Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


III — Breve Roteiro Histórico das Teorias Políticas em Portugal


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No decurso da primeira dinastia, que vai até à morte de D. Fernando em 1383, é manifesta a quase ausência de prosa política. Poderíamos falar de Álvaro Pais, franciscano discípulo de Duns Scott, que em 1332 publica «De Planctu Ecclesiae Desideratissimi Libri Duo» e em 1344 o célebre «Speculum Regnum». Mas só com o advento da Casa de Avis vêm a revelar-se dois cultivadores mais declarados da teoria política. Passada a fase da formação e organização do reino, é nos alvores do processo de expansão marítima e colonial, em 1451 (ano da conquista de Ceuta), que o infante D. Pedro terá elaborado «O Livro da Virtuosa Benfeitoria» e logo o seu irmão, o rei D. Duarte, redige entre 1420 e 1438 o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda a Sela» e o «Leal Conselheiro».

As ideias políticas D. Pedro revestem-se do maior interesse como expressão da nossa cultura medieval. A «Virtuosa Benfeitoria» intencionava ministrar leitura formativa de príncipes. Inspirada no tratado de Séneca «De Beneficiis», faz parte integrante daquela literatura peninsular que, à imitação dos tratados de regimine principum, tinha por primacial objectivo o da «régia instrução». Segundo Paulo Merêa («As Teorias Políticas Medievais no «Tratado da Virtuosa Benfeitoria», artigo publicado na velha Revista de História, ano VIII, n.° 29), «desde os princípios do século XIII em que se inicia uma curiosa série de catecismos político- -morais, desenvolveu-se na Península uma profusa literatura deste género, na qual Portugal se acha representado pelo «Speculum Regnum», de Álvaro Pais, e pela «Virtuosa Benfeitoria» do infante D. Pedro—literatura onde sem dúvida sobreleva o aspecto moral e principalmente se acumulam conselhos aos governantes, mas onde não deixam de aparecer, mais ou menos vincados, os conceitos fundamentais do direito político da época» (cfr apud «Estudos de História do Direito», Coimbra Editora, 1923, págs. 185-186).

As fontes seguidas pelo infante, e depois por D. Duarte, são Aristóteles, Cícero, Séneca, os ensinamentos da Igreja, designadamente dos seus Padres e Doutores, com destaque particular para Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. De especial influência, os dois livros «De Regimine Principum», de São Tomás e Egídio Romano — ambos compostos para educação de um príncipe, mas com larga e duradoira divulgação. O livro de Egídio, por exemplo, é vertido «do latim em linguagem» (Rui de Pina, «Crónica de El-Rei D. Afonso V», capítulo 125). D. Duarte refere-se-lhe a cada passo no «Leal Conselheiro». Fernão Lopes quase textualmente dele traduz uma grande passagem no prólogo da «Crónica do Rei D. Pedro».

Na «Virtuosa Benfeitoria» o poder político era ali chamado «poderio», «governança», «regimento» — vem de Deus e só de Deus. São Paulo, na Epístola aos Romanos, ensinara: «Non este potestas nisi a Deo» (XIII, 1). E esta foi a réplica do infante: — «Toda alma seja sujeita aos príncipes mais excelentes, que não seja poderio que não proceda de Deus...» O poder político aparecia aos olhos de D. Pedro como facto natural. Ele «é fundado em natureza» não obstante se dizer que «em estado natural somos (todos) iguais» (II, 9). Porém, em virtude da corrupção da humanidade, evidente se mostrara a irrecusável necessidade de um governo. Conclusão:—.«...a polícia do mundo perecera, se o estado cavaleiroso dos reis, e dos príncipes e dos outros senhores a não governara» (III, 4).

