Discurso Base Beira

Samora Moisés Machel

25 de Maio de 1975


Primeira Edição: ....

Fonte: Mozambique History Net

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Viva o Povo Moçambicano! Viva a FRELIMO! Viva o Povo Moçambicano! Viva o Povo Unido do Rovuma ao Maputo!

Viemos aqui para dizer que o nosso povo jamais será escravo, a partir de agora o nosso povo dirigirá os seus interesses, o seu destino, reconstruirá o seu país na paz e não haverá mais uma potência a dominar o povo moçambicano.

Viemos aqui para dizer que a palmatória, o trabalho forçado, o chibato, a machila... que o povo moçambicano deixou se ser a besta de carga, o animal de carga.

Viemos aqui para dizer que a discriminação racial, a humilhação do nosso povo está totalmente enterrada e destruída.

Viemos aqui para dizer que a nossa personalidade está ganha, está consolidada, a nossa identidade moçambicana edificada, que a nossa personalidade e a nossa identidade está definitivamente ganha, consolidada e constitui hoje a vitória das forças progressistas do mundo.

Viemos aqui para vos dizer que em 7 de Setembro de 1974 nós assinámos o acordo de cessar fogo e a partir de 8 de Setembro as bombas assassinas, as balas traiçoeiras colonialistas que vitimavam o nosso povo deixaram de exercer o crime no nosso país.

Viemos para vos dizer que a nossa produção deixou de ser alvo da tropa portuguesa colonialista, que os nossos hospitais deixaram de ser alvo das tropas e dos aviões dos colonialistas portugueses, que as nossas escolas deixaram de ser alvos e se transformaram em verdadeiro centro para a formação dos continuadores da revolução, daqueles que constituirão a nova sociedade. As escolas serão os centros dos homens que crescerão livres, de mentalidade livre. Viemos dizer-vos isso.

Viemos aqui para vos dizer que todos vocês deixaram de ser alvos, deixaram de ser alvos dos aviões e da tropa portuguesa e do sistema de exploração colonialista.

O momento é de alegria e ao mesmo tempo de tristeza, sabermos que fomos colonizados durante quinhentos anos por um punhado de exploradores desgraçados, durante quinhentos anos fomos minas de algumas potências; sabermos que durante quinhentos anos fomos animais de transporte, sabermos que durante quinhentos anos não fomos pessoas até ao aparecimento da Frelimo que uniu o povo do Rovuma ao Maputo e forneceu a arma fundamental: a unidade nacional.

São recordações tristes, porque essas recordações deixaram marcas profundas no nosso corpo e no nosso espírito. Finalmente mergulhámos o nosso país numa triste situação, situação de guerra. Aceitámos, decidimos numa reunião solene do Comité Central da Frelimo que uma parte de nós devia aceitar morrer para o povo moçambicano poder dizer: 'uma parte de nós deve aceitar morrer'. A nossa população não aumentava, antes pelo contrário, decrescia.

Nas minas da África do Sul, nas plantações de tabaco da Rodésia, no sisal do Tanganhica, nas minas da antiga Rodésia do Norte, hoje Zâmbia, nas plantações do interior do nosso país, nas estradas e em toda a parte. O Comité Central analisou e disse que uma parte de nós deveria aceitar esse sacrifício. O nosso povo não tinha hospital, vocês todos conheceram o hospital porque a Frelimo vos trouxe. Onde estava o hospital para vocês, onde estava a escola para vocês?

A única estrada que existia aqui em Cabo Delgado era só para permitir que o colonialista viesse explorar, prender, violar as mulheres. Era a única estrada que aqui existia. Onde está a estrada se não só para a serração e para a palhota, para ir prender? Por isso, desencadeámos a guerra popular para a conservação da nossa vida, contra o colonialismo português e não contra o povo português, contra a exploração e não contra o branco.

É ou não é?

Por isso triunfámos. Triunfámos porque a nossa guerra era justa. Vencemos, ganhamos a guerra. Vocês ganharam a guerra.

Quando começámos a guerra, um país tão grande, havia sete milhões de habitantes. Agora temos dez milhões, criámos durante a guerra, foi com a guerra que aumentámos o nosso povo. Em quinhentos anos nunca atingimos os dez milhões, mas em dez anos de guerra atingimos os dez milhões. Para acabar com a guerra é preciso fazer a guerra, não se pode acabar com a guerra sem se fazer guerra. Se não fosse isso nunca terminaria a guerra colonial aqui em Moçambique.

