História do Mundo
Volume I - O Mundo Antigo - A Idade Média

A. Z. Manfred


II Parte: A Idade Média
Capítulo III - Kiev Rus. As Antigas Tribos Eslavas do Oriente


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Os eslavos orientais foram os povoadores originais das terras que hoje habitam. Desde tempos imemoriais que habitaram os vales do Dniepre, do Dniestre e do Vístula e o sopé dos Cárpatos, como demonstram os vestígios do seu período Neolítico e da sua Idade do Bronze. A Oeste dos seus territórios estendiam-se até aos troços superiores do Danúbio, do Oder e do Elba. As tribos eslavas encontravam-se no território da parte Sul da actual União Soviética desde o tempo dos citas. As primeiras referências históricas, escritas, aos povos eslavos surgiram pouco depois do início da nossa era e iam aparecer cada vez com mais frequência. Sabemos os nomes de muitas tribos eslavas primitivas e os locais onde se estabeleceram. Os polyanye viviam na margem oriental do Dniepre e a sua cidade principal era Kiev. Os severyanye viviam no vale do Desna na margem ocidental do Dniepre até aos donets do Norte. A floresta entre o Pripet e o Ros era habitada pelos devrlyanye, cujo centro tribal era Iskorosten. Mais para o Norte, junto do Pripet, viviam os dregovichi, e entre o Dniepre e o Sozh viviam os radimichi. Nas costas do lago Ilmen, habitavam os eslavos ilmen ou eslovenos. As tribos que se estabeleceram mais para Leste eram os vyatichi, que viviam nos vales dos rios Oka e Moskva. Na Transcarpácia, a Oeste, viviam os croatas brancos e no Sul do vale Bug viviam os volynianos. Além das tribos acima mencionadas existiam também outros povos eslavos. As tribos eslavas orientais eram os velhos antepassados dos povos russo, ucraniano e bielo - russo.

A principal actividade de todas estas tribos era a agricultura. A região, no entanto, era difícil de cultivar porque a sua maior parte era floresta, que tinha de ser devastada. Depois de cortar as árvores e as plantas rasteiras, era preciso passar o Verão a secar os troncos que eram em seguida queimados. Utilizavam-se troncos pesados para gradar a terra, misturavam-se cinzas na última camada e lançava-se a semente.

Quando a terra estava esgotada depois de algumas colheitas, semeava-se uma nova área, e deixava-se a outra em pousio durante vários anos. Os eslavos semeavam centeio, trigo, cevada e milho-miúdo, e criavam vacas, cavalos e carneiros. Desde muito cedo apareceram utensílios de ferro e ferramentas como machados de ferro e arados. O facto de os eslavos terem começado cedo a desenvolver a agricultura foi um grande passo em frente. O desenvolvimento foi lento até dominarem a arte de tratar o ferro, realização que praticamente anunciou uma revolução na produção. Apareceram relhas para arados de madeira e mais tarde arados mais evoluídos, e usavam-se machados de ferro para cortar árvores, para desbravar novas terras para a agricultura.

Outra actividade das tribos eslavas era a pesca e a caça. Nas florestas ao longo das margens do Dniepre havia grande quantidade de caça e os rios estavam cheios de peixe. As abelhas costumavam armazenar o mel nos troncos das árvores ocas e os antigos eslavos esvaziavam os troncos para obter depósitos de mel adicionais. Foi assim que o mel das abelhas selvagens se tornou uma fonte importante de alimentação.

Estes povos antigos viviam originalmente em comunidades tribais organizadas à base de clãs. À medida que o seu sistema económico se tornou mais complexo, algumas famílias individuais das várias comunas começaram a ocupar uma posição de destaque. Estabeleceram-se grupos fortificados nas margens dos rios. Vários ofícios desenvolveram-se rapidamente e em breve surgiram em grande número ferreiros, oleiros, pedreiros e gravadores em pedra e em madeira. Pouco a pouco apareceram cidades, das quais Kiev e Novgorod foram as primeiras e as mais importantes. A estrutura de clã da sociedade começava então a impedir o desenvolvimento da economia e gradualmente desapareceu. Persistiu, entretanto, mais no Norte e nas regiões afastadas, tendo desaparecido primeiro entre os polyanye do Sul.

