Interpelação ao Kuomintang

Mao Tsetung

12 de Julho de 1943


Primeira Edição: Editorial redigido pelo camarada Mao Tsetung para o Quiefanjepao, de Ien-an.
Tradução: A presente tradução está conforme à nova edição das Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Tomo II (Edições do Povo, Pequim, Agosto de 1952). Nas notas introduziram-se alterações, para atender as necessidades de edição em línguas estrangeiras.
Fonte: Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Pequim, 1975, Tomo III, pág: 185-195.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo

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Nestes últimos meses verifica-se na China, no campo da Guerra de Resistência contra o Japão, um fenômeno totalmente insólito e espantoso: numerosos organismos do partido, do governo e do exército, dirigidos pelo Kuomintang, desencadearam uma campanha de sabotagem da união e da Guerra de Resistência. Realizada sob o signo da luta contra o Partido Comunista, essa campanha é na realidade dirigida contra a nação chinesa e contra o povo chinês.

Consideremos primeiramente os exércitos do Kuomintang. Dos exércitos do país sob autoridade deste, nada menos que três grupos de exércitos pertencentes às respetivas forças principais estão estacionados no Noroeste; são os XXXIV, XXXVII e XXXVIII Grupos de Exércitos, comandados por Hu Tsum-nan, segundo comandante da VIII Zona de Guerra. Desses grupos, apenas um foi afetado à defesa do rio Amarelo, desde Itchuan a Tonquan, contra os invasores japoneses, os outros dois empregam-se no cerco da região fronteiriça Xensi-Cansu-Ninsia. Essa tem sido a situação, há mais de quatro anos, e as pessoas já se tinham acostumado a ela, uma vez que não havia choques armados. Mas uma mudança inesperada ocorreu nos últimos dias: dos três corpos de exército — I, XVI e XC — encarregados da defesa do rio Amarelo, dois foram transferidos, para a região Pindjou-Tchouen-hua o I e para a região Luotchuan o XC, encontrando-se em intensos preparativos para atacar a região fronteiriça. A maior parte da linha de defesa do rio ficou portanto desguarnecida frente ao invasor.

As pessoas veem-se pois fatalmente levadas a perguntar: Quais serão exatamente as relações entre a gente do Kuomintang e os japoneses?

Dia sobre dia, muitos kuomintanistas vêm realizando uma frenética propaganda contra o Partido Comunista, pretendendo que este “sabota a Resistência”, “sabota a unidade”. Poderá considerar-se reforço da Resistência retirar o grosso das forças da linha de defesa do rio? Será reforçar a unidade lançar ataques contra a região fronteiriça?

Aos kuomintanistas que assim procedem gostaríamos de perguntar o seguinte: vocês viram as costas aos japoneses quando estes não fazem mais que mirar-vos, que farão pois quando começarem a marcha sobre vocês?

Que mistério haverá no vosso abandono de extensos setores e no olhar tranquilo dos japoneses, desde a outra margem do rio, satisfeitos com o simples observar por binóculos o progressivo desaparecer das vossas silhuetas? Por que razão gostarão tanto de ver-vos de costas? Como se explica que vocês não sintam a menor preocupação ao abandonar a defesa do rio e deixar assim sem controle tão vastos setores?

Numa sociedade baseada na propriedade privada, a regra é trancarem-se à noite as portas, antes do deitar. E todos sabem que isso não constitui uma medida supérflua mas sim uma precaução contra ladrões. Será que vocês, que agora deixam o portão frontal escancarado, não receiam os ladrões? E por que será que estes não entram quando a porta lhes fica inteiramente aberta?

Na vossa opinião, é o Partido Comunista, e só ele, quem na China “sabota a Resistência”, sendo vocês aqueles que nunca se esquecem de pôr “a nação acima de tudo”. Mas o que será pois que colocam acima de tudo quando viram as costas ao inimigo?

Também segundo vocês, o Partido Comunista “sabota a unidade”, enquanto vocês são os fervorosos defensores da “unidade sincera”. Poderá falar-se de “unidade sincera” quando atiram contra a população da região fronteiriça forças consideráveis de três grupos de exércitos (menos um corpo de exército) dotados de artilharia pesada e avançando à baioneta calada?

