A Propósito do Discurso de Tchiang Kai-chek na Festa do Duplo Dez

Mao Tsetung

11 de Outubro de 1944


Primeira Edição: Comentário redigido pelo camarada Mao Tsetung para a Agência Hsínghua.
Tradução: A presente tradução está conforme à nova edição das Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Tomo II (Edições do Povo, Pequim, Agosto de 1952). Nas notas introduziram-se alterações, para atender as necessidades de edição em línguas estrangeiras.
Fonte: Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Pequim, 1975, Tomo III, pág: 277-284.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo

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Um dos traços marcantes do discurso proferido por Tchiang Kai-chek, na Festa do Duplo Dez(4), foi a ausência de qualquer conteúdo e a não resposta a qualquer das questões que preocupam o povo. Tchiang Kai-chek declara que, como subsistem ainda vastos territórios na grande retaguarda, não há razão de recear o inimigo. Até aqui, não se notou ainda entre os dirigentes autocráticos do Kuomintang qualquer intenção ou capacidade para introduzir reformas políticas e manter o inimigo em cheque, estando o “território” convertido no único capital sobre que podem recolher-se para resistir. Ora, todos sabem que por si só esse capital é insuficiente; com efeito, sem uma política justa, sem esforço humano, o território que resta vê-se constantemente ameaçado pelo imperialismo japonês. Tchiang Kai-chek sente, talvez muito vivamente, essa ameaça, e o reflexo disso é que não parou ainda de assegurar ao povo que a ameaça não existe, indo ao ponto de declarar:

“Desde que fundei o exército na Academia Militar de Huampu, há vinte anos, a revolução nunca viveu situação tão estável como hoje”.

E os seus apelos repetidos para que “não se perca a confiança em si próprio”, revelam justamente que muitos nas fileiras kuomintanistas, bem como muitas figuras proeminentes nas regiões controladas por esse partido, já perderam essa confiança. Tchiang Kai-chek anda à busca dum processo de fazê-la reviver. Mas, para isso, em vez de proceder a um exame da política ou trabalho prosseguidos no domínio político, militar, econômico e cultural, rejeita as críticas e tenta justificar os erros cometidos. Pretende que os “observadores estrangeiros” “ignoram todos o fundo da questão”, e que, se “no estrangeiro se emite uma profusão de críticas a respeito dos nossos assuntos militares e políticos”, é porque se dá crédito às “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação”. É bem curioso que estrangeiros como Roosevelt se juntem a kuomintanistas como Som Tchim-lim, bem como a numerosos membros do Conselho Político Nacional e a todos os chineses que não perderam a consciência, numa recusa em acreditar nas belas alegações de Tchiang Kai-chek e seus fiéis seguidores, e, igualmente, “emitam uma profusão de críticas a respeito dos nossos assuntos militares e políticos”! Bastante contrariado, Tchiang Kai-chek procurava desde há muito um argumento que gostaria que fosse decisivo, mas só este ano, na Festa do Duplo Dez, é que o descobriu — toda essa gente acredita nas “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação”. Assim é que, no seu discurso, se alongou veementemente numa denúncia dessas “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação”. Ele pensa, com tal denúncia, amordaçar quer chineses quer estrangeiros. E os que voltarem à “profusão de críticas” a respeito dos seus assuntos militares e políticos serão, pura e simplesmente, condenados como crentes em “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação”! Nós consideramos absolutamente ridícula essa acusação de Tchiang Kai-chek. Na realidade os agressores e os traidores à nação nunca fizeram críticas, pelo contrário, aplaudiram com calor a autocracia kuomintanista, a sua inércia na resistência, a corrupção, a incapacidade, os decretos fascistas e as ordens militares derrotistas do governo do Kuomintang. O Destino da China, esse livro de Tchiang Kai-chek que causou descontentamento geral, obteve louvores repetidos e cordiais da parte dos imperialistas japoneses. Nunca os agressores e os traidores à nação disseram uma só palavra sobre a reorganização do Governo Nacional e respetivo alto comando, pois a sua esperança é exatamente que esse governo e esse comando, que oprimem dia após dia o povo e sofrem derrota após derrota, se mantenham. Acaso não constitui um fato que Tchiang Kai-chek e o seu grupo têm sido desde sempre alvo de incitações à capitulação por parte do imperialismo japonês? Não é um fato também que das duas palavras de ordem avançadas inicialmente pelos imperialistas japoneses, uma, “liquidar o Kuomintang”, já está desde há muito abandonada, enquanto que a outra, “combater o Partido Comunista”, continua de pé? Até este momento os imperialistas japoneses ainda não declararam guerra ao governo kuomintanista e, como dizem, não há qualquer estado de guerra entre o Japão e tal governo! Na região Xangai-Nanquim-Nimpo, os haveres dos altos senhores do Kuomintang têm sido sempre bem protegidos pelo agressor e pelos traidores à nação. O chefe militar japonês, Shunroku Hata, enviou representantes seus a Fon-hua, com oferendas para o túmulo dos antepassados de Tchiang Kai-chek. Secretamente, os homens de confiança de Tchiang Kai-chek enviam emissários que, em Xangai e outros pontos, quase sem interrupção mantêm contatos com os agressores japoneses e procedem com estes a negociações clandestinas. Esses contatos e negociações multiplicam-se sobretudo quando se intensificam os ataques do agressor japonês. Acaso não são tais fatos reais? Os que “emitem uma profusão de críticas” a respeito dos assuntos militares e políticos de Tchiang Kai-chek e seu grupo será que ignoram realmente “o fundo da questão” ou será que, pelo contrário, o conhecem perfeitamente? No fim de contas, em que reside “o fundo da questão”? Nas “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação” ou no próprio Tchiang Kai-chek e na gente do seu grupo?

