDON CHILDE, Man Makes Himself [O homem se faz a si próprio], cit. p. 72 e 73. (retornar ao texto)

(18) SCHELTEMA, op. cit., p. 72. (retornar ao texto)

(19) Ibid., p. 87. (retornar ao texto)

(20) Ibid., p. 101. (retornar ao texto)

(21) Ibid., p. 188 (retornar ao texto)

(22) M. L. GOTHEIN, Geschichte der Gartenkunst [História da Jardinagem], Iena, 1926 Band [volume] I, p. 7. (retornar ao texto)

(23) Engels, Anti-Dühring, cit, p. 137. Ver https://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/cap13.htm (retornar ao texto)

(24) Wölfflin, Die klassiche Kunst [ A arte clássica], Munique, 1904, p. 35 e ss. (retornar ao texto)

(25) BERENSON, Mittelitaliensche Malerei [ Pintura da Itália Central], Munique, 1925, p. 27 e ss. (retornar ao texto)

(26) RIEGL, Spätrömische Kunstindustrie [A indústria artística romana tardia]. Viena, 1927, p. 229. (retornar ao texto)

(27) RIEGL, Das holländische Gruppenporträt [O retrato holandês de grupos], Viena, 1931, volume de texto, p. 209. (retornar ao texto)

(28) WÖLFFLIN, Die klassische Kunst [A arte clássica], cit., p. 257. (retornar ao texto)

Inclusão: 12/05/2021