Alguns Aspectos da Renda da Terra no Brasil

Carlos Marighella

Junho 1958


Primeira Edição:Revista Estudos Sociais, maio-junho 1958
Fonte: A Questão Agrária Textos dos Anos Sessenta.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, abril 2006.
Direitos de Reprodução: ....


O fundamento geral da questão agrária no Brasil reside em que o monopólio da terra é a causa do nosso atraso. Abalado ou eliminado esse monopólio, as forças produtivas darão um salto para a frente.

A compreensão teórica do problema exige, porém, o estudo de vários de seus aspectos, entre os quais têm um grande realce os que se referem à renda da terra no Brasil.

Teoricamente, a renda pré-capitalista pressupõe a existência de duas classes: a dos proprietários de terra e a dos pequenos produtores individuais, possuidores de meios de produção e dispondo de alguma independência econômica. A renda capitalista pressupõe a existência de três classes: a dos proprietários de terra, a dos locatários capitalistas que exploram o trabalho assalariado e a dos assalariados que trabalham para estes capitalistas e não dispõem de meios de produção.

As relações agrárias em nosso país envolvem umas e outras classes pressupostas pelos dois tipos de renda — a pré-capitalista e a capitalista. O estudo da renda territorial contribuirá para assinalar o sentido do desenvolvimento de nossa economia agrária e definir que classes sociais e aspectos de renda predominam no campo. Possibilitará também distinguir o sentido histórico em que marcham estas classes, o grau de diferenciação da massa camponesa e os elementos mais gerais para a solução da questão agrária.

É indispensável para isto o exame das relações econômico-sociais sob o ponto de vista da análise da renda da terra, através de cada uma das nossas principais culturas.

I. A Renda da Terra na Cultura do Café

O tipo econômico de exploração agrícola característico da cultura cafeeira é a fazenda do café. Como entidade econômica, a fazenda de café nos apresenta dois tipos básicos da população rural do país: de um lado o fazendeiro de café, de outro, o colono. São dois tipos antagônicos, que se debatem por entre contradições inconciliáveis, reflexo do predomínio absoluto da propriedade privada dos meios de produção na economia agrária.

Uma das fontes de riqueza do fazendeiro de café reside na apropriação do trabalho suplementar do colono.

Segundo Marx, a renda-trabalho, a renda da terra em sua forma mais simples, é produzida:

"quando o produtor direto trabalha parte da semana num terreno que lhe pertence de fato, com instrumentos que lhe pertencem de fato ou de direito (arado, gado, etc.) e emprega os outros dias da semana em trabalhar no terreno do latifundiário" (O Capital, livro III — cap. 47, II).

No nosso caso, a renda-trabalho produzida pelo colono apresenta-se com as modificações resultantes da época histórica que vivemos, mas isso em nada lhe modifica o caráter. O colono trabalha exclusivamente na terra do senhor. O colono não tem nenhuma terra. Ele apenas consegue trabalhar para si na terra do fazendeiro, assim mesmo quando lhe é concedido o direito de plantar no vão. Algumas vezes lhe é permitido plantar fora, mas ainda aqui nas terras do senhor. Nesse sentido, as vantagens históricas da derrocada do feudalismo não lhe serviam ao menos para gozar do mesmo privilégio do servo que entregava seu super-trabalho ao senhor feudal, consolando-se em trabalhar no pequeno pedaço de chão de cuja propriedade se orgulhava.

A separação entre o trabalho suplementar do colono e o trabalho necessário hoje só é nítida e só se distingue bem quando em determinados dias do ano tem que prestar serviços gratuitos ao fazendeiro de café (corvéia), consertando estradas e cercas, limpando pastos, extinguindo incêndios. No resto, já não se distingue tanto, da mesma maneira como vai se distinguindo menos nos outros tipos de renda pré-capitalista.

Mas não é somente da renda-trabalho que se apropria o fazendeiro quando explora o colono de café. O fazendeiro exige que o colono lhe venda em primeiro lugar os cereais que plantou. Plantando para si mesmo, o colono, colocado aparentemente na posição de produtor independente, além do produto necessário, se apropria, ele mesmo, do produto suplementar, isto é, do excedente do trabalho necessário à sua manutenção. Pois bem, o produto suplementar do colono (resultante do plantio feito por sua conta) é obrigatoriamente vendido ao fazendeiro que lhe retribui com um preço abaixo do valor do produto suplementar. Nesse caso, o colono entra com uma parte do produto que plantou, o fazendeiro se apropria da renda-produto. É um novo pagamento em espécie que lhe faz o colono, na prática.

A concessão do fazendeiro de café que faculta ao colono plantar na terra da fazenda, tanto quanto a proibição de caçar, pescar, tirar lenha em suas matas, é uma das mais importantes características dos restos feudais nos dias de hoje. O colono que recebeu qualquer parcela de terreno do fazendeiro para plantar está na completa dependência do senhor, tal como acontecia no tempo do feudalismo. Amarrado à miragem desse pedaço de terra, o colono presta serviços gratuitos ao fazendeiro quando limpa os cereais que plantou (pois aqui também limpa indiretamente o cafezal sem nenhuma retribuição), aduba o terreno gratuitamente com o feijão das águas e sujeita-se à interminável exploração do fazendeiro, permanecendo na fazenda, a troco desse precário direito de plantar, que é mais uma condição da miserável servidão que o aniquila.