Numa outra passagem do seu discurso, Tchiang Kai-chek nega a eventualidade de guerra civil na China. No entanto acrescenta:

“Seguramente, ninguém mais ousará trair a República e sabotar a Resistência, como Uam Tsim-vei e seus comparsas”.

Aí, o que Tchiang Kai-chek busca é um pretexto para desencadear a guerra civil, e encontrou-o. Todo o chinês que tenha memória há de recordar-se que, em 1941, no exato momento em que os traidores da Pátria ordenaram a dissolução do Novo IV Exército e o povo chinês se ergueu para conjurar o perigo de guerra civil, Tchiang Kai-chek fez um discurso em que declarou nunca mais dever produzir-se uma guerra de “extermínio dos comunistas” e que, a ter de produzir-se uma guerra, esta não poderia ser mais que uma expedição punitiva, contra rebeldes. Os que leram O Destino da China hão de lembrar-se também que nesse livro Tchiang Kai-chek pretende que em 1927, na época do governo de Vuhan, o Partido Comunista da China estava de “conivência” com Uam Tsim-vei. E nas resoluções da XI Sessão Plenária do Comitê Executivo Central do Kuomintang, em 1943, colou-se ao Partido Comunista da China um rótulo de oito caráteres significando “sabotar a Resistência e pôr em perigo o Estado”. Hoje, ao ler-se o último discurso de Tchiang Kai-chek, sente-se que o perigo de guerra civil não somente existe como está até aumentando. Daqui em diante, o povo chinês tem de guardar bem gravado no espírito que, um belo dia, Tchiang Kai-chek ordenará uma expedição punitiva contra pretensos rebeldes, e a acusação será “trair a República”, “sabotar a Resistência” e fazer “como Uam Tsim-vei e seus comparsas”. Tchiang Kai-chek é mestre nesse jogo; se ele nada vale para denunciar rebeldes como Pam Pim-chiun, Suen Liam-tchem, Tchen Siao-tchiam(1), e realizar contra eles expedições punitivas, é em contrapartida mestre em declarar “rebeldes” o Novo IV Exército na China Central e os destacamentos de desafio à morte(2) que operam no Xansi, e, muito particularmente, em lançar expedições punitivas contra eles. Em caso nenhum deverá o povo chinês esquecer que Tchiang Kai-chek, embora afirmando não pretender desencadear a guerra civil, já despachou tropas da ordem dos setecentos e setenta e cinco mil homens que se encontram agora exclusivamente ocupadas no cerco e ataque do VIII Exército, do Novo IV Exército e dos destacamentos populares de guerrilhas que se batem na China Meridional.