Coisa importante de assinalar é, no entanto, esta: — se o infante apelava para a origem divina do poder político, de modo nenhum (como aliás aconteceu com a generalidade dos escritores medievais) partilhava de uma rígida teoria do direito divino (ou seja, da ideia de que o rei fosse concretamente designado por Deus). A teoria do direito divino dos reis (da designação concreta do rei pelo poder divino) somente será apanágio do pensamento político absolutista de alguns séculos após. Através da Idade Média — isto é o que sumamente importa fixar — sempre se assentou numa Concepção humana do poder político. Notável, a predilecção pelo princípio da origem popular do poder de um chefe em concreto. Quem ignora, com efeito, a escolha do Mestre de Avis pelo povo! Quem esquece que os reis de Portugal anteriores ao absolutismo deveriam ter popularmente confirmada a sua assunção ao poder...? Bastará dar saliência a mais este ensinamento do infante: — se os príncipes devem promover o bem dos seus súbditos, issò acontece pois que «lhe outorgou Deus o regimento, e os homens consentiram que sobre eles fossem senhores» (II, 9) e «... não usará de crueldade (o príncipe) com aqueles que para sua defensão lhe deram a espada» (II, 22).

Analisando estas obras, quer a «Virtuosa Benfeitoria» quer o «Leal Conselheiro», não ficamos com dúvidas sobre serem D. Pedro e D. Duarte dois característicos escritores políticos medievais. Obras que não representam sistemas acabados, ambas constituíram fruto das circunstâncias económicas do tempo, expressas na viragem política levada a cabo por D. João I (irmão de D. Pedro e pai de D. Duarte). Os seus acentos teóricos são naturalmente, em conformidade com a época, de ordem ética e teológica. Mas o que não pode deixar de ser repetido é que o infante (particularmente ele), enquanto afirmava que se o poder em abstracto vem de Deus o seu exercício em concreto exige o consentimento do povo, vale nos quadros da Idade Média çomo ponte de passagem do Estado antigo (autocrático) para o Estado moderno (democrático).

António Salgado Junior (rubrica «Doutrina Política» do «Dicionário de Literatura» dirigido pelo professor Jacinto do Prado Coelho, 2.ª edição, págs. 271) afirma que o caminho aberto por D. Pedro e D. Duarte «parece não ter tentado ninguém», pois os tempos imediatamente seguintes não nos teriam oferecido qualquer escrito político que, em português, seja de considerar. Esta posição, porém, só é verdadeira do ponto de vista do reflexo, no campo literário, das preocupações político-sociais. E pode até lançar o estudioso em equívocos generalizantes. Ao mesmo tempo que na Poesia, ainda que de forma incidental, afloravam correntes opostas perante a política portuguesa da expansão colonial (considerem-se Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões), exacto é que na segunda metade do século XVI e nos princípios do século XVII se viu a literatura teológico-política florescer com forte relevância. Norte orientador, como se sabe, o tomismo — a filosofia de São Tomás de Aquino, conhecido por Doutor Angélico ou Aquinate. E a este propósito convido também o leitor a considerar os artigos de Paulo Merêa sobre «A ideia da origem popular do poder nos escritores portugueses anteriores à Restauração», primeiramente publicados no 2.° volume da «Revista da Universidade de Coimbra» e mais tarde, com alterações, reproduzidos a págs. 229 e segs. dos «Estudos de História do Direito» que atrás citei.

Aos problemas da origem da sociedade e do poder político iremos dedicar parte do próximo capítulo. Não há, porém, inconveniente em que se adiantem algumas ideias, reconhecendo sem dificuldade que quanto a estes pontos os doutrinadores políticos peninsulares do século XVI e dos princípios do século XVII seguiram o pensamento tradicional da Igreja. A concepção tomista, portanto.

Tal concepção, reproduzida já por Álvaro Pais em «De Plane tu Ecclesiae», cifra-se no seguinte: — a sociedade civil é produto necessário da sociabilidade inerente ao homem, necessitando porém de uma autoridade que a comande para o conseguimento dos seus fins; e esta autoridade dimana de Deus; mas originariamente integrada nà própria sociedade, por direito natural, não pode ela exercer-se por si própria; logo, pois, o grupo social confere concretamente o poder público a um chefe. Quer isto dizer que a legitimidade do exercício do poder político por parte de A, B ou C não procede de Deus de forma imediata. Tal legitimidade tem o seu fundamento no acordo do corpo social e só existe nestas condições (omnis potestas a Deo per populum). E esta doutrina (de uma soberania popular) completava-se com a ideia de um pacto outorgado tácita ou expressamente entre o povo e o príncipe (poctum subjectionis) e com o princípio da licitude da resistência ao tirano.