Não tardariam a aparecer chefes opulentos ou príncipes nas comunidades eslavas. Cada um deles tinha ao seu serviço grupos de seguidores armados (drujiny). Os príncipes costumavam cobrar um tributo aos camponeses que estavam sob o seu domínio, e aumentavam as suas riquezas saqueando os haveres dos outros príncipes. Alianças a longo prazo entre os vários príncipes eslavos, que começaram no século VI, representaram o primeiro tipo de estado nesta parte do Mundo.

Os povos eslavos estavam constantemente expostos a invasões hostis pelos nómadas orientais como o Hunos e os Ávaros. Devastavam as suas terras como uma peste violenta, deixando atrás de si um rasto de sangue, roubando cereais e gado, queimando as casas e levando homens, mulheres e crianças para o cativeiro.

Os eslavos tinham de estar sempre prevenidos contra ataques de surpresa. Por vezes eram obrigados a trabalhar os campos armados, e cedo se tornaram mestres na arte da guerra.

Os primeiros eslavos adoravam a natureza: o sol, o vento, as tempestades e a floresta e todos os outros fenómenos naturais eram considerados seres animados. O deus do Sol chamava-se Dajdbog, o deus do Vento, Stribog, e o deus da Tempestade, Perun. Realizavam-se festivais em honra do Sol. Na Primavera, efectuavam-se celebrações para assinalar o fim do Inverno e festejar a Primavera, e cozinhavam nessa altura bolos redondos que simbolizavam o Sol. Uma figura de palha que simbolizava o Inverno era solenemente queimada ou afogada num rio próximo e este rito era acompanhado de danças e cantares.

Os eslavos eram um povo forte e corajoso, célebre pela sua hospitalidade.

A Formação de Relações Feudais entre os Eslavos Orientais

Gradualmente foram ocorrendo numerosas mudanças na vida económica e social dos povos eslavos. As primeiras mudanças foram de tipo económico. Nas regiões de terra negra do Sul, os bois passaram a ser cada vez mais utilizados na agricultura. Cultivava-se cada vez mais terra e devastavam-se florestas para novas sementeiras(6): foi introduzida a sementeira da Primavera e do Outono. Em breve os eslavos estavam a produzir mais centeio, trigo, cevada, aveia e milho-miúdo. Também passaram a cultivar em larga escala ervilhas, nabos e lentilhas, e os camponeses começaram a ter mais gado e criação.

É claro que isto não significa que chegara uma época de abundância. O homem ainda estava mal equipado para a luta com a natureza, os seus utensílios ainda eram primitivos e o seu trabalho lento e difícil. Contudo, as técnicas estavam agora relativamente evoluídas e a produção era muito maior do que no tempo das primitivas comunas. Os padrões da vida social e da produção estavam a avançar com persistência.

A posição dos membros mais ricos das comunas e a velha aristocracia tribal tornou-se mais forte à medida que a economia se desenvolveu. Tentaram trabalhar as suas terras o melhor possível e apoderar-se de toda a terra a que podiam deitar mão — a terra era a principal fonte de riqueza da época. Desta maneira, o nascente estrato próspero da sociedade consolidou o seu poder e aumentou as suas terras. Adstringiu à terra os camponeses que viviam nos territórios conquistados. Assim, os camponeses (livres) ou smerds, que formavam a maior parte da população rural dos primitivos principados russos, perderam a pouco e pouco a liberdade, enquanto crescia o número de propriedades que pertenciam aos proprietários ricos ou boiardos.

