Um Dever de Honra

Rosa Luxemburgo

18 de Novembro de 1918


Primeira Edição: no Die Rote Fahne, criado por Rosa Luxemburgo e por Karl Liebknecht como órgão da Spartacus League.

Fonte: Verinotio — Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 24, n. 2, pp. 229-237, nov. 2018.

Tradução: Traduzido por Nayara Rodrigues Medrado da versão em inglês A duty of honor, de Ted Crawford e Brian Baggins. In: Luxemburg Internet Archive (Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1918/11/18c.htm>, acessado em 20 abr. 2017). Cotejada com o original em alemão Eine Ehrenpflicht (Disponível em: <http://www.collectif-smolny.org/article.php3?id_article=941>, acessado em 31 ago. 2017), com a versão francesa Un duty of honor, de autoria da Démocratie Communiste, (Disponível em: <https://www.marxists.org/francais/luxembur/spartakus/rl19181118.htm>, acessado em 20 abr. 2017), e com a versão em inglês Against capitalpunishment, traduzida do francês por William L. McPherson (Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1918/11/18c-alt.htm>, acessado em: 20 abr. 2017). Revisão técnica da tradução de Murilo Leite e Carolina Peters.

HTML: Fernando Araújo.


Apresentação

capa

Nayara Rodrigues Medrado(1)

Um dever de honra, escrito por Rosa Luxemburgo dois meses antes de seu assassinato por paramilitares ligados ao governo contrarrevolucionário alemão, representa uma crítica incisiva à covardia da social-democracia, burocratizada e fechada em si mesma. Ao mesmo tempo, traz contribuições relevantíssimas para se pensar o sistema penal e seu caráter burguês. O texto foi redigido e publicado em novembro de 1918, em meio à chamada Revolução Alemã.

A revolta generalizada frente à persistência do Império Alemão em uma desastrosa guerra sem chances reais de vitória; a timidez das reformas sociais empreendidas pelo parlamento de maioria social- democrata, sob a presidência de Friedrich Ebert (1871-1925), e a atuação de deputados reformistas e pragmáticos como Philipp Scheidemann e Gustav Noske; a crescente insatisfação popular com a monarquia e a simpatia com a forma republicana, somadas à influência do ideário da Revolução Russa de 1917 e da II Internacional Comunista, desembocaram em uma insurreição popular que se espalhou por toda a Alemanha. Embora a agitação tenha surgido como um movimento espontâneo das massas cansadas da guerra, fez brotar um intenso desejo por transformações políticas e sociais mais profundas (LOUREIRO, 2005, pp. 54-5).

A mobilização teve início em 6 de novembro de 1918 em Hamburgo, Bremen, Wilhelmshaven e Lübeck. No dia 7, atingiu Hannover e, no dia seguinte, Colônia, Braunschweig, Dusseldorf, Leipzig, Frankfurt e Munique, com a proclamação da República Socialista da Baviera. Em 9 de novembro de 1918, a revolução finalmente atingiu Berlim, a capital do Império: milhares de operários deixaram as fábricas e, unidos a soldados e transeuntes, tomaram as ruas berlinenses, tendência que foi reproduzida por toda a Alemanha durante os dias de novembro (LOUREIRO, 2005, pp. 55-7).

O dia 9 de novembro assistiu, simultaneamente, a duas proclamações da República: no início da tarde, Philipp Scheidemann (1865-1939), deputado do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), proclamou a República do balcão do parlamento alemão; cerca de duas horas depois, Karl Liebknecht (1871-1919), do balcão do Palácio Imperial, realizou o ato acompanhado da multidão de manifestantes que havia tomado, praticamente sem resistência, os principais edifícios públicos, as sedes de jornais, o parlamento e o Castelo Real. Pressionado pelas mobilizações nas ruas, pela crescente impopularidade do governo junto aos diversos setores sociais, pelas investidas de algumas das habilidosas e tecnocratas lideranças do SPD — que tentava se adiantar à temerosa revolução proletária — e abandonado pelas forças militares do país, o príncipe Max de Bade (1867-1929), então chanceler, anunciou sem prévia autorização a renúncia do imperador Guilherme II (1859-1941), “o último dos Hohenzollern” (p. 235), transferindo o cargo de chanceler a Friedrich Ebert, então presidente do SPD, e propondo a convocação de uma assembleia constituinte.

