Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


IV — O Homem, a Sociedade e o Estado


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Começaremos por falar de «socialidade» — palavra de uso pouco comum, talvez no entanto mais correcta que «sociabilidade», sua equivalente. Ela aplica-se à todos os seres vivos: — significa ser próprio da sua natureza viverem em sociedade, terem uma existência social.

A sociedade humana, é evidente, distingue-se da sociedade animal. De forma lapalissiana diria-mos que a socialidade humana se refere aos homens, enquanto a socialidade animal concerne aos animais. É óbvio, porém, que por este caminho ficaria-mos na mesma. Ainda que em breve termos, torna-se necessário procurar a distinção de raiz que se verifica entre estas duas espécies de socialidade. Os animais não se agrupam por força da sua vontade ou mercê de um acto racional. Eles são animais irracionais, assim costumam ser definidos. Em consequência, a socialidade animal está unicamente baseada na fisiologia, nos instintos, nas funções da respectiva espécie. Ao contrário, embora também com bases biológicas, a sociedade humana é vivida e construída no campo da consciência, reflectida no espírito dos homens, sempre assumida graças a uma participação da inteligência e da vontade.

Assente o que sejam a socialidade e as espécies em que ela se materializa, passamos a incidir a nossa atenção sobre o conceito de sociedade. Trata-se de uma palavra de sentido extremamente variado, que se refere à ideia de uma convivência permanente de animais ou pessoas que praticam os mesmos costumes, comunicações e relações.

Mas deixemos de parte as sociedades animais, que estamos a tratar de política. Vamo-nos, pois, circunscrever à única sociedade que agora nos importa — a sociedade humana. Com efeito, o termo «sociedade» empregamo-lo nós para designar um agrupamento humano de base, de carácter durável (em oposição aos agrupamentos fortuitos ou temporários: uma sociedade artística, uma assembleia geral, um grupo de futebol) e tendo um espaço territorial onde permanece. Mas este conceito de sociedade humana implica desde logo a constatação de um núcleo de elementos que a caracterizam:

  1. — a continuidade, que se refere ao carácter durável da sociedade humana;
  2. — a complexidade de relações, que individualiza, em cada momento, a fase histórica da mesma sociedade;
  3. — a unidade operatória, já que os indivíduos integrados num agrupamento durável devem submeter-se às leis do seu funcionamento; e
  4. — a diferenciação de participações individuais, a qual resulta das diversidades (fisiológicas, psíquicas, técnicas, culturais e outras) verificáveis de indivíduo para indivíduo.

Vamos atentar no segundo elemento característico das sociedades humanas — o da «complexidade de relações». Este é, com efeito, o elemento que nos poderá conduzir a um conceito moderno do que seja a sociedade civil. Civil vem, por raiz vocabular, de «civis-civitatis» (o cidadão). Sociedade civil é, portanto, a sociedade humana enquanto considerados os homens como cidadãos.

A sociedade humana, temos de repetir, constitui um conjunto de relações sociais. Este foi o contrito gerado no seio da filosofia materialista pré-marxista do século XVIII. Mas a teoria da sociedade civil, tal como era concebida por aqueles materialistas (ingleses e franceses), enfermava de um defeito fundamental. Defeito que provinha do facto de não se compreender a dependência em que a sociedade encontra relativamente aos modos de produção.

A teoria da «sociedade civil» própria da filosofia do século XVIII explicava a formação social por força de propriedades naturais do homem. Marx virá até a utilizar o termo nas suas obras de juventude, em 1843, ao desenvolver a sua crítica a Hegel. De início, a sociedade civil foi para ele a organização da família, das classes, as relações de propriedade, as formas e procedimentos de distribuição e, em geral, todas as condições que tornam possível a existência e o funcionamento dos grupos humanos. E não obstante ter sublinhado desde logo o carácter objectivo e a base económica de tais condições, só anos mais tarde (em 1849) escreveria Marx em «Trabalho Assalariado e Capital»:

— «As relações de produção formam em seu conjunto o que chamamos as relações sociais, a sociedade e, concretamente, uma sociedade com um determinado grau de desenvolvimento histórico, uma sociedade de carácter peculiar e distintivo».

