Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
8 – O mundo próprio das obras de arte
8.2 – O meio homogêneo, o homem integral, o homem inteiramente


Deixemos, pois, assentado que com a posição estética da obra singular se põem ao mesmo tempo, em um ato, o gênero e a arte em geral. E se atentemos agora a um só problema essencialmente determinante das diversas artes, o gênero, descuidado aparentemente, por algum tempo e por razões de clareza metodológica, o problema da arte em geral, a unilateralidade será, como se depreende das considerações anteriores, simples aparência, pois em toda consideração estética correta de um gênero se pensam também os problemas da arte em geral; se trata, pois de um problema metodológico, da medida na qual estes últimos problemas vão ficar momentaneamente sem figurar mais do que como segundo plano. A ligação se faz visível enquanto nos aproximemos do problema proposto neste lugar e já mencionado em contextos anteriores, o problema do meio homogêneo de cada gênero artístico (e, dentro de seu campo, o problema de cada obra de arte). Pois o meio concreto homogêneo - por exemplo, pura visibilidade nas artes plásticas – é também uma determinação do tipo de arte. Pode se diferenciar segundo os gêneros, pois certamente a visibilidade pura não significa exatamente o mesmo na pintura que na escultura; o meio da linguagem poética tem na lírica, na epopeia, no drama toda uma série de características específicas, etc. Além do que o meio homogêneo tem, naturalmente, seu modo originário de realização na obra de arte individual, na qual seu modo de tratamento, simultaneamente individual e generalizado, constitui a determinação estética formal mais básica. Apesar disso se pode dizer com todo direito que o problema do meio homogêneo tem sua localização própria no âmbito do gênero e da arte particular. Sua universalidade tem aqui, diante das obras particulares um caráter estético em grande medida originário. A coisa não é tão clara se afirmamos da arte em geral. A afirmação de que toda arte ou todo gênero como fundamento de uma forma própria do meio homogêneo é desde já uma generalização que leva ao conceito de traços, comuns essenciais de meios qualitativamente diferentes. Em troca, todo meio homogêneo leva em-si – no sentido de nossas anteriores considerações – uma alusão à arte em geral, uma relação com ela no sentido de inerência, de um modo originariamente estético. Levando em consideração essa tendência estrutural de baixo acima pode se corrigir o caráter conceitual, de cima abaixo, recém-indicado, e transpor intato ao nível conceitual o essencial do conteúdo estético. Essas considerações nos permitem com justificação metodologia empreender o estudo do meio homogêneo do ponto de vista das artes particulares ou dos gêneros.

Para poder tratar os principais problemas referentes ao meio homogêneo é preciso conseguir clareza sobre a sua personalidade. A verdadeira realização do meio homogêneo e encontra nas obras de arte, e nelas é eficazmente um meio no sentido restrito da palavra. Mas esse meio não é como um fato, não é uma realidade objetiva presente com independência da atividade dos homens, uma ligação da natureza ou da sociedade, apenas que é um princípio particular formativo das objetividades e seus vínculos, umas e outras produzidas pela prática humana. E isso no mesmo sentido em que os fatos sociais são produtos da atividade humana. Inclusive nos casos em que estes se produzem com uma consciência parecida, as leis e tendências ativas neles e os fatos e as ligações produzidas pelas referidas leis constituem uma parte da realidade objetiva independente da consciência humana. A ação baseada em seu correto reflexo tem, pois, de intervir constantemente, influenciando, controlando, corrigindo, com objetivo de que tal complexo não se mova em uma direção que transforme os resultados de uma ação correta em próprios de outra incorreta, os de uma ação consciente nos que seriam mais característicos de uma inconsciente. Pois, os fatos assim produzidos, mesmo sejam produzidos, ou influenciados pelo menos, pelos homens com consciência disso, são fatos da realidade que existe e atua com independência da consciência, estão submetidos às legalidades destes, e o homem não pode orientar estas legalidades senão conhecendo-as e as aplicando adequadamente. O produzido pela atividade humana tem em nosso caso (o estético) um sentido completamente diferente: o do definitivo. No meio homogêneo de cada arte surgem formações que não conseguem sua “realidade” específica senão que refletem esteticamente a realidade objetiva. Sua “realidade” consiste exclusivamente em que a reprodução artística fixadas neles seja evocadora, em seu ser capazes de dirigir e orientar as vivências dos homens para uma reprodução interna da reprodução encarnada por essas formações.

O meio homogêneo, apesar de que sua natureza concreta (audibilidade, visibilidade, linguagem e gesto) é um elemento da vida humana, da prática humana, tem de ser algo afastado do fluxo contínuo da realidade. O meio homogêneo se converte no fundamento da prática da criação artística, na qual a imersão do artista no meio homogêneo de sua arte, por sua realização na qualidade específica da própria personalidade, abre a possibilidade da criação – já estudada – de um “mundo” próprio como reflexo estético da realidade. Dito de um modo geral e abstrato, a produção de um meio homogêneo no reflexo da realidade objetiva, no processo de transformação do em-si em um para-nós, não é nenhuma novidade absoluta. Basta recordar o papel da matemática nas ciências exatas. Mas apesar disso se apresenta a seguir com clareza a diferença qualitativa que há entre a ciência e a arte no reflexo de uma realidade que, por sua essência objetiva, é a mesma. Um meio homogêneo da ciência não se pode tomar senão de uma relação já relativamente captada. Seus fundamentos são elementos e ligações da realidade de tal meio homogêneo, consiste, sobretudo, em limpar o que objetivamente existe de todo modo de consideração carregada de tendências antropomorfizadoras vinculadas à subjetividade. Por isso esse meio homogêneo da ciência consta de elementos e vínculos dos mesmos, legalidades, etc., que expressam a objetividade alcançável em cada caso. A verdadeira objetividade está, como é natural, submetida a um controle constante da realidade. Assim, por exemplo, qualquer modelo de um fenômeno não acessível por outras vias tem de se abandonar enquanto que o contradizem casos particulares importantes; por outro lado é possível que uma fórmula matemática, uma dedução, etecetera, contenha mais propriedades da realidade do que se acreditou a princípio, no instante de sua descoberta. Deste modo surge no reflexo científico da realidade, graças ao meio homogêneo, uma pista que leva ao ser-em-si objetivo dos objetos e de suas ligações, uma superação tendencialmente alcançada da subjetividade humana.(1)

Já sabemos que o meio homogêneo, no reflexo estético, se encontra insuperavelmente ligado ao sujeito, até o ponto que recebe sua significação precisamente por esse enraizamento na personalidade humana. Falamos também da personalidade concreta da subjetividade que aqui se manifesta. Sabemos também que sua essência ineliminável não se manifesta simplesmente com uma negação, nem sequer um enfraquecimento, da objetividade, da fidelidade das formações estéticas à realidade, apenas que, pelo contrário, a personalidade subjetivamente acentuada do reflexo estético põe o mundo em interação com a atividade humana e prescreve imperiosamente uma determinada subjetividade de seu órgão de mediação. O meio homogêneo tem aqui uma função parecida àquela do conhecimento, mesmo que alterada de acordo com a diversidade da tarefa: a função de ser órgão de aproximação do reflexo à realidade objetiva. Nos dois casos se trata de facilitar, por obra do meio homogêneo, uma redução do objeto ao essencial, como objetivo de que se desprendam de sua imediação as determinações que realmente estão mais estreitamente vinculadas com o ato de reflexo e podem descuidar-se, ou até eliminar-se às vezes completamente, as determinações que se encontram em um relacionamento solto e casual com aquele ato, o que talvez não tenha nenhuma relação com ele. Um meio assim pode além disso ter a propriedade – como no caso da matemática – de permitir o desempenho de uma solução, a qual, desde já, mesmo que às vezes é muito mediada, recebe também sua verdade do reflexo correto da realidade objetiva, sem preconceito de se apresentar como princípio de crítica, de retificação, diante das observações isoladas e às consequências imediatamente inferidas destas. Este aparentado formalismo de suma generalidade tem de opor-se em seguida com uma diversidade não menos importante. O reflexo científico é, como sabemos, um reflexo desantropomorfizador, o qual impõe a seu meio homogêneo uma objetividade correspondente a essa atitude: a eficácia desse meio e sua natureza essencial estão determinadas pela estrutura do objeto de cada caso. Mas como o objeto do reflexo estético é o mundo do homem, as relações entre homens e as de todos eles com a natureza, a estrutura e a diferença do meio homogêneo têm de ser neste caso muito diferentes.

