Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


XII — O Socialismo e Algumas Experiências Socialistas


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O socialismo nasceu — ou, mais exactamente, as diversas correntes socialistas nasceram — das diferentes formas de reagir teórica e praticamente contra o liberalismo económico, segundo o qual o livro jogo das actividades individuais assegura o progresso e realiza o bem público. E nasceu também contra as duas fases do capitalismo (concorrencial e imperialista). Neste sentido, antes de mais, o socialismo representa um tomada de consciência histórica relativamente ao futuro económico e social. Este não é, ao contrário do que sustenta a ideologia burguesa-capitalista, resultado de forças naturais. Pode e deve ser dominado pela razão humana.

A industrialização (a partir dos séculos XVIII e XIX) desumanizou o mundo dos homens. A generalização das máquinas e da energia eléctrica, tudo isto produziu e agravou alterações profundas, com dramáticos reflexos nas camadas laboriosas. O operário viu-se cada vez mais reduzido à condição de coisa, de máquina que vende a força do seu trabalho (o único valor que possui). A classe operária é um sector desprezível na orgânica social. Com efeito, na sociedade capitalista, assim se poderão definir os traços que separam e caracterizam a classe laborial: — diferença de tratamento entre operários e empregados; visão dicotómica do mundo, no qual se diferenciam aqueles que trabalham, daqueles que só tiram benefícios do trabalho alheio; subordinação de quem trabalha perante quem o não faz; por parte do operário, sentimento de ser desprezado por carência de instrução e cultura; necessidade de evasão que se procura na promoção, onde o êxito se divisa na situação do trabalhador por conta própria ou na do comerciante; uma atitude geral defensiva que explode de tempos a tempos por meio de greves; e um sentimento profundo de solidariedade perante as injustiças sociais. Este quadro, de que alguém desenhou o esquema, encaminha-nos para a compreensão do que seja, basicamente, o socialismo.

É certo que já fizemos, no capítulo X, um desfile de correntes ou ideologias socialistas. Há, efectivamente, várias. Só não se disse, então, o que é o socialismo em termos de definição geral. Mas perguntando-se agora o que ele seja, poderemos dar três respostas gerais, conforme, cada uma delas, com determinada perspectiva: — o que representa o socialismo como corrente política, o que significa como sistema económico, o que vale no decurso histórico das sociedades humanas.

Como corrente política, «socialismo» (ou socialista) é qualquer doutrina que sustente que o progresso da sociedade e o advento de um mundo de justiça não pode concretizar-se, não logrará realizar-se, senão através de uma acção colectiva e voluntária dos homens. Como sistema económico constitui «socialismo» (é socialista) toda e qualquer teoria que procure organizar a estrutura económica da sociedade a partir da propriedade social dos meios de produção. Como estádio histórico, «socialismo» (ou socialista) é a primeira fase, a fase inferior da formação económico-social comunista, aquela que directamente substitui a do capitalismo. Talvez este último grau requeira uma explicação mais ampla, ainda que simples.

Estamos recordados daquela série de ideologias socialistas que foram brevemente referidas no capítulo X: — por exemplo, o socialismo democrático, o socialismo fabiano, o socialismo ético, o socialismo de direita. Para estes casos, realizada a apropriação dos meios de produção a um determinado nível ou grau, está implantado o socialismo, e o seu «melhoramento» só se irá operando por reformas no campo económico e no plano moral. Para estas ideologias o socialismo é, como fase histórica, a única fase.

Ora isto não acontece com o chamado socialismo científico ou marxismo-leninismo. Por outras palavras: — com o comunismo. Para este, o socialismo é só, efectivamente, a há pouco referida primeira fase, fase inferior da formação económico-social comunista. O comunismo, esse sim, constituirá a segunda fase. Socialismo e comunismo são, assim, dois estádios sociais de desenvolvimento de um só modo de produção, já que a base económica de ambos é a propriedade social dos meios de produção. Mas isto não quer dizer que também entre ambos não se verifiquem, no entanto, distinções substanciais, condicionadas pelo grau diferente do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção.

Recordando mais uma vez o desfile de socialismos já feito neste livro, e não esquecendo que antes de Marx já havia correntes socialistas de natureza não científica (utópicas, portanto), tradutotoras de necessidades e desejos de justiça e de igualitarismo social, é-nos possível esquematizar o seguinte quadro sinóptico:

  1. socialismos pré-marxistas (ou utópicos) — os de Saint-Simon, Fourier, Owen, Weitling;
  2. socialismo marxista (ou científico)—com as suas duas fases de desenvolvimento histórico, a socialista e a comunista;
  3. socialismos reformistas — trabalhismo, socialismo ético, socialismo de direita, revisionismo, socialismo democrático, socialismo humanista, etc., etc....