Dirse-á em conclusão, no que respeita à ideia de sociedade civil, que Marx veio a substituir a sua noção inicialmente pouco precisa, por conceitos verdadeiramente científicos, tais como os de «estrutura económica da sociedade», «base económica» e «modos de produção».

E estamos agora aptos a entender a natureza social da existência humana. A sociedade dos homens constitui uma união moral e física de seres dotados de inteligência, que procuram realizar um fim comum a todos. Neste sentido, a sociedade é uma colectividade organizada. Eis um agrupamento de elementos unidos por laços de solidariedade biológica, psíquica, económica, técnica e cultural. Tudo isto implica, enfim, que a sociedade civil se materializa numa estrutura global que permite a subsistência e o desenvolvimento, quer do conjunto quer do indivíduo. Mas, claro, no seio desta globalidade não se perde o valor de cada partícula: — a sociedade dos homens tem carácter relativo na medida em que, mesmo enquanto reunido a outros, cada indivíduo não abdica de ser indivíduo. Estou a pensar em Schopenhauer, comparando a sociedade humana a uma ninhada de porcos espinhos. Se eles se chegam de mais, acabam por picar-se, isto é, por violar o foro alheio.

A existência social do homem é então o conjunto das condições de vida material em sociedade, principalmente das formas de produção, do regime económico concreto de cada momento. Mas falando-se de existência social, o grande problema a ela relativo reside nesta interrogativa: — qual a relação da existência social com a consciência social... Ou a mesma pergunta por outras palavras : — o homem tem consciência porque existe em sociedade ou, opostamente, existe em sociedade porque tem uma consciência?

A relação da «existência» com a «consciência» é questão filosófica fundamental no que se refere aos fenómenos sociais. Para o pensamento actual, designadamente para o materialismo dialéctico, a existência é considerada um dado primário, sendo a consciência encarada como uma resultante daquele mesmo dado. Isto é: — para este pensamento moderno, a existência social precede a consciência na medida em que a consciência social do homem é resultante da sua vida em sociedade. Esta é, em resumo, a decisiva resposta: — para o materialismo dialéctico (filosofia marxista) a existência precede a consciência; — para o materialismo histórico (sociologia marxista) a existência social resultará na formação da consciência social do homem. A uma determinada existência social (conjunto-base de condições de vida, de modos de produção) correspondem então as variadas formas de consciência social (concepções políticas, ideias morais, teorias estéticas, etc., etc.).

Vejamos agora, de Goethe, estas duas frases de um diálogo:

Epimeteu — Que te pertence, portanto, como teu?

Prometeu — Pertence-me tudo quanto cabe nos limites até onde a minha actividade se estende. Nada mais, nem nada menos.

E porquê esta passagem?

Dissemos já que são os modos de produção que determinam a consciência social do homem. E acabamos de perceber, através desta resposta de Prometeu, que tudo aquilo que nos pertence (o que nos é próprio, quer espiritual, quer materialmente) resulta só da nossa actividade. Portanto, só do nosso trabalho. Dispondo dos meios de produção e conforme os modos de produção típica da sua época, o homem realiza formas de consciência típicas dessa época. Existe pois, uma ligação concreta entre «existência», «trabalho» e «consciência».

Na linguagem corrente é uso dizer-se o trabalho dos homens, o trabalho dos animais, o trabalho das máquinas. Só que em tais expressões encontramos um conceito vulgar, muito generalizado, de trabalho — como representando a acção de uma força, seja ela de que natureza for. Porém, o conceito económico-social mostra-se muito mais restrito. Trabalho é somente o esforço humano intencional, criador de riqueza. Esforço esse que nós exercemos para transformação de uns elementos (matérias-primas, por exemplo) noutros elementos (produtos). O trabalho figura-se, portanto, como um processo estabelecido entre os homens e as coisas: — «O trabalho é antes de mais — escreveu Marx em «O Capital» — um processo entre o homem e a natureza no qual aquele, mercê da sua actividade, regula e controla o intercâmbio de substâncias entre ele e a natureza». Assim, ao actuar sobre a natureza exterior o homem modifica-a, ao mesmo tempo que se modifica também a ele próprio. Quer isto dizer que, enquanto o homem modifica a natureza, ele está a modificar o seu fim consciente, adaptando as coisas às suas próprias necessidades em cada momento.