O objeto desse reflexo tem de se apresentar, entretanto, não somente tal como é em si senão também como momento da interação entre a sociedade e a natureza, seus fundamentos e suas consequências na sociedade. Na simples posição dos objetos vai já contida , pois, a relação humana com eles, a reação humana aos mesmos. E para que esse papel muito ativo do sujeito não dê lugar a uma arbitrariedade subjetivista, apenas que ajude a fundar – como vimos que é o caso – uma nova classe bem definida da objetividade, é claro que a subjetividade criadora não deve se opor a um mundo que lhe seja completamente alheio, diante do qual tivesse de se limitar a tomar uma atitude a posteriori [depois – ndt]. Pois os juízos assim produzidos arrastam inevitavelmente a mácula de um subjetivismo vazio. O sujeito, pelo contrário, tem de intervir ativamente na formação do ser-aí do conteúdo e da forma do mundo refigurado. Mas o fato de que o sujeito individual criador se atribua tal papel de demiurgo em relação às obras que vai produzir não significa uma infundada inflação de si próprio, apenas a interna, abreviada e concentrada reprodução da essência do gênero humano: os objetos que se refiguram e fixam no reflexo estético são resultados desse processo, tanto no formal como do que diz respeito ao conteúdo. Inclusive quando esses objetos têm, como aqueles da natureza, uma existência independente do gênero humano, seu modo de existência está em muitos casos profundamente modicado por esse processo (bosques derrubados, rios canalizados, etc.), e inclusive quando isso não acontece, seu modo de manifestação não se pode representar isolando-os desse caminho evolutivo (altas montanhas, o mar, etc., como objetos de arte). Vemos assim de novo, desta vez de outro ponto de vista, que a justificativa da subjetividade estética se fundamenta em sua relação com o gênero humano. Somente por essa relação pode conseguir uma objetividade particular sem perder sua personalidade subjetiva e sem ter ainda de cair em qualquer subjetivismo.

Dessa particularidade se conclui, por outro lado, que o princípio da diferença dos diversos meios homogêneos não pode se encontrar integralmente na estrutura do mundo objetivo refigurado, como ocorre nas ciências, apenas que é preciso tomá-lo também dos modos de comportamento do sujeito humano que possibilitam um acesso aos aspectos importantes e duradouros da mencionada realidade. Depende da matéria objetiva da natureza e da sociedade se e em que medida, por exemplo, compete ao meio homogêneo da matemática uma importância predominante em seu reflexo científico. Por outro lado, quando se trata de um determinado processo social o que decide se deve dar-lhe uma forma épica ou dramática é antes de tudo a atitude do sujeito, do seu comportamento em relação ao mundo, em relação aos problemas do reflexo e de sua plasmação. Muitas vezes já indicamos que por trás de tal comportamento subjetivo, de tal “decisão” subjetiva, há sempre em ação forças objetivas histórico-sociais, até o ponto de que a subjetividade pode parecer um simples ponto de acumulação de necessidades objetivas; todo este complexo de problemas tem seu tratamento concreto na parte histórico-materialista desta obra.

Deste ponto de vista o meio homogêneo aparece, pois, logo como estreitamento da não percepção do mundo, como a redução de seus elementos, de suas formas de objetividade e ligação, ao perceptível da localização de determinado comportamento, e isso não somente pelo que faz ao Quê do recebido e representado, senão também no que se relaciona ao Como das formas de manifestação. Formalmente contemplada a situação, parece imperar nela uma arbitrariedade subjetiva, pelo que diz respeito à natureza de tal comportamento e ao meio homogêneo que surge como consequência dele. Mas é preciso tomar em conta que nem toda atitude possível nem todo meio supostamente homogêneo que se depreenda dela dão por si um reflexo da realidade significativa para os homens. É coisa historicamente sabida que, de todos os sentidos, somente a visão e a audição são capazes de constituir tais meios homogêneos. As “sinfonias”, por exemplo, não deixaram de ser jogos vazios. Deste fato elementar mostra já que a limitação, recém-sublinhada, ao imediatamente capaz de ser incluído no meio homogêneo não é simplesmente imediato somente na aparência. Não pode se constituir um meio homogêneo no sentido da estética apenas de se o estreitamento inicial do reflexo da realidade e o perceptível por esse sentido específico constituem um simples meio para fixar um aspecto também específico e total do mundo de modo novo assim surgido, e para reproduzi-lo de um modo sensível. Se a redução inicial do perceptível é possível em cada meio homogêneo dado não é um “reculer por mieux sauter” [frase de Napoleão utilizada por Lenine para explicar o recuo tático da Nova Política Econômica: “é preciso recuar para saltar mais longe” (ndt)] no sentido da captação estética do mundo, então não se está em presença de qualquer meio homogêneo digno desse nome.

Por isso o meio homogêneo não é simplesmente um princípio formal apenas em sua primeira imediação. Para a teoria da música essa conclusão era muito fácil pelo fato de que seu meio homogêneo de criação de mundo nada tem em verdade da natureza e a sociedade que lhe corresponda imediatamente enquanto que a característica do reflexo das artes visuais e da arte da palavra foi evidente desde o primeiro momento. Konrad Fiedler postulou com maior insistência o reconhecimento de tal mundo próprio também para a visualidade, mundo do qual haveria de eliminar, com pureza e coerência metodológicas, tudo o que não fosse puramente visual. Em outros contextos aludimos às contradições que se seguem dessa posição, e mostramos que, levada coerentemente até as suas últimas consequências, essa posição produz um empobrecimento, e não um enriquecimento, da visualidade da vida cotidiana, porque recusa dogmaticamente grandes conquistas da prática cotidiana do trabalho, como a divisão do trabalho entre os cinco sentidos e, com ela, uma ampliação extensiva e um refinamento intensivo da própria visualidade. Por isso não por acaso que certos argumentos de Fiedler o obriguem a ver apenas toda atividade estética como uma subespécie do conhecimento. Com isso nega Fiedler o efeito estético que “poderia se originar perfeitamente de um produto da natureza”, e chega à conclusão de que “ a arte é apenas uma linguagem por meio da qual certas coisas se levam à esfera da consciência humana que conhece. Considerando-se como finalidade da arte o conhecimento de certa categoria de coisas, é preciso por seus resultados no mesmo plano que os do conhecimento em geral. Todos os efeitos da arte enquanto tal têm de se deduzir do conhecimento; pois; por exemplo, se uma obra de arte plástica tem um efeito estético, esse efeito não é próprio dela enquanto obra de arte”.(2)

A chamada tendência da interpretação, aparecida nos últimos decênios na teoria e na história literárias, não é em seus princípios, tão contraditoriamente radical como Fiedler e seus seguidores (pelo exemplo, o escultor Hildebrand). Na interpretação imanente de algumas obras escritas estes intérpretes incluem, pelo menos, dados biográficos da vida dos autores, etc., com objetivo de levar a análise mais além da primeira impressão imediata. Existe aqui, portanto, certo progresso, mesmo muito relativo, diante à dogmática estreiteza de Fiedler. A relatividade desse progresso se manifesta já na fundamentação filosófica. Enquanto Fiedler se situa em uma perspectiva neokantiana ortodoxa, o que o obriga a negar a objetividade do mundo externo e a justificativa artística de seu reflexo, esta outra tendência está essencialmente influenciada pelo existencialismo de Heidegger, o qual publicou também estudos deste tipo. Tudo isso tem com consequência que também neste caso se eliminem por princípio a riqueza essencial e as ligações das leis do original real e de sua refiguração artística, o fundamento social da obra, sua síntese artística das determinações ativas nela o traço social do efeito da obra. E isto também acarreta que a análise, cuja intenção subjetiva apontava à captação das categorias formais, vague de fato, sem sequer vê-las, as questões decisivas da plasmação poética.(3)

O estudo teórico da função do meio homogêneo na estética tem de evitar sobretudo a estreiteza formalista que aparece nas tendências recém-mencionadas. Mas também seria equivocado exagerar a prioridade do conteúdo que reconhecemos como fundamental, incorrendo afinal em um absurdo parecido, mesmo que de sinal contrário, ao que ameaçava pelo lado formal da poesia. Isto ocorreu muitas vezes, e continua a ocorrer hoje, quando o princípio do conteúdo se converte em único critério, ao atribuir à conformação artística apenas um papel acessório, o da expressão mais ou menos hábil de algo que se encontra já constituído no próprio conteúdo, independente do sucesso ou fracasso do formal. Certamente que este ponto de vista não é formulado coerentemente senão de vez em quando (o faz, por exemplo, Upton Sinclair), mas se pensa-se até ao final a tagarelice pseudo-teórica dessas concepções e as eleva a conceito, parecem absurdos muito semelhantes. O tertium datur [o terceiro possível – ndt] que é preciso pronunciar diante dos falsos extremos não pode, entretanto, nenhum “meio termo” eclético, mas que deve recolher em toda sua complicação e formular conceitualmente a unidade dialética do conteúdo e da forma (preservando a prioridade do conteúdo na determinação da forma como forma de um determinado assunto e reconhecendo ao mesmo tempo ao assunto sua condição de portadora imediata da evocação estética). E que nas exposições analíticas esse objetivo não seja, às vezes, alcançado senão que por rodeios, repassando componentes separados (metodologicamente) em conteúdo e forma, não significa a menor concessão ao ecletismo recém reprovado de um “meio termo” que não existe de modo algum, pois as complicações dialéticas tendem a ser pensadas em cada consideração metodologicamente isoladora, separadora.

