Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


II — O Que é a Política


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Trata-se de uma interrogação secular — interrogação que vem de Aristóteles aos nossos dias, e jamais cessará de ser feita. Mas a resposta à pergunta do que realmente seja a Política,dependerá sempre da óptica, da ideologia, do critério segundo o qual se responda.

A política — eis um critério possível de distinção — pode ser considerada fundamentalmente de dois modos: — do ponto de vista prático ela é uma forma de actividade humana; do ponto de vista teórico constitui uma ciência. Fala-se, por isso, de política ou para significar a actividade política dos homens ou para aludir à ciência política (a «politicologia», como alguns hoje lhe chamam).

Vamos abordar estes dois modos de ser pela ordem que acabo de indicar: — primeiramente o ponto de vista prático e depois o teóriço.

Do ponto de vista prático, enquanto (portanto) consideramos a política como actividade dos homens, diremos que este conceito se prende directamente à raiz etimológica da palavra. Política é vocábulo de origem grega e significa «viver em sociedade». E pois que todos os homens vivem necessariamente em sociedade, por isso mesmo Aristóteles afirmava que o homem é, pelo seu próprio ser, um animal social.

No quadro deste conceito (a política vista como actividade prática dos homens) temos no entanto e ainda de distinguir dois sentidos especiais. Num sentido amplo ela representa a actividade quotidiana de todos os elementos da sociedade na realização dos seus interesses individuais ou colectivos; ao contrário, num sentido restrito, como forma específica de actuar daqueles que fazem dela a sua forma particular de actuação, a política representa o exercício de um poder organizado com o objectivo de comandar ou orientar os destinos de determinado agrupamento humano. Quer isto dizer que, em suma, enquanto por um lado e em sentido amplo todos os homens fazem ou realizam diariamente a política dos seus interesses, por outro, e em sentido restrito, os políticos exercem os poderes instituídos com vista a realizar os fins para que a sociedade se organizou.

Vejamos, em primeiro lugar, a política como expressão da dinâmica geral de todos os seres humanos na sua actividade prática.

Aí percebemos que, à excepção do que acontece com os homens, todos os animais agem improgressivamente, condicionados pelo meio em que nascem, vivem e morrem. Mesmo numa abelha (animal que nos impressiona pela disciplinada e funcionalíssima forma como se comporta) não é possível o aparecimento de um desígnio, de propósitos conscientes. Nem de uma ideia de progresso social. A abelha sempre fez e sempre fará em construção igual a estrutura geométrica dos seus favos. É que todos os animais não humanos vivem e viverão no mundo da Natureza limitados pelas suas próprias condições.

O seu instinto pode revelar-se-nos um veículo para actividades extremamente hábeis, mas eles serão sempre incapazes de conseguir a conquista de um destino diferente ou a transformação das estruturas do grupo. O animal não-humano jamais poderá alterar, por força da vontade, o seu destino social.

Contrária é a relação que se estabelece entre o homem e o meio ambiente que o circunda. Ainda que nos tempos mais primitivos, há milhões e milhões de anos, ele vivesse e se comportasse como os seres mais rudimentares, a verdade é que por força do trabalho (produto da inteligência em aliança com a vontade) logrou o homem transformar-se. e sempre continuará a conseguir, a transformação do meio em que vive. Tal transformação pelo trabalho efectua-se não só quanto às condições físicas e geográficas da existência, mas também naquilo que respeita à evolução social, criando-se instituições, organizando-se diferentes modos de associação, tudo a caracterizar formas de consciência e vida espiritual. Passo a passo, ao longo dos séculos, foi então o homem descortinando e compreendendo os segredos da Natureza. Foi descobrindo as leis dos fenómenos, utilizando os recursos naturais. E. correlativamente, formou ideias e estatuiu costumes. Opostamente a todos os outros animais, que continuarão sempre a viver as mesmas «ideias», operando sempre conforme os mesmíssimos «costumes», o homem opera dia-a-dia, em forma de progresso, a transformação da sua própria sociedade.

