Iniciação à Teoria Económica Marxista

Ernest Mandel


I. A TEORIA DO VALOR E DA MAIS-VALIA


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Todos os progressos da civilização são em última análise determinados pelo aumento da produtividade do trabalho. Enquanto a produção unicamente bastar à satisfação das necessidades dos produtores e enquanto não houver excedente para além deste produto necessário, não há possibilidades de divisão do trabalho, nem da aparição de artífices, de artistas ou de sábios. Não há portanto, a fortiori, nenhuma possibilidade de desenvolvimento de técnicas que exijam consequentes especializações.

1. O SOBREPRODUTO SOCIAL

Enquanto a produtividade do trabalho for tão baixa que o produto do trabalho dum homem não chegar senão para o seu próprio sustento, não haverá ainda divisão social, não haverá diferenciação no interior da sociedade. Todos os homens são produtores, encontram-se todos ao mesmo nível de carência.

Todo o acréscimo da produtividade do trabalho para além deste nível mínimo, cria a possibilidade dum pequeno excedente, e, desde que haja um excedente de produtos, desde que dois braços produzam -mais do que exige o seu próprio sustento, a possibilidade de luta pela posse desse excedente pode aparecer.

A partir deste momento, o conjunto do trabalho de uma colectividade deixa de ser necessariamente destinado ao sustento dos seus produtores. Uma parte deste trabalho pode ser destinada a libertar uma outra parte da sociedade da necessidade de trabalhar para o seu sustento.

Logo que esta possibilidade se concretizar, uma parte da sociedade pode constituir-se em classe dominante, caracterizada sobretudo pelo facto de se ter libertado da necessidade de trabalho para se sustentar.

O trabalho dos produtores decompõe-se, a partir deste momento, em duas partes. Uma parte desse trabalho continua a efectuar-se para o sustento próprio dos produtores; chamamos-lhe O TRABALHO NECESSÁRIO. Uma outra parte deste trabalho serve para sustentar a classe dominante; chamamos-lhe O EXCEDENTE DE TRABALHO.

Tomemos um exemplo bastante claro, a escravatura nas plantações, quer seja em certas regiões e em certas épocas do Império Romano, ou seja então nas grandes plantações, a partir do século XVII nas Índias Ocidentais, ou nas colónias portuguesas de África. Geralmente, nas regiões tropicais, o dono não dava qualquer alimento ao escravo; era este que o conseguia, trabalhando, aos domingos, num pequeno bocado de terreno, donde tirava todos os produtos necessários à sua alimentação. Seis dias por semana o escravo trabalha na plantação; é um trabalho cujos produtos não lhe são destinados, que cria portanto, um sobreproduto social que abandona logo que for produzido e que pertence exclusivamente aos donos dos escravos.

A semana de trabalho é aqui de sete dias, decomposta em duas partes: o trabalho de um dia, o domingo, constitui o trabalho necessário, o trabalho pelo qual o escravo obtém os produtos para seu sustento, para se manter vivo a ele e à família; o trabalho de seis dias por semana constitui excedente de trabalho cujos produtos revertem exclusivamente para os donos e servem para os sustentar e enriquecer.

Outro exemplo é o dos grandes domínios da alta Idade Média. As terras destes domínios estavam divididas em três partes: as comunas, a terra que permanecia propriedade colectiva, isto é, os bosques e as pradarias, os pântanos, etc.; as terras nas quais os servos trabalhavam para conseguir o seu sustento e o da família; e finalmente a terra em que o servo trabalhava para sustentar o senhor feudal. Em geral a semana de trabalho é aqui de seis e não de sete dias, dividida em duas partes iguais: três dias por semana o servo trabalha na terra cujos produtos lhe são destinados; três dias por semana trabalha na terra do senhor feudal, sem qualquer remuneração, fornecendo trabalho gratuito à classe dominante.

Podemos definir o produto destas duas diferentes espécies de trabalho por um termo também diferente. Quando o produtor realiza trabalho necessário, produz PRODUTO NECESSÁRIO. Quando realiza excedente de trabalho produz SOBREPRODUTO SOCIAL.

O SOBREPRODUTO SOCIAL é portanto a parte da produção social, que é produzida pela classe dos produtores, da qual a classe dominante se apropria, sob que forma seja, seja sob a forma de produtos naturais, de mercadorias destinadas a serem vendidas, ou ainda sob a forma de dinheiro.

A MAIS-VALIA é apenas a forma monetária do sobreproduto social. Quando é exclusivamente sobre a forma de dinheiro que a classe dominante se apropria da parte da produção de uma sociedade a que acima chamámos «sobreproduto», já não falamos do sobreproduto mas sim de «mais-valia».

Isto não é senão uma primeira tentativa de definição da mais-valia, à qual voltaremos em seguida.

Qual é a origem do sobreproduto social? O sobreproduto social apresenta - -se-nos como produto de apropriação gratuita — isto é, a apropriação sem ter em troca qualquer contrapartida em valor — de uma parte da produção da classe produtiva pela classe dominante. Quando o escravo trabalha seis dias por semana na plantação do dono, e todo o produto do trabalho é açambarcado pelo proprietário sem qualquer remuneração, a origem deste sobreproduto social é o trabalho gratuito, o trabalho sem remuneração, fornecido pelo escravo ao dono. Quando o servo trabalha três dias por semana na terra do senhor, a origem deste rendimento, deste sobreproduto social, é ainda o trabalho não remunerado, o trabalho gratuito fornecido pelo servo.

Veremos em seguida que a origem da mais-valia capitalista, isto é, do rendimento da classe burguesa na sociedade capitalista é exactamente o mesmo: o trabalho não remunerado, o trabalho gratuito, o trabalho fornecido pelo proletário sem contra-valor, pelo assalariado ao capitalista.