Utilizava-se algum trabalho escravo, mas os camponeses constituíam a principal força de trabalho desta primitiva sociedade eslava. Os escravos ou kholops eram utilizados como força de trabalho não especializado ou subsidiário. O trabalho agrícola essencial era feito pelos smerds. Depois de os boiardos tomarem as terras às comunas camponesas arrendavam parcelas aos camponeses, de maneira que estes se mantivessem a si próprios e às famílias enquanto trabalhavam para os boiardos.

Em breve iam aparecer duas classes distintas — os camponeses adstritos à terra do seu senhor, que trabalhavam essa terra, e os senhores feudais que possuíam a terra. Este desenvolvimento marcou o início do período medieval da sociedade russa.

O Primeiro Estado Russo

Logo no século VI foram concluídas várias alianças entre os principados russos. Este processo ocorreu gradualmente nas terras em volta do rio Dniepre. No fim do século IX, durante o reinado do príncipe Oleg (879-912), os principados de Kiev e Novgorod uniram-se. Kiev tornou-se o centro do novo Estado russo, que consistia em alguns grandes principados eslavos povoados pelos polyanye, os severyanye, os drevlyanye e outras tribos eslavas unidas.

Os príncipes deste primitivo Estado russo cobravam eles próprios impostos aos seus súbditos. Costumavam partir para cobrar este tributo no início do Inverno com um grande séquito. Os súbditos do príncipe traziam o tributo ao seu soberano quando ele entrava na aldeia. As peles de castor, esquilo e marta eram muito apreciadas. Traziam mel em jarros e baldes de madeira, cera e produtos agrícolas.

O povo acabou por se revoltar contra esta exploração e, no ano 945, o príncipe Igor foi assassinado como vingança pelas suas exigências.

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Quando subiu ao trono, Olga, viúva de Igor (reinou de 945 a 969) vingou-se cruelmente dos revoltosos: conta-se que queimou a sua aldeia e depois mandou queimar vivos muitos dos habitantes. Contudo, diz-se, também, que foi obrigada a estipular taxas de tributo mais realistas e depois a cumprir as novas leis.

A pouco e pouco, o Estado de Rus alargou as suas fronteiras. O seu poder armado e a sua técnica militar veio a representar um desafio formidável. Svyatoslav (942 - 972) acrescentou muitas terras ao Estado de Rus e subjugou os vyatichi, os Búlgaros do Volga e o reino khazar. Também conquistou território búlgaro no vale do Danúbio.

A Adopção da Religião Cristã

À medida que o Estado de Rus cresceu em tamanho e em força começou a contactar mais intimamente com Bizâncio e com a Europa, onde o Cristianismo já era uma religião universalmente aceite, enquanto Rus era ainda um Estado pagão. O culto dos deuses da natureza reflectia os conceitos eslavos do poder da natureza, mas não podia ser utilizado pelos príncipes para aumentar o seu poder sobre os seus súbditos.

O cristianismo, porém, apresentava perspectivas muito diferentes: há muito que enaltecia o imperador como representante do Deus cristão, único, omnipotente e omnisciente, dominador de todo o Mundo, factor que foi sublinhado para apoiar o princípio do domínio único e indivisível na esfera da administração temporal. À medida que se foram estabelecendo relações sociais novas e mais complexas, os príncipes precisavam de uma religião que apoiasse o seu poder total.

A fé cristã ensinava que não havia qualquer poder além do que era delegado pelo Senhor e, consequentemente, que todos os cristãos deviam obedecer sem discussão aos seus senhores da Terra, que eram, afinal, os representantes de Deus.

A doutrina cristã reforçou ainda a submissão das massas com a doutrina de uma vida ultraterrena. Todos os que aceitassem submissamente o seu destino teriam uma vida no paraíso com Deus e os anjos, ao passo que os pecadores seriam torturados no inferno. As massas ignorantes adoptavam estes ensinamentos e tornavam-se mais submissas. As igrejas magníficas construídas nessa época, os complicados serviços religiosos com belos cânticos, muitos rituais e imagens iluminadas por velas — tudo reflectia o poder crescente do Estado feudal, e atraía o povo.