Todo o homem é, em suma, um animal político. Todos os homens participam na política como actividade prática em geral. Veremos mais adiante (no 4.° capítulo deste livro) que em dado momento da sua aventura histórica chegou o homem a um ponto em que transformou em Estado o seu agrupamento. Por ora limitar-nos-emos a dizer que, chegada essa fase histórica do Estado, a política traduz-se, em sentido amplo e como prática social geral, na participação de todos os homens (de todos os cidadãos) nos assuntos do mesmo Estado. Uns limitam-se, repito, à actividade participante sem outro desígnio que «o tratar da sua vida». Mas outros, que diríamos ou mais ambiciosos ou mais conscientes da necessidade de progresso e transformação social, levam tal actividade participante ao ponto de querer mandar (de comandar) nos destinos da sociedade. Vemos esta, então, nitidamente distinguir no seu seio o sector dos governantes do sector dos governados. E, dentro da actividade prática geral que a Política constitui, vemos também que o primeiro destes dois sectores, o dos governantes, a leva (à política) a figurar-se por uma parte como a conquista do poder, e por outra, como o exercício desse mesmo poder.

Em resumo: — políticos, dizia-se no primeiro capítulo, somos nós todos, como homens que somos: mas políticos são-no, especialmente, aqueles que procuram conquistar e exercer o poder.

Passamos então, olhando agora o homem como político em sentido restrito, a encarar a política como actividade ou exercício prático de um poder organizado. Isto é: — de um poder que se instituiu com vista à realização de determinados fins sociais. É então que se fala da política como arte de governar — em oposição à política como ciência, que mais adiante analisaremos nos seus traços gerais.

Pensadores e autores vários, referindo-se à actividade ou ao exercício prático do poder, declaram que a política constitui uma arte. E o conceito não representa uma coisa nova. Já os gregos da Antiguidade Clássica — mestres da Política — definiam esta como «a arte de governar os povos». Eis uma concepção que atravessou perenemente os tempos, de tal modo que ainda recentemente, em 1962, Robert caracterizava a política como «arte e prática da governação das sociedades humanas».

É verdade que desde há séculos procuram os pensadores distinguir entre a Arte e a Ciência. Mas não se ignora que nenhum artista (nenhum praticante da arte) deixou alguma vez de se socorrer dos conhecimentos científicos do seu tempo, para realizar a produção da sua obra artística. Então, e no plano que agora nos importa, diríamos que a arte política da governação dos povos se nutre constantemente dos dados científicos que ilustram o universo conceituai da sua época.

Littré, em 1870, pretendia que a política era uma ciência. Eis o seu conceito: — «Política — ciência da governação dos Estados». Porém, nesta definição ele não estava a utilizar o termo «ciência» no sentido que iremos empregar mais adiante, ao analisarmos a política do ponto de vista teórico. Sem dúvida, não é de mais repetir, toda a arte está sempre mais ou menos cientificada no seu contexto ou na sua estrutura. Compreensivelmente, hoje a política encontra-se bastante mais cientificada que que no tempo de Littré. Os políticos da actualidade podem socorrer-se de estatísticas e sondagens da opinião pública, têm ao alcance várias técnicas de condução das massas e calculadores electrónicos. Mas isto não confere à política prática o carácter de ciência. De modo nenhum. Antes só revela e torna patente que a política, como actividade prática, é uma arte cada vez mais cientificada. Ou mais correctamente: — que a política prática é uma arte que dispõe cada vez mais dos dados da Ciência.

Vou procurar demonstrar este facto com um exemplo baseado no pensamento político de Lenine, que hoje tem a maior acuidade.

No capitalismo, as leis dos fenómenos económicos actuam cegamente. Ao contrário, como se sabe, a política económica socialista arranca do conhecimento científico das leis da produção e da acumulação, isto para realizar o acordo mais perfeito possível entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Uma coisa, porém, é fundamental no pensamento de Lenine. Quando os «economistas» afirmam (segundo uma tese marxista superficial, vulgar ou rígida) que a política segue docilmente o económico, o que afinal fazem é vergar-se perante a obscuridade da inconsciência, recusando-se a elaborar uma teoria revolucionária específica «que responda às tarefas gerais do socialismo e às condições (...) actuais» («Que Faire?», Oeuvres Choisies, I, págs. 209). Tal «economismo» emprega as teses de Marx e Engels de modo totalmente oposto ao espírito do marxismo e à estrutura extremamente dialéctica dos factos reais e da doutrina. Como escreveu Henri Lefebvre em «O Pensamento de Lenine» (edição portuguesa da Morais, págs. 243), lutando em duas frentes o fundador da U.R.S.S. criticou «ao mesmo tempo os que desprezam o económico e os que o transformam num absoluto», sem dúvida, o pensamento leninista é ao mesmo tempo, extremamente firme e extremamente flexível. Firme nos princípios e flexível na aplicação.

