As guerras camponesas na Alemanha

Friedrich Engels


I - Situação econômica e estrutura social da Alemanha


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Examinemos, em síntese, a situação da Alemanha em princípios do século XVI.

A indústria alemã adquirira notável desenvolvimento, nos séculos XIV e XV. A indústria artesã das cidades tinha substituído a indústria feudal do campo que passou a ter uma importância puramente local; produzia para um círculo mais amplo, inclusive para mercados distantes. A arte de tecer a lã e o linho se generalizara e, em Augsburgo, se manufaturavam panos e tecidos dos mais finos. Ao lado dos teares crescera aquela indústria vizinha da arte, cujo sustentáculo era o luxo eclesiástico e secular dos fins da Idade Média: a dos joalheiros, ourives, escultores, entalhadores, gravadores, armeiros, medalheiros, torneiros, etc.

Uma série de invenções mais ou menos importantes, das quais as mais notáveis foram a da pólvora e a da imprensa, tinha contribuído para o aumento da produção. Com a indústria, desenvolvia-se o comércio. Graças ao monopólio secular da navegação, exercido pela Liga Hanseática, toda a Alemanha do Norte lograra emancipar-se da barbárie medieval se bem que tivesse de retroceder, a partir de fins do século XV, ante a concorrência de ingleses e holandeses. A grande rota comercial da Índia para o norte continuava atravessando a Alemanha. Apesar das descobertas de Vasco da Gama, Augsburgo continuava a ser o grande empório de tecidos de seda italianos, das especiarias da Índia e de todos os demais produtos do Oriente. As cidades do Sul, principalmente Augsburgo e Nuremberg, ostentavam uma riqueza e um luxo consideráveis para a época.

Na produção de matérias primas, também grandes progressos tinham sido realizados. No século XV, os mineiros alemães tinham a fama de ser os mais hábeis do mundo e o florescimento das cidades retirara da agricultura sua primitiva barbárie medieval. Grandes extensões de terra foram preparadas para o plantio, cultivavam-se plantas para tinturaria e outras plantas importadas, cujo cultivo diligente produziu ótimos efeitos sobre a agricultura em geral.

Entretanto, o desenvolvimento da produção nacional da Alemanha não pudera alcançar o de outros países. A agricultura era muito inferior à da Inglaterra e Países Baixos e a indústria, à da Itália, Flandres e Inglaterra. A competição dos navegadores ingleses e, sobretudo, dos holandeses, começava a fazer sentir seus efeitos. A população ainda era, além disso, muito escassa. Na Alemanha a civilização existia apenas em estado esporádico, agrupada em tomo de alguns centros industriais e comerciais; os interesses desses centros eram divergentes: faltavam os pontos de contacto. O sul tinha vias de comunicação e mercados muito diversos dos do norte; o este e o oeste mal se comunicavam. Nenhuma cidade pudera chegar a ser o centro econômico do país, como Londres já o era na Inglaterra. O tráfego interior dispunha tão somente da navegação costeira e fluvial e de umas quantas vias comerciais que, de Augsburgo e Nuremberg, iam, por Colônia, aos Países Baixos e que, por Erfurt, seguiam em direção ao norte. Afastadas dos rios e estradas, havia grande número de cidades pequenas que, excluídas das grandes comunicações, continuavam vegetando nas condições de vida da Idade Média, sem consumir mercadorias de fora e sem exportar seus produtos. Entre a população rural, apenas a aristocracia tinha algum conhecimento do mundo exterior e dos novos costumes e necessidades; a massa camponesa não tinha mais do que relações puramente locais e, por conseguinte, um horizonte bastante limitado.

Enquanto que na França e na Inglaterra o desenvolvimento do comércio e da indústria acarretou a criação de interesses gerais no país inteiro e com isso, a centralização política, a Alemanha não passou do agrupamento de interesses por províncias, em torno de centros puramente locais o que trouxe consigo a fragmentação política que logo se estabilizou pela exclusão da Alemanha do comércio mundial. A medida que decaía o Império puramente feudal, decompunha-se a união dos países e os grandes vassalos se transformavam em príncipes quase independentes. As cidades livres e os cavaleiros do Império formavam alianças e guerreavam-se entre si, ou contra os príncipes e o imperador. O poder imperial começou a duvidar de sua própria missão e vacilava entre os diferentes elementos constitutivos do Império, perdendo paulatinamente toda a sua autoridade. Seu intento de centralização à maneira de Luís XI, por muita intriga e violência que empregasse, não pôde fazer nada mais do que salvar os domínios imperiais da Áustria. Quem saiu ganhando com esta confusão, nessa inumerável série de conflitos contraditórios, foram os representantes da centralização dentro da fragmentação, isto é os partidários da centralização local e provincial: os príncipes, em comparação com quem, o próprio imperador era apenas um príncipe a mais.

Nessas circunstâncias a situação das classes sociais da Idade Média se transformara por completo e novas classes se formaram ao lado das antigas.

