Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


I — A Política, os Políticos e os Outros


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O programa que o Ministério da Educação e Cultura publicou recentemente a respeito da disciplina de «Introdução à Política», define como objectjvos primaciais a descrição, a informação e a clarificação dos respectivos problemas, de forma a se propiciar aos estudantes um panorama de conjunto, uma primeira identificação com as instituições, as práticas e as ideias correntemente referidas nos órgãos de comunicação. Mas o programa tem, aliás justamente, uma ambição maior. Ele pretende suscitar o interesse e o gosto pela prática da democracia e, portanto, pela política.

A cultura política exige uma correlação constante entre o sector teórico e o sector prático.

O pensamento político, se se circunscreve a viver no mundo das abstracções e dos ideais, quase sempre sonhos inalcançáveis, não passa do campo das utopias. Uma introdução à política — parece — só se revelará uma disciplina válida e eficaz na medida em que implique (como explicitamente apontam as observações prévias do programa oficial) um constante recurso ao caso concreto, uma confrontação permanente com as situações práticas que corporizam as noções e dão vida às ideias.

Precisamente por isso, desde logo me permito reformular em termos um pouco diferentes a abertura do esquema programático oficial. Este divide-se em cinco grandes partes: — «Que é a Política?»— «Principais Ideologias Políticas» — «Sociologia Política» — «Regimes Políticos» — «Comunidade Internacional». Se nos ativéssemos estritamente a este enunciado, o estudante e a pessoa interessada nas questões da Política correriam o risco de entrar no edifício desta disciplina pela sua porta mais abstracta.

Vejamos o que pode acontecer.

O primeiro ponto do esquema programático é, como vimos, o enunciado de uma simples interrogação:— «Que é a Política?». Ora o tratamento desenvolvido da resposta (ou das respostas) a esta pergunta pode levar-nos a verificar aquilo que, muito concretamente (muito apavoradamente), me contava há dias uma aluna do 1.° ano complementar do Curso Liceal. Logo na primeira aula o professor disse «escrevam» e eles, alunos, passaram a escrever. E o quê? Muito simplesmente dezena e meia de «definições» de política ao longo de vários filósofos, pensadores e autores: — política para Platão era isto, para Aristóteles era aquilo, para São Tomás de Aquino aqueloutro, para Maquiavel outra coisa ainda, e outra para Descartes, outra para Locke, para Voltaire, Rousseau, Marx, Engels, Lenine, etc., etc., etc.... — enfim, uma grande barafunda estabelecida, logo à cabeça, na cabeça dos alunos.

Em consequência deste risco de caos., precisamente pela necessidade de introduzir a pessoa que pretende ser estudiosa dos problemas políticos nas suas relações teóricas e práticas, é que me permiti — como já atrás disse — substituir o primeiro ponto do esquema programático («Que é a Política?») por um capítulo em que, de manifesto, o aspecto teórico e o aspecto prático convivem e se fundem incindivelmente. Vamos portanto começar por falar de política conjuntamente com o falar dos políticos, e ainda dos outros — precisamente daqueles que, não fazendo «profissão» da política, pensam que não são políticos.

A política, naturalmente porque traduz a vivência de todos os nossos interesses (materiais e espirituais) postos em causa, presta-se com facilidade quer a um jogo de lealdades e de nobrezas à superfície, quer a um jogo de deslealdades, de hipocrisias, de farisaísmos mais ou menos subterrâneos. Por causa desta conjuntura é muito difícil, se não mesmo impossível, que uma pessoa alheia (ou não alheia) à vida política se atreva a comparar um político, vá lá, com um santo. Voltaire perguntava-se:

— «Que é a política se não a arte de mentir a propósito?».

E por sua parte, decerto porque era grande poeta e respeitava ao máximo a grande Poesia, Goethe escrevia e interrogava-se desta forma:

— «Quando o poeta quer fazer política, é obrigado a entrar para um partido e, a começar logo por aí, ele está perdido para a poesia. Será necessário que abandone a sua liberdade de pensar, a lucidez e a clarividência, e que enterre até às orelhas o barrete do pensamento mesquinho e do ódio estúpido?»

Escolhi estes dois nomes de alta ressonância cultural para nos apercebermos, sem a paixão da proximidade no tempo relativamente a nós próprios, daquilo que as pessoas tendem a pensar da política. E no que nos respeita, mais directamente, aos produtores da cultura portuguesa, também não hesitaria em mostrar aquela espécie de desconsideração geral em que a boa gente do viver quotidiano tem os políticos. Na nossa literatura, por exemplo, um Eça de Queiroz, um Ramalho Ortigão, um Fialho de Almeida e uns tantos outros desenharam-nos o político como um homem maneiroso, artificial, ambíguo em todas as atitudes que requeressem verticalidade e espinha dorsal, movido unicamente pelos seus interesses pessoais, ou alheios, mas sempre baixos. Aliás, coisa curiosa, mesmo o padre António Vieira — que se enfronhou na política até ao último dos seus ossos — não deixou de escrever, como escreveu, a propósito dos políticos («Sermões», volume VII, págs 116 da edição Lello & Irmãos):

— «Tempos houve em que os demónios falavam e o mundo ouvia; mas depois que ouviu os políticos ainda é pior o mundo...»