Princípio absolutamente firme — eis o do proletariado como classe revolucionária, a única classe revolucionária «até ao fim» (Lenine, em «Duas Tácticas»). Mas para além deste princípio absoluto, eis também o relativismo resultante da flexibilidade na sua aplicação, aquilo que chamaria a arte prática da política. O verdadeiro homem político procederá o mais possível de acordo com os dados científicos resultantes da análise objectiva. Mas para Lenine a política era científica e simultaneamente incerta. E como afirmou Lefebvre numa curiosa comparação, só se espantará com isto quem nunca viu os engenheiros a construir um grande porto ou uma nova locomotiva: — os seus cálculos mais desenvolvidos e profundos não afastam a necessidade do tactear, do experimentar, do fazer provas de resistência ou velocidade. Por força de razões de tal natureza escreveria Lenine em «A Doença infantil do Comunismo» esta frase de incursão metafórica:

— «A política parece-se mais com a álgebra do que com a aritmética; parece-se mais com as matemáticas superiores do que com as matemáticas elementares».

Assente, pois, que a política constitui uma arte como actividade prática, passaremos a analisá-la no seu outro polo. Isto é: — passamos agora a ver a política do ponto de vista teórico ou, por outras palavras, como uma ciência.

Pois o que é a Ciência?

Daremos um conceito muito simples que serve perfeitamente o nosso objectivo. A Ciência — diz-se — é um sistema de conhecimentos sobre a natureza e a sociedade, acumulados no decurso da História. E tem um fim próprio: — descobrir as leis objectivas que regem os fenómenos naturais ou sociais. Por isso mesmo se fala dicotomicamente em «ciências naturais» e em «ciências sociais», conforme o objecto do estudo é a Natureza ou a Sociedade. Consequentemente, uma vez descobertas pelo homem as leis que regem os fenómenos, a ciência estuda de modo a proporcionar-nos os meios que utilizamos na nossa actividade prática. Eis por que motivo ainda há pouco falávamos da política prática como arte cada vez mais cientificada. O homem não elabora a Ciência pelo prazer gratuito e falaz de ser científico. O homem investiga cientificamente, estuda, ensaia teorias, para tudo isto pôr ao serviço da sua vida diária. Precisamente por isso o pensamento moderno considera incindíveis, inseparáveis, a Teoria e a Prática em todos os domínios da actividade humana.

A Ciência, com as suas teorias — e em plano mais alto a Filosofia, classicamente identificada como ciência das ciências, teoria das teorias, busca de um pensamento geral —, constitui a luta contra a ignorância e a superstição. Daqui resulta que a ciência política (a «politicologia») representa a luta contra a reacção política e espiritual.

Nas chamadas sociedades de classe — sociedades onde existe uma classe dominante e uma classe dominada e onde, como acontece na sociedade capitalista, se verifica a exploração do homem pelo homem — houve sempre (e actualmente continua a haver) forças desfavoráveis ao estudo da ciência política, designadamente contrárias à difusão dos pontos de vista científicos avançados. Tais forças são próprias das classes sociais reaccionárias, sempre atacando as novidades em matéria científica. Historicamente, elas queimaram sábios e eliminaram filósofos. Actualmente, como ainda há pouco aconteceu com a ditadura obscurantista do salazarismo, empregam os mais variados meios de opressão e de terror cultural.

Os políticos reaccionários, combatendo cruelmente todas as formas de pensamento político que não correspondam à sua teoria e à sua prática, apresentam-se carismaticamente como detentores de uma verdade absoluta. Mas o pensamento político é essencialmente relativo. Embora possa dizer-se que alguns princípios fundamentais do pensamento teórico tenham alcançado a categoria de postulados, não existe uma só teoria política, tal como é definida em determinado tempo e lugar geográfico, que possa apresentar-se como verdade definitiva e indiscutível.

Vou dar conta, neste particular, de um exemplo concreto extremamente elucidativo.