2. MERCADORIAS, VALOR DE USO E VALOR DE TROCA

Eis então algumas definições de base que são os instrumentos com que trabalharemos ao longo dos três capítulos desta exposição. E necessário juntar-lhes, ainda, mais algumas:

Todo o produto do trabalho humano deve ter, normalmente, uma utilidade, deve poder satisfazer uma necessidade humana. Portanto todo o produto do trabalho humano possui um VALOR DE USO. O termo «valor de uso» será utilizado, no entanto, de duas maneiras diferentes. Falaremos DO valor de uso de uma

mercadoria, e falaremos também DOS valores de uso, diremos que nesta ou naquela sociedade, não se produzem senão valores de uso, isto é, produtos exclusivamente destinados ao consumo directo daqueles que os apropriem (os produtores ou as classes dirigentes).

Mas ao lado deste valor de uso, o produto do trabalho humano pode ter, também, um outro valor, UM VALOR DE TROCA. Pode ser produzido, não para consumo directo dos produtores ou das classes poderosas, mas para ser trocado no mercado, para ser vendido. A massa dos produtos destinados a serem vendidos deixa de constituir uma simples produção de valores de uso, para ser uma produção de MERCADORIAS.

Uma mercadoria é, então, um produto que não- foi criado com o fim de ser consumido directamente, mas com o fim de ser trocado no mercado. TODA A MERCADORIA DEVE PORTANTO TER, SIMULTANEAMENTE, UM VALOR DE USO E UM VALOR DE TROCA.

Deve ter um valor de uso, pois se não o tivesse, ninguém a compraria, pois só se compra uma mercadoria com o fim de a consumir, de satisfazer uma necessidade qualquer com a sua compra. Se uma mercadoria não possui valor de uso para ninguém, é invendável, terá sido produzida inutilmente e não terá valor de troca, precisamente, porque não tem valor de uso.

Pelo contrário, nem todo o produto que tem um valor de uso tem necessariamente um valor de troca. Só tem um valor de troca na medida em que é produzido numa sociedade baseada na troca, numa sociedade onde a troca é vulgarmente praticada.

Haverá sociedades nas quais os produtos não têm valor de troca? Na base do valor de troca, e À FORTIORI, do comércio e do mercado, encontra-se um grau determinado de divisão de trabalho. Para que os produtos não sejam imediatamente consumidos pelos seus produtores, é necessário que nem todos produzam o mesmo. Se numa colectividade determinada, não há divisão de trabalho, ou apenas existe divisão muito rudimentar, é manifesto que não há motivo para que a troca apareça. Normalmente, um produtor de trigo não tem nada para trocar com outro produtor de trigo. Mas desde que há divisão de trabalho, desde que há contacto entre grupos sociais que produzem produtos com um valor de uso diferente, a troca que pode estabelecer-se, a princípio ocasionalmente, pode em seguida generalizar-se. Começam portanto, pouco a pouco, a aparecer ao lado de produtos criados com o simples fim de serem consumidos pelos seus produtores, outros produtos destinados a serem trocados, AS MERCADORIAS.

Na sociedade capitalista, a produção para o mercado, a produção de valores de troca, conhece a maior extensão. É a primeira sociedade da história humana, na qual a maior parte da produção é composta de mercadorias. Mas não podemos dizer que toda a sua produção é uma produção de mercadorias. Há duas categorias de produtos que continuaram a ter valores de uso simplesmente.

Em primeiro lugar, tudo o que é produzido para o auto-consumo dos camponeses, tudo o que é consumido nas herdades que produzem os produtos. Encontramos a produção para auto-consumo dos agricultores mesmo nos países capitalistas mais avançados como os Estados Unidos, mas onde não constitui senão uma pequena parte da produção agrícola total. Quanto mais atrasada estiver a agricultura de um país,* maior é em geral a fracção da produção agrícola destinada ao auto-consumo, o que cria grandes dificuldades para calcular de uma maneira precisa o rendimento nacional destes países.

Uma segunda categoria de produtos que são ainda simples valores de uso e não mercadorias, em regime capitalista, é tudo aquilo que é produzido nos trabalhos domésticos. Ainda que necessite do dispêndio de grande quantidade de trabalho, toda a produção de trabalhos domésticos constitui uma produção de valores de uso e não uma produção de mercadorias. Quando se faz a sopa, ou quando se pregam botões, produz-se, mas não se produz para o mercado.

A aparição, depois a regularização e a generalização da produção de mercadorias, transformou radicalmente o modo de trabalho dos homens e o modo como organizam a sociedade.

3. A TEORIA MARXISTA DA ALIENAÇÃO

O leitor já ouviu falar da teoria marxista da alienação. A aparição, a regularização, a generalização da produção mercantil estão estreitamente ligados à extensão deste fenómeno da alienação.

Não nos podemos alongar aqui sobre este aspecto da questão. Mas é, no entanto, extremamente importante compreender este facto, pois a sociedade mercantil não cobre unicamente a época do capitalismo. Engloba também a PEQUENA produção mercantil, de que falaremos em seguida. Há também uma sociedade mercantil pós-capitalista, a sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, a sociedade soviética dos nossos dias, uma sociedade que permanece ainda largamente fundamentada sobre a produção de valores' de troca. Quando apreendermos algumas características fundamentais da sociedade mercantil, compreenderemos porque é que certos fenómenos da alienação podem ser eliminados na época de transição entre o capitalismo e o socialismo como por exemplo na sociedade soviética de hoje.

Mas o fenómeno da alienação não existe manifestamente — pelo menos sob esta forma — numa sociedade que não conheça a produção mercantil, onde há uma unidade de vida individual e de actividade social muito primitiva. O homem trabalha, e em geral não trabalha só, mas num conjunto colectivo com uma estrutura mais ou menos orgânica. Este trabalho consiste em transformar directamente as coisas materiais. Quer dizer que a actividade do trabalho, a actividade da produção, a actividade de consumo, e as relações entre o indivíduo e a sociedade, são reguladas por um certo equilíbrio que é mais ou menos permanente.

Com certeza que não existem motivos para embelezar a sociedade primitiva, submetida a pressões e catástrofes periódicas causadas pela sua extrema pobreza. O equilíbrio está sujeito a todo o momento a ser destruído pela penúria, pela miséria, pelas «catástrofes naturais, etc., etc. Mas entre estas duas catástrofes, sobretudo a partir de um certo grau de desenvolvimento da agricultura, e de certas condições climatológicas favoráveis, foi criada uma certa unidade, uma certa harmonia, um certo equilíbrio entre, praticamente todas as actividades humanas.