A escola da soberania popular teve os representantes portugueses que já vimos, e ainda outros como o jesuita Manuel de Sá, o neo-tomista Frei Serafim de Freitas e os jurisconsultos Pedro Barbosa Homem e João Salgado de Araújo. Aliás exerceu larga influência no reino, designadamente através da Universidade de Coimbra. E coisa curiosa: — a presença, nesta Universidade, de jesuítas castelhanos, os célebres doutores Francisco Suarez, Luís de Molina e Azpilcueta Navarro (doutrinários da soberania concreta do povo) produziu entre nós reflexos diametralmente contrários às ambições político-territoriais da nacionalidade espanhola daqueles mestres.

As ideias tomistas da soberania popular, dadas as circunstâncias económico-sociais que o país atravessava, poriam, com efeito, ao dispor do povo um poderoso e convincente apoio da ideia (então em franca afirmação) de independência nacional. O exemplo da eleição do Mestre de Avis nas Cortes de Coimbra de 1385 —anota Paulo Merêa — foi sistematicamente invocado para sustentar a teoria segundo a qual, vagando o trono por morte de D. Henrique, pertencia ao povo a eleição de novo rei. E a Universidade de Coimbra, por sustentar este direito de escolha popular, foi alvo das acusações dos partidários de Filipe II, que sustentavam a natureza «subversiva» e perigosa de semelhante doutrina. Na verdade, nas «Alegações de direito, que se ofereceram ao muito alto e muito poderoso rei D. Henrique (...) a 22 de Outubro de 1579», compostas pelos doutores Felix Teixeira e Afonso de Lucena (desembargadores da Casa do Duque de Bragança) e pelos lentes de Coimbra Luís Correia e António Vaz Cabaço, concluia-se que «estando o reino vago por não haver pessoa de sangue real que pudesse legitimamente suceder ao rei último possuidor, podiam os povos conforme o direito eleger novo rei que os governasse, tornando a usar do poder que por direito natural lhes competia para elegerem novo rei».

Importa acentuar que foi ainda a teoria democrática da soberania popular que, ao fim de 60 anos de domínio castelhano, surgiu para justificar a deposição de Filipe III. Expressamente, OU de forma implícita, ela encontra-se nas páginas dos escritores da Restauração: — Carvalho de Parada, João Pinto Ribeiro, Sousa de Macedo e Vila Real. E até se fortalecia com o auto (apócrifo) das Cortes de Lamego, o qual, como se sabe, tinha sido publicado por Frei António Brandão, em 1632. Aliás, a doutrina da soberania popular, nos termos que ficam sucintamente relatados, encontrou consagração praticamente oficial no célebre texto do lente de cânones de Coimbra, doutor Francisco Vaz de Gouveia, que se intitula «Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal D. João IV».

Soberania popular — eis portanto a tradição política-portuguesa mais antiga no plano teórico. Mas (popular) de que povo? Em contrapartida da posição ideológica dos doutores da lei e da política, que espécie de povo procurava tal posição servir? Como ver, enfim, na base das forças produtivas, a justificação daquele concepção?