Quererão dizer que a política é recusável?

Significará isto que a política é um reino infernal, sem remédio ou moral que o salve ou lhe valha?

Estas questões obrigam-nos a uma reflexão.

A política e a moral talvez tenham vínculos menos inflexíveis do que aqueles que as pessoas pensam. Evidentemente, não se pode eximir a política ao julgamento da moral. Porém, apesar de ser desejável que o homem político seja sempre um homem de bem, esta relação não se pode situar a um nível absoluto. Quer dizer: — a política toma a seu cargo os destinos das comunidades humanas como tal, independentemente da qualidade moral e da vocação pessoal dos membros dessas mesmas comunidades. E a afirmação que acabo de fazer não é tão escandalosa como à primeira vista parece. Tem a seu favor, até, um apoio que eu diria clássico. Como afirmou AristótelesPolítica», III, 4, 1276 B 34-35), é possível ser bom cidadão sem se possuir todas aquelas virtudes que fazem da pessoa um homem mortalmente intocável. Julien Freund chega a entender («O que é a política?», Editorial Futura, 1974, págs. 7) que a identificação da moral com a política, quando se pretende reconduzi-la a termos absolutos, chega a constituir uma das fontes mais vulgares do despotismo e das ditaduras. O déspota, o ditador, o tirano moderno (como aliás o antigo) nunca cessou de se figurar como incriticável por virtude de se arrogar, carismaticamente, a todas as qualidades da perfeição humana. Em consequência, resulta que a moral não é inerente à actividade política por questões de necessidade conceituai ou lógica. Agir politicamente não representa, em suma, a mesma coisa que agir moralmente — e vice-versa.

Sendo então a moral e a política duas actividades distintas por natureza, na medida exacta em que os seus objectivos são diferentes, mostra-se evidente que o mesmo tem de acontecer no plano prático. A simples qualidade ética do sujeito não constitui garantia de qualidade ou de eficácia política. O verdadeiro político é antes o homem de larga visão dos negócios públicos. É o promotor da satisfação dos interesses colectivos. O arquitecto inteligente, lúcido e pertinaz de programas e planos de interesse social. Sem dúvida, todos desejarão que o político seja o mais possível uma pessoa moralmente qualificada, repito. No entanto, deve ficar bem claro que a validade e a eficácia de uma política não se define, basicamente (necessariamente), pela angélica moralidade dos seus sujeitos.

Intitulei este capítulo «A Política, os Políticos e os Outros». E alguma coisa ficou já dita sobre os políticos. Reservo para o seguinte a resposta à primeira questão do esquema programático a que me venho referindo. Terminarei, pois, falando ainda dos «outros» — isto é, de todos aqueles que não se dedicam directamente à actividade prática da política.

Significará isto que os outros se limitam à posição de espectadores da actividade política ou, ainda pior, de sujeitos passivos (para não dizer puros objectos) de uma actividade política alheia?. Neste ponto, recordo as palavras das observações prévias do programa da disciplina «Introdução à Política» que o Ministério da Educação e Cultura tornou público há pouco. Esta cadeira destina-se «desde já a suscitar nos alunos (logo, nas pessoas em geral) o interesse e o gosto pela prática da democracia, e, portanto, pela política». Isto quer dizer, muito directamente, que em regime democrático todos somos políticos. Só nos regimes ditatoriais ou tirânicos a política é uma espécie de propriedade exclusiva do governante que a impõe irrecusavelmente ao seu «rebanho» de surdos, cegos, mudos e paralíticos. A vivência democrática implica, ao contrário, que todos os membros da sociedade se consciencializam e participam nos destinos da respectiva comunidade. Afinal, tal vivência é aquela única que concorda com a velha afirmação de Aristóteles, em cujos termos «o homem é um animal político» e nisso se distingue, essencialmente, dos restantes animais.

A política invadiu a nossa vida quotidiana. São palavras do dia-a-dia: — liberdade, democracia, fascismo, ditadura, eleições, soberania popular, luta de classes, proletariado, vontade colectiva, etc., etc. — um mundo no plano do vocabulário que coloca a pessoa numa de duas situações: ou se esclarece e participa, ou anda simplesmente no tempo moderno por ver andar os outros, sem nada entender dele. Além disso, cada vez mais os problemas da nossa sociedade requerem que o cidadão se clarifique quanto a um ror de conceitos: — o que são os preços, o que é a inflação, o que é o salário, o emprego, o ambiente, as necessidades e o modo das suas satisfações, tudo na medida em que tudo depende dos modelos de civilização que o homem procura, participando o mais possível e em seu proveito nas decisões da colectividade. A política penetra, enfim, a nossa existência em todos os níveis.