Foi a partir dessa manobra orquestrada pelos social-democratas e aceita pelo governo imperial que teve início a chamada República de Weimar, um governo de coalizão entre o SPD — majoritário no parlamento, defensor de uma transição pacífica ao socialismo, por meio de reformas, e cuja ala majoritária havia aprovado os créditos de guerra — e o Partido Social-Democrata Independente Alemão (USPD), uma heterogênea oposição à esquerda, oriunda de uma cisão do SPD e que abrigava várias tendências do movimento socialista, incluindo a recém-constituída Liga Espartaquista, composta por Rosa Luxemburgo (1871-1919), Leo Jogiches (1867-1919) e Karl Liebknecht, a qual, posteriormente, rompeu com o USPD, fundando o Partido Comunista Alemão (KPD). A aliança, embora frágil (tanto pelas disputas internas quanto por ter de arcar com a herança da derrota na guerra), sobreviveu até 1933, quando ocorreu a ascensão de Hitler ao poder.

A revolução, por sua vez, após passar por uma nova fase de radicalidade, teve fim em 1923, após a derrota do que ficou conhecido como Levante de Outubro. Ainda em janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados por membros dos Freikorps — grupo paramilitar formado por oficiais conservadores, estudantes universitários e soldados desempregados que, com a desmobilização das forças do Exército no período pós-guerra, teve um papel essencial na repressão aos levantes e às suas lideranças.

Foi em meio a esse processo revolucionário e a esse forte embate entre as forças declaradamente de esquerda alemãs que Rosa Luxemburgo escreveu o texto que motiva esta apresentação. A recém-constituída Liga Espartaquista teve um papel fundamental para a eclosão do movimento revolucionário, seja por meio do debate público, da atuação nas disputas dentro do SPD ou, mais imediatamente, entre os dias 8 e 9 de novembro, quando distribuiu panfletos incitando os trabalhadores berlinenses à derrubada do poder imperial. Rosa, contudo, manifestou resistência ao levante, interpretando-o como precipitado e com custos humanos graves. Ela entendia não estarem presentes as condições materiais para uma Revolução, de modo que a mobilização tendia mais para um brutal e injustificado massacre do que, propriamente, para uma radical transformação social. É aqui aplicável o raciocínio que a conduziu ao enfrentamento da brutalidade da pena de morte: “um mundo agora deve ser destruído, mas cada lágrima derramada quando poderia ter sido poupada é uma acusação; e um homem que, apressando-se na realização de feitos importantes, inadvertidamente pisoteia até mesmo um pobre verme é culpado de um crime” (p. 237).

Já na fase final de sua vida, marcada por uma forte oposição à guerra imperialista, Rosa criticou, com o tom enérgico e irônico que lhe era habitual — e que lhe rendeu o apelido de “Rosa Sanguinária” —, o personalismo e a verticalidade do SPD, ainda dominado por políticos para quem “a carteirinha do partido representava tudo, e o ser humano e o espírito, nada” (p. 237). A polonesa era adepta de uma espécie de socialismo democrático que enfatizava a importância primordial do movimento de massas e de seu protagonismo na tomada das decisões. Combatia autoritarismos e verticalismos sem recair em democratismo vulgar, limitado à atuação partidária e parlamentar, ao qual era profundamente crítica.

Ao longo de uma vida de intensa militância política, Rosa permaneceu no cárcere por mais de três anos, experiência que lhe permitiu ter contato direto com um sistema que reprimia revolucionários, transformando-os em presos políticos, mas que, sobretudo, “impregnado por um brutal espírito de classe e pela barbárie capitalista”, reduzia pequenos ladrões a “figuras pálidas e raquíticas” (p. 235). Rosa fez um diagnóstico preciso desse sistema: seletiva e com uma clara orientação de classe, essa “justiça das classes burguesas” era uma “rede, através de cujos orifícios predadores vorazes conseguem facilmente escapar, enquanto pequenos peixes indefesos permanecem se debatendo impotentemente em seu interior” (p. 235). Tratava-se de uma justiça que tem como alvo um grupo bastante determinado de pessoas: aquelas “vítimas infelizes da infame ordem social contra a qual a Revolução se dirigiu” (p. 235), isto é, vítimas da própria conformação social capitalista.