Ao discurso de Tchiang Kai-chek falta qualquer conteúdo positivo; em nada responde ao desejo ardente do povo chinês de reforçar a frente anti-japonesa. Negativamente, esse discurso está cheio de perigos. A atitude de Tchiang Kai-chek torna-se cada dia mais insólita, como o demonstra a sua oposição obstinada em proceder às mudanças políticas reclamadas pelo povo, a hostilidade violenta ao Partido Comunista da China e a enunciação do pretexto para a guerra civil anticomunista que prepara. Mas nenhum dos seus esquemas há de resultar. Ao recusar-se a mudar de comportamento, ele não faz mais que levantar uma pedra para deixá-la cair depois sobre os próprios pés. Nós esperamos sinceramente que mude de comportamento, já que isso só poderá levá-lo a uma posição insustentável. Uma vez que declarou que “seria concedida uma maior latitude à expressão de opiniões”(3), não devia mais ameaçar os que “emitem uma profusão de críticas” nem fazê-los calar-se com essa acusação caluniosa de acreditarem nas “invenções mal-intencionadas do agressor e dos traidores à nação”. Uma vez que afirmou que “o período da tutela política será abreviado”, não devia mais rejeitar o pedido de reorganização do governo e do alto comando. Uma vez que proclamou que a “questão do Partido Comunista será resolvida por meios políticos”, não devia mais empenhar-se em buscar pretextos para preparar a guerra civil.


Notas de rodapé:

(1) Patn Pim-chiun, Suen Liam-tchem e Tchcn Siao-tchiam eram generais kuomintanistas que, sucessivamente, passaram abertamente para o campo do agressor japonês. (retornar ao texto)

(2) Forças armadas anti-japonesas da população de Xansi, constituídas logo após o início da Guerra de Resistência, sob a direção e influência do Partido Comunista. Ver “Unir Todas as Forças Anti-Japonesas e Combater os Anticomunistas Obstinados”, nota 3, Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Tomo II. [Nota 3: Por “tropas antigas” entendem-se as unidades de Ien Si-xan, caudilho militar kuomintanista no Xansi. Por “tropas novas” (também chamadas "destacamentos da morte anti-japoneses”) entendem-se as forças armadas anti-japonesas da população do Xansi, organizadas no início da Guerra de Resistência sob influência e direção do Partido Comunista. Em Dezembro de 1939, no intuito de aniquilarem as tropas novas, Tchiang Kai-chek e Ien Si-xan concentraram seis corpos de exército no oeste de Xansi, desencadeando uma ofensiva que terminou em rotundo fracasso. Nesse mesmo momento, as forças de Ien Si-xan atacaram as administrações democráticas anti-japonesas distritais e as organizações de massas da região Iantchem e Tzintchem (sudeste do Xansi), massacrando grande número de comunistas e mais elementos progressistas.] (retornar ao texto)

(3) A partir de 1944, o povo das regiões controladas pelo Kuomintang passou a exigir por toda a parte a supressão do regime ditatorial do Kuomintang, a instauração da democracia e a garantia da liberdade de palavra. Para apaziguar as exigências prementes do povo, em Abril de 1944 o Kuomintang anunciou, pro forma, que “seria concedida uma maior latitude à expressão de opiniões”, e, em Maio, no decurso da XII Sessão Plenária, o Comitê Executivo Central kuomintanista proclamou “a garantia da liberdade de palavra”. O Kuomintang não manteve uma só das promessas que se vira forçado a fazer e, ante a expansão do movimento popular pela democracia, multiplicou as medidas para estrangular a opinião popular. (retornar ao texto)

Notas do tradutor:

(4) O Duplo Dez, dito doutro modo, o 10 de Outubro, é o dia da Insurreição de Vutcham, inauguradora da Revolução de 1911 que abateu o regime autocrático dos Tsins. (retornar ao texto)

Inclusão 17/04/2016