O que corre na espinha e no nervo do mundo ocidental, com maior frequência do século XIII em diante, é a «contestação» do burguês relativamente ao nobre. O «burguês» da Idade Média é o habitante da cidade (do «burgo») que se dedica ao comércio, ao artesanato, e cria uma forma de vida adaptada a essas condições económicas. Começamos então a deparar com as lutas das cidades contra os senhores, a classe burguesa ganhando uma consciência que dia-a-dia mais contradiz a classe aristocrata dominante. Esta velha nobreza, provinda da fundação do reino, dilacera-se com problemas irresolúveis pela lâmina da espada, única força que o fidalgo conhece. Nem sequer de nada lhe haviam de servir as medidas protectoras do rei D. Fernando, que diríamos reaccionárias enquanto procuravam violentar a nova consciência política da burguesia em ascensão. Aliás, a «contestação» dirige-se até contra a pessoa do próprio rei, para mais desacreditado — com o desastre das guerras de Castela. O povo mete-se na vida privada de D. Fernando. Amotina-se pelo seu casamento com Leonor Teles. E isto se encara como factô tanto mais significativo de uma consciencialização cívica se pensarmos que antes ninguém do povo se atrevera a «criticar» as mancebias de D. Sancho I, de D. Dinis ou de D. Pedro o Cru. As críticas relativas ao foro pessoal-matrimonial de D. Fernando são assim uma marca da força que a burguesia sente em si própria. E depois vem ainda o casamento de D. Beatriz com o rei de Castela, agudizando-se as contradições sociais, colocando-se os interesses económicos da classe aristocrática ao lado daquele que vem a ser o invasor. A velha nobreza, que tem por si a fundação de Portugal, desiste de se aguentar portuguesa. Praticamente, só Nuno Álvares Pereira é uma pertinaz excepção, desprezando em favor da Nação os votos de vassalagem feitos para com D. Beatriz.

Foi com o objectivo de expulsar essa aristocracia dominante que as subclasses populares (a burguesia e as massas mais baixas da população) puseram as controvérsias de parte e uniram forças.

Eis um fenómeno de vária repetição na História do homem — logo, na História da luta de classes – a que Louis Althusser chamou unidade de ruptura no 3.° capítulo de «Pour Marx» (edição Maspero, Paris, 1966, págs. 97-98): — agrupam-se, unificados, elementos de situação social diferente com vista ao «assalto a um regime para cuja defesa as classes dirigentes se acham impotentes». E Althusser invoca em seu apoio conhecidas posições de Lenine, tão persistentemente ignoradas pelo «esquerdismo». Sobretudo a passagem da «Doença Infantil» onde o teórico-prático da revolução de 1917 escreveria que

«a revolução somente pode triunfar quando os de baixo não querem mais viver e os de cima não podem continuar a viver à maneira antiga».

Curioso, portanto, é vermos que a situação portuguesa de 1383-85 (aliando-se subclasses distintas numa unidade de ruptura contra a Velha aristocracia) tem algo de análogo à situação da revolução social. Lenine também escreveria — numa das suas «Cartas de Longe»:

«Se a revolução triunfou tão depressa — (...) foi unicamente porque, em razão de uma situação histórica de extrema originalidade, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogéneos, tendências sociais e políticas absolutamente opostas «e fundiram com notável coerência...»

A burguesia e o povo miúdo (as subclasses ou classes não-nobres) apoiam o rei novo. As Cortes de Coimbra de 1383 escolhem-no contra as pretensões do rei castelhano, o qual representa a Opressão da classe dominante. Com a escolha democrática do rei (na pessoa do Mestre de Aviz) recusa-se o trono ao sucessor hereditário legítimo. Vence, subversivamente, o candidato popular — apoiado nas teorias tomistas que viemos de examinar atrás. Mas, ao impetuoso revolucionarismo, segue-se o «bom senso» que cada vez virá mais «qualificar» o «burguês». Porque ele é sobretudo um homem de contas, de teres-e-haveres, comprador da propriedade agrária e até de títulos nobiliárquicos. O Mestre, nobre por parte do pai (o rei D. Pedro), era plebeu por parte da mãe. Muitos dos «novos nobres» (a nova aristocracia, saída da revolução de 1383-85) são parentes próximos do rei. E pois que a expansão colonial vai ser, logo de início, a grande aventura da segunda dinastia, vemos, poucos anos após, o infante D. Henrique (filho de p João 1) assumir o papel dirigente de quase todo o monopólio explorador dos negócios da costa africana. Só que este «encher» da nova aristocracia sofrerá a breve trecho um rude golpe: — D. João 11 procede a uma espécie daquilo que hoje chamaríamos as «nacionalizações». Efectivamente, numa viragem estatista radicalmente contrária à política de mãos rotas de seu pai Afonso V, a quase totalidade das explorações comerciais passam a ser feitas pelo Estado, sob a direcção do rei D João II. E os seus sucessores — D. Manuel e D. João III — aparecem-nos agora como grandes dirigentes de uma enorme empresa que explora todas as navegações e conquistas.