Em certos momentos do meio homogêneo – elementares ou complicados – a dialética de conteúdo e forma aparece parece tão evidente na superfície que frequentemente ocorre ser difícil distinguir se é um problema formal ou de conteúdo. Assim acontece, de imediato, com o problema – de lugar certamente introdutório – de qual é a função do meio homogêneo no processo de aproximação do comportamento estético à realidade objetiva. A atitude do homem integral em relação aos impulsos desta, sua atividade transformadora dela, possuem – apesar de uma grande escala de diferenças em diversos modos de comportamentos, situações, etc. – o traço comum da orientação prática aos objetos individuais que, às vezes, se podem observar com o maior rigor e a maior exatidão, mas cujas ligações não ficam dentro do círculo perceptivo apenas que na medida em que algumas de suas propriedades resultam relevantes, positiva ou negativamente, para a finalidade proposta. Naturalmente, isto se refere não somente às impressões sensíveis e às representações, senão também às ideias que nascem delas, que dirigem a prática ou procedem dela. A barreira erguida aqui entre a percepção e o ser objetivo do percebido e que no curso da evolução, mesmo irregularmente, se afasta cada vez mais, é entretanto insuprimível por princípio, em consequência da relação entre a realidade e a consciência. Inclusive quando, a partir da prática cotidiana e do trabalho, sobretudo, se constitui o reflexo científico e alcança a suprema diferenciação, aquela barreira, através de muitas modificações, continua existindo para o conhecimento.

Lenine deu um quadro muito exato desta questão que já aduzimos em outros contexto e do qual nos limitaremos em recordar aqui o essencial, a saber, que toda reprodução é uma simplificação grosseira, e não somente as produzidas pelo pensamento, apenas já inclusive as que vem da percepção. A dialética, forma suprema do pensamento científico, oferece segundo Lenine a saída para a ciência à possibilidade de uma aproximação crescente à realidade. O pensamento dialético tem precisamente a tarefa de superar os obstáculos criados pelo próprio pensamento à aproximação do conhecimento da realidade. Em uma exposição da filosofia de Zenão que Lenine aduz, de modo aprobatório , imediatamente antes da passagem à que mencionamos, escreve Hegel: “pois o único que procura dificuldades é sempre o pensamento, porque separa em distinção momentos de um objeto que em verdade estão unidos. O pensamento é o causador do pecado original, porque o homem comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal; mas também cura essas feridas”.(4) Por isso Lenine, continuando o fio de seu discurso, considera como essência da dialética, como saída do dilema, a “unidade, identidade das oposições”.

Tudo isso é muito instrutivo para o problema da aproximação do reflexo estético da realidade. Deste ponto de vista é preciso acentuar especialmente que o juízo sobre a “simplificação grosseira”, ou sobre a “morte”, por exemplo, do movimento não somente se refere ao pensamento, senão também, e explicitamente , à percepção e a sensibilidade. Isto é importante na perspectiva do nosso problema porque nos últimos tempos, tanto no campo da estética quanto no da filosofia em geral, se fala frequentemente do caráter mecânico e grosseiro do pensamento para opor-lhe o refinamento, a correção, a flexibilidade, etc., das sensações, dos sentimentos, dos instintos. Parece-nos importante insistir, contra essa tendência, no fato de que a sensibilidade “mata” em si própria o movimento. Este é o ponto no qual se insere para a arte o significado especial do meio homogêneo. Falamos já do momento inicial do estreitamento ou redução. Trata-se, sem dúvida, de um comportamento que considerado de um modo geral, ocorre também na vida cotidiana e exige frequentemente desta um papel de importância. “Sou todos ouvidos”, ou “sou todo olhos”, dizemos não poucas vezes, e queremos exprimir com isso uma passageira concentração do homem integral na recepção de impressões, sinais, signos, etc., que não podem receber senão pela mediação de um só e específico sentido. Não há dúvida alguma de que um estreitamento consciente e intencional, tal eliminação de todo o heterogêneo – especialmente quando se pratica de um modo sistemático – pode acentuar extraordinariamente a capacidade receptiva do sentido correspondente, fazendo-se visíveis objetos ou audíveis ruídos que não se teriam notada de outra forma. Também o estreitamento da consciência pode levantar desse modo um reflexo da realidade superior aos que o homem consegue dirigindo-se, por assim dizer, a essa realidade com toda a superfície de sua receptividade. Mas por claramente que destaque a ação promotora da concentração no reflexo, mais nos importam agora suas diferenças em relação do que chamamos meio homogêneo. Em primeiro lugar, essa concentração da cotidianidade é um estado por princípio passageiro. Pois, uma vez que o homem tenha percebido o sinal assim filtrado, volta a orientar-se como homem integral para a realidade. Em segundo lugar, e em íntima relação com isso, à concentração está determinada por uma determinada finalidade prática concreta. O objeto que deve se captar desse modo concentrado – por exemplo –, a onda observada, o longínquo rumor percebido –, enquanto que a concentração sobre um sentido somente comprova sua existência, seu movimento, etc., deixa de ser para o sujeito interessante objeto desse único sentido; quando, por exemplo, o caçador aplicou o ouvido a terra para se convencer da aproximação de uma manada de animais, enquanto toma consciência do fato, a visão, etc., revelam ao ouvido e ocupam posição diretora de sua conduta. Em terceiro lugar, a concentração sobre uma recepção pura e diferenciada dá lugar imediatamente a uma ação finalística do homem integral.

Por outro lado, para que surja um meio homogêneo no sentido da estética é preciso sobretudo, imprescindivelmente, certa permanência relativa do comportamento humano e, por outro lado, tem de se produzir uma suspensão cronológica de toda finalidade prática. Aparentemente, este último momento somente lança uma diferença quantitativa em relação aos fatos recém descritos da vida cotidiana, e até é possível, em casos extremos, que a observação concentrada descrita para a cotidianidade se prolongue durante mais tempo, por exemplo, que o traçado de um esboço artístico. Mas a diferença quantitativa média presente nos casos normais nada é do que o modo de manifestação de uma diferença qualitativa. Essa diferença qualitativa se encontra no modo de suspensão da finalidade prática imediata. Kant formulou talvez de modo mais agudo – e, em todo caos, mais influente – o problema contido nesses dados em seus conhecidos desenvolvimentos sobre o “desinteresse” do comportamento estético é também um fato que nessa expressão confundiu o problema. Pois, como costuma ocorrer frequentemente no curso do desenvolvimento da doutrina a deformação idealista adicionada pelos seguidores e intérpretes do filósofo agravou em muito a que já estava presente em sua exposição original. Assim se assentou para a arte, sob a autoridade de Kant, o postulado do desinteresse absoluto; a estética se fundou e se reduziu assim sobre e a contemplação pura. E, na compreensível oposição a esse ponto de vista unilateral, diversas tendências, da arte tendenciosa vulgar até a chamada “literature engagée [literatura engajada –ndt]” até as concepções de muitos teóricos do partidarismo socialista, eliminaram – com grande preconceito da compreensão do que em arte é o realmente artístico – a justificativa do desinteresse como momento do processo estético global. Para conseguir uma compreensão adequada do verdadeiro problema aqui discutido é preciso contemplar a suspensão das finalidades práticas imediatas – de chofre, com independência de posicionamento e da solução de Kant – como momento do reflexo da realidade objetiva e de seu aproveitamento na prática humana.

Há deste ponto de vista certa semelhança, nada enganadora nem casual, entre o reflexo científico e o estético. Ambos se separam do pensamento e da prática cotidianos precisamente porque se apresenta neles, como condição prévia imprescindível de seu reflexo diferenciado – e por isso eficaz – da realidade, tal suspensão; ambos põem essa suspensão das finalidades práticas imediatas na base do próprio comportamento, mesmo o façam de acordo com suas próprias finalidades e, portanto, de modos diversos. Não pode ser tarefa deste momento o estudo detalhado deste problema também pelo que faz à ciência. Mas, já um olhar mais fugaz tem de ver quer o desenvolvimento e o desempenho da ciência está, em última instância, condicionado por finalidades práticas, que inclusive a verdade científica mais abstrata e aparentemente mas distanciada da vida acaba por desembocar, antes ou depois, direta ou indiretamente, na prática, mas que, por outro lado, todo trabalho científico prescreve imperiosamente uma espécie de suspensão da finalidade que lhe é subjacente e que é talvez a que diretamente lhe pôs em movimento. Se é anulado este ato de ato de suspensão enquanto se está trabalhando para solucionar os problemas posicionados pelo reflexo da realidade, o pensamento se distancia da essência da realidade, o pensamento se distancia da realidade, se perturba sua aproximação a ela. Por mais que o pathos finalístico inspire o posicionamento de grandes problemas e até possa orientar para corretas e audazes respostas aos mesmos, o fato é que, se é interrompida prematuramente este estado intermediário de suspensão o mesmo pathos tem de obstaculizar e até inibir totalmente o sucesso de tais fins. A concentração sobre a realidade objetiva soma a essa suspensão à que descrevemos antes como própria da vida cotidiana. Mas como o caso da ciência não se trata simplesmente de perceber um fato individual determinado para perceber de sua presença ou sua ausência uma consequência prática instantânea para a ação, senão que se investiga o complexo de uma totalidade relativa de fatos não somente enquanto a seu ser ou não ser, senão também em relação de sua ligação, legalidade, etc. (inclusive quando um filólogo ou um historiado nada mais pretende do que estabelecer uma realidade de um fato isolado este fato lhe interessa pelas suas relações com outros), e as consequências resultantes deste achado não se refiram somente a um caso individual, senão que pretendem uma universalidade – também relativa – por tudo isso se tem entre ambas as suspensões da prática uma diferença qualitativa.