Por último, o colono contribui com renda-dinheiro para o fazendeiro sempre que lhe paga os carretos de cereais ou de lenha, as mudanças, etc. Outra forma de renda-dinheiro é o pagamento de multas. Não tendo o colono outra fonte de dinheiro e só podendo obter dinheiro do trabalho que realiza na fazenda ou dos produtos que planta, sempre que paga dinheiro ao fazendeiro, é como se estivesse trabalhando de graça para ele ou lhe entregando o produto em espécie do seu trabalho. Como vemos, o fazendeiro mantém acorrentado o colono, explorando-o em todos os tipos de renda pré-capitalista. Para que tão odiosas relações não sejam quebradas, o fazendeiro fá-las estipular num leonino contrato escrito, que é o que pode haver de mais monstruoso como atestado das sobrevivências feudais e semifeudais.

Mas a fazenda de café não se circunscreve às limitações insuportáveis do feudalismo. Ela é, também, um empreendimento capitalista no campo. Isto se traduz no fato do colono ser também um assalariado. Não é somente com a renda pré-capitalista arrancada ao colono que o fazendeiro se satisfaz. O colono deverá receber um determinado salário em cruzeiros por determinado número de pés de café que tratar anualmente. E não é só. Receberá salário também por determinados serviços, isto é, pela colheita do café em coco, pelo café derriçado no chão, etc. Seu salário será a mesada, que recebe de 30 em 30 dias geralmente, quando não atrasam os pagamentos.

O regime do salariato nas fazendas de café é extensivo aos volantes, isto é, aos camaradas e peões, e aos retireiros, carroceiros,etc.

A fazenda de café constitui, assim, um empreendimento de tipo todo particular no campo. De um lado encontra apoio econômico na renda pré-capitalista; de outro lado explora o braço assalariado. Mas a sua principal característica está em que não separa uma coisa da outra. Quando se trata do colono, é tão estreita a relação entre a escravidão do salariato e a da renda-trabalho que basta um único contrato para torná-las inseparáveis. É evidente que são formas de exploração separadas historicamente, mas, num país oprimido e dominado pelo imperialismo, onde o monopólio da terra é lei geral, tornou-se possível sua junção no tempo.

É necessário também destacar que a fazenda de café não é um empreendimento industrial do campo, como é por exemplo a usina de açúcar. O capital empregado na fazenda de café tem a finalidade de desenvolver a cultura do café. Todo o empreendimento industrial para beneficiar o café não tem o valor e a importância que se apresentam quando a matéria-prima é transformada, tal como acontece com a cana e o algodão. A importância das máquinas de beneficiar café é muito menor, desde que o produto é vendido em grão para o mercado externo.

No caso já referido da cana e do algodão é possível tirar lucros com a indústria correlata organizada, num caso para transformar a cana em açúcar e álcool, no outro para descaroçar o algodão e obter os subprodutos.

Aliás, quando se trata da usina de açúcar, a indústria é o único meio de apurar os imensos lucros da lavoura.

Tratando-se da fazenda de café, entretanto, ela por si só basta para reunir todos os benefícios da lavoura nas mãos de um só potentado — o fazendeiro de café. O fazendeiro de café (nisso — e somente nisso — ele é diferente do usineiro) consegue com o emprego do capital, sem a utilização de máquinas para transformar o produto, amealhar uma fortuna fabulosa arrancada ao suor do colono.

Ainda quando empregue máquinas para melhorar o cultivo (e não para transformar o produto), o fazendeiro de café é também um capitalista que emprega seu capital na terra, aluga o braço do trabalhador e ainda lhe suga, como latifundiário, a renda-trabalho, para não falar em toda a renda pré-capitalista. O fazendeiro de café é dono de sua terra, que ele mesmo explora, sem jamais entregá-la a um locatário capitalista, salvo em certas circunstâncias. A mais-valia do assalariado é absorvida por ele diretamente. Tratando-se da renda pré-capitalista, na fazenda de café deveríamos estar em presença de duas classes: a do fazendeiro de café (proprietário da terra) e a do pequeno produtor com seus meios de produção e quase independente economicamente. Entretanto, o colono, via de regra, não dispõe dos meios de produção nem é livre economicamente. É em parte ligado à terra (principal meio de produção), planta em ruas puladas o seu cereal, ao mesmo tempo que aluga a sua força de trabalho, cede a sua mais-valia.

Se houvesse um locatário capitalista entre o fazendeiro de café (dono da terra) e o colono ou o camarada, o peão ou qualquer assalariado da fazenda, estaríamos diante do caso da renda diferencial (renda capitalista) e o fazendeiro receberia renda absoluta.

Mas esse locatário capitalista, regra geral, não existe nas fazendas de café. O fazendeiro é ao mesmo tempo latifundiário e capitalista. Como latifundiário ele se apropria da renda-trabalho e de toda a renda pré-capitalista. Como latifundiário, sem nenhum intermediário capitalista, ele se apropria de toda a renda da terra, inclusive da renda que deveria ser absorvida pelo capitalista intermediário se houvesse. Como é ele próprio o capitalista, o que investe o capital na terra, paga salário, etc., a renda resultante do trabalho do assalariado, bem como o lucro médio, isto é, a quota de lucro médio, tudo ficará para ele. Isto quer dizer que um fazendeiro de café como latifundiário e capitalista se apropria como único senhor de toda a renda da terra, da renda capitalista desde a absoluta à diferencial, da renda pré-capitalista e de todo o lucro do capital.