Neste que representa um de seus últimos escritos políticos, redigido logo após deixar a prisão feminina de Breslávia, na Polônia, Rosa Luxemburgo saiu em defesa de uma “minuciosa reforma” do sistema penal e de sua estrutura. Alimentação precária, celas praticamente sem aquecimento, ausência de assistência psicológica e precariedade na assistência de saúde, violência física, além de penas draconianas para pequenos delitos e a aceitação da pena de morte: esse era o cenário em relação ao qual a social-democracia alemã permanecia em conivente silêncio e contra o qual a voz de Rosa Luxemburgo se levantou.

A proposição de uma reforma, contudo, não era bastante: o crime e a correspondente punição, tal como se apresentam na sociedade burguesa, possuem suas raízes nas próprias condições econômicas atreladas ao sistema capitalista. Desse modo, pressupor uma transformação revolucionária de sua conformação implica debater uma transformação revolucionária da própria forma de sociabilidade que lhe dá sustentação. Estamos diante de uma Rosa abolicionista, mais do que nunca profundamente crítica a revisionismos e coerente com aquilo que Marx afirmara em 1853, ao também comentar a pena capital: “a pena nada mais é que um meio de a sociedade se defender contra a infração de suas condições vitais, seja qual for seu caráter” (MARX, 2015, p. 33).

O texto também apresenta uma teórica preocupada com questões colocadas no aqui e no agora. Para além da polêmica em torno do caráter humanista ou não de sua obra, o fato é que a autora de Reforma ou revolução, condizente com seu socialismo democrático, adotou novamente uma saída para a falsa dicotomia sobre a qual tratou em sua obra mais famosa: consciente de que qualquer reformismo puro não ultrapassaria os limites de um progressismo democrata oportunista e pequeno-burguês, afirmou a reforma social como um instrumento possível e necessário para uma revolução que se queira democrática, ao mesmo tempo em que denunciou, de forma intransigente, o equívoco de se pretender transmutar tal reforma social em um fim em si mesmo.

Eis o grande mérito de Rosa Luxemburgo: compreender a íntima conexão entre sistema penal e modo de produção capitalista, de maneira a apontar categoricamente que um novo sistema penal coerente com o espírito do socialismo apenas poderia subsistir sobre uma nova ordem econômica e social. Isso implica a impossibilidade de se conferir uma autarquia à esfera penal, buscando nela — e apenas nela — , em um sentido positivo (melhoria do cárcere e da pena) ou negativo (abolição do cárcere e da pena), uma resposta a questões engendradas por uma estrutura que vai muito além do âmbito penal — e que na verdade o conforma. Rosa ofereceu elementos, enfim, para se pensar que uma crítica radical ao sistema penal não pode se limitar a ele: deve ter como foco a própria base real sobre a qual este sistema — e o próprio direito burguês — se alicerça.

Essa constatação, no entanto, não impede a revolucionária polonesa de pleitear que certas reformas, ainda dentro do marco do capitalismo e de uma social-democracia minimamente digna de tal nome, sejam levadas a cabo. A melhoria das condições de cumprimento da pena e o encurtamento de sua duração, além do melhoramento da estrutura alimentar e de saúde, da extinção dos castigos corporais e, em especial, do fim da pena de morte são medidas que não podem esperar a revolução. Consistem, por isso mesmo, em um dever de honra.

É certo que Rosa, filha que foi de seu tempo, não escapou, em alguns momentos, de um tom depreciativo ao tratar da figura do criminoso, tom este que remete, no limite, a um perigoso determinismo biológico. Este tratamento assusta, mas não pode ser lido com os olhos do presente senão em um exercício de evidente anacronismo.