Em todos esses traços de máxima universalidade existe um amplo paralelismo entre o reflexo científico e o artístico, cujo fundamento, como dissemos várias vezes, é o fato de que ambos refletem a mesma realidade. A diversidade se revela nos mesmos dois pontos nos quais o reflexo científico se destaca daquele que é próprio da vida cotidiana. Primeiro, porque o objetivo de possuir um caráter de totalidade diferente daquele que tem no reflexo científico. Neste se trata sempre, sem dúvida, como vimos, de um complexo de fatos, ligações e legalidades. Mas a percepção, para o reflexo estético e particularmente por ele, tem como este complexo é sempre objetivamente somente uma parte de legações mais extensas e complexas, etc., como o reflexo científico aspira sempre transformar o puro em-si da realidade objetiva em um para-nós minimamente incorreto, a atenção que se dirige a essa parte não deve jamais descolar – o qual seria violentar – as reais relações objetivamente presentes entre os fatos. Cada reprodução cerrada da realidade, simplesmente provisória, metodologicamente isolada de seu mundo circundante. Pois a unidade da realidade objetiva, baseada na unidade da matéria, tem de ficar subjacente a todo reflexo científico (independentemente de que o sujeito que o realiza seja materialista ou idealista); a tendência científica desantropomorfizadora que descrevemos já detalhadamente tem, entre outras, também a função de suprimir as separações ou delimitações que não procedem do em-si, senão dos modos de comportamento da subjetividade humana.

Desde já este vínculo objetivo de tudo com tudo é também vinculativa para o reflexo como estrutura de seu objeto. Mas seu objeto não é simplesmente como sabemos o ser-em-si do mundo, senão o ser-em-si do mundo do homem, sem dúvida, em sua objetividade independente da consciência, ou seja, o ser-em-si de um mundo no qual as vagas da atividade humana aparecem objetivadas, convertidas em objetos, mas de tal modo que essa objetividade, sem se suprimir, se refere de novo ao homem. Através dessa dupla determinação, o aspecto da consideração do mundo pelo qual se tornam perceptíveis tanto a objetividade como aquela referencialidade tem de produzir refigurações do mundo nas quais o mundo externo apareça tendencialmente já não somente em sua totalidade puramente objetiva, mas também no seio dessa referencialidade: refigurações, pois, cada uma das quais pode e tem se sustentar-se por si própria, sem exigir nem tolerar complementação por outras. A garantia de que esse isolamento dos reflexos individuais da realidade não destrói sua objetividade, mas que, pelo contrário, a exprime intensificadamente, consiste em que cada obra de arte converte em fundamento da totalidade intensiva refigurada as determinações que são decisivas para referido aspecto do mundo. Deste modo cada obra de arte é uma refiguração do mundo inteiro visto de um importante ponto de vista humano; sua totalidade e a das determinações que lhes são subjacentes não é, pois, primariamente uma totalidade formal, mas de conteúdo; porém esta não pode conseguir uma objetividade senão se se torna estética, ou seja, mais do que se se some ao restante no mundo de formas que evoca (de não ser assim, se tem sempre um setor parcial da realidade, mais ou menos, arbitrariamente eleito). Esta transposição da infinitude extensiva e intensiva do mundo objetivo na totalidade intensivamente infinita das obras de arte está descrita de um modo muito belo por Lessing a propósito do decurso do mundo e da tragédia: “O que realmente ocorreu? Seja: assim terá seu bom fundamento na eterna ligação infinita de todas as coisas. Nessa ligação é sabedoria e bondade aquilo que nos poucos membros que elege o poeta nos parece cego destino e crueldade. Desses poucos membros deveria fazer o poeta um todo que se rodeasse plenamente, em que o único se explique totalmente pelo outro, no que não apareça nenhuma dificuldade pela qual possamos achar a satisfação em seu lugar, senão que tenhamos que buscá-la fora dele, no plano geral das coisas; o todo deste criador mortal deveria ser uma silhueta do todo criador eterno (...)”.(5)

Por mais radicalmente que se destaque aqui a diferença entre o reflexo científico e o artístico, não menos claro fica, pelo que faz à suspensão de toda finalidade imediatamente vinculados a um fato da vida humana, ambos os reflexos se movem em terreno análogo, ambos se destacam analogamente dos correspondentes modos de comportamento da prática cotidiana. O mesmo ocorre com o segundo ponto de vista essencial deste problema, a universalidade do conseguido mediante a suspensão das finalidades imediatas. Como é natural, essa universalidade é qualitativamente diferente daquela dos modos diferenciados de reflexo. Acabamos de dizer qual é a situação na ciência: a suspensão da finalidade prática imediata possibilita – antes ou depois, direta ou indiretamente – uma realização muito melhor de tarefas práticas muito mais gerais. Também a suspensão do interesse imediato na posição estética desemboca na vida prática da cotidianidade humana. Mas, diferente do que ocorre no reflexo científico, somente excepcionalmente se produz no caso estético uma promoção ou inibição imediatas das tarefas singulares e determinadas. Inclusive quando obras de arte desempenharam um papel tão importante na vida social – que se recorde A Marselhesa ou o romance de Beecher-Stowe –, uma consideração atenta mostra a seguir a particularidade de seu efeito: essas obras suscitam nos homens paixões, dão a estes determinados conteúdos, direções, etc., graças ao qual os homens se tornam capazes de intervir praticamente na vida social, de lutar a favor ou contra determinados fatos sociais. Que estes fatos se apresentem pelas obras de arte diretamente ao conhecimento é um caso limite – mesmo de máxima importância teórica ou prática. Mas, inclusive quando isto ocorre o efeito artístico supera amplamente o caso singular: A cabana do Pai Tomás não chama pela ajuda dos escravos por ela descritos, que talvez não existissem nesse ser-assim e, em qualquer caso, não eram praticamente acessíveis ao leitor movido pela evocação da obra, apenas que desperta sentimentos e paixões encaminhados a lutar pela libertação de todos os escravos (de todos os homens caracteristicamente oprimidos). Surge assim uma disposição humana que, para se realizar praticamente, para se converter realmente em ação, tem de achar na própria vida (e talvez na ciência) os meios concretos, etc. Uma generalização neste sentido está obviamente dada na música talvez por sua natureza como arte. (Mais tarde falaremos dos fundamentos da situação que faz aparecer na música às determinações do reflexo estético em sua forma mais geral e mais pura). De qualquer forma, também é visível que a generalização das finalidades surgidas pela suspensão do interesse prático imediato no estético não tem por objeto a realidade em si, apenas o mundo humano, o mundo tal como existe objetivamente em sua relação ao homem.

Tal é também o caso quando a obra de arte se dirige, em sua intenção subjetiva consciente, à defesa ou destruição de algo determinado do mundo do homem. Mas este não é o caso da grande maioria das formações estéticas. Disso se conclui que sua relação com o desinteresse é objeto de uma dupla estimação errônea. Por um lado, em dependência mais ou menos direta de Kant, se condenou todo desvio do desinteresse como um rompimento com o princípio estético; por outro lado, como já mostramos, se produziu um polo oposto, e não menos errôneo, de concepções que nada viam senão a justificativa social da arte que a prática social imediata desencadeada diretamente pela obra de arte. É facilmente visível a errôneo dos extremos. Ambas as concepções passam por cima que toda obra de arte nasce das experiências sociais dos homens, as reflete e as elabora de um modo que, como já mostramos, a captação do objeto fica já inseparavelmente vinculada com sua afirmação ou sua recusa. Naturalmente, isto se refere ainda mais intensamente à totalidade da obra do que à captação dos objetos isolados. Se, pois, a obra exerce um efeito evocador, esse efeito tem de conter já – consciente ou inconscientemente, direta ou talvez muito mediatamente – o despertar de seu partidarismo. Mas, a força e a profundidade reais da evocação artística se dirigem, sobretudo, à interioridade do homem: o que ocorre, sobretudo é o despertar de novas vivências no homem, as quais ampliam e aprofundam sua imagem de si, do mundo com o qual tem de ver no sentido mais amplo da palavra. A sadia sensibilidade social do homem reconheceu este efeito da arte desde os tempos da antiga catarse; a catarse em sentido estrito significa apenas, certamente, certo tipo desses efeitos, exercidos pelas obras de arte também determinadas; mas seu verdadeiro campo de jogo é incomparavelmente mais amplo, e muito variado segundo as circunstâncias histórico-sociais e segundo as artes de que se trate. O traço comum essencial é, entretanto que esse tipo de efeito estético pertence ao depois do propriamente artístico; não podem alterar esse caráter básico casos limites, como citamos antes A Marselhesa, nos quais a mutação do prazer estético o depois ético-social é imediato. E isto tem, por um lado, como consequência a compreensão de que, diferente dos extremos antes recordados, e pressupondo a existência de autênticas obras de arte, não pode haver arte alguma cuja vivência haja de cristalizar indefinidamente em uma contemplação realmente desinteressada. Por outro lado, que, na mesma suposição da existência de verdadeiras obras de arte, inclusive as obras orientadas diretas diretamente e exclusivamente a uma alteração material de um concreto fato da situação social e cujo pathos nasces dessa intenção, crescem, como formações estéticas, acima desse caso particular que as determinou e evocam coisas mais e mais profundamente enlaçadas com a evolução da humanidade, como o ser do gênero humano, que as contidas em suas finalidades imediatas de um modo diretamente explícito. Se lhes falta este traço, essas obras desaparecem rapidamente da memória dos homens. (Que se pense no drama tendencioso de Dumas filho, Augier, Sardou, etc., que tanto sucesso teve em outra época e tão totalmente esquecido está hoje).