Em sua Economia Política, Leontiev, citando Lênin, diz que:

"A teoria da renda pressupõe que toda a população agrícola tenha sido dividida completamente em latifundiários, capitalistas e trabalhadores assalariados. Este é o ideal do capitalismo, mas não significa a realidade".

E Leontiev acrescenta em seguida, com palavras suas:

"Na realidade as coisas são muito mais complicadas. Não obstante, a teoria da renda mantém toda a sua força, mesmo nas mais complicadas circunstâncias. Acontece freqüentemente na sociedade capitalista que o latifundiário não arrenda a sua terra a outrem mas aluga ele mesmo sua terra a trabalhadores assalariados para que nela trabalhem. Ele se torna, então, a um só tempo, latifundiário e capitalista. Como proprietário, ele recebe a renda, e, como capitalista, o lucro do capital invertido. Neste caso, renda e lucro vão para o mesmo bolso". — (Leontiev, Political Economy — International Publishers — Nova York — Cap. VII — pág. 150)

Não cabe aqui a objeção de que isto se passa em país capitalista, pois, embora o Brasil seja um país subdesenvolvido, semicolonial e semifeudal, já vimos que toda sua história é parte da evolução da economia capitalista mundial e sob esse aspecto não foge às suas leis.

Além do mais esse próprio fenômeno, característico das fazendas de café, é mais uma demonstração do caráter semicolonial e semifeudal do país. Só num país de fortes revivescências feudais seria possível, numa só peça, a junção de dois elementos tão opostos como o latifundiário e o capitalista, para uma exploração tão brutal como a das fazendas de café. E só em tais condições seria possível, ao lado de tal fenômeno, processar-se outro, em sentido inverso, mas igualmente curioso: o do colono explorado, que reúne, a um só tempo, no mesmo elemento, o homem "liberto" dos meios de produção, o assalariado, e o homem jungido às formas de exploração feudais e semifeudais, produzindo renda-trabalho, percorrendo toda a gama da renda pré-capitalista, produzindo renda diferencial e absoluta e enchendo o fazendeiro de lucros. Escravo ao mesmo tempo do regime do salariato e do feudalismo, não é proletário e ao mesmo tempo o é; não é um servo e ao mesmo tempo o é. A condição para que se afirme como proletário, ainda quando sujeito a um contrato com o fazendeiro, é que receba o seu salário em dinheiro. Isto, porém, nem sempre acontece. Dado que a produção de café é mais destinada ao comércio exterior e a servir aos interesses do imperialismo e dos grandes fazendeiros, pouco contribui para o desenvolvimento do meio circulante no campo. O fazendeiro prefere fazer correr o seu dinheiro nos centros urbanos. Para o colono reserva o vale, um pedaço de papel, o bororó, o cascudo, complemento da instituição do armazém ou do barracão, remanescente do feudalismo, que aniquila de vez o caráter "livre" da força de trabalho do colono.

O colono situa-se assim na condição de um semiproletário.

Uma tal situação, influindo em prejuízo do nosso desenvolvimento geral e contribuindo para entravar as forças produtivas, vem mostrar com clareza a força da renda pré-capitalista em todas as nossas relações agrárias.

Mas, seria falso não acentuar que, no estágio de desenvolvimento em que nos encontramos, a renda capitalista, seja a absoluta, seja a diferencial, constitui já parte sensível na exploração no campo.

É evidente, como já vimos para o caso das fazendas de café, que a renda capitalista não corresponde à coexistência de latifundiários, locatários capitalistas e assalariados agrícolas como classes independentes. Nesse caso, aqui, a renda capitalista constitui um reforço da classe dos latifundiários e da fabulosa fortuna que acumularam.

O fazendeiro de café, por exemplo, acumula todas as formas de renda pré-capitalista e mais a renda capitalista absorvida para si, amealhando uma riqueza individual considerável (gasta nos grandes centros urbanos), geralmente não concorrendo para qualquer passo adiante na economia agrária ou para a elevação total da fazenda à categoria de um empreendimento capitalista do campo, restringindo a circulação de mercadorias e o incremento do valor de uso e de troca, impondo às forças produtivas entraves feudais insuportáveis.

A renda capitalista, todavia, significa penetração do capitalismo no campo.

Isso quer dizer que, apesar de tudo o que resta de feudal na fazenda de café e de todo o fator de atraso que isso ainda representa, ela constitui também uma penetração capitalista no campo.

Para onde evoluirá? Esta é uma questão importante se quisermos analisar o sentido do desenvolvimento de nossa economia agrária e buscar as leis por onde nos deveremos reger para apressar e aprofundar a solução da questão agrária.

Sob a pressão da luta de classes no campo, os fazendeiros não ocultam sua inquietação diante do aguçamento das contradições entre as atuais relações de produção e as forças produtivas.

Os colonos lutam cada vez mais, intensificando a resistência à terrível exploração dos fazendeiros.

As lutas dos colonos têm se travado em torno das reivindicações específicas do proletariado, dada sua situação de semiproletários. Isto quer dizer que estando sujeitos a formas de exploração semifeudais e capitalistas, os colonos vêm exigindo as reivindicações que decorrem de sua exploração como assalariados. As greves que têm desencadeado reivindicam aumento nas colheitas, aumento nos contratos, na carpa, na derriça, pagamento de férias, de salários atrasados e assim por diante. Nesta luta são acompanhados por todos os outros assalariados das fazendas de café.