As consequências desastrosas da divisão de trabalho, como a separação completa de tudo o que é actividade estética, esforço artístico, ambição criadora, das actividades produtivas, puramente mecânicas, repetitivas, não existiam na sociedade primitiva. Pelo contrário, a maior parte das artes, tanto a música e a escultura como a pintura e a dança estavam originalmente ligados à produção, ao trabalho. O desejo de dar uma forma agradável, bonita, aos produtos que se consumiam quer individualmente quer em família, quer num grupo de parentesco mais longo, integrava-se normal, harmoniosa e organicamente no trabalho de todos os dias.

O trabalho não era sentido como uma obrigação imposta’ do exterior, em tensão muito menos esgotante que o trabalho na sociedade capitalista actual, e isto porque estava em maior escala sujeito aos ritmos próprios do organismo humano e aos ritmos da natureza. O número de dias de trabalho raramente ultrapassava 150 ou 200 por ano, enquanto que na sociedade capitalista aproxima-se perigosamente dos 300 e ultrapassa-os algumas vezes. Em seguida, porque subsiste a unidade entre o produtor, o produto e o consumo, porque o produtor, geralmente produzia para o seu próprio uso, ou para o dos seus próximos, e o trabalho conservava então um aspecto directamente funcional. A alienação moderna nasce, sobretudo da separação do produtor e do produto o que é por sua vez resultado da divisão do trabalho e resultado da produção de mercadorias, isto é, do trabalho para um mercado, para um consumidor desconhecido, e não para consumo do próprio produtor.

O reverso da medalha, é que uma sociedade produzindo unicamente valores de uso, uma sociedade produzindo unicamente bens para o consumo imediato dos seus produtores foi sempre no passado uma sociedade extremamente pobre. Portanto é uma sociedade que não está apenas submetida aos caprichos das forças da natureza, mas também a uma sobriedade que limita aos extremos as necessidades humanas, na medida em que é pobre e dispõe apenas de uma gama limitada de produtos. As necessidades não são senão muito parcialmente qualquer coisa de inato no homem. Há uma interação constante entre a produção e as necessidades, entre o desenvolvimento das forças produtivas e o aparecimento das necessidades. Apenas numa sociedade que desenvolve ao mais alto grau a produção do trabalho e que desenvolve uma gama infinita de produtos, o homem pode também conhecer o desenvolvimento contínuo das suas necessidades, o desenvolvimento de todas as suas potencialidades infindas, o desenvolvimento integral da sua humanidade.

4. A LEI DO VALOR

Uma das consequências do aparecimento e da generalização progressiva da produção de mercadorias é que o próprio trabalho começa a tomar-se em qualquer coisa regular, numa coisa medida, quer dizer que o próprio trabalho deixa de ser uma actividade integrada nos ritmos da natureza, conforme os ritmos fisiológicos próprios do homem.

Até ao séc. XIX e talvez mesmo até ao séc. XX, em certas Europa Ocidental os camponeses não trabalhavam de maneira regular, não trabalhavam todos os meses do ano com a mesma intensidade. Em algumas épocas do ano de trabalho tinham um trabalho extremamente intenso. Mas a par disto, havia grandes interrupções na actividade, nomeadamente durante o inverno.

Quando a sociedade capitalista se desenvolveu, encontrou nesta parte mais atrasada da agricultura da maior parte dos países capitalistas, uma reserva de mão de obra particularmente interessante, isto é, uma mão de obra que ia trabalhar 6 meses por ano, ou 4 meses por ano, à fábrica, e que podia trabalhar em troca de salários muito inferiores, visto que uma parte da sua subsistência era fornecida pela exploração agrícola que se mantinha.

Quando se examinam explorações muito mais desenvolvidas, mais prósperas, estabelecidas por exemplo à volta das grandes cidades, isto é, explorações que estão efectivamente a industrializar-se, encontra-se um trabalho muito mais regular e um emprego de trabalho muito maior que se efectua regularmente ao longo de todo o ano e que elimina pouco a pouco os tempos mortos. Isto não é só verdadeiro na nossa época, mas já era mesmo na Idade Média, digamos a partir do séc. XII: quanto mais próximo das cidades, isto é, dos mercados, mais o trabalho do camponês é um trabalho para o mercado, isto é, uma produção de mercadorias, e mais este trabalho é regularizado, mais ou menos permanente, como se fosse um trabalho dentro de uma empresa industrial.

Noutros termos: QUANTO MAIS A PRODUÇÃO DE MERCADORIAS SE GENERALIZA TANTO MAIS O TRABALHO SE REGULARIZA, E MAIS A SOCIEDADE SE ORGANIZA EM TORNO DE UMA CONTABILIDADE FUNDAMENTADA NO TRABALHO.

Se se examinar a divisão do trabalho já bastante avançada de uma comuna no início do desenvolvimento comercial e artesanal da Idade Média; se se examinarem colectividades de civilizações como a civilização bizantina, árabe, hindu, chinesa e japonesa, é-se chocado sempre pela existência de uma integração muito avançada entre a agricultura e diversas técnicas artesanais, de uma regularidade do trabalho tanto no campo como na cidade o que faz da contabilidade em trabalho, da contabilidade em horas de trabalho, o motor que regulamenta toda a actividade e a própria estrutura «dais coletividades. No capítulo relativo à lei do valor do «Traité d’Économie marxiste»,(1) de grande número de exemplos duma contabilidade em horas de trabalho. Em certas aldeias indianas, uma determinada casta monopoliza o trabalho de ferreiro, mas continua simultaneamente a lavrar a terra para produzir os seus alimentos. Foi estabelecida a seguinte regra: quando o ferreiro fabrica um instrumento de trabalho ou uma arma para uma Comunidade agrícola, é esta Comunidade que lhe fornece as matérias-primas e, DURANTE O TEMPO em que ele as trabalha para fabricar o instrumento, o camponês para quem ele o produz trabalha na terra do ferreiro. Quer dizer, que há uma EQUIVALÊNCIA EM HORAS DE TRABALHO QUE REGULA AS TROCAS de um modo perfeitamente claro.