Aplicar rigidamente esquemas teóricos a uma situação viva seria esquecer que, se acaso Lenine não tivesse saltado por cima de algumas teses de Marx e de Engels, não se teria efectivado, na Rússia czarista, a revolução de 1917. Na obra de Engels (de 1844) «Princípios do Comunismo», dava-se resposta negativa à questão de se saber se era possível operar a revolução socialista num só país. De acordo com Marx, afirmava Engels «que a revolução comunista (...) produzir-se-ia simultaneamente em todos os países civilizados...» Pois a grande lição de Lenine quanto às relações da teoria e da prática em constante crítica recíproca, enfim, o seu grande mérito na luta contra os dogmáticos (que viam o marxismo como teoria rígida), consistiu em não se ater a fórmulas mortas, desactualizadas, antes procurando aplicar, nas novas condições históricas, a conclusão capital: — a possibilidade da vitória do socialismo (inicialmente) num só país, que não era do ponto de vista económico o mais desenvolvido, mas no qual se tinham criado as condições concretas para a luta.

Daqui por um século, tendo mudado basicamente as condições sociais, materiais e espirituais do nosso tempo — construídos novos instrumentos ou meios de produção, novas máquinas, estruturadas novas relações entre as forças produtivas— aos não-informados em História parecerão até absurdas algumas das nossas posições perante os problemas políticos actuais. Mas, é evidente, isto em nada diminui a necessidade de cada época formular para si própria uma ou mais teorias políticas, modos vários do pensamento político, baseadas aquelas, baseados estes, no estudo das condições materiais e espirituais da respectiva época e das perspectivas então desenháveis para um futuro. O pensamento político e as teorias políticas em que ele se diversifica teriam morrido (ou melhor, nem sequer teriam nascido) se uma «verdade absoluta» fosse conhecida e guardasse correspondência invariável com os factos inumeráveis que formam o complexo da nossa existência. O pensamento político progride precisamente à medida que as condições materiais, básicas, da vida se transformam e variam.

O homem é, portanto, um formulador de teorias políticas. Formulando e reformulando as ideias, os costumes, as instituições, em cada momento ele discute, confirma e impugna a sua autoridade. Cada teoria política (se, na verdade, merece a dignidade de tal qualificativo) produz-se em estreita relação com o tempo determinado em que se origina e afirma. Cada teoria é reflexo de determinadas condições económicas da própria época. Torna-se impossível, por exemplo, entender em profundidade a «República», de Platão, se não tivermos em consideração as causas e os motivos económicos que concorreram, conjuntamente com outras sub-determinantes, para a decadência da «cidade-Estado» da Grécia antiga. Dq mesmo passo, não se pode interpretar a «Utopia», de Tomás Morus, sem relacioná-la com as perturbações sociais da transição da agricultura para a ganaderia na velha Inglaterra. Efectivamente, quando se transformam as condições sociais, materiais, económicas e religiosas de um tempo considerado, desde logo, por reflexo, se modificam os processos e os sistemas políticos. Diria que a base material e relacional da sociedade subverte em cada momento as doutrinas, as teorias, as concepções e as ideologias, e que também em cada momento estas doutrinas, teorias, concepções e ideologias subvertem a base. Assim, por exemplo, a «Magna Carta», que os barões ingleses obtiveram em 1215 do rei João sem Terra, e a «Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão», de 1789, não valem só como simples manifestações textuais mais ou menos românticas, mais ou menos especulativas. Tais documentos jurídicos foram produto das condições económicas, materiais e espirituais do seu tempo, mas desde logo foram também verdadeiros programas de acção e empreendimento político.

Naturalmente, o pensamento político, as teorias políticas (a Ciência Política, numa palavra), tudo isto não se pode dissociar dos outros ramos da saber. As teorias políticas não se relacionam apenas com as instituições sociais do seu tempo. Jogam a cada instante com sectores de diversa natureza. E da mesma forma que o político e o economista não podem alhear-se de todas as manifestações actuantes da personalidade, também o pensamento político não pode distanciar-se (divorciar-se) das várias ciências, da filosofia, da ética, da religião, da economia e da literatura — nem mesmo dos dogmas, tradições, superstições e preconceitos. A Ciência Política como que engloba todas as outras, uma vez que é de ordem geral e visa a organização superior da existência humana.

De entre a generalidade das ciências há uma, no entanto, que tem ligações muito particulares com a política. Refiro-me à Economia, e não é difícil ver porquê. Com efeito, a actividade política traduz-se na nossa participação nos assuntos do Estado. Repito ainda: — a actividade política é a expressão prática dos interesses vitais das classes c das suas relações. Como se sabe, porém, as relações que se estabelecem entre as classes definem-se sempre em conformidade com uma dada e concreta situação económica. Precisamente por isso, Lenine definiu a política como «a expressão concentrada da economia».


Inclusão 15/12/2014