Quando a resistência dos colonos se manifesta através das greves, torna-se visível pela recusa a aceitar os onerosos contratos dos fazendeiros. Os colonos abandonam as fazendas e procuram novas regiões, novas zonas onde empregar a sua força de trabalho. Nisso são tentados pela concorrência do salário industrial nas cidades, mais elevado que os salários no campo. As cidades constituem em si um grande foco de atração. E onde surgem terras mais férteis há sempre a possibilidade da afluência dos colonos, como dos camponeses em geral, esperançosos num rendimento agrícola maior.

A crescente resistência dos colonos tem provocado diferentes reações nos fazendeiros. O contrato já não tem a mesma solidez que garantiu a fortuna dos velhos fazendeiros das primeiras décadas da República, na fase que precedeu o craque de 1929. Torna-se difícil manter essa solidez, por força dos golpes desferidos com as lutas dos colonos e em conseqüência de novas circunstâncias materiais. Até mesmo manter o sistema de fiscalização do trabalho do colono, tão característico da fiscalização do senhor feudal sobre o servo, encontra obstáculos maiores. E já não surte efeito a ação dos capangas armados, resto da ordem feudal, ou a brutalidade da polícia, fruto da ordem capitalista.

O colono como fenômeno da importação de braços do estrangeiro para a lavoura cafeeira, que da parceria, onde entregava a renda-produto ao fazendeiro, passou para a condição de semiproletário, empreende sua trajetória para o proletariado rural. Fugindo da renda-trabalho, procura o salariato, ou melhor, nele é atirado, perdendo toda e qualquer ilusão de tornar-se arrendatário, sitiante, produtor direto independente. Até aqui sua sorte não diferia daquela dos volantes, camaradas ou peões, senão numa permanência um pouco maior nas terras da fazenda, com os olhos fitos no plantio do vão. Mas ele será cada vez mais erradicado da terra. O monopólio da terra comprimiu-o, esmagou-o. Daqui por diante, o colono lutará cada vez mais pelas reivindicações proletárias.

Os fazendeiros que não se conformam com a perda da renda pré-capitalista lutam por estabelecer um tipo único de contrato para o colono, querem estabilizá-lo na condição de escravo ou de servo, reclamam um código rural drástico, uma espécie de fôrma bem apertada de onde o colono não possa sair. Estes são os piores cegos. São os que não querem ver que o colono não poderá ficar sujeito a "leis eternas". Outros acenam com a volta ao regime da meação. Há grandes fazendeiros que diante da recusa do colono às asfixiantes condições dos contratos, entregam seu café à meia, contentando-se com a renda-produto, obrigados a renunciar em parte às vantajosas limitações que lhes dá o regime semifeudal, semiproletário do colonato.

Mas há também os que tendem para novas formas de exploração através do regime do salariato. Estes pensam resolver a situação pelo caminho do capitalismo. Sentem o fim do regime semifeudal do colonato. Inclinam-se por isso a substituir a enxada primitiva pela enxada mecânica ou pelas carpideiras. Propõem-se a só contratar assalariados. Daí decorre algo de novo. As condições materiais estão gerando um novo tipo rural. Surge a figura do empreiteiro, trabalhador assalariado para a carpa, a derriça, o trato do café, a abertura de covas, a formação do café. Em alguns lugares já este novo tipo rural é chamado de empreiteiro anualista, recebe em dinheiro pelas tarefas que executa, tem assegurado o seu dia de serviço por uma determinada quantia em dinheiro. Muitos colonos passam a esta categoria.

Estamos, assim, em face do empreiteiro individual, do assalariado agrícola destinado a substituir o colono, a encerrar o regime misto do salariato e da renda pré-capitalista, para, em seu lugar, colocar o salariato. Nas zonas novas, a figura do empreiteiro individual já tem um alcance mais amplo, prenunciando a extensão com que passará a ser utilizado daqui por diante, sem nunca, porém, anular o terrível grau de exploração a que serão sempre submetidos os trabalhadores do campo, enquanto perdurar o monopólio da terra. Por meio de contratos verbais, já se empregam empreiteiros individuais a troco de míseros salários para derrubar, roçar, covear, ganhando em dinheiro por alqueire. (1) A liberdade de que gozam para alugar sua força de trabalho leva-os a se endividarem com os comerciantes para comprar as ferramentas e garantir as primeiras despesas na terra, e é assim que começam, acorrentados ao capital usurário, depois de terem emigrado de outras zonas, sobretudo de Minas.

Tal regime de empreita individual de serviços cria, entretanto, novos perigos para o fazendeiro, perigos que tanto tem procurado evitar. O primeiro deles é a ameaça de estender ao campo a legislação trabalhista, reivindicação que já começa a tornar corpo. Para fugir a este espantalho e assegurar a instabilidade do trabalhador agrícola, o que lhes faculta escapar à legislação, os fazendeiros recorrem a outro tipo de empreiteiro, que empreita o trato de tantos mil pés de café ou a carpa do cafezal e, em caso de zonas novas, empreita derrubar e roçar a mata, covear, etc. Para isso contrata o peão e lhe paga por dia (livre) ou desconta a comida.