Isto leva-nos a uma conclusão imediata: a politização, a consciencialização política, é para todo o cidadão um dever prático e constitui, para aquele que sabe um pouco mais destas coisas, um dever pedagógico. A reflexão sobre os temas políticos limitava-se, no regime ditatorial anterior ao 25 de Abril, a um estreitíssimo sector da população. As massas foram reduzidas ou mantidas na ignorância e na indiferença. Viviam esmagadas pela violência, sem saberem até bem porquê e como. Mas hoje, no caminho de uma democratização desejável, chegou a altura de todo o cidadão procurar desempenhar na política um importante papel, para assim exercer útil influência na vida nacional.

Mas há quem pense que a despolitização representa uma característica das sociedades desenvolvidas modernas. A abundância de bens económicos, a maior disponibilidade de produtos para a satisfação das necessidades da população, tudo terá levado — segundo pensam alguns (mal, diga-se desde já) — a uma espécie de pacificação social. Vivendo na sociedade da abundância, o homem resultaria anestesiado quanto às suas faculdades políticas. Comer o suficiente (ou até o excedente) e com largueza satisfazer as suas necessidades — numa palavra, viver conforme um elevado nível de vida social e económica — levaria o cidadão a anestesiar-se politicamente, a despolitizar-se, resultando cada vez mais uma crescente massa de população por isso mesmo tornada conservadora. Para quem assim pense, a consciencialização política ou a politização constituirá um facto anómalo. Que nos fique, porém, esta advertência: — eis uma concepção que só convém aos reaccionários e aos ditadores.

A realidade é, com efeito, muito outra. Em virtude de uma espécie de paradoxo (aliás facilmente explicável) o crescimento dos níveis de vida, ao contrário de aumentarem a passividade do cidadão, opostamente hipertrofiam e amplificam ou exasperam as reivindicações sociais e económicas. Esta verdade foi lucidamente sintetizada por Jean-Pierre Lassale («introdução à Política», edição portuguesa D. Quixote, págs. 47):

— «A contestação — escreve Lassale — é tanto mais forte quanto mais aumentam os recursos colectivos».

E como explicar, mais fundamente, este fenómeno à primeira vista contraditório?

A politização das sociedades contemporâneas provém fortemente da importância assumida pela ideia crítica que se faz do Estado, da necessidade de transformação das nossas vidas e da nossa mentalidade. Aí colaboram activamente os meios de comunicação social (imprensa, rádio, televisão), poderosos veículos e fonte de difusão política. Os meios de comunicação (os mass media) favorecem as tomadas de consciência ao mesmo tempo que generalizam ou universalizam as polémicas antigamente circunscritas a cada sociedade nacional. O fenómeno, porém, merece ainda outra explicação.

Nas modernas sociedades industriais, largamente desenvolvidas do ponto de vista da produção, a tendência é para que aumente a consciência crítica das pessoas. A sociedade tradicional caracterizava-se por uma espécie de passividade. Os diferentes agrupamentos nacionais eram de certo modo impermeáveis uns nos outros, sendo difícil compará-los entre si, de tal modo o estatuto económico-social de cada um surgia como espécie de fatalidade a que os respectivos membros não lograriam nunca escapar. Mas o progresso do nível de vida, o aumento da importância das organizações de pessoas, a aludida difusão da informação, tudo isto tornou mais fáceis as comparações, amplificando o nível da consciência política.

Antigamente, quando era pacífico o entendimento de que a sociedade burguesa tinha os seus órgãos políticos e estes asseguravam a ordem estabelecida — ordem essa onde aos trabalhadores nada mais competiria além de operar exaustivamente nas fábricas e oficinas para a produção da riqueza nacional (canalizada para a classe dominante) — a consciencialização política era considerada, como continua a ser por parte de todos os reaccionários, manifestação subversiva do ponto de vista social. «Subversiva», no mau sentido, entenda-se.

É necessária, porém, cada vez mais uma transformação da mentalidade. A consciência humana forma-se no transcorrer da actividade especial da produção. No trabalho, adquire o homem consciência das suas relações com o meio ambiente, convivendo todos os que participam na produção. Escusado seria dizer que, aparecendo a consciência como resultado ou efeito consequente do trabalho social, não a possuem nem sequer os animais superiores. A consciencialização pressupõe a capacidade de organizar racionalmente a produção. Todo o membro da sociedade tem de trabalhar, tem de participar na produção, e assim aumentará a sua consciencialização político-social. Não é exacto, em suma, distinguir os políticos dos outros. Repito: — como dizia Aristóteles, o homem é um animal político.

E vamos então, depois de assentes todos estes pressupostos, responder à pergunta capital: — «Que é a Política?».


Inclusão 15/12/2014