Nas aldeias japonesas da Idade Média, há dentro da comunidade da aldeia uma contabilidade em horas de trabalho no sentido exacto do termo. Um habitante da aldeia tem uma espécie de livro grande em que regista as horas em que os diferentes aldeões trabalham reciprocamente nos campos uns dos outros, pois a produção agrícola é ainda largamente baseada sobre a cooperação do trabalho, e. em geral a colheita, a construção de quintas e a criação de animais são feitas em comum. Calcula-se de maneira extremamente exacta o número de horas de trabalho que os membros de uma família têm de fornecer aos membros de uma outra família. Deve haver, no fim do ano, um equilíbrio, isto é, os membros da família B devem ter fornecido aos membros da família Ao mesmo número de horas de trabalho. que os membros da família A forneceram durante o mesmo ano aos membros da família B. Os japoneses aperfeiçoaram ainda este cálculo — há quase 1000 anos! — até ao ponto de ter em conta o facto de as crianças fornecerem uma quantidade de trabalho menor que os adultos, isto é, que uma hora de trabalho de crianças não «vale» senão meia-hora de trabalho adulto, e deste modo se estabelece ainda toda a contabilidade.

Um outro exemplo permite-nos compreender de um modo imediato a generalização desta contabilidade baseada sobre a economia do tempo de trabalho: a conversão da renda feudal. Numa sociedade feudal o sobreproduto agrícola pode ter três formas diferentes: a renda em trabalho ou CORVEIA a renda em géneros e ainda a renda em dinheiro.

Quando se passa da corveia para a renda em géneros, efectua-se evidentemente um processo de conversão. Em vez do camponês dar três dias de trabalho por semana ao senhor, dá-lhe agora em cada época agrícola uma quantidade certa de milho, ou de gado, etc. Efetua-se uma segunda conversão quando se passa da renda em géneros para a renda em dinheiro.

As duas conversões têm de ser baseadas sobre uma contabilidade de horas de trabalho muito rigorosa, se uma das partes não quer ser imediatamente lesada por esta operação. Se no momento em que se faz a primeira conversão, quer dizer, nó momento em que, em vez de fornecer 150 dias de trabalho por ano ao senhor feudal o camponês lhe entrega uma certa quantidade de milho, e para produzir essa quantidade x de milho bastavam 75 dias de trabalho, desta conversão da renda-trabalho em renda-géneros resultaria o empobrecimento muito brusco do proprietário feudal e o enriquecimento muito rápido dos servos.

Os proprietários de terras — podemos confiar neles!—tinham atenção nessas conversões para assegurar a equivalência aproximada entre as diferentes formas da renda. Esta conversão podia com certeza voltar-se finalmente contra uma das classes em presença, por exemplo, contra os proprietários de terras quando uma brusca subida dos preços agrícolas se produzia depois da transformação da renda em géneros na renda em dinheiro, mas então, é resultado de um processo histórico completo e não resultado da conversão em si.

A origem desta economia fundada na contabilidade do tempo de trabalho aparece ainda claramente na divisão do trabalho entre a agricultura e o artesanato na aldeia. Durante um longo período, esta divisão do trabalho é ainda bastante rudimentar. Parte dos camponeses durante muito tempo, continua a fazer uma parte da sua roupa, na Europa Ocidental desde a origem das cidades medievais até ao séc. XIX, ou seja, quase mil anos, de onde se compreende que a técnica de produção de roupa não tenha segredos para o cultivador.

Logo que se estabelecem trocas regulares entre cultivadores e artífices produtores de têxteis, estabelecem-se também equivalências regulares, por exemplo, troca-se uma vara de tecido por 10 libras de manteiga e não por 100 libras. E, portanto, evidente que, baseados na sua própria experiência, os camponeses conhecem o tempo de trabalho aproximadamente necessário para produzir uma determinada quantidade de tecido. Se não houvesse uma equivalência mais ou menos exacta entre a duração do trabalho necessário para produzir a quantidade de tecido trocada por uma determinada quantidade de manteiga, a divisão do trabalho modificar-se-ia imediatamente. Se fosse mais interessante para ele produzir tecido do que manteiga, mudaria efectivamente de produção, dado que estamos só no LIMIAR de uma divisão de trabalho radical, que as fronteiras entre as diferentes técnicas são ainda vagas, e que é ainda possível a passagem de uma actividade económica para uma outra, sobretudo se esta traz consigo vantagens materiais verdadeiramente notáveis.

No próprio interior da cidade medieval existe, aliás um equilíbrio extremamente sensato, calculado entre as diferentes profissões, inscrito nos estatutos corporativos limitando quase minuto por minuto o tempo de trabalho a consagrar à produção dos diferentes produtos. Nestas condições, seria inconcebível que o sapateiro ou o ferreiro pudessem obter uma mesma soma de dinheiro pelo produto de metade do tempo de trabalho que seria necessário a um tecelão ou a um outro artífice para obter essa soma em troca dos seus próprios produtos.

Assim compreendemos muito bem o mecanismo dessa contabilidade em horas de trabalho, o funcionamento dessa sociedade baseada numa economia em tempo de trabalho, que geralmente caracteriza toda essa fase que se chama a PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL, que se intercala entre uma economia puramente natural, na qual só se produz-em valores de uso, e a sociedade capitalista na qual a produção da mercadoria toma uma expansão ilimitada.

DETERMINAÇÃO DO VALOR DE TROCA DAS MERCADORIAS

Precisando que a produção e a troca de mercadorias se regularizam e se generalizam no seio de uma sociedade que estava fundamentada sobre uma economia em tempo de trabalho, compreendemos por que razão, pela sua origem e pela sua própria natureza, a troca de mercadorias se baseia nessa mesma contabilidade em horas de trabalho e que a regra geral que se estabelece é, pois, a seguinte: O VALOR DE TROCA DE UMA MERCADORIA E DETERMINADA PELA QUANTIDADE DE TRABALHO NECESSÁRIO PARA A PRODUZIR, sendo essa quantidade de trabalho medida pela duração do trabalho durante o qual a mercadoria se produziu.