O empreiteiro de turmas que empreita a derrubada da mata, roçar e covear com turmas de trabalhadores (peões) nas zonas novas nada tem a ver com o empreiteiro individual. Aquele tipo de empreiteiro conhecido no norte do Paraná como gato, pelos passes de mágica que faz para roubar o trabalhador, é um intermediário capitalista do campo, aliado ao latifundiário e ao capital comercial e usurário. Explora turmas de trabalhadores de 10 até 40 homens, a quem paga salários miseráveis e a quem rouba com o fornecimento de víveres. A figura do empreiteiro das derrubadas das zonas novas é inseparável da figura do peão, que é o verdadeiro assalariado individual, nesse caso. O empreiteiro desse tipo suga a mais-valia do peão e é daí que provém o seu lucro, com o que poderá chegar a ser sitiante e até fazendeiro rico. Sem dúvida, é um aventureiro que não deixa de ter contradições com o latifundiário que o contrata, mas na maior parte, poderíamos dizer na totalidade das vezes, é um agente do latifundiário, aliciando o peão assalariado para a empreitada estafante de desbravar o terreno, derrubar a mata, preparar as condições para a exploração da futura fazenda. Isto se fará seja pelo trabalho assalariado, através do semeador, trabalhador por conta do fazendeiro, que ganha salário para semear em cada cova, ou através do formador de café individual, (misto de semeador e formador às vezes) também ganhando salário, e cuja missão é entregar ao fazendeiro o café formado.

O formador de café (individual) não passa de uma espécie de colono adaptado às condições das zonas novas, onde, depois de derrubado o mato, roçado e coveado, é preciso plantar o café.

O formador de café (individual) não é um tipo rural destinado a substituir o colono com o salariato e não se confunde com qualquer dos 2 tipos de empreiteiros já analisados (o individual ou o de turmas). O formador de café (individual) tem contrato por prazo fixo (4 anos). Ganha em dinheiro de acordo com o contrato, por covas de café, mas sujeito como colono a formas semifeudais de exploração, sugado em sua renda trabalho, obrigado a consertar estradas e a formar pasto sem nada receber para isto, e com um aparente direito a ter criação e mangueirão, direito que jamais lhe é concedido pelo fazendeiro. Por último, quando o café está formando bem, o fazendeiro tudo faz para jogá-lo fora da terra e o consegue por meio de pirraças ou pela violência, sem aguardar o término do prazo de 4 anos do contrato.

Daí em diante o fazendeiro continuará a explorar o colono ou o empreiteiro individual que venha a substituir o colono no trato e na colheita do café.

O esboço deste quadro é de inestimável valor, porém, para se compreender que a desintegração do regime do colonato e sua passagem ao salariato pela via do empreiteiro não significa a eliminação dos restos feudais e do capital usurário, a liberdade para o trabalhador do campo e o melhoramento de suas condições de vida. Os fazendeiros realizam esforços desmedidos para fazê-lo crer, mas o aumento do êxodo rural, o crescimento da fome e da miséria no campo são um testemunho em contrário.

É evidente que este caminho não leva à emancipação do colono e apenas modifica a forma de exploração, sem levar a uma profunda modificação nas relações de produção, só possível com a quebra do monopólio da terra.

A evolução do colonato para empreiteiro individual ou para o sistema do empreiteiro com turmas de peões a seu serviço exige outras considerações. O empreiteiro individual é mais "livre" que o colono, é um assalariado desligado dos meios de produção. Toda a forma de serviço de empreita individual ou da empreita por turmas implica o divórcio do assalariado com os meios de produção, a fim de tornar "livre" sua força de trabalho. Em face do contrato, das obrigações de caráter semifeudal e dos encargos da família que com ele compartilha dos deveres para com a terra e o senhor da fazenda, tem o colono menos liberdade de escolher o patrão do que o volante, o camarada, o peão, o empreiteiro individual mais habituados a pôr o saco nas costas e a alugar sua força de trabalho onde melhor lhes aprouver. Isto constitui sensível diferença entre o primeiro e os segundos e dá a estes últimos uma espantosa mobilidade e uma instabilidade jamais vista.

Tudo isso, porém, se pode facilitar a substituição do colono pelo empreiteiro, não determina e não pode determinar o desaparecimento do velho tipo rural do colono, destinado a coexistir com o empreiteiro enquanto existirem zonas novas onde a fertilidade da terra compensar a ausência dos adubos e dos meios mecânicos e fizer esquecer o rigor dos contratos. Além do mais, o tipo rural do empreiteiro mal começa a desenvolver-se. A maior parte das fazendas de café (88%) continua a ser tocada por colonos e é isso mais uma prova da força dos restos feudais.

Do ponto de vista da análise teórica da renda territorial, o aparecimento do empreiteiro não altera a condição de latifundiário e capitalista do fazendeiro de café. O novo tipo rural do empreiteiro é apenas a mais recente aquisição do latifúndio em aliança com o capitalismo, num país cuja agricultura é ainda um apêndice do imperialismo americano. Explorando o empreiteiro, o fazendeiro continua a absorver todo o lucro e toda a renda da terra, da renda pré-capitalista à renda capitalista. Quando contrata o empreiteiro individual, o fazendeiro, sem intermediário capitalista, se apropria de toda a renda da terra. Quando contrata o empreiteiro por turmas, surge um intermediário capitalista, que logo é afastado, assim que termine o serviço empreitado, dispersando-se os peões em busca de novos mercados para a sua força de trabalho. A exploração por parte do fazendeiro continua então sob as mais variadas formas, não importando se é feita com a utilização de colonos ou outros trabalhadores. Em nada disso se modifica a propriedade da terra, o fazendeiro continua sendo o único apropriador de toda a renda.