O príncipe de Kiev, Vladimir (que reinou até 1015), filho de Svyatoslav, converteu-se ao cristianismo e declarou no ano 988 que o cristianismo era a religião oficial de Rus. Foram proibidas as imagens de deuses e ídolos pagãos e as que existiam foram destruídas.

Os homens de Kiev foram chamados às margens do Dniepre onde foram baptizados por ordem de Vladimir.

A nobreza do Estado de Kiev aceitou de boa mente esta nova religião, que ajudava a garantir o seu poder sobre os trabalhadores. Contudo, em muitas regiões, o povo resistiu às novas doutrinas e em muitas ocasiões o cristianismo foi introduzido à força. Houve revoltas contra a introdução da nova religião em Novgorod e noutras cidades. A Igreja recebeu dos príncipes grandes extensões de terra e um décimo dos rendimentos do Estado.

O cristianismo trouxe nova força ao Estado de Rus. Reforçou o poder do príncipe e tornou as relações com outros Estados que já tinham adoptado o cristianismo muito mais simples. Já não era possível aos estrangeiros olharem os eslavos com desprezo, pois eles tinham agora adoptado a mesma fé. Os sacerdotes cristãos eram todos homens cultos e havia muitos livros nas bibliotecas das igrejas, que foram, então, recopiados. Também foram abertas escolas junto às igrejas. O desenvolvimento cultural avançou mais rapidamente do que na era pagã. Isto foi particularmente notório no reinado do príncipe Yaroslav, o Sábio (1019- 1054).

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Durante o reinado de Yaroslav foram erigidos muitos edifícios magníficos em Kiev, incluindo a catedral de Santa Sofia e as novas muralhas da cidade com os Portões Doirados. Muitos artistas e arquitectos hábeis trabalharam em Kiev durante o seu reinado, tanto russos como estrangeiros. Embora os edifícios, as pinturas das igrejas e as imagens revelassem uma marcada influência bizantina, começou a aparecer um novo estilo russo de arquitectura e pintura.

O poder de Rus cresceu notoriamente durante o reinado de Yaroslav, o Sábio. Reis estrangeiros procuraram fazer alianças com ele e Yaroslav casou com uma princesa sueca e casou as suas filhas com reis franceses, húngaros e noruegueses, enquanto o seu filho casava com uma princesa bizantina. Todas estas alianças serviram para fortalecer os laços entre Kiev Rus e as outras potências.

No reinado de Yaroslav, o Sábio, as leis russas foram pela primeira vez codificadas. O novo código de leis conhecido por Russkaya Pravda baseava-se nos antigos costumes russos. Os filhos de Yaroslav acrescentaram novos decretos ao código, um dos quais, particularmente importante, proibia as lutas sangrentas entre os clãs e assim abolia um vestígio importante da sociedade de clãs. A elaboração de um código de leis foi um passo importante para o estabelecimento de uma rede administrativa do Estado.

Revoltas Populares no Século XI
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À medida que o Estado feudal se ia consolidando, as duas classes de camponeses e proprietários de terras tornaram-se cada vez mais claramente definidas. Os príncipes e os boiardos começaram a apoderar-se de muitíssimas terras dos camponeses e aumentaram o trabalho obrigatório dos camponeses. A Igreja também se tinha por seu lado tornado num importante proprietário e começava a oprimir os camponeses.

A resistência dos oprimidos aumentou particularmente nos anos de desastres naturais, como más colheitas e fomes. Em 1024 houve uma colheita excepcionalmente má e a nobreza local reuniu grandes quantidades de cereais na província de Suzdal. Os velhos sacerdotes pagãos exploraram a vaga de descontentamento popular e excitaram o povo. O povo ergueu-se contra a nobreza exigindo pão e protestando contra a Igreja Cristã, que se tornara um proprietário opressor. Nesta altura, o príncipe de Kiev marchou para Suzdal e esmagou a revolta popular executando e encarcerando muitos dos revoltosos.