Ainda assim, Uma questão de honra deixa importante legado, bastante atual, aliás, num momento histórico em que a assim chamada criminologia crítica parece cada vez mais afastar-se da leitura materialista que marcou seus passos iniciais. Em seu lugar, ganha centralidade ora uma tendência focada na cultura e nas micronarrativas, ora um reformismo conformado, escondido por detrás de um ideal de “se levar o crime a sério”(2). Vale remeter, aqui, às expressões de Rosa em sua polêmica com Eduard Bernstein (1850-1932), cuja teoria, segundo ela, não visava a outra coisa senão a “conduzir-nos ao abandono do objetivo último da social-democracia, a revolução social e, inversamente, fazer da reforma social, simples meio da luta de classes, o seu fim último” (LUXEMBURGO, 2017).

Todo esse contexto torna a lição de Rosa Luxemburgo particularmente aplicável aos dias de hoje. De um lado, se o crime e a punição descobrem suas raízes, em última instância, na própria conformação econômica da sociedade, um abolicionismo penal que deixa intocada a ordem de coisas capitalista não supera, em radicalidade, o mero reformismo pequeno-burguês. De outro, esse mencionado reformismo, à semelhança do que ocorria com as propostas de Bernstein, não pode se mover sobre outro solo que não o do idealismo. Nesse sentido, “levar o crime a sério” parece pressupor, antes de tudo, o questionamento sobre suas raízes reais, bem como, é claro, acerca das funções desempenhadas pela pena no âmbito de uma forma de sociabilidade que não busca mais que se defender da infração de suas condições vitais, cujo caráter se liga menos a uma declarada paz social e mais à produção de uma realidade estranhada.

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Um Dever de Honra

Berlim, 18 de novembro de 1918

Não desejávamos nenhuma “anistia”, ou qualquer tipo de perdão, para os prisioneiros políticos que foram vítimas da velha ordem reacionária. Nós reivindicávamos nosso direito à liberdade, pela luta e pela revolução, para as centenas de homens e de mulheres leais e bravos que definhavam nas fortalezas e nas prisões porque haviam lutado pela liberdade popular, pela paz e pelo socialismo, contra a ditadura sanguinária das criminosas facções imperialistas. Eles estão todos em liberdade agora. Novamente, posicionamo-nos, ombro a ombro, prontos para a luta. E não foram os Scheidemann(3) e nem seus aliados burgueses, liderados pelo príncipe Max(4), que nos libertaram. Foi a Revolução Proletária que fez as portas de nossas celas rebentarem.

Um outro grupo de miseráveis prisioneiros, que ainda definha nessas casas sombrias, permaneceu, no entanto, completamente esquecido. Até agora, ninguém pensou nas milhares de figuras pálidas e raquíticas que têm sido encarceradas há anos atrás dos muros de prisões e fortalezas, em expiação, por pequenos delitos.

E são elas, ainda, vítimas infelizes da infame ordem social contra a qual a Revolução se dirigiu — vítimas de uma guerra imperialista que aumentou o sofrimento e a miséria até o limite da tortura insuportável e que, com sua animalesca carnificina humana, desencadeou nas naturezas fracas e congenitamente contaminadas os mais vis instintos.

A justiça das classes burguesas novamente se mostrou como uma rede, de cujos orifícios predadores vorazes conseguem facilmente escapar, enquanto pequenos peixes indefesos permanecem se debatendo impotentemente em seu interior. Aqueles que lucraram milhões com a guerra escaparam do julgamento ou tiveram de pagar multas ridiculamente pequenas, mas os pequenos ladrões e ladras foram castigados com penas de prisão draconianas.

Morrendo de fome, tremendo de frio em celas praticamente sem aquecimento, emocionalmente abalados pelos horrores de uma guerra que se prolongou por quatro anos, esses filhos bastardos da sociedade permanecem à espera do perdão e do alívio.