Os príncipes haviam saído da alta nobreza. Eram quase independentes do imperador e desfrutavam de todos os direitos de soberania. Declaravam a guerra e concluíam a paz a seu bel-prazer. Mantinham exércitos permanentes, convocavam as dietas, decretavam os impostos. Já mandavam sobre uma parte da pequena nobreza e das cidades e se valiam de todos os meios para incorporar as cidades e baronatos restantes e que ainda dependiam do Império. Diante destes agiram como centralistas, mostrando-se, ao contrário, anticentralistas em relação ao poder imperial. Seus métodos de governo eram bastante autoritários. Não convocavam os Estados senão quando não lhes restava outra saída. Decretavam impostos e negociavam empréstimos. O direito de aprovação dos impostos pelos estados era raramente reconhecido e, ainda mais raramente aplicado. Ainda assim o príncipe quase sempre obtinha a maioria graças ao apoio dos dois estados que, livres de tributos, desfrutavam do produto dos impostos: os cavaleiros e o clero. As necessidades dos príncipes aumentavam com o luxo e importância da vida cortesã, com exércitos permanentes e com os crescentes gastos de governo. A carga tributária se fez mais pesada. Grande parte das cidades estava protegida por seus privilégios e toda carga recaía em cheio sobre os camponeses; tanto sobre os dos domínios dos príncipes, como sobre os servos de seus cavaleiros. Quando não bastava o imposto direto, acrescentava-se o indireto. Recorreram às manobras mais engenhosas da arte financeira para encher os vazios do erário. Quando já não restava outro caminho, tendo se empenhado o que era possível empenhar, quando todas as cidades livres imperiais se recusavam a conceder mais crédito, os príncipes recorriam a operações monetárias das mais sujas: cunhavam moeda falsa e lhe impunham curso forçado, alto ou baixo, conforme as conveniências do fisco. O tráfico com toda a sorte de privilégios citadinos que se anulavam depois de vendidos para que pudessem ser revendidos mais caros, o aproveitamento de toda a intenção de oposição como pretexto para toda classe de incêndios e saques, etc. Essas eram as fontes de renda seguras e cômodas a que recorriam os príncipes daquela época. Também a justiça era um negócio permanente muito lucrativo. Os súditos daqueles tempos que por cima de tudo tinham de satisfazer a cobiça pessoal dos corregedores e funcionários dos príncipes, gozavam de todos os benefícios daquele sistema de governo “paternal”.

A nobreza média havia desaparecido por completo da hierarquia feudal da Idade Média; seus representantes, se não haviam conquistado dos pequenos príncipes a sua independência, tinham sido forçados a engrossar as fileiras da pequena nobreza. A pequena nobreza, — os cavaleiros, — decaíam rapidamente. Uma grande parte já estava completamente empobrecida. Seus membros viviam a serviço dos príncipes como funcionários civis ou militares; outros subsistiam como vassalos submetidos aos príncipes e somente uma minoria dependia diretamente do poder imperial. O desenvolvimento da técnica militar, a importância crescente da infantaria, e o aperfeiçoamento das armas de fogo, aniquilaram seu poder guerreiro reduzindo a eficácia da cavalaria pesada e acabando com a fortaleza inexpugnável de seus castelos. O progresso da indústria tornava/ inúteis os cavaleiros como fizera com os artesãos de Nuremberg. Suas pretensões e necessidades econômicas contribuíram para a própria ruína. O luxo que reinava em seus castelos, suntuosidade dos torneios e festas, os preços das armas e cavalos, aumentavam com os progressos da civilização, enquanto que as rendas dos cavaleiros e barões mal variavam. Com o decorrer dos tempos, as guerrilhas seguidas dos inevitáveis saques e incêndios, assim como os assaltos e outras ocupações da aristocracia tornaram-se demasiado perigosas. As contribuições e os serviços dos súditos não produziam mais que antes Para cobrir seus gastos crescentes, os senhores tiveram de recorrer aos mesmos métodos que os príncipes. A opressão exercida pela nobreza crescia de ano para ano. Os servos eram explorados até a última gota de sangue, os nobres se valiam de todos os pretextos para impor novos tributos e serviços a seus vassalos. Contra tudo o que se estabelecera, aumentavam a servidão pessoal, as peitas, os censos, laudêmios, direito em caí o de morte, tributos de domicílio, etc. A justiça era ou negada ou vendida e quando os cavaleiros não podiam deste modo apanhar o dinheiro dos camponeses, atiravam-nos, sem mais nem menos, ao calabouço, exigindo-lhes resgate.

As demais classes tampouco simpatizavam com a pequena nobreza. Os nobres sujeitos à vassalagem queriam depender diretamente do Império, enquanto que a nobreza independente procurava conservar sua liberdade. Daí os litígios com os príncipes tornarem-se mais frequentes. O clero carregado de riquezas, parecia aos cavaleiros uma classe inútil. Invejavam-lhe a enorme quantidade de bens, seus tesouros acumulados graças ao celibato e à constituição eclesiástica. Lutavam constantemente contra as cidades; tomavam-lhe dinheiro emprestado e se sustentavam do saque de seu território, despojando seus mercadores e exigindo resgate dos prisioneiros. A luta da nobreza contra todas essas classes tomou maior violência à medida que suas dificuldades financeiras iam se tornando mais agudas.