Na própria Kiev, no ano 1068, os trabalhadores ergueram-se contra o seu príncipe, na altura em que novas e perigosas tribos nómadas, os polovtsi, ameaçavam Kiev pelo Leste. O exército de Kiev, do príncipe Izyaslav (1024-1078) foi derrotado. O príncipe Izyaslav refugiou-se atrás das muralhas da cidade depois da derrota e as terras do principado de Kiev foram abandonadas ao inimigo. Este facto alarmou a população urbana e rural, que convocou uma assembleia popular ou vyeche na Praça do Mercado e proclamou: «Os polovtsi invadiram as nossas terras! Príncipe, dá-nos armas e cavalos para irmos já a combatê-los!» O príncipe recusou porque temia que o povo usasse as armas contra ele e contra os boiardos. Esta recusa provocou uma insurreição: o povo expulsou Izyaslav da cidade, apoderou-se do castelo e distribuiu por todos as suas riquezas, o ouro, a prata e as peles. O vyeche elegeu outro governante e só depois apareceu uma resistência vitoriosa contra os polovtsi.

Foi neste fundo de intensa luta de classes que a sociedade feudal foi tomando uma forma definida.

A Formação de Principados Independentes

Até ao século XII, Rus foi um Estado unificado governado pelo grande príncipe de Kiev. De modo claro, essa unidade nunca tinha sido particularmente forte nem profunda: a forma de economia predominante era uma economia de subsistência, os laços entre os vários grupos estavam longe de estar firmemente estabelecidos e a organização económica e política não era particularmente avançada.

Gradualmente os padrões de propriedade feudal começaram a afirmar-se mais nos principados separados de Rus — os de Vladimir, Novgorod, Chernigov, Ryazan e muitos outros. Os príncipes, chefes guerreiros e boiardos começaram a apossar-se cada vez mais das terras dos smerds e a alargar as suas propriedades. Apareceram mais casas rurais e o trabalho agrícola tornou-se mais organizado. O trabalho obrigatório dos camponeses para os seus senhores era realizado sob vigilância constante e rigorosa quer pelo próprio senhor quer pelo seu bailio. Grupos de camponeses começaram a trabalhar na casa do boiardo e nos seus armazéns.

O sistema de rotação agrícola começou a ser largamente utilizado: um campo ficava em pousio, um segundo seria semeado na Primavera e um terceiro no Outono. Isto levou a colheitas muito mais abundantes e a um desenvolvimento lento mas firme dos utensílios agrícolas, o que foi um importante passo em frente. As cidades e os ofícios também se desenvolveram consideravelmente.

À medida que estes Estados feudais se tomaram mais poderosos e os seus donos mais fortes, o poder dos príncipes locais cresceu, enquanto enfraquecia o poder do grande príncipe de Kiev. O aparecimento de principados independentes foi de início um fenómeno progressista.

Entre o grande número de províncias independentes que tinham feito parte de Rus estavam a grande Novgorod e o principado de Vladimir. As terras da província de Novgorod estavam situadas à volta do lago Ilmen e estendiam-se para Norte, para além do Byeloye Ozero (lago Branco), do lago Onega, do Dvina do Norte e dos Urais do Norte.

Os boiardos eram poderosos proprietários que constituíam a classe mais alta da sociedade de Novgorod. A seguir, vinham os ricos comerciantes e outros proprietários de terras, prósperos mas não tão poderosos como os boiardos. Estes grupos denominavam-se os homens «de qualidade» e eram eles que reinavam na província de Novgorod. Eram eles que determinavam os destinos dos trabalhadores, dos camponeses, dos artesãos, dos carregadores, dos barqueiros e do povo comum da cidade. Embora este fosse muito mais numeroso do que os boiardos e os mercadores, era chamado povo «inferior» ou «negro».