Antes de cantarem gostaria que se levantassem todos, prestassem homenagem aos nossos grandes homens, aos nossos combatentes, ao nosso povo, porque esta liberdade foi trazida por eles. Aqui onde nós estamos agora foi regado por sangue. Todos nós perdemos parentes e queridos, todos nós. Quando estamos a guardar um minuto de silêncio pensamos imediatamente: eu perdi o meu filho, eu perdi aquele meu companheiro quando transportávamos as armas, naquele dia quando estávamos na machamba as bombas napalm queimaram duas pessoas ao meu lado.

É ou não é?

Passa hoje o décimo segundo aniversário da fundação da Organização da Unidade Africana. A Organização da Unidade Africana foi o instrumento que dinamizou os movimentos de libertação, as lutas de libertação. A África uniu-se contra a dominação estrangeira e durante a nossa guerra fomos sempre apoiados pelo mundo exterior, primeiro pelos nossos vizinhos da Tanzânia e Zâmbia, depois pelo mundo, aquele mundo que constitui a zona libertada da humanidade, aquele mundo que é constituído por países, países que fazem dos seus países zonas libertadas da humanidade.

Vocês durante a guerra foram visitados por muitos amigos. Quase todos os países socialistas visitaram estas vossas zonas. Por isso, na reconstrução nacional a tarefa mais difícil que existe—quinhentos anos de colonização agravados pela guerra de dez anos (nós é que fizemos a guerra, nós é ganhamos a guerra)—a tarefa dos nossos amigos é a de apoiar os nossos programas.

O nosso governo que já existe — já existe o vosso governo, vocês hoje já estão no poder, 25 de Junho será uma data simbólica, a liberdade, vocês os das zonas libertadas já a têm há dez anos, há dez anos que vocês já têm a liberdade, não precisam de ninguém para dizer que vocês já são livres. Libertaram-se a partir do momento, da data em que vocês pegaram em armas contra o colonialismo português.

Há quanto tempo vocês deixaram de receber a palmatória, há quanto tempo, há quantos anos? Há quanto tempo vocês deixaram de pagar imposto aos colonialistas?

Por isso a tarefa dos nossos amigos é a de apoiar os nossos programas, a tarefa dos nossos amigos dos países socialistas é de apoiar os os nossos programas e deve ser a preocupação do nosso governo, do governo que é de vocês.

Vocês não sabem como se hão-de governar ou tenho de ir chamar os colonialistas para entrarem de novo?

Agora estamos nas cidades, vamos para as cidades. Lá há muito inimigo com muitas caras. Nós não conhecemos o alcoolismo nas nossas zonas—há quanto tempo não bebem? Morreram por falta de álcool? Em primeiro lugar, nas cidades, homens e mulheres, alunos—álcool. Os campos de concentração, focos de infecção, focos de mal—sabem como se vive nos campos de concentração, sabiam ou não sabiam? Nós explicávamos sempre.

Nós trouxemos aqui em 1970 pessoas libertadas, pessoas que vinham de Ancuabe e que viviam na zona da frente. Eles disseram-nos como é que se vivia na zona do inimigo. Tribalismo — lá. Aqui já o destruímos, mas na cidade ainda há tribalismo. Regionalismo — lá. Discriminação e desprezo entre essas pessoas. Discriminam-se e depois há desprezo. Naquelas zonas há ricos e esses são os mais respeitados. Ser rico significa ser mais explorador. Naquelas zonas há muito respeito pelo explorador.

Instrução. Instruídos e não instruídos. Há divisão entre eles lá nessas zonas. Doutores, não doutores, até chegarem lá abaixo. É para lá que vamos agora. Falo de pretos e brancos, tudo. Essa, é a vida da cidade para onde vamos agora.

Existem prostitutas naquelas zonas. Vendem o corpo, pintam-se para vender o corpo e há homens que andam à procura dessas lojas humanas. Não trabalham essas mulheres, não querem pegar na enxada essas mulheres. Venderam o corpo. Temos problemas a resolver, é o fruto do colonialismo: alcoolismo, prostituição, o capitalismo, a capitalização do corpo. Doenças venéreas lá nas cidades. Homens e mulheres, crianças de quinze anos.

Depois de dez anos de guerra, vamos permitir isso no nosso país?

Nova guerra esta. Declararemos a guerra da mesma maneira como declarámos guerra contra o colonialismo português. Combateremos contra esses males da mesma maneira que combatemos contra o colonialismo português. A nossa unidade está ameaçada.