Algumas precisões se devem juntar a esta definição geral que constitui a teoria do valor-trabalho, base ao mesmo tempo de economia política clássica burguesa, entre o século XVII e o início do século XIX, de William Peny a Ricardo, e a teoria económica marxista, que retomou e aperfeiçoou essa mesma teoria do valor-trabalho.

Primeira precisão: os homens não têm todos a mesma capacidade de trabalho, não têm todos a mesma energia, não possuem todos o mesmo domínio do seu ofício. Se o valor de troca das mercadorias dependesse somente de quantidade de trabalho INDIVIDUALMENTE gasto, efectivamente gasto POR CADA INDIVÍDUO para produzir uma mercadoria, chegar-se-ia a uma situação absurda: quanto mais um produtor fosse preguiçoso e incapaz, tanto maior seria o número de horas que levaria a produzir um par de sapatos, e tanto maior seria o valor desse par de sapatos! É evidentemente impossível, pois o valor de troca não constitui uma recompensa moral pelo facto de se ter querido trabalhar: constitui um LAÇO OBJECTIVO ESTABELECIDO ENTRE PRODUTORES INDEPENDENTES para estabelecer a igualdade entre todas as profissões, numa sociedade fundamentada sobre a divisão de trabalho como sobre a economia do tempo de trabalho. Numa sociedade desse tipo, o desperdício de trabalho é uma coisa que não pode ser recompensada, mas que, pelo contrário, é automaticamente penalizada. Quem quer que forneça, para produzir um par de sapatos, mais horas de trabalho do que a média necessária — sendo essa média necessária determinada pela produtividade média do trabalho e inscrita por exemplo nos Estatutos das Profissões! — dissipou trabalho humano, trabalhou para nada, em pura perda, durante certo número dessas horas de trabalho, e em troca dessas horas dissipadas não receberá absolutamente nada.

Noutros termos: o valor de troca de uma mercadoria é determinado não pela quantidade de trabalho gasto para a produção dessa mercadoria por cada produtor individual, mas pela quantidade de trabalho SOCIALMENTE NECESSÁRIA para a produzir. A fórmula «socialmente necessária» significa: a quantidade de trabalho necessário nas condições médias de produtividade do trabalho existente numa época e num país determinado.

Esta precisão tem, aliás, importantes aplicações quando se examina mais de perto o funcionamento da sociedade capitalista.

Contudo, uma grande precisão se impõe, ainda. O que é que quer dizer exactamente «quantidade de trabalho»? Há trabalhadores de qualidades diferentes Haverá uma equivalência total entre uma hora de trabalho de cada um deles, abstraindo dessa qualificação? Mais uma vez, não é uma questão de moral, é uma questão de lógica interna, de uma sociedade fundamentada sobre a igualdade entre as profissões, a igualdade no mercado, na qual as condições de desigualdade romperiam imediatamente o equilíbrio social.

Que aconteceria, por exemplo, se uma hora de trabalho de um servente de pedreiro não produzisse menos valor do que uma hora de trabalho de um operário qualificado, que precisou de 4 ou 6 anos de aprendizagem para obter a sua qualificação? Ninguém mais quereria, evidentemente, qualificar-se. As horas de trabalho fornecidas para obter a qualificação teriam sido gastas com pura perda, em troca delas o aprendiz tornado operário qualificado não recebia mais nenhuma contrapartida.

Para que os jovens queiram qualificar-se numa economia fundamentada sobre a contabilidade em horas de trabalho, é necessário que o tempo que eles perderam para adquirir a sua qualificação seja remunerado, que recebam uma remuneração em troca desse tempo. A nossa definição do valor de troca de uma mercadoria vai, pois completar-se da seguinte maneira: «Uma hora de trabalho de um operário qualificado deve ser considerada como trabalho complexo, trabalho composto, como um múltiplo de uma hora de trabalho de um servente de pedreiro, não sendo evidentemente arbitrário esse coeficiente de multiplicação, mas baseado simplesmente nas despesas de aquisição da qualificação». Diga-se de passagem, na União Soviética, na época estaliniana, havia sempre algo de vago na explicação do trabalho composto, algo de vago que não foi corrigido posteriormente. Diz-se aí ainda que a remuneração do trabalho deve fazer-se segundo a quantidade e A QUALIDADE do trabalho fornecido, mas a noção de qualidade já não é tomada no sentido marxista do termo, isto é, de UMA QUALIDADE QUANTITATIVAMENTE MENSURÁVEL por um coeficiente de multiplicação determinado. É pelo contrário usada no sentido ideológico burguês do termo, pretendendo-se que a qualidade do trabalho é medida pela sua utilidade social, e assim se justificam as renumerações de um marechal, de uma bailarina ou de um director de «Trust», que se tornaram dez vezes superiores às de um operário ajudante de pedreiro. Trata-se simplesmente de uma teoria apologética para justificar as enormes diferenças de remuneração que existiam na época estaliniana e que ainda subsistem, embora actualmente numa porção mais reduzida, na União Soviética.

O valor de troca de uma mercadoria é, pois, determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessária para produzir, sendo o trabalho qualificado considerado como 'irai múltiplo de trabalho simples, multiplicado por um coeficiente mais ou "menos mensurável.

Eis o fulcro de teoria marxista do valor, que é a base de toda a teoria económica marxista em geral. Do mesmo modo, a teoria do sobreproduto social e do sobre-trabalho de que falámos no principio desta exposição, constitui o fundamento de toda a sociologia marxista e a ponte que une a análise sociológica e histórica de Marx, a sua teoria das classes e da evolução da sociedade em geral, à teoria económica marxista e, mais exactamente, à análise da sociedade mercantil, pré-capitalista, capitalista e pós-capitalista.

6. O QUE É O TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO

Como se referiu anteriormente, a definição particular da quantidade de trabalho SOCIALMENTE necessário para produzir uma mercadoria tem uma aplicação muitíssimo particular e extremamente importante na análise da sociedade capitalista.