Isto se dá também em face de outro tipo de empreiteiro, comum nas zonas novas. Trata-se do empreiteiro formador de café, que não se confunde com o formador de café individual, assalariado, que tem contrato com o fazendeiro no máximo por 4 anos.

O empreiteiro formador de café difere do formador de café individual, por não ser um assalariado como este, cuja condição, como já vimos, mais se aproxima à do colono. Pelo fato de não ser um assalariado, o empreiteiro formador de café também nada tem de parecido com o empreiteiro individual, de quem difere radicalmente. Entretanto, no que diz respeito ao empreiteiro por turmas, o empreiteiro formador de café tem semelhanças mas apresenta também diferenças radicais. O empreiteiro formador de café tem a seu serviço turmas de peões como o empreiteiro por turmas. Um e outro alugam, portanto, força de trabalho. Um e outro têm que empregar capital. Trata-se de capitalistas do campo. Um e outro têm que manter determinadas relações com o fazendeiro. Aqui começam as diferenças. O empreiteiro por turmas alicia trabalhadores, recebe do fazendeiro uma determinada quantia em dinheiro pela empreitada que assume. Ele é um agente do fazendeiro, explora os peões, arranca-lhes a mais-valia, tira daí o seu lucro. Empregando o empreiteiro por turmas, o fazendeiro utiliza um intermediário, uma espécie de funcionário seu, que também tem capital, que também explora através do capital comercial e da usura, através do buteco e do fornecimento. Isto é uma forma de empregar capital na terra (derrubar o mato, roçar, covear, etc.). O emprego deste capital, com o empreiteiro como intermediário, reverterá mais tarde em forma de renda diferencial e absoluta, de mistura com a renda pré-capitalista, assim que a fazenda começar a produzir para o seu único e exclusivo proprietário — o fazendeiro.

Com o empreiteiro formador de café é diferente. Ele não é um agente do fazendeiro. Ele é um capitalista que recebe a terra do fazendeiro para derrubar, roçar, covear, semear, formar o café, tratar o café até às primeiras colheitas. Para isso o empreiteiro formador de café realiza um contrato por 6 anos com o fazendeiro. É evidente que se não tivesse capital não poderia fazer este contrato. Com o capital que possui o empreiteiro formador de café paga os salários dos peões e trabalha a terra. Portanto, quem inverte capital na terra é o empreiteiro formador de café, que se comporta como um locatário capitalista, embora sem pagar qualquer aluguel ao fazendeiro durante os 6 anos do contrato. O fazendeiro, com isto, dispensa o empreiteiro formador de café do aluguel da terra, para que este capital seja diretamente empregado na terra. O fazendeiro não sofre nenhum prejuízo com este sistema, uma vez que, depois de 6 anos, a terra volta às suas mãos com o café plantado, as colheitas anuais e todas as benfeitorias. Quer dizer: depois de 6 anos sem receber aluguéis, o fazendeiro receberá a terra com os aluguéis e o capital empregado, apropriando-se ainda mais de toda a renda. O empreiteiro formador de café emprega seu capital na terra, contando nos 6 anos de contrato tirar o máximo, isto é, o fruto de 3 colheitas de café (a primeira aos 4 anos, a segunda aos 5 e a terceira aos 6), e a renda e o lucro do trabalho dos peões a quem paga o salário. Todo o interesse do empreiteiro formador de café está na prorrogação dos contratos e luta por isso para que os contratos de 4 anos se estendam a 6. O fazendeiro procura reduzir o tempo de permanência do empreiteiro formador de café na terra, para começar mais cedo a receber a renda e o capital invertido na terra. Procura, assim, reduzir o número de colheitas que o empreiteiro formador de café reivindica como recompensa do capital empregado, e, nos atuais contratos, encurtados para 4 anos, suprime automaticamente duas colheitas. Na base das relações entre o dono da terra e o empreiteiro formador de café estão profundas contradições, cujas raízes mergulham no monopólio da terra. O empreiteiro formador de café pode apenas ter como sua a terra num curto espaço de tempo de 6 anos. Depois disso terá que abandoná-la e recomeçará pelo mesmo caminho em novas terras à espera das derrubadas. Raramente o empreiteiro formador de café alcançará a posse com o fruto das primeiras colheitas do café por ele formado. Pior, entretanto, é a situação do peão, o verdadeiro criador de toda a riqueza das zonas novas do café, e cuja força de trabalho é a fonte de toda a renda e lucro do latifundiário. O peão, explorado pelo empreiteiro formador de café, vegetará todo o tempo na terra e nem ao menos terá a sensação da posse provisória que o fazendeiro concede ao intermediário capitalista.

Esboçado o quadro da apropriação da renda territorial, capitalista e pré-capitalista, pelo fazendeiro de café, misto de latifundiário e capitalista, podemos passar ao problema da renda obtida do trabalho do proletariado agrícola e do semiproletariado no campo.