Os produtos da terra e do trabalho dos artesãos das cidades era vendido no activo mercado de Novgorod. Muitos comerciantes, ou «convidados», como se chamavam naquela época, vinham a Novgorod comprar as famosas mercadorias da cidade. Entre eles vinham frequentemente visitantes de outros países. Os comerciantes estrangeiros traziam tecidos caros, vinhos, cobre, estanho, fruta seca e doces. Os mercadores germânicos estabeleceram o seu próprio posto de comércio que foi rodeado de uma alta vedação. Os mercadores da Oriente também vinham a Novgorod, de países como a Pérsia, a Índia e o Afeganistão.

Novgorod era também um centro cultural importante. Era uma cidade evoluída para a altura, com ruas pavimentadas com pedras redondas e água canalizada. Havia um grande número de artesãos na cidade e muitos dos cidadãos eram cultos. As escavações arqueológicas têm revelado um grande número de documentos escritos em casca de vidoeiro.

O vyeche, formado por todos os chefes de família livres da cidade, desempenhava um papel importante no governo de Novgorod. O governador de Novgorod chamava-se posadnik, e era eleito exclusivamente entre os poderosos boiardos. O vyeche também elegia um comandante da guarda da cidade (mil homens), tropa especial escolhida entre o povo da cidade. O arcebispo igualmente desempenhava um papel importante nas questões da cidade. Também havia um príncipe, mas este título não era hereditário. Os príncipes de Novgorod eram eleitos e depois convidados para a cidade. Tinham a seu cargo as tropas e o tribunal, embora fossem obrigados a julgar de acordo com os costumes de Novgorod.

Havia em Novgorod frequentes revoltas dos homens «inferiores» contra os homens de «qualidade» (os cidadãos mais ricos e mais poderosos). Por vezes, convocavam-se duas vyeches separadas, uma ao lado do mercado e outra ao lado de Sófia, e os sinos tocavam forte em ambos os extremos da cidade. Os dois grupos depois encontravam-se na ponte sobre o rio Volkhov e muitas vezes seguia-se uma luta feroz. Nos séculos XIII e XIV registaram-se cerca de cinquenta revoltas dos habitantes «inferiores» contra os «de qualidade».

À medida que o poder de Kiev declinava, o principado de Vladimir consolidava o seu poder e começava a desempenhar um papel muito mais dominante. Este principado, também chamado principado de Vladimir-Suzdal, estendia-se do Volga ao Klyazma. Era rico em florestas, mel e peixe, e continha muita terra fértil. Os seus centros mais antigos eram Rostov e Suzdal.

Foi neste principado que cresceu Moscovo. Foi mencionada nas crónicas pela primeira vez no ano 1147, quando se registou que o príncipe Yuri Dolgoruky (1090- 1157) convidou um dos seus aliados, o príncipe de Chernigov, a vir a Moscovo e organizou uma grande festa em sua honra. Nessa altura, Moscovo era ainda um pequeno agregado populacional, que ocupava a área do moderno Kremlin. Estava situada numa posição bem fortificada na margem alta do rio Moskva e consistia numa pequena fortaleza rodeada pelas casas dos artesãos e mercadores. Fizeram-se escavações, durante as quais foram desenterradas pontas de seta, agulhas e facas, que mostraram que esta área tinha sido habitada por eslavos desde há muito.

Vladimir junto ao Klyazma iria tornar-se a capital do principado de Vladimir. Na região imediatamente vizinha, o príncipe André (1111-1174) construiu o castelo de Bogolyubov — daí o seu nome André Bogolyubsky. A cidade de Vladimir em breve se tornou num importante centro político. Soberano cruel e déspota, o príncipe André tentou impor a sua vontade aos príncipes inferiores, e a nobreza local acabou por se erguer contra ele e matá-lo.

Pouco depois da morte de André Bogolyubsky, Vsevolod Ninho Grande (alcunha que lhe puseram por causa da sua família numerosa), tornou-se soberano de Vladimir - Suzdal (até 1212). Também foi um soberano déspota e deu pouca liberdade aos boiardos. Na famosa epopeia medieval «O Lais do Exército de Igor» faz-se um vivo quadro de como o seu exército drenou a água do Volga com os seus remos e esvaziou o Don, bebendo-lhe a água pelos elmos, tão poderoso era o poder bélico de Vsevolod.