Consideremos nós o «socialismo», ou como fase única, ou como um tempo histórico que se desdobra em duas fases (socialista e comunista), há uma verdade insofismável que importa fixar: — a evolução económico-social tende para o socialismo. Isto, aliás, conforme um processo que se pode sistematizar assim:

  1. o desenvolvimento técnico permite a organização global da economia;
  2. esta organização global é mais eficaz do que os ajustamentos aproximativos que resultam da concorrência;
  3. e não pode ser realizada num sistema capitalista;
  4. pois, na verdade, este torna-se menos eficaz para satisfazer o conjunto das necessidades sociais e individuais;
  5. pelo que tende, com efeito, para desaparecer em benefício de um sistema de produção planificada, implicando o desaparecimento do poder dos proprietários das empresas quanto às decisões fundamentais (coordenação com as necessidades de consumo, orientação da produção, nível dos investimentos, prazos, etc.).

Estes pontos ganham de tal modo, dia a dia, a consciência das pessoas do mundo ocidental que, no plano dos valores, a propriedade privada dos meios de produção lhes surge, cada vez mais, como um poder (hereditário) sobre os homens. Já não se admite que o filho suceda ao pai no exército, na administração, na política. Porquê, então, mantê-lo sucessor na economia?... E Maurice Duverger, em «Introdução à Política», a págs. 310 da tradução portuguesa, nota muito lucidamente que, de forma profunda e generalizante, a propriedade privada dos meios de produção, base do sistema capitalista, está a perder a sua legitimidade aos olhos dos homens do Ocidente.

No capítulo anterior falámos do «Novo Estado Industrial», de Galbraith, e de tecnoestrutura. Pessoas menos avisadas nestas coisas, sabendo que a economia socialista se baseia na planificação, poderiam ajuizar (erradamente) que planear e estruturar tecnicamente são uma e a mesma coisa e que, neste sentido, razão teriam aqueles que falam na convergência do capitalismo e do socialismo — ou outros tais que, insidiosamente, sustentam a analogia dos sistema económicos dos Estados Unidos da América do Norte e da União Soviética. Mas tentemos colocar o problema.

É óbvio que a tecnoestrutura não é exclusiva do «novo estado industrial» descrito por Galbraith. Existe, desde certo ponto de vista, uma semelhança quanto ao funcionamento e à adopção de decisões, dentro da grande empresa industrial americana e das empresas socialistas. Em ambos os sítios poderá dizer-se que apareceu, nos últimos anos, essa tecnoestrutura. Porém, a diferenciação de raiz reside no facto de, no capitalismo, a propriedade se centrar nos accionistas, ao passo que no socialismo é detida pelo sector público. E resulta, assim, que as possibilidades das respectivas tecnoestruturas são totalmente diferentes em ambos os sistemas: — nos Estados Unidos estão ligadas ao conceito de propriedade privada, a uma organização social classista, ao espírito de lucro, aos grupos de pressão política com determinados interesses; nos países socialistas, o núcleo central colectivista das grandes decisões confere ao sistema ura carácter social que permite a planificação global.

A planificação global não é, com efeito, possível nos quadros do capitalismo. Cada empresa capitalista pode estabelecer planos por conta própria, assentes em análises e cálculos respeitantes ao seu ramo produtivo. Todavia, tais planos são necessariamente errados pois não podem ter em conta factores gerais do comportamento dos consumidores, a evolução dos custos das matérias-primas, a mão de obra, etc., etc.. Poderá a planificação atingir, maximamente, no sistema capitalista, o nível de uma categoria de produção, isto pelo desenvolvimento de acordos e de «trusts». Porém, não logrará nunca uma planificação considerando a sociedade inteira. Só o Estado tem, na verdade, possibilidade de ajustar as técnicas de cálculo e de previsão a toda a colectividade social e, assim, nelas basear um um plano conjuntural.

Falaremos agora, um pouco, das experiências socialistas a nível dos países onde tomaram mais vulto — U.R.S.S. e China Popular. Isto não é esquecer nem a Jugoslávia, nem Cuba, nem o Chile, como nenhuma das democracias populares da Europa, mas a análise dos seus casos específicos seria incomportável no espaço deste capítulo.

A U.R.S.S, por exemplo, oferece-nos um vasto campo de observação. Ela foi a primeira nação a encarar uma sociedade socialista, como fase preliminar do comunismo. E até muito recentemente polarizou de modo incontestável, com o seu modelo estrutural e o seu estilo político, o movimento comunista mundial. Naturalmente, nesta rota a União Soviética produziu um certo tipo de realidades, decerto com imperfeições, mas também com grandes êxitos.