Eles estão esperando em vão. O último dos Hohenzollern(5), como um bom soberano, esqueceu-se do sofrimento deles em meio ao banho de sangue internacional e à perda gradual do poder da Coroa. Durante os quatro anos que se seguiram à conquista de Liège, não houve qualquer anistia digna de tal nome, nem mesmo naquele feriado oficial dos escravos alemães, o "Aniversário do Kaiser”.

A Revolução Proletária deve, agora, por um pequeno ato de misericórdia, iluminar suas vidas sombrias nas prisões e fortalezas; ela deve encurtar as sentenças draconianas, abolir esse sistema disciplinar bárbaro (detenção em correntes, castigos corporais!), melhorar ao máximo sua capacidade de tratamento, a atenção médica, a alimentação e as condições de trabalho. Trata-se de um dever de honra!

O sistema penal existente, que é impregnado por um brutal espírito de classe e pela barbárie capitalista, deve ser extirpado pela raiz. Uma minuciosa reforma do sistema a partir do qual as sentenças são executadas

deve ser levada a cabo. Um sistema completamente novo, coerente com o espírito do socialismo, apenas pode ser estabelecido sobre o alicerce de uma nova ordem econômica e social; todos os crimes, assim como todas as punições, têm, certamente, em última análise, suas raízes profundas nas condições econômicas da sociedade. No entanto, uma medida decisiva pode ser implementada desde já. A pena de morte, a maior vergonha do ultrarreacionário Código Alemão, deve ser retirada imediatamente! Por que tanta hesitação por parte deste governo de trabalhadores e soldados? O nobre Beccaria(6), que há 200 anos denunciou em todas as línguas civilizadas a impiedade da pena de morte, não existe para vocês, Ledebour(7), Barth(8), Daumig(9)?

Vocês não têm tempo, é o que dizem, têm mil dificuldades e tarefas diante de vocês. Certamente. Tomem seus relógios nas mãos e vejam quanto tempo é necessário para abrir a boca e dizer: a pena de morte está abolida! Ou vocês querem um debate prolongado, culminando em uma votação entre vocês a respeito dessa questão? Vocês, também neste caso, perder-se-iam nas complicações do formalismo, em considerações sobre competência jurisdicional, em questões de sanção legal e regras e porcarias semelhantes?

Ah! Quão alemã esta Revolução é! Quão prosaica e pedante ela é! Quanta falta de verve, de brilho, de grandeza! A esquecida pena de morte é apenas um pequeno aspecto isolado. Mas com que frequência precisamente esses pequenos aspectos traem o íntimo espírito do todo.

Pegue, aleatoriamente, qualquer história da grande Revolução Francesa; pegue o árido Mignet(10). Poderia alguém ler esse livro senão com o coração batendo e a mente em chamas? Pode esse alguém, após ter aberto o livro aleatoriamente e iniciado a leitura, deixá-lo de lado antes de ouvir, com a respiração ofegante, o último acorde daquela formidável tragédia? É como uma sinfonia de Beethoven elevada a proporções gigantescas, uma tempestade furiosa sobre os órgãos do tempo, grande e esplêndida tanto em seus erros quanto em seus sucessos, na vitória e na derrota, em seu primeiro júbilo ingênuo e em seu último suspiro reprimido. E, agora, na nossa casa, a Alemanha? A cada passo, nos assuntos grandes e pequenos, percebe-se que os velhos e dignos companheiros ainda estão conosco desde a época em que a social- democracia dormia beatamente, quando a carteirinha do partido significava tudo, e os seres humanos e o espírito, nada. Mas não nos esqueçamos de que a história mundial não é feita sem grandeza de espírito, sem fervor moral, sem gestos nobres...

Ao deixarmos os hospitaleiros corredores que habitamos recentemente, Liebknecht e eu — ele, entre seus companheiros tosados de penitenciária, e eu com minhas queridas pobres prostitutas e ladras, com quem passei, sob o mesmo teto, três anos e meio da minha vida — fizemos este juramento enquanto eles nos seguiam com um olhar repleto de tristeza: “Nós não nos esqueceremos de vocês!”.

Exigimos que o Comitê Executivo dos conselhos de trabalhadores e de soldados alivie imediatamente o destino dos prisioneiros em todas as instituições penais da Alemanha!