Ainda segundo outra das vossas afirmações, o que desejam ardentemente não é a união mas sim a “unificação”, razão por que querem arrasar a região fronteiriça, eliminar o que chamam “separatismo feudal” e exterminar todos os comunistas. Muito bem! Mas como será que não receiam que os japoneses realizem, pela eliminação, a “unificação” da nação chinesa incluindo-vos também?

E se admitimos que podem dum golpe unificar a região fronteiriça e liquidar o Partido Comunista, enquanto os japoneses, adormecidos por “beberagem soporífica” ou petrificados por “fórmula mágica” do vosso invento, ficam presos ao chão — escapando assim à “unificação” japonesa tanto a nação como vocês próprios — aceitam ao menos, os caros senhores kuomintanistas, revelar-nos algo do segredo da vossa beberagem e da vossa fórmula?

Se não possuem “beberagem soporífica” nem “fórmula mágica” contra os japoneses, se não há acordo tácito entre vocês e estes, deixem-nos dizer-vos formalmente: vocês não têm o direito de atacar a região fronteiriça nem se vos tolerará que o façam! “Quando a garça e a ostra se batem, o pescador é quem beneficia” e “quando o louva-a-deus encurrala a cigarra, por detrás dele há um verdelhão à espreita”. Há verdade nessas duas fábulas. O que vocês devem fazer é juntar-se a nós na unificação dos territórios ocupados pelos japoneses e na expulsão dos demônios japoneses. E que razão há para ficarem tão impacientes com a “unificação” desse palmo de terra que forma a região fronteiriça? Grandes são as extensões do nosso belo país entre as garras do inimigo, mas nem por isso vocês mostram qualquer angústia ou se apressam, apenas se impacientam com o ataque à região fronteiriça, apenas se apressam em esmagar o Partido Comunista. Que lástima! Que infâmia!

Passemos agora às atividades do Kuomintang. Para combater o Partido Comunista, o Kuomintang criou várias centenas de destacamentos de agentes secretos, integrando-os de vadios e meliantes de toda a espécie. Por exemplo, no dia 6 de Julho de 1943 (ano 32 da República Chinesa), vésperas do sexto aniversário do desencadeamento da Guerra de Resistência, a Agência Central de Informação kuomintanista difundiu notícias segundo as quais certas “organizações culturais” teriam realizado uma reunião em Si-an, província de Xensi, e resolvido dirigir um telegrama a Mao Tsetung, pedindo-lhe que aproveitasse a ocasião proporcionada pela dissolução da III Internacional para “dissolver” igualmente o Partido Comunista da China e, além disso, “suprimir o feudo constituído pela região fronteiriça”. Os leitores até poderiam ter tomado essas informações como “nova”, quando afinal se trata de história velha.

Com efeito, tudo isso não foi mais que manipulação dum desses destacamentos de agentes secretos que existem às centenas. Agindo sob as ordens dum quartel-general (a saber, “Birô de Investigações e Estatística do Conselho Militar do Governo Nacional” e “Birô de Investigações e Estatística do Comitê Executivo Central do Kuomintang), foi esse destacamento quem instruiu o trotskista e traidor Tcham Ti-fei, pessoa bem conhecida pelos seus artigos anticomunistas em Resistência e Cultura (revista financiada pelo Kuomintang e dirigida pelos traidores à nação), e atualmente chefe do serviço de instrução no campo de trabalho de Si-an; e, a 12 de Junho, isto é, vinte e cinco dias antes que a Agência Central de Informação publicasse as suas notícias, Tcham Ti-fei arrebanhou nove indivíduos para, numa reunião de dez minutos, fazer “adoptar” o texto do dito telegrama.

Até este momento, o telegrama ainda não foi recebido em Ien-an, mas o seu conteúdo já se mostra claro. Ao que se sabe, nele sustenta-se que, dissolvida a III Internacional, o Partido Comunista deve ser igualmente “dissolvido” e que o “Marxismo-Leninismo faliu”, etc., etc.

Esse é o gênero de alegações da gente do Kuomintang! Nós sempre soubemos que da boca de tais indivíduos (as coisas agrupam-se segundo a espécie) tudo pode sair, e como era natural esperar fizeram uma vez mais ecoar maravilhas!

Na China há, hoje em dia, muitos partidos políticos. Existem até dois Kuomintang. Um tem o selo de Uam Tsim-vei, está instalado em Nanquim e outros pontos; também tem bandeira, com “Sol branco sobre céu azul”, um comitê executivo central e uma série de destacamentos de agentes secretos. Além disso, há por toda a parte, nas regiões ocupadas, partidos fascistas criados pelo Japão.