A Cultura do Antigo Estado Rus

O antigo Estado de Rus teve uma cultura florescente e variada. A arte da narração oral era então uma tradição firme, e as histórias de fadas, contos e lendas passavam de geração em geração. Algumas figuras lendárias muito populares foram os grandes heróis Ilya Muromets e Dobrynya Nikitich, o astuto e alegre Alyocha Popovich e o rico mercador de Novgorod Sadko, cujas aventuras o levaram ao reino submarino do rei do mar.

Estas lendas, histórias de fadas e provérbios reflectiam o espírito e a rica imaginação artística do povo comum, a vida que levava, com as suas alegrias e tristezas, a sua interpretação do passado e as esperanças no futuro. O antigo Estado Rus tinha a sua língua escrita própria antes do advento do cristianismo e dela temos conhecimento através das cartas escritas pelos monges gregos que elaboraram o alfabeto cirílico na forma que chegou até nós na maioria dos primitivos escritos russos.

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Todos os livros foram copiados à mão nessa época e utilizavam-se penas de ganso ou pequenos ramos para escrever em fina pele de bezerro. Utilizava-se também casca de vidoeiro com letras gravadas ou cortadas. Escavações feitas em Novgorod revelaram grande número de cartas medievais escritas em casca de vidoeiro. Os livros levavam muito tempo a fazer e eram considerados objectos valiosos.

As primeiras crónicas russas foram feitas nos mosteiros, onde se registavam, por ordem cronológica, os acontecimentos importantes. Uma das primeiras crónicas russas foi escrita pelo monge Nestor no mosteiro de Kiev-Pechersky. Esta e outras crónicas constituem registos únicos do passado da Rússia e o estudo da sua primitiva história deve-lhes muito.

O antigo Estado Rus era muito famoso pelos seus artesãos, hábeis numa grande variedade de ofícios. Os oleiros da época produziram grande quantidade de graciosa louça de barro com bonitos enfeites, colorida e brilhante — jarros, pratos, vasos, tigelas e brinquedos de criança. Outra prática comum era a fusão de metal em pequenos fornos: usava-se para fabricar a relha do arado, foices, lâminas para pás de madeira, facas, pregos, fechaduras e ferraduras. Famosos eram também os armeiros, que fabricavam espadas com lâmina dupla, escudos, armaduras e cotas de malha de ferro.

Os joalheiros e artesãos de Kiev eram muito célebres pelo fino trabalho de metal, ricos ornamentos e artigos de mesa. Óptimos especialistas em gravar, em relevo, o metal, cinzelar e dourar. Por vezes, estes artistas decoravam as suas obras com cenas completas, por exemplo, um chifre de boi selvagem decorado com trabalhos de prata podia contar toda uma cena de uma lenda russa. Algumas vezes os artistas assinavam as suas composições: por exemplo, em Novgorod, foram encontradas magníficas chávenas, decoradas com aplicações, em relevo, com inscrições no fundo, tais como «Obra de Bratila», «Obra de Kosta». Os mestres ensinavam a sua arte aos seus aprendizes, legando-lhes os respectivos segredos.

Outro marco cultural deste período é a epopeia medieval: O Lais do Exército de Igor, que data do século XII, e que narra a campanha do príncipe Igor Svyatoslavich contra os polovtsi no ano 1185. Esta obra de um autor desconhecido é uma das obras-primas da primitiva poesia russa. Composta pouco antes da invasão mongólica, o Lais contém um apelo à unidade entre os príncipes da Rússia.


Notas de rodapé:

(6) Também os cavalos começaram a ser utilizados como animais de tiro. Novas terras, para o Norte, foram abertas, e os métodos agrícolas evoluíram. (retornar ao texto)

Inclusão 20/05/2016