A concepção aqui proposta – que o chamado desinteresse constitui somente um momento, mesmo que imprescindível, da estética, que não se trata, pois, de que desinteresse seja a essência do comportamento estético, mas somente uma suspensão necessária, mas de tempo, das finalidades imediatas dos homens – não se opõe tão diametralmente como pode parecer à primeira vista à verdadeira intenção da estética de Kant. Certamente que ele exagera o conceito de desinteresse porque, como idealista subjetivo, deseja eliminar o princípio do campo da filosofia do homem verdadeiro, integral, ativo e material. A estética deve segundo ele conseguir dignidade filosófica precisamente graças a sua separação estaticamente metafísica, sem passagens dialéticas em relação a todas as manifestações vitais da cotidianidade.(6) Mas ao mesmo tempo no pensamento do filósofo a estética, como entidade demasiado terrena e material em relação do ético deve ocupar o modesto papel que lhe corresponda na hierarquia do sistema.(7) O lugar intermediário que ocupa no sistema de Kant o desinteresse estético, acima dos baixos interesses da cotidianidade, mas abaixo dos interesses da ética, únicos dignos do homem, é um lugar determinado com rigidez hierárquica; não se tolera em sua localização nenhum membro mediador de um movimento dialético; Schiller foi o primeiro em tentar dissolver essa rigidez em um movimento dialético. Somente no que diz respeito à relação com a natureza pode se encontrar no pensamento de Kant semelhante da recondução dialética do estético à vida humana, e de uni-lo com os supremos interesses da humanidade. Assim escreve Kant sobre a vivência da natureza: “seu produto gosta não somente pela forma senão também em sua existência, sem que intervenha nisso o qualquer estímulo dos sentidos nem o relacione com qualquer finalidade”.(8) Tinha seu interesse estudar detalhadamente a desconfiança à Rousseau de Kant para com a arte. Essa desconfiança nasce certamente das lutas de classes do século XVIII, da recusa da cultura feudal-absolutista, negação e luta que, em consequência da inferioridade e mesquinhez das manifestações alemãs daquela cultura e da importância da burguesia alemã, atuaram de forma muito particular. No capítulo dedicado ao problema da beleza natural nos ocuparemos detidamente das consequências filosóficas concretas deste suposto “interesse intelectual pelo belo”. Este momento da estética de Kant – de grande importância do seu ponto de vista, tinha, de qualquer forma. De ser aludido já aqui porque nele e sem querer se põe uma auto superação do simples desinteresse, posto que se aponta para uma prática universal (que para Kant quer dizer moral) transformada pela sua suspensão. Certamente que isso ocorre de um modo extremamente particular. Quando Lessing, por exemplo, interpreta a catarse aristotélica dizendo que essa “purificação se baseia exclusivamente na transformação das paixões em disposições virtuosas”,(9) está reduzindo sem dúvida também o problema, estreitando-o ao puramente moral; mas seu posicionamento continua mais universal do que o de Kant.

Nossas considerações anteriores mostram provisoriamente dois modos de comportamento intimamente vinculados, isto é, um estreitamento da orientação ao mundo externo, a concentração desta à vivência por somente um sentido somente ou, pelo menos, ao perceptível segundo um aspecto exatamente determinado; e, por outro lado, a suspensão das finalidades práticas imediatas. As duas coisas juntas e em colaboração têm por finalidade possibilitar a percepção de objetos de um modo que seria inacessível para o homem integral normal da cotidianidade. O meio homogêneo deve sua possibilidade precisamente a esse modo de comportamento; Mas, se esse meio há de alcançar uma realização fecunda, o estreitamento tem de transformar-se em ato simplesmente inicial, tem de voltar a dar a palavra ao homem integral, mesmo em forma essencialmente modificada em relação a cotidianidade. Trata-se do reflexo estético da realidade. (Falamos já suficientemente da particularidade que tem no reflexo científico esta transformação do comportamento). Na estética o quê e o como do proibido, e ainda mais o plasmado, estão ligados indissoluvelmente com o sujeito produtor. A autenticidade da objetividade estética é uma função direta da largura e profundidade deste sujeito. Quando no curso destas considerações criticamos alguns teóricos que defendem importância decisiva do meio homogêneo para cada arte, o fizemos, sobretudo porque estes teóricos estreitam indevidamente a estrutura e o âmbito de eficácia do referido meio, porque – Fiedler principalmente – eternizam frequentemente o ato que constitui o ponto de partida, o resumo, a redução e a concentração da recepção do mundo, e amputam de todo demais o que tem de problema este aspecto do meio homogêneo. Mas se já na prática cotidiana se produz uma divisão do trabalho entre os sentidos, de tal modo que, com toda naturalidade, percebemos visualmente com espontaneidade propriedades das coisas que originariamente eram sensações táteis e se também a observação da atividade científica nos obriga a reconhecer que até no reflexo desantropomorfizador da realidade, a fantasia, por exemplo, desempenha frequentemente um papel de importância, como podemos ficar na estética como o simples ato de redução da atenção ao meio homogêneo?

Todo o exposto até este ponto mostrou clara e inequivocamente como característica da estética o fato de que o simples ser-assim do homem integral de cada caso, de sua particularidade puramente individual até sua participação na constituição da humanidade (com todas as necessárias determinações intermediárias), é de decisiva importância para o conteúdo e a forma das formações estéticas. E isso não somente do ponto de vista da gênese, como ocorre na cotidianidade ou na ciência, nas quais muito frequentemente aquilo que requer uma poderosa fantasia, por exemplo, para nascer, não a necessita já em sua reprodução teórica nem em sua aplicação prática e se converte em elemento normalmente utilizável da esfera teórica ou da esfera prática. Na estética, ao contrário, os impulsos passa do homem integral criador à obra de arte, se convertem em elementos construtivos objetivos desta, nas determinações do quê e do como de sua objetividade, de modo que não é possível qualquer efeito, qualquer recepção, sem uma reprodução da totalidade de tais impulsos que rondam na obra até dar um todo, uma unidade. Ao se transpor o homem integral ao meio homogêneo de sua arte, não se perde sua riqueza de determinações e tendências, senão que sobra simplesmente uma nova forma na concentração sobre o nascimento e a preservação do meio homogêneo, em seu desenvolvimento como portador de um “mundo”, como órgão do reflexo estético da realidade. Já falamos disso também em outros contextos; para diferenciá-lo do homem integral da cotidianidade, falamos do “homem inteiramente” relacionado criadora e receptivamente com a arte. O meio homogêneo pode cumprir sua função estética apenas graças a esta relação.

Como sempre quando na esfera estética algo consegue importância verdadeira e duradoura, também aqui se trata de uma posterior elaboração por meio de transposições de tendências já presentes e ativas na prática cotidiana. Aludimos já várias vezes à divisão do trabalho entre os sentidos no trabalho, e também ao fato de que ocorre ser imprescindível para o intercâmbio dos homens entre si que impressões puramente visuais ou auditivas figurem como sinais da interioridade humana e, como tais, se decifrem sempre espontaneamente com maior ou menor acerto. Também é evidente, e destaca já com clareza na arte inicial do período mágico, que com os gritos, os gestos, etc., se apercebam e interpretam espontaneamente como portadores de conteúdos anímicos. Ainda mais: já esses primeiros eventos de reflexo estético da realidade mostram que no meio homogêneo – da dança, por exemplo – o poder de reunião e unificação do ritmo é capaz de produzir intensificações e exacerbações inexequíveis normalmente par aa gesticulação da cotidianidade. Dizemos “normalmente” porque, como exceção, pode, naturalmente, ocorrer sempre que também na vida cotidiana se produzam tais exacerbações de gestos desencadeadores de emoções, mesmo falte necessariamente o princípio da rítmica, ordenador, homogeneizador e, com ele, adaptador de contrastes e promotor de sua culminação, e mesmo a sistematicidade estética dessas emoções nascidas espontaneamente, por pura expressividade, tenha uma personalidade forçosamente puramente casual. As formas de passagem do período mágico, no qual a estética não se desenvolveu ainda até conseguir uma substantividade, mostram também que o meio homogêneo nasce ou falta ainda em um determinado terreno segundo de acordo com que as condições de gênese nascidas da magia atuem em favor ou contra dele; que se pense nos êxtases orgânicas que já estudamos, nos quais o meio homogêneo da danças não está de acordo com a intenção subjetivamente senão de um modo casual; ou nas chamadas Vênus do paleolítico, nas quais os órgãos sexuais dominam plenamente, o que quer dizer que não se quis nem se conseguiu qualquer meio homogêneo da visualidade plástica, senão que a “composição” das estatuetas está determinada por motivos que são completamente alheios a esse problema. (É possível, desde já, que em estados mais evoluídos esses mesmos motivos se realizem com meios estéticos, em um meio visual homogêneo particular, mas isto não tem nada a ver com o problema aqui estudado).