É compreensível que a experiência soviética (com a sua condição principal, de superiorizar a produtividade dos países capitalistas) continue a constituir modelo inspirador da orientação de muitos países. No entanto, é necessário ter sempre presente que tal experiência representa o produto específico de determinadas condições históricas e que o sistema da U.R.S.S. se desenvolve e progride em atenção às suas condições concretas de cada momento. Isto quer dizer, portanto, que o modelo que a U.R.S.S. propõe pode sugerir úteis reflexões relativamente aos modos e aos processos de funcionamento do socialismo num país industrializado, mas não logrará, evidentemente, ter um sentido universal. Pretender tal sentido seria infringir um princípio fundamental do marxismo-leninismo.

O sistema constitucional soviético caracteriza-se pela rejeição global do núcleo de controvérsias e polémicas que estão na base dos debates da política burguesa. As questões ditas essenciais para o jurista do Ocidente, desenham-se aos olhos dos soviéticos como falsos problemas, os quais ocultam aquela realidade que é determinante de uma solução verdadeiramente científica: — a existência ou a ausência de conflitos de classes numa sociedade considerada. Enquanto a democracia burguesa nega a sociedade unânime, os soviéticos respondem que isso é ignorar (ou fingir ignorar) a verdadeira natureza do poder político. Este, apesar de diferenciação dos seus órgãos, conserva uma unidade profunda, e daí resulta que, para a teoria jurídica soviética, aquela que respeita a um Estado sem classes, a oposição entre o poder legislativo e o poder executivo, entre o parlamento e o governo, não tem sentido nem lugar. Uma contradição de tal tipo só num Estado capitalista é concebível. Aí é que as instituições reflectem as contradições antagónicas que opõem os explorados à classe dominante ou dirigente.

No que concerne aos direitos do homem, o pensamento ocidental considera-os direitos naturais — e, por isso — mesmo, direitos subtraídos à acção do Estado, tal como se afirmava na Declaração de 1789. Porém, baseada como está numa análise marxista do Direito, desde logo a concepção soviética se afasta de todo o idealismo. Ela assenta directamente sobre o facto de que os direitos e as liberdade fundamentais se ligam à base económica em que estão integrados. Não há lugar, na U.R.S.S., para uma concepção abstractamente universalizada da liberdade. Há, sim, situações particulares ou concretas. E a questão posta pelos juristas soviéticos é a seguinte: — que importam os direitos individuais numa sociedade como a ocidental burguesa, que não logra garantir a todos a fruição efectiva, economicamente igualitária, desses mesmos direitos?... Então compreende-se o motivo pelo qual a Constituição soviética abre com a estatuição da orgânica económica e social, não com o mero enunciado, abstracto e idealista, dos chamados direitos individuais.

Mas a experiência socialista soviética é, como marxista, de ordem progressiva, dialéctica. A revolução não constitui um vento desvastador que só deixa o deserto à sua passagem. «O Estado e a Revolução», de Lenine, inscreve esta regra fundamental :

— «Em regime comunista subsistem durante determinado tempo, não apenas o direito burguês, mas também o Estado burguês sem burguesia».

É isto o que a generalidade dos esquerdistas, «revolucionários» radicais do palavreado oco, esquecem ou ignoram.

Entretanto, a ditadura do proletariado é provisoriamente necessária para consolidar o poder do povo. Lenine demonstrava que este dirigismo da classe operária constituía, bem menos do que à primeira vista poderia parecer, a ideia da verdadeira democracia:

— «No período de transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é ainda necessária, mas ela é já exercida contra uma minoria de exploradores, por uma maioria de explorados».

E ainda no que respeita à organização política do Estado soviético, cumpre demarcar que nele o poder se organiza em esquema de pirâmide. Isto é: — por delegações sucessivas até à base, constituída esta pelos «sovietes».

Por fim, no que respeita à economia soviética sabemos que ela se determina conforma um planeamento periódico. À U.R.S.S. já teve, no decurso da sua existência, vários «Planos Quinquenais». Mas verifica-se hoje uma aberta compreensão e um lúcido acordo sobre os malefícios de uma planificação excessivamente rígida e centralizada. Os planos a longo prazo são modificados ou corrigidos, quando imperioso, substituindo-se assim a primitiva estrutura de empirismo conjuntural, pela verdadeira orientação concreta — que essa, sim, é eminentemente marxista.

Passamos, agora, à experiência socialista chinesa.

A U.R.S.S., vimos há pouco, sustenta que o seu modelo revolucionário não deve ser copiado mecanicamente pelos outros países socialistas — mas esta advertência não pode conduzir ao ponto de se admitir qualquer degeneração ideológica. Esta significaria, muito simplesmente, um rompimento com a ortodoxia. E é de um desvio assim que se acusa a China Popular, a qual, por seu lado, também põe em causa a interpretação e a aplicação soviética do marxismo-leninismo. A verdade é que existe, sem dúvida, um modelo chinês para a construção do socialismo. Ele apresenta caracteres muito particulares e específicos, podendo constituir um centro atractivo, sedutor para países em vias de desenvolvimento económico.