Em 25 de Junho, realmente a bandeira da República de Moçambique vai flutuar, não há dúvida alguma, não há força que o impeça. Mas, a nossa preocupação central é a de desenvolveremos as zonas libertadas. Melhorarmos as vossas condições porque foram estas bases que permitiram a vitória do povo moçambicano. É uma tarefa permanente, a reconstrução destas zonas, mas não temos dinheiro. É preciso empenharmo-nos no trabalho da produção da produção para que em primeiro lugar resolvamos os problemas da fome. O problema da fome e da nudez, nós é que vamos resolver, não vira força nenhuma exterior para resolver esses problemas. A tarefa do governo será a de pedir aos nossos amigos para nos ajudarem, mas nós é que devemos trabalhar.

Ontem descemos em Mueda. Mueda tem um alto significado para nós—centro do crime, o centro do desdobramento das forças inimigas para a destruição do nosso povo, o centro da podridão, o centro da corrupção. Por isso descemos lá ontem. A nossa tarefa aqui é de dizer-vos que já vamos para Lourenço Marques, capital de Moçambique, capital do colonialismo, sede do colonialismo.

E lá ainda existe o tribalismo e o racismo e passamos por aqui para dizer que estejam sempre prontos para em qualquer altura desencadearmos a guerra contra os reaccionários. Não confundir, quando a Frelimo der a palavra de ordem—armas de novo na mão—e vocês dizerem que os brancos já foram embora. O explorador não é o branco. Vocês têm muita experiência sobre a definição do inimigo. Conhecem bem o inimigo.

Lázaro Nkavandame, o que é? Lázaro vive do sangue. Lázaro é como o piolho. E piolho, não há piolho preto, não há piolho branco, bebe sangue, não come farinha, não come arroz, não bebe leite—sangue. Portanto não importa ser preto ou branco, amarelo, não importa. Explorador é explorador. O que importa é a cabeça. Podem ter vindo da mesma barriga, mas o que importa é a cabeça, as ideias. Eu não vou dizer que lá são todos meus irmãos, são todos meus camaradas. Da barriga sai gente e também sai piolho. Por isso estejam sempre prontos contra esses pretos também, incluindo o teu pai, o teu irmão. Vocês sabem muito bem como é que a PIDE trabalhava.

Já vos falei do alcoolismo nas cidades, já vos falei da prostituição nas cidades, já vos falei do tribalismo, do racismo, e da discriminação nas cidades. Só a linha política correcta da Frelimo, assumido pelo povo, vai destruir esses males todos.

Mas há um outro mal, pior do que esse.

Nós vamos formar o governo. Terá de haver Presidente da República, terá de haver Primeiro-ministro ou Vice-primeiro-ministro, não sei. O Comité Central vai-se reunir. Vou repetir isto que estou a dizer em todos as zonas libertadas— haverá ministros, vice ministros e haverá muita coisa—o governo.

Sabem o que é a ambição? Haverá guerra no nosso seio. Nós que fizemos a guerra, vamos ter luta no governo. Porque é que foi escolhido para presidente? Porque é que foi escolhido para ministro? Porque é que não foi eleito presidente? Porque é que aquele não foi para ministro? Porque é que não é o chefe do exército da Frelimo?

Pronto, lá começa a luta. Teremos de vir de novo a vocês para vos dizer que estamos em luta. Mas desde já, o exército da Frelimo é comandado pela Frelimo e mais ninguém. Não é do governo. Teremos esses problemas lá.

Deixem, aquele helicóptero já não faz mal, já é vosso, é do povo português. Já não é do Kaulza, deixou de ser do Kaulza. Deixou de ser de Spínola. Deixou de ser de Marcelo Caetano. Já é do povo português, por isso entramos nele. Entramos naquele helicóptero porque agora aqueles helicópteros são do povo português e o povo português foi sempre nosso amigo.

Fixem bem que a nossa preocupação está toda ela virada para as zonas libertadas, e as zonas libertadas devem ser o modelo para as cidades.

Lázaro Nkavandame não está libertado. Sei que andam por aí boatos de que Lázaro Nkavandame está libertado, mas não está libertado. Verónica Anayiva não está libertada. Joana Simeão não está libertada. Uria Simango não está libertado. Nós não os matamos, nós queremos que eles sejam educados por vocês, vocês vão conversar com eles. Eles passarão por todas as zonas libertadas, falarão com vocês e viverão com vocês também.

Vamo-nos encontrar depois do 25 de Junho. Pedimos para vocês celebraram na paz, na ordem, a independência de Moçambique.

Unidade, trabalho, vigilância. Dentro de dez anos não estaremos nestas condições, tudo será mudado no nosso país, temos a certeza.


Inclusão 25/09/2018