E o povo?... o povo miúdo, que ajudara na escolha democrática do fundador da segunda dinastia?...

A depreciação da moeda, em 1417, é de 250 vezes relativamente ao ano de 1385. No final do reinado do Mestre sobe para 1000 Vezes. Por outro lado, se D. Duarte procura entravar a desvalorização, o desastre de Tânger compromete-lhe os intentos. Posto o que, no quadro da política centralizadora de D. João II (que reina até aos finais do século XV) a queda ao valor monetário atinge uma subida de 220% relativamente à reforma de 1436. E então, fácil é responder quanto aos benefícios usufruídos pelo povo-povo, participante básico na escolha democrática de D. João I.

O benefício não foi nenhum. O povo nada ganhou com o poder agora exercido pela alta burguesia das conquistas africanas e dos descobrimentos, em parte convertida na nova aristocracia. Porém, como já dissemos, também esta vai sofrer graves restrições perante o monopólio estatal de toda a política africana. Vem a «nacionalização» da Ordem de Cristo. Vem a liquidação violenta dos Opositores de estirpe (duques de Viseu, de Bragança, etc.) inconformados com a via estatizante. Vem também a programação do domínio comercial da Índia. Mas o rei D. João II e os seus sucessores gostariam também muito pouco de ouvir falar em soberania popular. É manifesta a crise do pensamento democrático-teologal que os precedera. A criação de uma nobreza cortesã, serventuária e funcionária, leva o rei a dispensar o apoio do povo. Compreende-se assim que em 1498 Diogo Lopes Rebelo afirmasse como antecipação às doutrinas totalitárias do direito divino dos reis:

«O rei é, no seu reino, por direito divino e humano senhor de vida e de morte dos homens».

Eis-nos aqui com o germe do absolutismo (solução teórica oposta à ideia de soberania popular), aliás relativamente consagrado, tal absolutismo, no prólogo das «Ordenações Manuelinas».

Não obstante poder-se afirmar que, em modos específicos de cada tempo histórico, o absolutismo se estende desde D. José ao ano de 1834, a verdade é que, como já vimos páginas atrás, com a Restauração mais uma vez e em seu favor a realeza «requisitou», se assim se pode dizer, a intervenção da teoria democrática. E digo requisitou porque o rei D. João IV, logo que escolhido e aclamado, rapidamente criou novas instituições que consolidaram o poder real, enveredando, com a orientação política do padre António Vieira, por uma estreita aliança com as forças financeiras dos mercadores judeus.

Claro que se vai mantendo sempre um discurso de mistificação democrática. Por exemplo: — quando em 1706 e 1712 D. João V decide aumentar os impostos sem consulta das Côrtes, no preâmbulo dessa decisão declara-se expressamente que tal facto de modo nenhum pretende alterar os costumes 'e as garantias fundamentais dos povos. Porém, nos últimos anos do reinado do Magnífico a crise económico-política conduziu a um intervencionismo real levado às derradeiras consequências. E com o Marquês de Pombal criam-se organismos de contrôle estadual: — a Junta do Comércio (1756), o Erário Régio (1760), a Junta da Providência Literária (1772), tudo acrescido de um aumento do monopolismo económico nas regiões mais ricas do país. O rei afirma sua autoridade sem limites. Os usos são inoperantes, a lei natural é de interpretação majestática e a lei divina está depositada no soberano. Então, a autoridade é com frequência construída e executada em termos de despotismo iluminado. E decerto por esse motivo a época do Marquês ditador não é propícia à prosa doutrinária, a não ser que como tal consideremos a «Tendência Teológico-Política», do padre António Pereira de Figueiredo, ou as «Cartas sobre a Educação da Mocidade» (1760) de Ribeiro Sanches.