A fonte imediata da concorrência de todas as capacidades, particulares, etc., que constituem o homem integral no resto da sua vida, no meio homogêneo de uma arte é da dupla natureza do próprio meio. Este é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, algo extremamente pessoal até a subjetividade particular, e, por outro lado, um sistema de leis autócnas, supra-individuais, próprias da arte de que se trate e que tem que obedecer-se se não de se quer que a posição estética fracasse totalmente. É impossível exagerar pelo que faz à rigidez e à intimidade dessa inseparabilidade. Trata-se sempre de um ato único e unitário. É impossível por princípio por o meio homogêneo de qualquer arte, mover-se nele livre e fecundamente, se essa posição e esse movimento não são de caráter completamente pessoal, se algum momento carece do selo da inconfundível da individualidade que se põe. Mas não menos impossível se expressar a personalidade criadora no meio homogêneo de uma arte se seu desencadeamento não coincide com o cumprimento das leis objetivas imperativamente prescritas pelo meio homogêneo, e se essa coincidência não é imediata e evocadora. Pois a necessidade dessa convergência absoluta indica de novo que as leis estéticas não podem se satisfizer senão mediante sua ampliação. Uma lei cuja existência se baseie exclusivamente em ligações objetivas pode se enriquecer, ou experimentar uma aproximação, ou errar-se, etc. Tudo isso ocorre em atos subjetivos cujo portador é o homem integral; mas a decisão, tanto em sentido positivo como no sentido negativo, não depende disso senão na gênese e não tematicamente. Em troca, se a própria satisfação objetiva está vinculada à personalidade, se nela não se diluiu o ser do homem integral, qualquer cumprimento pode ser igual a outro, cada um tem de possuir caráter pessoal não somente de modo fático-empírico, apenas também enquanto à determinação de valores.

Se esse vínculo do princípio artístico à individualidade encarnada na obra não tem de redundar em completo niilismo na anarquia de uma igualdade sem critério de toda e qualquer manifestação da personalidade, é preciso assegurar teoricamente como critério, como princípio da hierarquia estética, a satisfação dos postulados da arte de que se trate (e, neles, os da arte em geral). Mas então a medida do êxito ou do fracasso não se pode buscar ou se achar senão na medida na qual tal emanação de uma personalidade encarnada na obra ergue ou abaixa, aprofunda ou vulgariza, amplia ou reduz, etc., aqueles postulados. A necessidade de tal concepção que põe as leis de uma arte (e nelas as da arte em geral) em relação com a expressão da personalidade criadora tem diversas raízes. Neste contexto aparece segundo o aspecto indicado; mas sua base mais robusta é o caráter básico mimético de toda arte. As leis de uma arte, e esteja propriamente com elas, cairiam em uma arbitrariedade sem limites se não fossem mediações necessárias para captar adequadamente o mundo da humanidade de um ponto de vista determinado e essencial para os homens. E essa base se despoja a seguir de sua abstração (e, com ela, dos restos de uma arbitrariedade dogmática que ainda leva em si nessa versão abstrata) quando se tem em conta sua historicidade, isto é, o fato deque toda concretização do meio homogêneo realiza e torna vivenciável não somente a individualidade do criador, senão também, uno acto [ao mesmo tempo – ndt], o estado evolutivo dado da humanidade (e, dentro dele, um ponto de vista de uma classe, de uma nação, etc.), assim como a perspectiva, objetivada em leis da arte em apreço, que capacita para iluminar em relação ao homem e da evolução do gênero humano, determinados momentos da realidade, de um modo mais completo e profundo que o acessível ao homem integral em seu pensamento cotidiano.

Estas considerações levam a contemplar com mais atenção a relação do homem integral com o “homem inteiramente” ativo na estética. O primeiro que haveria para ser dito a respeito é que não se trata de uma interiorização, de uma intensificação lírica unilateral, ao modo como tão prazerosamente afirmam teorias modernas. Que se nos permita recordar o que dissemos antes sobre a alienação e sua retrocaptação no sujeito. Mostrou-se ali que na arte – como na vida – a riqueza e a profundidade da subjetividade podem se conseguir apenas através da conquista do mundo externo. E nem seque a lírica mais intimista, uma lírica que expressara diretamente apenas estados da alma, poderia cristalizar em forma sem apoiar-se em um reflexo do mundo externo, sem invocar, mesmo não seja mais do que enquanto pretexto ou como horizonte longínquo (às vezes abstratamente esboçado), a refiguração de referido mundo. A expressão “introversão” tomada da psicopatologia causa confusão pela razão geral de que somente é possível compreender o homem doente de modo racional – também no sentido de e para o terreno da estética – partindo da compreensão do homem normal, e não ao contrário; e, além disso, por causa da concreta estrutura da estética, Inclusive quando o sujeito lírico aparece orgulhosamente baseado em si mesmo, quando explicitamente ou pela linguagem implicitamente depreciativo de suas imagens pretende superar o mundo externo e não reconhecer como verdadeira e autêntica apenas sua própria interioridade , isso nada mais é do que superfície, mesmo, desde já, não inessencial. No conteúdo, na essência e, portanto, também na forma do que assim aparece se contem uma relação profunda e íntima – frequentemente negativa, desde já – com o mundo externo, e inclusive, mesmo isto não está geralmente explícito, como o mundo externo social da própria época, do passado ou do futuro. Essa riqueza intensiva relacional é precisamente a que consegue emprestar ao poema lírico plasticidade e profundidade. Por outro lado, a verdadeira introversão, tal como se apresenta nos doentes mentais, é uma deformação da personalidade, a qual – de fato e não somente polemicamente, utopicamente, como na lírica “introvertida” – corta os laços de união entre o Eu e seu mundo circundante e acarreta o esvaziamento, a destruição da vida interior. A peculiaridade do reflexo lírico da realidade – em comparação com a epopeia e mais ainda com o drama – o papel especificamente ativo que desempenha nela o Eu, refletindo o mundo externo, tem, desde já, que se analisar com cuidado e elevar-se ao conceito. Mas como este não é o lugar adequado para se tratar este tema suficientemente, permita-me aduzir uma estrofe de T. S. Eliot, sem dúvida um dos autores sob cuja égide se nega o caráter de reflexo que tem a lírica – para mostrar que nem sequer o mais íntimo pode receber forma apenas mediante o reflexo do mundo externo.

This is the dead land
This is cactus land
Here the stone images
Are raise, here they receive
The supplication of dead man´s hand
Under the twinkle a fading star.

E a seguir me permite uma ilustração teórica da situação, da orientação no posicionamento e na resposta, citando as frases finais de uma tentativa, também muito breve, de formular a essência do reflexo na lírica: o particular da forma lírica consiste em que nela o processo do reflexo “aparece como processo também artisticamente; a realidade plasmada se desempenha certo modo diante de nós in statu nascendi [no nascimento – ndt], enquanto que as formas da epopeia e do drama – também sobre a base da eficácia da dialética subjetiva – representam somente a dialética da aparência e da essência na realidade poeticamente refletida. O que na epopeia e drama se desenvolve como natura naturata [natureza natural – ndt], em seu movimento dialético objetivo, nos apresenta na lírica como natura naturans [natureza seguindo a natureza – ndt]”.(10)

Mas com isto apenas se consegue uma delimitação negativa, mesmo que, sem dúvida importante. Pois a recusa da interioridade pura, volta a si própria, enquanto representação do homem integral e como fundamento de sua transformação no “homem inteiramente” posto na esfera estética é instrutiva, já em sua simples negatividade, porque põe de novo como pressuposto da criação do mundo pela arte o vínculo dela com o mundo, seu enraizamento nele. As glorificações à la mode [na moda – ndt] da introversão passam entretanto por cima do que elas buscam, a intensificação da interioridade humana é algo diametralmente oposto à introversão real, patológica. O ponto de confusão é o fato de que essas modernas tendências tem subjacente uma oposição contra outras determinadas tendências, estas sociais, do capitalismo desenvolvido. A orientação intimista é a expressão da recusa de concretas constelações ou fatos sociais concretos, inclusive quando essa motivação se mistifica na consciência subjetiva como eterna relação humana entre a interioridade e o mundo externo. E a verdadeira intensidade artística da expressão, a encarnação estética de uma autêntica interioridade, requer, mesmo seja com uma falsa consciência, esta relação com o mundo da objetividade, e que essa relação, que desencadeia a orientação para a interioridade, se torne vivenciável na obra, de um modo ou de outro, mesmo seja com o pathos da recusa. Precisamente nisto tem seu fundamento a superioridade de Franz Kafka sobre outros autores contemporâneos de análogas aspirações.(11) Em todos estes casos, a interioridade, como fundamento da subjetividade estética enquanto tal, nada tem a ver com o pseudo-conceito de introversão, esteticamente tão confuso.