Compreende-se, pois, que o trabalho constitua a condição primeira, fundamental, da existência humana. Ele não só proporciona ao homem os meios de subsistência de que necessita, como criou e continua a criar o próprio homem. É graças ao trabalho que o homem se separa cada vez mais do mundo animal. Uma das diferenças essenciais que se estabelece entre o ser humano e o animal assenta precisamente em que este último se limita a servir-se dos produtos acabados da natureza, tal como estes se lhe apresentam, ao passo que o homem obriga a natureza a pôr-se ao serviço dos seus fins. Ele modifica as coisas, subordinando-as às suas necessidades.

Nas diferentes formações económico-sociais que a História nos revela, o trabalho apresenta formas também diferentes, as quais são marca do desenvolvimento das relações sociais em cada época.

No regime social da comunidade primitiva o homem trabalha em comum, o seu trabalho é colectivo e a todos pertence a propriedade dos meios de produção. Neste tipo de organização não existia a exploração do trabalho alheio. Porém, já assim não acontece em todas as formações económico-sociais seguintes, onde nos aparecem classes antagónicas, onde o trabalho do homem está sempre submetido à exploração de uns relativamente aos outros. Na sequência histórica surgem então as três fases em que alguns homens exploram o trabalho de outros:

  1. primeiramente, no regime esclavagista, há os que exploram o trabalho dos seus escravos;
  2. depois, no regime feudal, os senhores exploram o trabalho dos servos;
  3. no regime capitalista, os patrões exploram o trabalho dos operários.

Quer dizer que a exploração do trabalho alheio atingiu o ponto culminante com o regime capitalista, aquele em que o indivíduo se deforma e mutila, espiritual e fisicamente, na exacta medida em que é explorado. Só com o socialismo — dir-se-á então — terá o trabalho ganho a sua verdadeira função, a de servir como fonte de subsistência e também como veículo inspirador de criação humana e de prazer.

Passamos agora a analisar, também muito brevemente, como é que a formação diferenciada das classes sociais está ligada a um fenómeno histórico cientificamente conhecido por divisão do trabalho.

Dissemos ainda há pouco que nas comunidades primitivas todos os homens trabalham igualmente para igualmente usufruir dos produtos que conseguem. Durante milénios e milénios, esta forma de existência verificou-se em todos os povos nas primeiras etapas do seu desenvolvimento. Nas sociedades primitivas de há milhões de anos as relações de produção estavam baseadas na propriedade colectiva dos meios de produção. Os instrumentos, a terra, tudo, enfim, era pertença da colectividade, do mesmo modo que os produtos obtidos eram igualmente consumidos em comum. Por isso, não havia classes.

Aconteceu, porém, que a primeira grande divisão social do trabalho se realizou pelo apartamento da criação do gado e do cultivo da terra. Apareceram os senhores e os não-senhores do gado (os que o possuíam e os que o apascentavam) e os senhores e os não-senhores da terra (aqueles que a detinham e os que a cultivavam para os primeiros). Esta diferenciação de posições quanto à titularidade dos meios de produção originava a distinção das classes sociais. Foi, portanto, uma separação que engendrou a propriedade privada. Logo, a desigualdade económica e, consequentemente, a escravidão. E começou assim a desagregar-se o tipo de organização social das comunidades primitivas.

Mais tarde, bastante mais, a segunda grande divisão social do trabalho vem a resultar da cada vez mais diferenciada desmultiplicação das profissões e dos misteres, fenómeno que intensificará aceleradamente a destruição da comunidade primitiva. E quando esta desaparece em definitivo, dando lugar à exploração económica ou, por outras palavras, às classes sociais nitidamente polarizadas (exploradores de um lado e explorados do outro), quando enfim se extinguiu o igualitarismo colectivista das comunidades primitivas, podemos dizer que surgiu, por diferenciação das classes sociais, a instituição do Estado.