Parece mais útil tratá-la imediatamente, embora logicamente o problema se situe de preferência no capítulo seguinte.

O total de todas as mercadorias produzidas num país numa época determinada, foi criada a fim de satisfazer as necessidades do conjunto dos membros dessa sociedade. Porque uma mercadoria que não correspondesse às necessidades de ninguém, seria a priori invendável, não teria nenhum valor de troca, já não seria uma mercadoria, mas simplesmente o produto do capricho, de uma brincadeira desinteressada de um produtor. Além disso, o total do poder de compra que a ser gasto no mercado, que não é entesourado, deveria ser destinado a comprar existe nessa sociedade determinada, num momento determinado, e que se destine o total dessas mercadorias produzidas, se se pretende que existe equilíbrio económico. Esse equilíbrio implica pois que o conjunto de produção social, o conjunto das forças produtivas à disposição da sociedade, o conjunto das horas de trabalho de que esta sociedade dispõe, tenham sido partilhadas pelos diferentes ramos industriais, em proporção do modo como os consumidores partilham o seu poder de compra pelas suas diferentes necessidades pecuniariamente solvíveis. Quando a repartição das forças produtivas deixa de corresponder a essa repartição das necessidades, o equilíbrio económico desfaz-se, aparecem lado a lado a sobre-produção e subprodução.

Tomemos um exemplo um pouco banal: pelos fins do século XIX e inícios do século XX, numa cidade como Paris, havia uma indústria de fabrico de carruagens, e diferentes mercadorias ligadas ao transporte por atrelagem, que ocupava milhares senão dezenas de milhares de trabalhadores.

Ao mesmo tempo nasce a indústria automóvel, ainda uma pequeníssima indústria, mas tem já dezenas de construtores, e ocupa já vários milhares de operários.

Ora, o que se passa durante este período? O número de atrelagens começa a diminuir e o número de automóveis começa a aumentar. Temos, portanto, por um lado, a produção para transporte por atrelagem com tendência para ULTRAPASSAR AS NECESSIDADES SOCIAIS, a maneira como o conjunto dos parisienses partilha o seu poder de compra; e temos por outro lado, uma produção de automóveis que permanece INFERIOR AS NECESSIDADES SOCIAIS; uma vez que a indústria automóvel foi lançada, foi-o num clima de escassez até à produção em série. Havia menos automóveis do que os pedidos no mercado.

Como exprimir estes fenómenos em termos da teoria do valor-trabalho? Pode dizer-se que nos sectores da indústria da atrelagem, GASTA-SE MAIS TRABALHO DO QUE É! SOCIALMENTE NECESSÁRIO, que uma parte do trabalho assim fornecido pelo conjunto das empresas da indústria de atrelagem é um trabalho socialmente dissipado, que não tem equivalente no mercado, que produz, portanto, mercadorias invendáveis. Quando as mercadorias são invendáveis numa sociedade capitalista, isso quer dizer . que se investiu, num ramo industria,] determinado, trabalho humano QUE SE' VERIFICA NÃO SER TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO, isto é, em contrapartida do qual já não há poder de compra no mercado. Trabalho que não é socialmente necessário é trabalho dissipado, é trabalho que não produz valor. Vemos assim que a noção de trabalho socialmente necessário cobre uma série completa de fenómenos.

Em relação aos produtos da indústria de atrelagem, a oferta ultrapassa a procura, os preços descem e as mercadorias tomam-se invendáveis. Pelo contrário, na indústria automóvel, a procura ultrapassa a oferta, e por essa razão os preços aumentam e há uma subprodução. Mas contentar-se com estas banalidades sobre a oferta e a procura é parar no aspecto psicológico e individual do problema. Pelo contrário, aprofundando o seu aspecto colectivo e social, compreende-se o que existe para lá destas aparências, numa sociedade organizada sobre a base de uma economia do tempo de trabalho. Quando a oferta ultrapassa a procura, isso quer dizer que a produção capitalista, que é uma produção anárquica, uma produção não planificada, não organizada, investiu anarquicamente, gastou num ramo industrial mais horas de trabalho do que era socialmente necessário, forneceu uma série de horas de trabalho em pura perda, dissipou portanto trabalho humano, e que esse trabalho humano dissipado não será recompensado pela sociedade. Inversamente, um ramo industrial para o qual a procura é ainda superior à oferta é, se quiserem, um ramo industrial que está ainda subdesenvolvido relativamente às necessidades sociais e é portanto um ramo industrial que gastou menos horas de trabalho do que é socialmente necessário e que, por isso, recebe da sociedade um prémio, para aumentar essa produção e levá-la a um equilíbrio com as necessidades sociais.

Eis um aspecto do problema do trabalho socialmente necessário num regime capitalista. O outro aspecto desse problema está mais directamente ligado ao movimento da produtividade do trabalho. É a mesma coisa, mas abstraindo das necessidades sociais, do aspecto «valor de uso» da produção.

Há no regime capitalista uma produtividade do trabalho que está em constante movimento. Há sempre, grosso modo, três espécies de empresas (ou de ramos industriais): as que estão tecnologicamente na média social; as que estão atrasadas, fora de moda, em perda de velocidade, inferiores à média social; e as que estão tecnologicamente na vanguarda superiores à produtividade média.

O que é que quer dizer: um ramo ou uma empresa que está tecnologicamente atrasada, cuja produtividade do trabalho é inferior à produtividade de média do trabalho? Podemos imaginar esse ramo ou essa empresa pelo sapateiro preguiçoso de há bocado; isto é, trata-se de um ramo ou de uma empresa que, em vez de poder produzir uma quantidade de mercadorias em 3 horas de trabalho, como exige a média social da produtividade nesse dado momento, exige 5 horas de trabalho para produzir essa quantidade. As duas horas de trabalho suplementares foram fornecidas com uma perda, é uma dissipação de trabalho social de uma fracção do trabalho total disponível à sociedade, e em troca desse trabalho dissipado, não receberá nenhum equivalente da sociedade. Isto quer dizer pois que o preço da venda desta indústria ou desta empresa que trabalha abaixo da média da produtividade se aproxima do seu preço de custo, ou que descerá mesmo abaixo desse preço de custo, isto é, que ela trabalha com uma taxa muito pequena ou mesmo que trabalha com perdas.