Se quisermos entender a real transformação do homem integral no “homem inteiramente” e sua fecunda relação com o meio homogêneo das diversas artes, devemos voltar um momento aos fatos da vida cotidiana dos quais partiram nossas considerações e contemplar mais de perto analogias e diferenças em relação à situação própria do estético. Vimos que na vida cotidiana o estreitamento da consciência, sua redução à observação auditiva ou visual de um determinado fenômeno, está relacionada com uma intensa concentração. Todas as propriedades do homem em apreço, todas suas anteriores experiências, todos os conhecimentos que possui, aparecem condensados nesse ato, com objetivo de que o fenômeno posto sob o cone de luz se capte em seu atual ser-assim do modo mais exato possível e possa, além disso, se proceder à sua desordem no sistema de experiências daquele assunto. Não há dúvida de que a realização inicial deste ato tem sua semelhança com o comportamento que estamos estudando, especialmente pelo que faz à concentração e à subordinação de todas as possibilidades relacionadas do homem situado sob essa atenção um tanto unilateral. E a diferença – ainda mais importante neste contexto – consiste em que na cotidianidade, uma vez captado o fenômeno que se buscava, volta a assumir seus direitos a estrutura normal do homem integral. A posição do meio homogêneo na estética significa, em troca, outra duas coisa: por um lado, já desde o primeiro momento não se orienta por um determinado objeto isolado precisamente por sua determinação; a percepção de detalhes, sem dúvida essencialmente clamorosa em relação do termo médio cotidiano, não cristalizado nunca em um isolamento do fenômeno, apenas que, ao contrário, o detalhe exige sua precisão e sua relevância precisamente pelo lugar que ocupa em uma ligação tendencialmente multilateral. Por outro lado, este ato de estreitamento e concentração tende no estético a ser perene: é próprio deste “homem inteiramente” tomado o modo de comportamento que nasce da inserção de todas as capacidades, sensações, conhecimentos, experiências, etc., na concentração sobre o meio homogêneo de uma arte. Enquanto que na vida cotidiana o homem integral conserva tendencialmente sua unidade e sua totalidade inclusive quando põe na obra (ou se reserva) suas forças dos modos mais diversos de acordo com as diversas tarefas da vida, o homem inteiramente não se realiza mais do que em relação do meio homogêneo de uma arte determinada. A justificativa de tal comportamento se fundamenta em que com sua ajuda a própria realidade com a que se enfrenta o homem em todas suas manifestações vitais fica refletida, em última instância, ao serviço daquela diferenciadíssima prática global, mas, pela passagem a este tipo de comportamento em relação ao mundo, entram então no reflexo da realidade importantes trações e ligações que, sem as quais, haveriam sido sempre inacessíveis ao homem integral da cotidianidade.

Esta fecundidade do meio homogêneo, mediada pelo homem inteiramente tomado, que se orienta a ele, se manifesta em uma série contradições motoras que constituem aqui a relação produtiva entre o sujeito e o objeto. O primeiro complexo de contradições, que já conhecemos, aparece agora com figura mais concreta que até o momento. Todo meio homogêneo nasce da necessidade dos homens de captar o mundo para eles objetivamente dado, que é ao mesmo tempo o mundo de suas alegrias e sofrimentos e sobretudo o mundo de sua atividade, da construção de sua própria vida interior e de seu domínio da realidade – do ponto de vista essencial determinado, mais próximo e concretamente, mais intensa, profunda, ampla e detalhadamente que segundo as possibilidade da vida cotidiana, e de aproximar-se a ele a partir de um problema que forçosamente tem de ignorar metodologicamente o reflexo desantropomorfizador da realidade. Como é natural, essa determinação descritiva esboça a situação de uma diferenciação já consumada dos modos humanos de comportamento em relação à realidade que se enfrenta a todos eles. Mas como descrevemos já as tendências espontâneas que levavam à autêntica posição no período da unidade mágica indiferenciada, e como a relação histórica da arte com a religião será assunto de um capítulo próprio, não é aqui necessário diferenciar mais esta situação historicamente. O decisivo do novo ponto de vista é aludir à grande estabilidade histórica desses modos de comportamento e dos meios homogêneos nascidos deles. É claro que a lírica de Rimbaud se diferencia qualitativamente daquela de Safo, e o pitoresco de Cézanne do pitoresco do paisagismo chinês, etc.; mas toda contemplação sem preconceitos, não confundida por um historicismo exacerbado, comprovará espontaneamente essa comunidade universal do meio homogêneo da cada caso e de suas leis. (É para nós óbvio que a evolução histórica produz um contínuo enriquecimento, mesmo desde já, de modo contraditório e irregular). A entrega do homem inteiramente considerado a seu meio homogêneo de cada caso tem pois como consequência uma fecunda contradição: por um lado, nasce nessa relação sujeito-objeto um poderoso veículo de conquista da realidade. Para permanecermos com o exemplo da pintura: se tornam visíveis coisas, relações, situações, etc., que antes ninguém havia percebido. E ao converter-se esses descobrimentos, lenta ou rapidamente, em bem comum dos homens, se amplia e aprofunda para eles próprios o mundo em que vivem e atuam. A possibilidade da descoberta torna essa relação sujeito-objeto, da concentração sobre um determinado caminho da concepção do mundo, da radical eliminação de todas as derivações e distrações às quais constantemente está exposto, e até entregue, o homem integral da cotidianidade. Certamente não será necessário confirmar essa afirmação mediante exemplos; todo mundo sabe o que significou o período da Renascença para a descoberta da estrutura e mobilidade do corpo humano, ou o século XIX pelo que fez à relação entre luz e calor dos corpos. Pode ilustrar este ponto a seguinte lembrança de Condivi sobre Michelangelo: “Ainda tenha pintado tantos milhares de figuras quantas vimos, nunca fez nenhuma igual à outra ou executando o mesmo movimento. Pelo contrário, certa vez lhe ouvi dizer que nunca traçava uma linha sem ter certeza de se a havia já traçado antes, caso no qual a apagava se o trabalho estava destinado a ser público”.(12)

Estas tendências se aparentaram às vezes muito com as científicas; isso se compreende, porque os esforços científicos de artistas da Renascença como Piero della Francesca ou Leonardo da Vinci são universalmente conhecidos, mesmo não estejam à altura de suas produções artísticas. Pois toda descoberta, inclusive quando do ponto de vista de tal consideração abstrata do conteúdo, converge com os resultados científicos, tem algo que os supera particularmente, e isto é de fato o que converte a simples percepção de algo até então não em uma inovação artística. O aspecto decisivo, do conteúdo, que tem esta constelação é muito complicado; o conteúdo de tais descobertas vai de novas iluminações da alma humana até a visão de novos caminhos da evolução da humanidade. Já nossas considerações anteriores roçaram frequentemente esta variedade ou multiplicidade de estratos, e as que virão faram referência repetida a este complexo de problemas. Por isso pode bastar aqui uma simples menção para esclarecer um pouco o conteúdo histórico-social, referido ao homem, como inovação da presença puramente artística. Isso também é óbvio, desde já, no caso da riqueza de movimento característica de Michelangelo. Mas permita-nos aduzir uma observação de R. M. Rilke a propósito das naturezas mortas de Cézanne. Estava contemplando com Emil Preetorius um desses quadros: “Rilke considerou reflexivamente por um bom tempo a magnífica pintura e observou ao final: mas seria já impossível se comer estas maçãs. E a mim pergunta – em chiste – sobre se é que são comestíveis as maçãs de pintura a óleo em geral, respondeu, suavemente, como sempre, mas com decisão, sério, sem vacilar, que as de Chardin sem dúvida alguma, e mais anda as de Manet, mas que isso terminava com Cézanne”.(13)

A observação de Rilke, que a primeira vista parece grotesca e fora de propósito, ilumina asperamente todo problema histórico-social que no caos do grande artista Cézanne rodeia a luta por algo novo: suas tentativas de evitar também todas as tendências subjetivistas e as que levavam entre seus principais contemporâneos a uma dissolução da unidade do quadro. Essa luz ilumina a trágica luta de Sísifo de Cézanne, seu esforço para captar o objeto, e também, com mais verdade natural e com mais composição do que era possível àqueles outros pintores sobre a base de sua visão e de seu método. Com sua observação aparentemente ingênua, Rilke aponta ao histórico beco sem saída que Cézanne, em luta trágica e perdida, tentou converter em caminho real: o distanciamento em relação à humanidade, iniciado precisamente por ele contra sua vontade, naquelas suas lutas internas, que são em si profundamente humanísticas. Assim toda descoberta realizada pelo homem em uma entrega completa ao meio homogêneo de sua arte se encontra ao mesmo tempo, inseparavelmente, algo recém-descoberto na própria realidade objetiva que constitui o mundo circundante objetivo do homem, e nas relações dos homens com esse mundo. Esta interação dialética, cuja eficácia subjaz objetivamente à vida de todo homem, pode exigir mediante essa entrega uma expressão sensível e significativa, e se converter em apropriação evocadoramente espontânea de todos os homens, em veículo da evolução de sua autoconsciência.