No regime de escravidão o Estado traduz-se na exploração económica do escravo — ao mesmo tempo que o comércio se torna independente como forma negociai, nascem e desenvolvem-se divisões de trabalho de tipo territorial, profissional e internacional, tudo isto enquanto se separam também o «trabalho intelectual» do «trabalho físico, e a «cidade» do «campo», oposição esta ultima que se revela gradualmente no atraso das zonas rurais relativamente aos aspectos políticos, culturais e económicos. Posteriormente, no regime de servidão feudal todas estas contradições se hipertrofiam: — o trabalho intelectual será praticamente um exclusivo dos monges, a arte da guerra exclusivo dos nobres, o cultivo da terra um vínculo de adstrição dos servos da gleba, e as cidades (cada vez mais predominantemente de cariz burguês) progridem na consciencialização que as oporá, reivindicativamente, contra os senhores feudais. Mas todas estas contradições se agudizam ainda mais no regime da manufactura capitalista. A oposição histórica entre a cidade e o campo, por exemplo, atinge o auge neste sistema em que o capital domina. A terra é explorada de forma insensata, a renda territorial cresce conjuntamente com o endividamento e a ruína dos pequenos proprietários e camponeses. Simultaneamente, a divisão do trabalho penetra no interior da empresa, facto que se acentua com a introdução do processo da maquinaria e que equivale a dizer que os grandes senhores do capital são a classe dominante (proprietária) contraposta à classe dominada (operária).

O Estado origina-se, portanto, no momento em que surge o regime esclavagista. Logo aí aparece como máquina de poderes políticos, de organizações administrativas e de acções de força que servem a opressão dos que exploram, exercida sobre os que são explorados. No n.° 5.° do seu ensaio sobre «O Estado», Lenine — na sequência dos ensinamentos de Engels largamente estudados em «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado» escreveria o seguinte:

— «O Estado é uma máquina que permite a uma classe oprimir outra, máquina destinada a manter, à sujeição de uma classe, todas as outras que dela dependem».

Voltaremos oportunamente a este texto de Lenine — e portanto ao problema das origens desta máquina quando no 7.° capítulo deste livro abordamos a «Natureza, funções e elementos de Estado». Agora, o que nos interessa fixar é que Engels efectivamente mostrou, na obra há pouco indicada, que

«o Estado não é um poder imposto de fora à sociedade (...) senão que um produto da sociedade num período determinado do seu desenvolvimento.»

Num parêntesis, entretanto diremos que nem sempre a origem do Estado, como problema, foi encarada desta forma realista. De acordo com a explicação de Engels, acabámos de ver, o Estado nasce como produto da transformação da própria realidade social. O Estado engendra-se no seio da sociedade, resultado das suas contradições internas. Em séculos anteriores, porém, podemos surpreender explicações diferentes, aliás metafísicas e idealistas. Segundo, pelo menos, algumas delas, o Estado (ao contrário de gerar-se na própria sociedade em transformação) teria sido instituído de fora para dentro, como por exemplo aconteceu nas doutrinas teocráticas, conforme as quais ele foi instituído pela vontade de Deus.

Vamos então passar em revista, primeiramente as doutrinas teocráticas — e depois, em segundo lugar, a concepção da filosofia do século XVIII, nos termos da qual o Estado é, não um produto das condições históricas, mas resultado imposto pela Razão.

As doutrinas teocráticas (teo = Deus + cracia = governo) sustentaram que o Estado, o poder político, foi originado pela intervenção de uma vontade supra-terrestre. De modo genérico elas dividiram-se em duas correntes. Por um lado, a concepção do direito divino sobrenatural, preponderante nos séculos XVII e XVIII, de que são exemplo as «Memórias», de Luís XIV e o Édicto de Dezembro de 1770, de Luís XV, afirmava que o rei era directamente designado por Deus. Por outro, a concepção do direito divino providencial, assente no princípio das Escrituras, segundo o qual nem um só cabelo cairá da cabeça do homem que não seja por vontade de Deus, através dos seus mentores Joseph de Maistre e Bonald, pretendia que os acontecimentos e os actos humanos eram conduzidos por inspiração determinante da Providência. Metafísica, portanto, eis aquilo com que deparamos nestas concepções teocráticas.

Contrariamente, para as doutrinas democráticas do século XVIII o Estado não tem origem na determinação da vontade de Deus, mas num pacto social. O Estado constituiu-se, para os filósofos e pensadores racionalistas daquele século, por deliberada criação humana através de um consenso colectivo. É o caso do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, autor de «O Contrato Social».