Exigimos que a pena de morte seja retirada do Código Penal alemão!

Rios de sangue escorreram em torrentes durante os quatro anos de genocídio imperialista. Agora, cada gota desse precioso fluido deve ser preservada reverentemente em vasos de cristal. Energia revolucionária implacável e humanidade terna — essa é a verdadeira essência do socialismo. Um mundo agora deve ser destruído, mas cada lágrima derramada quando poderia ter sido poupada é uma acusação; e um homem que, apressando-se na realização de feitos importantes, inadvertidamente pisoteia até mesmo um pobre verme é culpado de um crime.


Referências bibliográficas (Apresentação)

ARAÚJO, George. Uma revolução que não deve ser esquecida: Alemanha, 1918-1923. Revista História Social, n. 17, 2009.

LOUREIRO, Isabel. A Revolução Alemã: 1918-1923. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução, acessado em 20 ago. 2017.

MARX, Karl. Pena capital — Panfleto do Sr. Cobden — Regulações do Banco da Inglaterra. Verinotio, n. 19, Ano X, pp. 32-5, abr. 2015.

YOUNG, Jock. Entre a criminologia crítica e a imaginação sociológica. Entrevista concedida a Maximo Sozzo e David Fonseca. Dilemas, v. 7, n. 2, pp. 367-90, abr./mai./jun. 2014.

Notas de rodapé:

(1) Mestra pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF — campus Governador Valadares). E-mail: nayaramedrado @ gmail . com. (retornar ao texto)

(2) O desafio é lançado por Jock Young — outrora precursor da chamada nova criminologia, de viés marxista — em sua adesão ao neorrealismo de esquerda que, retornando a um certo caráter ontológico e desagregador do crime, e criticando o que nomina por “idealismo de esquerda”, busca respostas “pragmáticas”, “realistas” e “à esquerda” para a criminalidade, entendida em parte como construção social, mas também como realidade concreta pré-existente à reação penal (cf. YOUNG, 2014). (retornar ao texto)

(3) Referência à família de Philipp Scheidemann (1865-1939), membro à extrema-direita do Partido Social-Democrata Alemão (SPD). Presidiu o governo burguês alemão entre fevereiro e junho de 1919. (retornar ao texto)

(4) Max von Baden (1867-1929) tornou-se chanceler do Império Alemão em 3 de outubro de 1918, tendo sido obrigado a renunciar pelo movimento revolucionário em 9 de novembro do mesmo ano. (retornar ao texto)

(5) Referência a Guilherme II (1859-1941), último imperador alemão e rei da Prússia até abdicar do trono, em novembro de 1918. (retornar ao texto)

(6) Césare Beccaria (1738-1794), autor de Dos delitos e das penas, foi um dos principais representantes da Escola Liberal Clássica, que, fortemente influenciada pelo Iluminismo e pelo contratualismo, defendia a ideia de utilidade e de humanidade das penas, opondo-se fortemente à pena de morte. (retornar ao texto)

(7) Georg Ledebour (1850-1947), jornalista e político socialista alemão. Membro do SPD e, posteriormente, do Partido Social-Democrata Independente Alemão (USPD), de oposição ao governo. Foi membro do Parlamento Alemão entre 1900 e 1918. (retornar ao texto)

(8) Emil Barth (1879-1841), membro do USPD, foi o mais radical e de esquerda dos seis membros do Conselho dos Deputados do Povo, criado em 10 de novembro de 1918 em Berlim para governar a Alemanha após a abdicação de Guilherme II. Renunciou ao posto em 29 de dezembro do mesmo ano. (retornar ao texto)

(9) Ernst Daumig (1866-1922), social-democrata alemão, membro do USPD e, posteriormente, do Partido Comunista Alemão (KPD). Liderou o Movimento de Delegados Revolucionários em 1918. (retornar ao texto)

(10) François Mignet (1796-1884), jornalista liberal francês e historiador da Revolução Francesa. (retornar ao texto)

Inclusão 20/09/2019