II. A Renda da Terra na Cultura da Cana

A usina de açúcar e a fazenda de café, constituindo dois tipos clássicos da penetração do capitalismo no campo (nas condições particulares do desenvolvimento histórico do Brasil) não se confundem. É manifesta a superioridade da usina de açúcar sobre a fazenda de café como empreendimento capitalista.

Esta superioridade advém de que o usineiro não se limita como o fazendeiro de café ao emprego do capital na terra ou nas máquinas e meios que melhoram a terra. O usineiro de açúcar antes de mais nada emprega o seu capital nas máquinas que transformam a cana em açúcar. O usineiro é um industrial do campo, o que não acontece com o fazendeiro de café. Sem dúvida a condição de industrial, como veremos, não lhe tira a de latifundiário, mas sua razão de ser está no capital que emprega nas máquinas, na usina. Nesse sentido, a usina encarna com nitidez a união entre a agricultura e a indústria.

Como empreendimento capitalista a usina exige o trabalhador assalariado, independente dos meios de produção, apto a alugar sua força de trabalho. Trata-se do mecânico, do foguista, do eletricista, do assalariado da moenda e da destilaria, de toda uma legião de operários recrutados dentre os melhores trabalhadores da lavoura ou importados das cidades mais próximas.

Sugando a mais-valia desses operários, o usineiro consegue reunir seus imensos lucros. Até aqui não se trata da renda da terra, e só do lucro industrial. A renda territorial começa a vir para o usineiro quando à usina este acrescenta as enormes plantações de cana de sua propriedade. A expansão da usina pela terra, visando o plantio da cana para o seu abastecimento, leva-a sobretudo no sul do país à criação de outras lavouras (café, arroz, algodão), sem o que não tiraria o máximo da renda territorial. O usineiro, sendo ao mesmo tempo um latifundiário, explora em suas terras o colono do café, o arrendatário do algodão e do arroz e nisso não difere do fazendeiro de café ou qualquer outro latifundiário, nem se afasta da regra geral das formas de exploração semifeudais, das limitações de toda a ordem, da manutenção de polícia própria, da utilização do vale e do barracão, meio pelo qual sujeita o trabalhador ao capital usurário e cerceia a circulação do dinheiro. Vai assim para as mãos do usineiro toda a renda pré-capitalista tal como para o fazendeiro de café. E quando se trata da plantação da cana, as relações econômico-sociais não são de ordem muito diferente. O colono da cana, tal como o colono de café, é um semiproletário amarrado aos contratos, consumindo suas energias para que o usineiro lhe arrebate o trabalho suplementar, a renda-trabalho, a renda-produto, toda a renda pré-capitalista. Suga-lhe também a mais-valia. Os restantes serviços nas plantações de cana na usina são por meio de empreitada e a figura do empreiteiro é aí comum. Os formadores de cana (como os formadores de milho e arroz), os cortadores de cana, os que realizam serviços de carga, transportes, etc., são empreiteiros individuais, recebem salário por empreitada. A categoria do empreiteiro é inteiramente identificada à dos tratoristas e dos trabalhadores da usina, assalariados de quem o usineiro rouba a mais-valia, e cujas lutas são desencadeadas em torno de reivindicações específicas do proletariado (salários, férias, etc.).

Isso não exclui que a terra seja entregue em certas plantações ao arrendatário da cana, tipo de pequeno arrendatário a porcentagem, sujeito à exploração da renda-produto. Mas o tipo rural do empreiteiro predomina nas plantações de cana dos usineiros do sul, levando de vencida o colono que em muitas plantações de cana das usinas não mais existe, e tomando o lugar a outros tipos rurais.

O fato de o usineiro ser um empresário agrícola assalariando o braço trabalhador indica que, além do lucro que ele tira do trabalho dos operários da usina, obtém uma renda proveniente do maior ou menor rendimento que o trabalhador agrícola obtém nas terras da usina com o plantio da cana. Esta é a renda diferencial. Mas, como proprietário da terra monopolizada por ele, o usineiro ainda se apropria de uma parte da mais-valia excedente do lucro médio. É a renda absoluta. Tudo isso deve ser somado à renda pré-capitalista absorvida com a exploração de outros tipos rurais que emprega, como no caso do colono da cana.

Outra maneira característica do usineiro de açúcar se apropriar da renda pré-capitalista, ao contrário do fazendeiro de café que tira esta renda especificamente do colono, está na exploração que faz do fornecedor de cana dependente, sem terra. Ele é um arrendatário da cana, trabalhando na terra da usina, pagando uma renda que no Nordeste corresponde de 15 a 30% da produção bruta de canas.

O usineiro apodera-se da renda-produto proveniente do trabalho suplementar do arrendatário da cana.

Mas o fornecedor de cana poderá ser independente, uma vez que possua terra própria, não pertencente à usina. Nesse caso são inteiramente diversas as relações entre ele e o usineiro.

O fornecedor de cana independente tem transação com o banco, tem crédito, tem que ter capital e em geral pega o maior comerciante para fornecedor de seus trabalhadores, isto é, para fornecer-lhes alimentos, ferramentas, etc. À vezes, o fornecedor de cana reside na cidade; outras vezes, é também comerciante; outras vezes ainda, em suas terras, também planta café. Entre os que nela trabalham figuram arrendatários, pagando não raro 50% da produção bruta ao dono da terra, o que corresponde a uma renda tão elevada como a meia.