Lancemos um golpe de vista ao outro lado da contradição que até o momento contemplamos somente de um ponto de vista. Este outro aspecto se encarna na legalidade interna do próprio meio homogêneo, do mesmo jeito como consegue um encontro polêmico com a vontade do indivíduo criador. Podemos observar a um instante a mais simples consequência desta interação. Mas esse impulso ao descobrimento de novas terras é ao mesmo tempo uma fecunda demarcação de fronteiras. Contra teóricos que pretendem reduzir o alcance do conteúdo do meio homogêneo a sua pura imediação sensível, foi necessário mostrar a infinita riqueza de relações possíveis do homem com sua realidade total, que podem se integrar na conformação pitoresca, puramente visual, de uma maçã; que a refiguração pitoresca desta, sem pular os limites do pitoresco, pode revelar situações histórico-sociais decisivas, de concepção do mundo, dos próprios homens e de sua posição ou atitude em relação aos fatos. Esta irrupção do conteúdo múltiplo da vida do homem integral no mundo expressivo do homem, rigorosamente delimitado por leis do meio homogêneo, recebe um impulso desse mesmo mundo expressivo e, também, se vê impor determinadas barreiras. Que essas barreiras desloquem no curso da evolução, o que a seguir ocorre articulável muito mais que em outro tempo não se conheceu nem como tagarelice ou que, no máximo, se exprimia balbuciantemente, são fatos que não refutam a existência das próprias barreiras nem, todavia sua ação promotora sobre a amplitude do conteúdo e da forma artística. O talento verdadeiro – cuja determinação vagueia sempre que se busca em qualidades isoladas generalizadas do homem (ou em sua síntese) – é precisamente a correta relação do homem inteiramente tomado de seu meio homogêneo, a capacidade de achar, na eleição do conteúdo vital total que entra em pugna para se exprimir, o Quê e o Como cujo conteúdo e cuja forma sejam tais que precisamente que esse meio homogêneo possa erguer-se em fundamento de sua própria forma concreta.

As regras particulares derivadas do meio homogêneo que regulam essas interações entre o sujeito e o objeto, conteúdo e forma, riqueza e unidade, etc., são, como é natural, diversas em cada arte e até cada gênero, e não podem, portanto, estudar-se senão em suas teorias respectivas, não na doutrina dos princípios do reflexo estético. Mas já a mais geral caraterização do meio homogêneo, isto é, a afirmação de sua homogeneidade, não se deve conceituar – se é que se quer se entender corretamente – como uma propriedade abstrata, negativa, mas como algo positivo que atua concretamente. Tampouco aqui se trata de uma situação ou uma estrutura exclusiva da estética e que se houvesse “inventado” em um momento ou outro, senão de um problema geral do reflexo da realidade, problema, de qualquer jeito, que exige aqui uma forma particular, e peculiar, uma intensificação qualitativa. O papel que desempenha a negação na lógica hegeliana é de máxima importância para a evolução dialética. Somente pode se produzir uma ligação real, concreta e movida, quando a afirmação e a negação, a determinação e a negação exigem uma relação tão íntima que a negação se torna visível para a determinação como sua própria negação. (Hegel supera a célebre precisão de Spinoza “omnis determinatio est negatio” [“toda determinação é uma negação” – ndt], que ele próprio aplicou e comentou tantas vezes). Assim acontece, por exemplo, na ligação do Uno com o Vazio: “O vazio é fundamento do movimento somente enquanto relação negativa do Uno a seu negativo”(14) Engels divulgou várias vezes essa concepção da negação sem a qual é impossível chegar a uma negação da negação, especialmente em polêmica de formulações plásticas contra a concepção metafísica vulgar da negação. Esta concepção vulgar se opõe a precisa determinação de Hegel da negatividade existente para cada posição positiva. Costuma se dizer neste sentido, indica Engels, “nego a proposição: a rosa é uma rosa, quando digo> a rosa não é uma rosa”. Em sua exposição posterior mostra a seguir os simplíssimos fatos que levam necessariamente a concepção de Hegel do negar dialético. (Com isto se abre o problema da negação da negação, mas esse problema não tem por que preocupar-nos neste momento). Escreve Engels: “Na dialética negar não significa simplesmente dizer não, ou declarar inexistente uma coisa, ou destruí-la de um modo ou de outro (...) A natureza da negação está aqui determinada pela natureza geral e, em segundo lugar, por outra natureza particular do processo (...) Cada classe de coisas tem pois seu modo peculiar de ser negadas de tal maneira que nasça disso um processo, e o mesmo ocorre com cada classe de representações e conceitos. No cálculo infinitesimal se nega de modo diferente que na produção de potências positivas a partir de raízes negativas”.(15) O esclarecimento de Hegel da negação dialética, especialmente tal como se apresenta na exposição de Engels mostra uma diferenciação dos polos Sim e Não (conservação e destruição) na própria realidade e em sua captação aproximadamente adequada pelo correto reflexo. O principal de tudo isso é para nós que a negação dialética representa um caso especial, produzido pela própria realidade, a negação geral abstrata. Já a vida cotidiana se vê constantemente obrigada a se enfrentar com a diferença, porque suas consequências práticas são de grande alcance. A tendência espontânea do reflexo científico da realidade – que não se identifica em absoluto de um modo simples com clareza filosófica sobre a significação básica do método dialético, e até em alguns casos, inclusive em afirmações científico-metodológicas, pose perfeitamente se apresentar, e o faz realmente, quando o pensamento filosófico se encontra preso na metafísica e recusa veementemente à dialética – se orienta em explicitar concretamente a sua maneira, para cada terreno, a relação real de determinação real de determinação e negação. Do reconhecimento da evolução da vida até o papel do negativo (o “mal”) na ética, na história, etc., o conhecimento de tais ligações é imprescindível para uma reprodução correta da realidade tal como esta é em si. O reflexo estético tem pois de recorrer também, na exata separação das duas classes principais de negação, o caminho que empreenderam, com independência dele, a cotidianidade e a ciência. Como em todos os demais casos, a analogia se baseia em que três tipos de comportamento se confrontam com a mesma realidade, em que a condição imprescindível para que satisfação suas funções sociais é precisamente a captação correta das determinações essenciais desse objeto comum.


Notas de rodapé:

(1) Não temos de atentar aqui ao fato de que esse caminho pode se tornar problemático, como ocorre no caso do formalismo matemático. (retornar ao texto)

(2) FIDLER, Escritos de Arte, cit., II, p. 45. (retornar ao texto)

(3) Cfr. o artigo de Cesare Cases “I limiti dela cririca stilistica” [Os limites da crítica de estilo- ndt], Società [Sociedade – ndt], 1955, nums. 1 e 2, assim como o excelente estudo de Mikhail Lifschittz “A propósito do artigo de S. Widmar ‘De meu diário’”, (em russo) Novi Mir [Novo Mundo –ndt] , 1957, num. IX. Este trabalho não estuda diretamente a escola mencionada, mas suas análise contém uma profunda crítica indireta de seus princípios e de sua prática. (retornar ao texto)

(4) HEGEL – A História da Filosofia , Obras, volume XIII, p. 296. (retornar ao texto)

(5) LESSING, Hamburgische Dramaturgie [ Dramaturgia de Hamburgo], p. 79. (retornar ao texto)

(6) Kant, Kritik der Urteilskraft [Crítica da faculdade de julgar], §3. (retornar ao texto)

(7) Ibid., § 4. (retornar ao texto)

(8) Ibid., § 42. (retornar ao texto)

(9) LESSING Dramaturgia de Hamburgo, p. 78. (retornar ao texto)

(10) G. LUKÁCS, Shicksalswende [Inflexões do destino], Berlim, 1956, p. 231. (retornar ao texto)

(11) G. LUKÁCS, Wider den missverstandenen Realismus [Contra o realismo mal compreendido], Hamburgo, 1958, p. 45 e ss., 86 e ss. (retornar ao texto)

(12) A CONDIVI – A vida de Michelangelo , cap. 58. (retornar ao texto)

(13) Der Monat [O mês - ndt], num. 81, janeiro de 1955, p. 248. (retornar ao texto)

(14) HEGEL – A ciência da Lógica, III, p. 177 ss. (retornar ao texto)

(15) Engels, Antidühring, cit. p. 144 e ss. (retornar ao texto)

Inclusão: 27/09/2021