Supõe Rousseau que os homens, vivendo a braços com a natureza, vítimas da carência de organização, teriam instituído contratualmente o Estado. Portanto, este criara-se por meio de um acto voluntário de todos os homens enquanto procuravam uma solução racional para as dificuldades inerentes ao estado de natureza. Esta solução é, porém, igualmente metafísica (o «contrato social» jamais foi um facto histórico na existência do homem) e cheia de artifícios de raciocínio. Quando Rousseau afirmava no capítulo 1.° do Livro III daquela sua obra que, se o Estado é composto de 10 000 cidadãos, cada um deles tem a décima-milionésima parte da autoridade soberana, colocava-se em contradição consigo. Pouco antes, com efeito, tinha ele assente em que uma das características da soberania é ser indivisível. E um outro sofisma de Rousseau residia na seguinte passagem do Livro I, capítulo 6.°:

— «Cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém».

E outro ainda é aquele que se colhe no capítulo 7.° deste mesmo Livro:

— «Quem se recuse a obedecer à vontade geral, será coagido a isso por todo o grupo, o que não significa outra coisa além de que o obrigarão a ser livre».

Evidentemente, foi contra artifícios destes a que o idealismo e a metafísica conduzem que as teorias modernas sobre a origem do Estado (como as de Engels, Marx e Lenine) o indicaram como um produto engendrado historicamente dentro da própria sociedade — «produto da sociedade num período determinado do seu desenvolvimento», como se lê, e eu repito, em «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado».

Isto não quer dizer que Rousseau não tenha, perante o materialismo histórico e a teoria política moderna, a maior importância. Poderíamos limitarmo-nos a lembrar que os grandes princípios enunciados na «Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão» de 1789 (tais assim os da liberdade, da igualdade e da soberania popular) já estão contidos em «O Contrato Social». Mas a importância dos enunciados rousseaunianos obriga-nos a ir mais longe. Como mostrou Galvano della Volpe em «Rousseau e Marx» (tradução argentina, Editorial Platina, Buenos Aires, 1963, págs. 59), enquanto a liberdade civil foi instituída pela democracia parlamentária e teorizada por Locke, Montesquieu, Humboldt, Kant e Constant, a liberdade igualitária, instituída pela democracia socialista, vem explicitada já claramente em Rousseau. E aí reside a sua superioridade e o seu interesse actual. O problema básico das actuais democracias populares está aliás já posto noutro livro do filósofo-político suíço, o «Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens». Numa das respectivas conclusões diz-se, com efeito, que

«a desigualdade moral (entenda-se cívica), legitimada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não concorre, na mesma proporção, com a desigualdade física».

A tradição marxista é peremptória sobre a origem e a concepção do Estado. A partir do «Manifesto Comunista», de 1848, e do «18 Brumário», e em todos os textos ulteriores de Marx, sobretudo sobre a Comuna de Paris, e de Lenine em «O Estado e a Revolução», a organização estatal configura-se como um aparelho repressivo. O Estado — recordo o que ficou dito páginas atrás — é uma máquina de repressão que, através dos seus órgãos (governo, tribunais, polícia), permite às classes dominantes assegurar o seu domínio relativamente à classe dominada. Por outras palavras, o mesmo nos dirá Max Weber em «O Político e o Cientista»:

— «Hoje (...) devemos dizer que o Estado é a comunidade humana que, dentro de determinado território (o «território» é um elemento definidor), reclama com êxito para si o monopólio da violência legítima».

Ou ainda:

— «O Estado é a única fonte do «direito» à violência».

Mas o Estado — fase histórica da sociedade humana que só o estabelecimento da igualdade económica e social entre os homens eliminará – exige, enquanto existir, uma regulamentação própria. Não se pode viver em sociedade sem leis. O aparelho repressivo do Estado pode até permanecer intacto apesar de uma revolução (quer burguesa, quer social), precisamente porque a sociedade civil não dispensa uma regulamentação e uma ordem. Por exemplo: — sabe-se que, após a Revolução de 1917, grande parte do aparelho do Estado russo permaneceu intacta após a tomada do poder pela aliança do proletariado com os camponeses pobres. Lenine não se cansou de repetir esta necessidade. E só os anarquistas (adversários de toda a espécie de regulamentação estadual) preconizam a supressão do Estado, e do poder político, independentemente das condições históricas, concretas, de cada época ou momento.

Entretanto, a necessidade de uma regulamentação social projecta-nos para a matéria do próximo capítuloa organização da sociedade.


Inclusão 15/12/2014