Caros senhores kuomintanistas! Como se explica que desde a dissolução da III Internacional, se tenham atarefado tanto em maquinar a “dissolução” do Partido Comunista e não levantaram sequer o dedo mínimo para dissolver uns quantos dos partidos de traição nacional ou inspiração japonesa? Por que razão, no telegrama que Tcham Ti-fei redigiu sob vossa instigação, não acrescentaram, após a exigência de dissolução do Partido Comunista, uma frase sequer dizendo que os partidos de traição nacional, de obediência japonesa, deviam ser igualmente dissolvidos?

Será que julgam a mais a existência do Partido Comunista? Mas na China inteira não existe senão um Partido Comunista enquanto que há dois Kuomintang. Em que lado está pois o partido a mais?

Senhores do Kuomintang! Acaso terão já algum dia refletido sobre a razão por que, além de vocês, os japoneses e Uam Tsim-vei se encarniçam contra o Partido Comunista, declarando que um só Partido Comunista representa já algo a mais, havendo portanto que abatê-lo? E por que acham eles nunca de mais, só de menos, os Kuomintang e apoiam e mantêm, por toda a parte, o Kuomintang marca Uam Tsim-vei?

Senhores do Kuomintang! Nós podemos dar-nos a pena de explicar-vos que, se os japoneses e Uam Tsim-vei têm uma predileção especial pelo Kuomintang e pelos Três Princípios do Povo, é porque encontram nisso algo de que podem beneficiar. Depois da Primeira Guerra Mundial, o único período em que os imperialistas e os traidores não puderam amar o Kuomintang, e odiaram-no e esforçaram-se por destruí-lo por todos os meios, foi o de 1924-1927, quando este, reorganizado pelo Dr. Sun Yat-sen, admitiu comunistas no seu seio e se constituiu numa aliança nacional em que cooperavam o Kuomintang e o Partido Comunista. Igualmente foi apenas nesse período que os imperialistas e os traidores não puderam amar mas sim odiar e tentar destruir por todos os meios os Três Princípios do Povo, reinterpretados pelo Dr. Sun Yat-sen nos termos expostos no Manifesto do I Congresso Nacional do Kuomintang, quer dizer, os Três Princípios do Povo revolucionários. Depois, o Kuomintang rejeitou das suas fileiras os comunistas e os Três Princípios do Povo foram esvaziados do espírito revolucionário de Sun Yat-sen; então, Kuomintang e Três Princípios do Povo obtiveram as simpatias de todos os imperialistas e de todos os traidores e, pelo mesmo motivo, a simpatia dos fascistas japoneses e do traidor Uam Tsim-vei, que os alimentam e apoiam, aferrando-se a eles como a tesouro inestimável. Outrora, a bandeira do Kuomintang de Uam Tsim-vei ainda mantinha no canto esquerdo superior um sinal amarelo, permitindo distingui-lo do outro Kuomintang; hoje, para não ferir a vista, foi suprimida de frente essa marca, tornando-se as bandeiras totalmente idênticas. Que ternura, que afeição!

Exemplares kuomintanistas de marca Uam Tsim-vei pululam tanto nas regiões ocupadas como na grande retaguarda. Uns são clandestinos e constituem a quinta coluna do inimigo; outros agem abertamente, têm os seus membros a soldo do Kuomintang ou dos serviços secretos deste, nada fazem pela resistência e especializam-se no anticomunismo. Não ostentam o rótulo Uam Tsim-vei mas, no fundo, são saídos da mesma fábrica. Também constituem a quinta coluna do inimigo mas usam disfarce algo distinto, para camuflar-se e confundir as gentes.

Agora, o conjunto do problema está perfeitamente esclarecido. Se, quando instruíram Tcham Ti-fei para que redigisse o telegrama pedindo a “dissolução” do Partido Comunista, vocês se empenharam a fundo em não fazer figurar nele a menor frase afirmando que os partidos de inspiração japonesa ou de traição nacional deviam igualmente ser dissolvidos, foi porque, no plano da ideologia, da política e da organização, vocês e eles têm muitos pontos em comum, sendo o essencial este pensamento comum: combater o Partido Comunista, combater o povo.