Pelo contrário, uma empresa ou um ramo industrial com um nível de produtividade superior à média (semelhante ao sapateiro que pode produzir dois pares de sapatos em 3 horas, enquanto que a média social é de um par de 3 em 3 horas) essa empresa ou esse ramo industrial ECONOMIZA despesas de trabalho social e alcançará, por isso um superlucro, isto é a diferença entre o preço da venda e o seu preço de custo será superior ao proveito médio.

A procura deste superlucro, é, evidentemente, o motor de toda a economia capitalista. Toda a empresa capitalista é levada pela concorrência a tentar obter mais lucros, pois é essa a única condição para que possa melhorar constantemente a sua tecnologia, a sua produtividade do trabalho. Todas as firmas são pois conduzidas para esse caminho, o que implica que o que era inicialmente uma produtividade acima da média acabe por se tomar uma produtividade média. Então o superlucro desaparece. Toda a estratégia da indústria capitalista resulta deste facto, deste desejo de todas as empresas de conquistarem num país uma produtividade acima da média afim de obter um superlucro, o que provoca um movimento que faz desaparecer o superlucro pela tendência para a elevação constante da MÉDIA da produtividade do trabalho. .É assim que se chega ao declínio tendencial da taxa de proveito.

7. ORIGENS QUANTO À NATUREZA DA MAIS-VALIA

O que é agora a mais-valia? Considerada do ponto de vista da teoria marxista do valor, podemos já responder a esta pergunta.-A mais-valia é apenas A FORMA MONETÁRIA DO SOBREPRODUTO SOCIAL, quer dizer a forma monetária dessa parte da produção do proletário que é cedida sem contrapartida ao proprietário dos meios de produção.

Como é que esta cedência se efectua praticamente na sociedade capitalista? Produz-se através da troca, como todas as operações importantes da sociedade capitalista, que são sempre relações de troca. O capitalista compra a força de trabalho do operário, e em troca desse salário, apropria-se de todo o produto fabricado por esse operário, de todo o valor novamente produzido que se incorpora no valor desse produto.

Podemos dizer então que a mais-valia é a diferença entre o valor produzido pelo operário e o valor da sua própria força de trabalho. Qual é o valor da força de trabalho? Essa força de trabalho é uma mercadoria na sociedade capitalista, e como valor de todas as outras mercadorias, o seu valor é a quantidade de trabalho socialmente necessário para produzir e reproduzir, isto é, as despesas de manutenção do operário, no sentido largo de termo. A noção do salário mínimo vital, a noção do salário médio, não é uma noção fisiologicamente rígida mas incorpora necessidades que variam com o progresso da produtividade do trabalho, que, em geral, tem tendência a aumentar com o progresso da técnica e que não são pois exactamente comparáveis no tempo. Não se pode comparar quantitativamente o salário mínimo vital do ano de 1830 com o de 1960, alguns teóricos do P. C. F. compreenderam-no à sua custa. Não se pode comparar validamente o preço de uma motocicleta em 1960 com o preço de um certo número de quilos de carne de 1830, para concluir que a primeira «vale» menos do que os segundos.

Dito isto, repetimos que as despesas da manutenção da força de trabalho constituem pois o valor da força, de trabalho, e que a mais-valia constitui a diferença entre o valor produzido pela força de trabalho, e as suas próprias despesas de manutenção.

O valor produzido pela força de trabalho é mensurável unicamente pela duração desse trabalho. Se um operário trabalha 10 horas, produziu um valor de 10 horas de trabalho. Se as despesas de manutenção do operário, quer dizer o equivalente do seu salário, representassem igualmente 10 horas de trabalho, então não haveria mais-valia. Este não passa de um caso particular de uma regra mais geral: quando o conjunto do produto do trabalho é igual ao produto necessário para alimentar e sustentar o produtor, não há sobreproduto social.

Mas num regime capitalista, o grau de produtividade do trabalho é tal que as despesas da manutenção do trabalhador são sempre inferiores à quantidade do valor produzido de novo. Isto é, um operário que trabalha 10 horas não precisa do equivalente de 10 horas de trabalho para se manter em vida segundo as necessidades médias da época. O equivalente do salário não representa sempre uma fracção do dia de trabalho; e o que está para lá dessa fracção é a mais-valia, é o trabalho gratuito que o operário fornece e de que o capitalista se apropria sem nenhum 'equivalente. Aliás, se esta diferença não existisse, nenhum patrão contrataria um operário, porque a compra da força de trabalho não' lhe proporcionaria nenhum proveito.

8. VALIDADE DA TEORIA DO VALOR-TRABALHO

Para concluir, três provas tradicionais da teoria do valor-trabalho.

Uma primeira prova é a PROVA ANALÍTICA ou, se quiserem, a decomposição do preço de cada mercadoria nos seus elementos constitutivos, demonstrando que se formos suficiente longe não encontramos senão trabalho.

O preço de todas as mercadorias pode ser referido a um certo número de elementos: a reintegração das máquinas e das construções, aquilo a que chamamos a reconstituição do capital fixo; o preço das matérias primas e dos produtos auxiliares; o salário; e finalmente tudo o que é mais-valia: lucros, juros, rendas, impostos, etc.