Ao nível teórico suscita-se, porém, uma polémica que vai durar algum tempo. Durante o reinado de D. José a autoridade do monarca é por uns formulada em termos do referido despotismo iluminado, enquanto por outros se desenha conforme o esquema tradicional da monarquia absoluta. Esta divergência separa em dois sectores ideológicos os ministros de D. Maria I. Aliás, acima de tal separação, os conceitos de monarquia , absoluta têm neste mesmo período brilhantes defensores (Pascoal de Melo Freire e José Acúrsio das Neves), enquanto em contrapartida se foi esboçando um liberalismo mais teórico do que prático e muito hesitante quanto aos fundamentos. Com efeito, não obstante terem sido abolidas as Organizações corporativas em 1791, a verdade é que só cerca de quarenta anos depois da Revolução Francesa ter eclodido se iniciou em Portugal uma débil experiência liberal. Experiência dificílima, sem dúvida, num país anquilosado por teias ancestrais e policiado por pinamaniques. Mas verdade é que também que, não obstante terem aumentado (na segunda metade do século XVIII) as potencialidades económicas da burguesia devido ao comércio luso-brasileiro, aquela não se sentira, conforme o atraso geral do país, muito lesada pelo absolutismo. Ainda em 1821 — assim declarava Manuel Fernandes Tomás perante as primeiras Cortes constitucionais portuguesas — «eles (os industriais) não convieram por ora no que é uma fábrica». E só ulteriormente, numa fase mais evoluída do nosso processo liberal, mais concretamente a partir do «setembrismo», os problemas da indústria e da maquinaria adquirirão relevo.

A polémica que se estabeleceu entre absolutistas e liberais tem assim, como cenário de fundo, uma estrutura geral da sociedade portuguesa que se mantém absolutista quer do ponto de vista político, quer do -económico ou burocrático. Grande proteccionismo da burguesia urbana, funcionalismo hierárquico e nobilitado, nobreza rural mais do que submissa, enfim, um completo fideísmo ao Estado real absoluto. E foi por isso que, apesar de todos os precursores e das largas simpatias que aos portugueses mereceu a Revolução Francesa, ela interessou bem pouco ao povo no plano da acção prática. Assim se verificou quer no momento contemporâneo da Revolução, quer na sequência próxima. E só no segundo quartel do século XIX a estrutura absolutista portuguesa entrou em crise mercê de uma série de factores que a contraditaram: — as invasões francesas (1807 a 1810), as grandes transformações técnicas (em 1817, a primeira tentativa de introdução de uma máquina a vapor com fins industriais; em 1821, o primeiro banco português (Banco de Lisboa) e uma máquina, também de vapor, utilizada na navegação do Tejo), a independência do Brasil (1822), e ainda a incapacidade dos ideólogos tradicionalistas para adaptarem as suas fórmulas e concepções aos novos tempos.

É com o advento do liberalismo no plano da superestrutura ideológica, com a implantação segura da consciência social em prol de uma democracia burguesa (nenhum outro movimento na nossa História gerou tantos nomes de alto relevo) e com a progressiva alteração dos modos e das relações de produção, que se desenvolve a literatura política em Portugal. Falaríamos então de Garrett, de Herculano, de Passos Manuel, José Estêvão, Rodrigo da Fonseca, Borges Carneiro, Fernandes Tomás, Ferreira Borges e outros. Mas é no campo da luta política armada, ao fim de quase vinte anos de conflito, que a monarquia absoluta baqueia em 1834 (Convenção de Évora-Monte). Anote-se que, no entanto, os conceitos fundamentais do absolutismo — assim o revelaram o Integralismo Lusitano (no plano teórico) e a ditadura do Estado Novo fascista-salazarista-caetanista (no campo prático) — voltaram a aparecer e sempre tentarão reaparecer como bandeiras de forças políticas minoritárias, se alguma vez fraquejar a vigilância popular.

Repare-se, entretanto, que neste capítulo ficámos à beira das «Conferências do Casino» e da chamada Geração de 70. Ficámos próximos de nomes como Teófilo Braga, Antero do Quental e Oliveira Martins. E de muitos outros. Mas este corte, assim operado no breve roteiro histórico das doutrinas políticas em Portugal, justifica-se na medida em que no último capítulo deste livro, a propósito da temática geral do socialismo, algum espaço vem especificamente dedicado à presença da teoria socialista no nosso país.


Inclusão 15/12/2014