Outra pergunta mais ao Kuomintang: é verdade que na China, e também no mundo, a única doutrina que “faliu” é o Marxismo-Leninismo, estando as demais em ascensão? Então, ademais dos Três Princípios do Povo marca Uam Tsim-vei tratados atrás, que se passa com o fascismo de Hitler, Mussolini e Tojo? Como vai o trotskismo de Tcham Ti-fei? Como andam as doutrinas contrarrevolucionárias dos serviços secretos contrarrevolucionários, marca Tcham e Li, em atividades na China?

Caros senhores kuomintanistas! Como se explica que, ao darem as vossas instruções a Tcham Ti-fei para a redação do telegrama, vocês não tenham juntado uma só palavra ou formulado uma só reserva a respeito desse amontoado de “doutrinas” que não valem mais que a peste, os percevejos ou excrementos de cão? Será possível que todo esse monturo contrarrevolucionário seja para vocês irrepreensível e perfeito e só o Marxismo-Leninismo se encontre definitivamente “falido”?

Falando franco, nós suspeitamos muito que vocês estejam de conivência com os partidos de inspiração japonesa ou de traição nacional, sendo por isso que vocês e eles “respiram pelas mesmas narinas” e as vossas palavras e atos surgem assim tão similares, tão idênticos aos do inimigo e dos traidores, de tal maneira que já não se distinguem. O inimigo e os traidores queriam dissolver o Novo IV Exército, vocês deram ordens para que isso se fizesse; queriam dissolver o Partido Comunista, vocês querem-no igualmente; queriam liquidar a região fronteiriça, vocês querem-no também; não queriam que vocês defendessem o rio Amarelo, vocês abandonam as vossas posições; atacam a região fronteiriça (há seis anos que as tropas inimigas, dispostas ao longo da margem oposta, face à linha Suite-Mitche-Quiacien-Vupao-Tchintsian, não deixam de bombardear as defesas fluviais do VIII Exército), vocês preparam-se igualmente para atacá-la; combatem os comunistas, vocês fazem igual; empenham-se em violentas invetivas contra o comunismo e as ideias liberais, vocês fazem outro tanto(1); obrigam os comunistas capturados a renegar, na imprensa, as suas opiniões políticas, vocês agem como eles; sub-repticiamente introduzem, para efeitos de sabotagem, agentes contrarrevolucionários nas filas do Partido, do VIII Exército e do Novo IV Exército, e vocês procedem do mesmo modo. Como se explica pois que as vossas palavras e atos sejam assim tão semelhantes, tão idênticos, tão indistinguíveis dos do inimigo e traidores? Como podem então pretender que não se suspeite que estão de conluio com o inimigo e os traidores ou que chegaram a acordo tácito com eles?

Por tudo isto, apresentamos oficialmente ao Comitê Executivo Central do Kuomintang o protesto seguinte: é absolutamente incorreto e inadmissível retirar forças importantes da linha defensiva do rio no intuito de preparar-se para atacar a região fronteiriça e desencadear a guerra civil. É também totalmente incorreto e inadmissível que a vossa Agência Central de Informação tenha difundido, no dia 6 de Julho, uma notícia sabotadora da unidade e insultuosa para o Partido Comunista da China. Tais faltas, tanto uma como outra, constituem crimes monstruosos que em nada diferem dos crimes perpetrados pelo inimigo e pelos traidores. Incumbe-vos o dever de repará-las.

Ao sr. Tchiang Kai-chek que é o diretor-geral do Kuomintang, nós fazemos formalmente a petição seguinte: ordenar às tropas de Hu Tsum-nan o regresso à linha de defesa do rio, dissolver a Agência Central de Informação e punir o traidor Tcham Ti-fei.

A todos os patriotas genuínos que, no seio do Kuomintang, não aprovam a retirada das tropas da linha de defesa do rio no intuito de atacar a região fronteiriça nem aprovam o pedido de dissolução do Partido Comunista, fazemos o apelo seguinte: passar imediatamente à ação para conjurar o perigo de guerra civil. Nós estamos dispostos a cooperar convosco até ao fim para salvar a nação da ruína.

Estamos convictos da legitimidade absoluta da nossa petição.


Notas de rodapé:

(1) Referência à obra de Tchiang Kai-chek, O Destino da China, onde este se pronuncia aberta e arrogantemente contra o comunismo e as ideias liberais. (retornar ao texto)

Inclusão 19/05/2016