No que respeita a estes dois últimos elementos, o salário e a mais-valia, sabemos já que se trata de trabalho e de trabalho puro. No que respeita às matérias primas, a maior parte dos seus preços, reduzem-se em grande parte ao trabalho; por exemplo mais de 60% do preço do lucro do carvão é constituído por salários. Se, no início, decompusermos os preços de lucro médios das mercadorias em 40% de salários, 20% de mais-valia, 30% de matérias primas e 10% de capital fixo e se supusermos que 60% do preço de lucro das matérias primas podem reduzir-se a trabalho, teremos já 78% do total dos preços de lucro reduzidos ao trabalho. O resto do preço de lucro das matérias primas decompõe-se em preço de outras matérias-primas — por sua vez redutíveis a 60% do trabalho — e preço de reintegração das máquinas. Os preços das máquinas comportam em grande parte trabalho ,(por exemplo 40%) e matérias primas (por exemplo 40% igualmente). A parte do trabalho no preço médio de todas as mercadorias passa assim sucessivamente a 83%, a 87%, a 89,5% etc. E evidentemente que quanto mais prosseguirmos esta descomposição, tanto mais todo o preço tenderá a reduzir-se a trabalho, e somente a trabalho.

A segunda prova é a PROVA LÓGICA; é a que se encontra no início do «Capital» de Marx, e que desconcertou bastantes leitores, porque não constitui certamente a maneira pedagógica mais simples de abordar o problema. Marx põe a seguinte questão: há um grande número de mercadorias. Estas mercadorias são permutáveis, o que quer dizer que devem ter uma qualidade comum, porque tudo o que é comparável deve ter pelo menos uma qualidade comum. As coisas que não têm nenhuma qualidade comum são por definição incomparáveis.

Observemos cada uma destas mercadorias. Quais são as suas qualidades? Primeiramente elas têm uma série infinita 'de qualidades naturais: peso, comprimento, densidade, cor, largura, natureza molecular, em suma, todas as suas qualidades naturais, físicas, químicas, etc. Poderá alguma destas qualidades físicas estar na base de sua comparabilidade enquanto mercadorias, poderá ser a medida comum do seu valor de troca? Será talvez o peso? Manifestamente que não, porque um quilo de manteiga não tem o mesmo valor que um quilo de ouro. Será o volume? Será o comprimento? Os exemplos mostrarão imediatamente que não. Em resumo, tudo o que é qualidade natural de uma mercadoria, tudo o que é qualidade física, química dessa mercadoria, determina certamente o valor de uso, a sua utilidade relativa, mas não o seu valor de troca. O valor de troca deve pois abstrair de tudo o que é qualidade natural, física, de mercadoria.

Temos de encontrar em todas estas mercadorias uma qualidade comum que não seja física. Marx conclui: a única qualidade comum destas mercadorias que não seja física é a sua qualidade de serem todas produtos do trabalho humano, do trabalho humano tomado no sentido abstracto do termo.

Pode considerar-se o trabalho humano de duas maneiras diferentes. Pode considerar-se como trabalho concreto, específico: o trabalho do padeiro, o trabalho do carniceiro, o trabalho do sapateiro, o trabalho do tecelão, o trabalho do ferreiro, etc. Mas enquanto se considera como trabalho específico, concreto, considera-se precisamente como trabalho que produz somente valores de uso.

Consideram-se então precisamente todas as qualidades que são físicas e que não são comparáveis entre as mercadorias. A única coisa que as mercadoria? têm de comparável entre si do ponto de vista do seu valor de troca, é o facto de resultarem todas do trabalho humano abstracto, isto é, produzidas por produtores que têm como característica comum a circunstância de todos produzirem mercadorias para trocar. É portanto o facto de serem produto do trabalho humano abstracto que é a qualidade comum das mercadorias, que fornece a medida do seu valor de troca, da sua possibilidade de serem permutadas. É pois a qualidade do trabalho socialmente necessário para as produzir que determina o valor de permuta destas mercadorias.

Acrescentemos imediatamente que este raciocínio de Marx é a um tempo abstracto e bastante difícil, e que conduz pelo menos a um ponto de interrogação que inúmeros críticos do marxismo tentaram utilizar, aliás, sem grande êxito.

O facto de ser produto do trabalho humano abstracto será verdadeiramente a ÚNICA qualidade comum entre todas as mercadorias, independentemente das suas qualidades naturais? Um razoável número de autores julgou descobrir outras que, no entanto, se deixam, em geral, reduzir ou a qualidades físicas, ou ao facto de serem o produto do trabalho abstracto.

Uma terceira e última prova de exactidão de teoria do valor-trabalho é a PROVA PELO ABSURDO que é, aliás, a mais elegante e a mais moderna.

Imaginemos por uns momentos uma sociedade na qual o trabalho humano vivo tivesse desaparecido totalmente, isto é, na qual toda a produção tivesse sido 100-% automatizada. Está claro, enquanto nos encontramos na fase intermediária, que conhecemos actualmente, durante a qual existe já trabalho completamente automatizado, isto é, algumas fábricas que já não empregam operários, enquanto noutras o trabalho humano continua a ser utilizado, não há problema teórico particular que se possa pôr, mas simplesmente um problema de transferência da mais-valia de uma empresa para outra. E uma ilustração da lei de declínio da taxa de lucro que examinaremos em seguida.

Mas imaginemos este movimento levado à sua conclusão extrema. O trabalho humano foi totalmente eliminado de todas as formas de produção, de todas as formas de serviço. Poderá o valor subsistir nestas condições? O que seria uma sociedade na qual não houvesse já ninguém que tivesse rendimentos, mas na qual as mercadorias continuassem a ter um valor e a ser vendidas? Uma tal situação seria manifestamente absurda. Produzir-se-ia uma massa imensa de produtos cuja produção não cria nenhum rendimento, visto que não há nenhuma pessoa humana que intervenha nessa produção. Mas se se quisesse «vender» esses produtos, para os quais não haveria nenhum comprador! É evidente que numa tal sociedade a distribuição dos produtos não se faria já sob a forma de venda de mercadorias, venda que se tornara aliás também absurda pela abundância produzida pela automação geral.

Noutros termos, a sociedade na qual o trabalho humano foi totalmente eliminado da produção, no sentido mais geral do termo, incluindo os serviços, é uma sociedade na qual o valor de troca igualmente desapareceu. Isto prova bem a verdade da teoria: no momento em que o trabalho humano desapareceu da produção, o valor também desapareceu.


Notas de rodapé:

(1) Traité d’Economie Marxiste, Erneste Mandel, Julliard, Paris, 1964 (N. T.). (retornar ao texto)

Inclusão: 16/06/2020