O fornecedor de cana independente é o capitalista do campo que emprega seu capital na cultura da cana e que arranca do arrendatário a renda-produto ou do trabalhador rural a mais-valia, que lhe faculta a renda diferencial, segundo o maior ou menor rendimento agrícola por alqueire, O fornecedor de cana independente (independente de nome) é um camponês rico (um fazendeiro rico se quisermos) explorando o camponês dependente e o trabalhador agrícola.

No Nordeste e em outras regiões açucareiras do país é um tipo rural importante. Seus interesses estão em choque com os dos usineiros, que o procuram subjugar e explorar.

O fornecedor de cana independente travou a mais extensa e prolongada luta contra o usineiro no Nordeste, mas teve de perder a condição de fornecedor dos próprios engenhos e bangüês. Hoje está rebaixado à condição de fornecedor de cana e nesse sentido se pode dizer que perdeu realmente a antiga independência, agora limitada apenas à posse da terra. O aparecimento da usina de açúcar, constituindo uma forma de penetração do capitalismo no campo, abalou a antiga classe dos senhores de engenho e bangüeseiros no Nordeste e fendeu com isso a solidez do seu patriarcalismo.

A circunstância de possuir capital e crédito no banco, em nada, porém, consolida as posições desses fornecedores de cana. O usineiro se afigura como a força maior; arrebatou as terras a muitos deles e ainda os comprime e ameaça, fazendo-lhes perigar os restos de independência.

Em seu socorro esses fornecedores de cana contam somente com o Estatuto da Lavoura Canavieira.

Enquanto a tendência da usina é a concentração agrícola-industrial, tendência nítida da penetração capitalista no campo, que assegura a vitória da indústria sobre a agricultura, sem entretanto eliminar os restos feudais, o Estatuto da Lavoura Canavieira se opõe a essa concentração. Estabelecendo a separação entre a atividade agrícola e a indústria, reservou para os fornecedores de cana independentes um certo número de quotas de fornecimento às usinas, com o objetivo de evitar a expansão da usina sobre a totalidade das terras dos fornecedores, fadados ao desaparecimento.

No jogo das contradições que a usina suscitou no campo, o Estatuto da Lavoura Canavieira desempenha o papel de um instrumento de defesa dos fornecedores de cana, antigos senhores de engenho, numa clara manifestação da força que ainda têm na superestrutura do país os restos das classes dominantes do sistema pré-capitalista.

Criando, porém, o regime de quotas para impedir o aniquilamento desses fornecedores de cana, o Estatuto da Lavoura Canavieira forneceu ao usineiro exatamente a arma de que precisava para aniquilá-los.

É com o cabresto das quotas que o usineiro domina e explora o fornecedor de cana. Mas, ao mesmo tempo, lhe completa a asfixia manejando esta outra arma — a balança, que o rouba no peso e lhe reduz a independência.

Os aspectos dessa luta se complicam com as contradições entre o expansionismo das usinas de açúcar do Sul em luta contra as limitações que favorecem as usinas do Nordeste. Mas passemos de largo sobre essas contradições. Voltemos aos aspectos que interessam no estudo da renda da terra na cultura da cana.

O usineiro apropria-se do lucro e de toda a renda capitalista e pré-capitalista resultante do trabalho dos tipos rurais da cana. O fornecedor de cana dito independente, resto da antiga classe dos senhores de engenhos, fazendeiro rico da cultura de cana, apropria-se de todo o lucro e de toda a renda dos que trabalham em suas terras. O fornecedor de cana, porém, não tem a usina. Ele é obrigado a fornecer seu produto ao usineiro. O caráter monopolista da usina, a força do capital invertido em suas máquinas, a extensão territorial de sua propriedade a que se incorporam sempre e cada vez mais novas áreas, tudo isso assegura a superioridade da usina sobre o fornecedor de cana neste combate desigual. É assim que uma parte da renda dos lucros absorvidos pelo formador de cana vai para as mãos do usineiro que, por esta forma, se apodera de uma parte da mais-valia e da renda produzida pelos trabalhadores nas terras do fornecedor. Quando a última resistência do fornecedor de cana for vencida, já não restará aos trabalhadores nas terras do antigo fornecedor outro recurso senão o da exploração direta pela usina. O monopólio da usina sobre a produção e sobre a terra é um sério fator de encarecimento do produto e de aniquilamento das forças produtivas.

A análise teórica da renda territorial no caso da fazenda de café e da usina de açúcar, servindo para estabelecer pontos de contato e diferenças entre uma e outra, nos leva, entretanto, a mostrar o papel importante da renda pré-capitalista, sobretudo nas fazendas de café, onde a composição orgânica do capital é mais fraca do que nas usinas. Isso fortalece a convicção de que os restos feudais predominam em nossa economia agrária e encontram sua principal fonte no monopólio da terra, tão fortemente apoiado pelo imperialismo para facilitar seu domínio sobre toda nossa economia e o nosso povo. Não obstante, já há penetração capitalista no campo, e ela se manifesta na renda absoluta ou diferencial produzida pela exploração da mais-valia do proletariado e semiproletariado rurais.


Notas:

(1) Sempre que nos referimos a alqueire, trata-se do alqueire paulista, equivalente a 24.200 m2. (retornar ao texto)

Inclusão 20/04/2006