A primeira característica da experiência chinesa reside no facto de a sua revolução não ter sido feita a partir do proletariado urbano, circunstância verdadeiramente específica e que, desde logo, a cerceia e impede como modelo e exemplo para a generalidade dos países europeus. Tendo, com efeito, a base operária do partido sido eliminada em 1927, decidiu Mao-Tsé-Tung fazer das massas rurais o motor revolucionário — facto, aliás, também ligado de um modo estritamente específico à luta das populações camponesas contra o invasor imperialista japonês, na linha da resistência a outros imperialismos anteriores. Assim, dos campos se partiu para a conquista das cidades. E esta prática revolucionária fez desenhar a chamada «táctica do cerco», a qual, aliás, viria mesmo a ser elevada à categoria de estratégia mundial.

Dentro desta linha de liderança camponesa, o Partido Comunista Chinês decidiu, no momento em que ia ser posto em prática o 2.° Plano Quinquenal, que o esforço dianteiro e principal deveria partir dos campos, isto é, das «comunas populares». E foi a base rural do comunismo chinês, ao nível das referidas comunas, que explicou o «grande salto em frente» de 1958, fenómeno cultural e político que constitui, por excelência, o contributo original do sistema socialista chinês para a diversidade histórica das suas soluções.

Em 3/9/1965, Lin-Piao — então ainda não acusado de traidor ao sistema — formulava a teoria num discurso conhecido:

— «Só o campo é a base revolucionária a partir da qual os revolucionários podem dirigir os seus passos para a vitória final. Assim, a teoria do Camarada Mao-Tsé-Tung, sobre o estabelecimento de bases revolucionárias nas regiões rurais e o cerco das cidades pelos campos, chama cada vez mais a atenção dos povos destes continentes. Se tomarmos o mundo no seu todo, a América do Norte e a Europa Ocidental podem ser tidas por cidades, e a Ásia, a África e a América Latina seriam o campo (...) A revolução mundial conhece hoje uma situação que vê as cidades cercadas pelos campos. Finalmente, é da luta revolucionária dos povos da Ásia, da África e da América Latina (...) que depende a causa revolucionária mundial».

Salvo o devido respeito por esta tese, a sua tentativa de generalização abstractizante nada tem de marxista-leninista. Mas noutro aspecto ainda se revela a mesma carência. A posição chinesa visou acelerar, no tempo mais curto, a passagem ao comunismo. Nota Jean-Pierre Lassale, em «Introdução à Política», a págs. 153 da edição portuguesa, que aqui se revela a natureza idealista da experiência levada a cabo pela China Popular. A ideia de base do sistema é, no fundo, esta: — a de que o «objectivo» pode nascer do «subjectivo»; a de que é possível inculcar no indivíduo uma ideologia que radicalmente o transforme, sem ter em conta o grau da evolução económica da respectiva sociedade. E neste aspecto idealista, irrecuperavelmente idealista, se traduz aquilo que significa «a revolução cultural». Basta invocar o facto de a Carta da Revolução Cultural, que o Partido Comunista chinês adoptou em 8/8/1966, ter este nítido começo:

— «A grande revolução cultural proletária, uma revolução que toca o homem naquilo que ele tem de mais profundo...»

Mas é ainda mais claro e categórico de idealismo o n.° 14 desta mesma Carta:

— «A grande revolução cultural tem por objectivo o revolucionamento do pensamento do homem».

Entretanto, a págs. 154 da obra há pouco citada, diz Lassale:

— «Notemos, aliás, que se trata ainda de uma acção em que a classe trabalhadora desempenha papel ínfimo, e que chega em parte a ser dirigido contra ela: — é à juventude, à das escolas e também à dos campos, que cabe o papel de inculcar o espírito proletário na população urbana».

É fácil de compreender o motivo por que a teoria maoísta — de que o proletariado rural cercará as cidades, partindo as bases revolucionárias da província — põe cada vez mais ênfase nesta tónica. Parece que efectivamente à China Popular só lhe resta tal ênfase. As estreitas relações existentes entre a U.R.S.S. e ela, cimentadas em 1950 pelo Tratado Sino-Soviético de Amizade, Aliança e Assistência Mútua, terminaram dez anos depois com a retirada do auxílio económico soviético. Na verdade, o conflito ideológico entre soviéticos e chineses é agravado com a ausência de capital e de capacidade técnica indispensável para a China, acelerar a revolução industrial e manter a organização e a mecanização da agricultura.

continua>>>


Inclusão 15/12/2014