O clero, como representante ideológico do feudalismo medieval, sofreu por sua vez as consequências da mudança histórica. A imprensa e as necessidades de um comércio mais intenso haviam liquidado seu monopólio não somente da instrução elementar como também da superior. Também no terreno intelectual se produziu a divisão do trabalho. Os juristas, — profissão recém-criada, — tiraram do clero uma série de posições de grande importância. A maior parte dele se tornou inútil confirmando isto com sua preguiça e ignorância crescentes.

Porém, a par de sua inutilidade, cresceu em número de clérigos atraídos pelas enormes riquezas da Igreja, que aumentavam continuamente graças a toda sorte de manobras.

O clero compunha-se de duas classes completamente diferentes. Sua hierarquia feudal formava a aristocracia dos bispos, arcebispos, abades, priores e demais prelados. Estes altos dignitários da Igreja, quando não eram, ao mesmo tempo, príncipes do Império, dominavam como senhores feudais, sob a soberania de outros príncipes, grandes territórios com numerosos servo; e vassalos. Eles exploravam os seus súditos com a mesma ou maior ganância do que a nobreza e os príncipes, como agiam de maneira mais desavergonhada. À violência, acrescentaram todas as sutilezas da religião; ao horror das torturas, o horror da excomunhão, valendo-se de todas as intrigas do confessionário para arrancar dos súditos até o último vintém e aumentar a participação da Igreja nas heranças. A falsificação de documentos era o meio preferido por esses dignos homens em suas explorações. Porém, apesar de receber o dizimo, além dos direitos feudais e censos correntes não lhes bastavam todas estas rendas. Para arrancar mais tributos ao povo recorreram à fabricação de imagens e relíquias milagrosas, à comercialização das peregrinações e à venda de bulas, o que com muito êxito, conseguiram durante algum tempo.

Nesses prelados e em sua numerosa polícia de monges fortalecida por inúmeras campanhas de excitação política e religiosa, se objetivou a ira popular assim como o ódio da nobreza. Quando eram soberanos independentes, sua presença incomodava os príncipes. A vida alegre dos ventripotentes bispos e abades e de seu exército de frades, despertava a inveja da nobreza e a indignação do povo que tinha de custear seus gastos; essa indignação era tanto maior quanto a vida destes senhores estava em contradição manifesta com suas prédicas.

Os pregadores do campo e das cidades constituíam a fração plebeia do clero. Achavam-se à margem da hierarquia feudal da Igreja e eram excluídos do gozo de suas riquezas. Seu trabalho era menos controlado e, — apesar de sua importância para a Igreja, — era menos indispensável, naquele momento, do que os serviços policiais dos monges aquartelados. Eram, portanto, muito mais mal pagos; em sua maioria com prebendas exíguas. Graças à sua origem burguesa ou plebeia conservaram o contato com as massas e o conhecimento de suas condições de vida, o que os fazia, apesar de seu ofício, simpatizar com as causas burguesa e plebeia. Os monges, salvo contadas exceções, não tomaram parte nos movimentos da época; os pregadores, em troca, lhes deram teóricos e ideólogos e não poucos morreram no cadafalso. O ódio do povo contra os frades raramente se voltava contra eles.

Se o imperador era o chefe dos príncipes e da nobreza, o papa o era de todos os padres. O imperador cobrava o “vintém comum”, os impostos imperiais; o papa, os impostos eclesiásticos com que custeava os gastos da suntuosa corte romana. Em nenhum outro país esses impostos eram arrecadados com tanto capricho e tanta severidade como na Alemanha, graças ao número e à influência dos frades. Mostravam interesse especial na cobrança das anatas ao atravessar um bispado. Crescendo as necessidades, encontraram novos meios de arrancar dinheiro: o comércio de relíquias, de absolvições, a organização de jubileus, etc. Todos os anos grandes somas de dinheiro saíam da Alemanha para Roma. A opressão crescente impulsionou o ódio contra os frades, despertando o sentimento patriótico, sobretudo da nobreza, que era a classe mais nacionalista. Ao iniciar-se o florescimento comercial e industrial, os habitantes das primitivas cidades medievais dividiram-se em três ramos inteiramente diferentes.

As famílias patrícias, da chamada “Honorabilidade”, (“Ehrbarkeit”) mandavam nas cidades. Eram os mais ricos. Sozinhas formavam o Conselho e desempenhavam os cargos públicos. Não se contentavam, porém, com a administração das rendas das cidades: consumiam-nas também.

Fortes por sua riqueza e por sua condição aristocrática havia muito reconhecida pelo poder imperial, podiam despojar seus concidadãos e os camponeses que dependiam da cidade. Praticavam o açambarcamento do trigo e a usura, apropriando-se de toda a sorte de monopólios e paulatinamente chegaram a privar a comunidade de todos os direitos sobre os bosques e pastagens comunais, explorando-os em seu próprio proveito; impunham arbitrariamente novas peagens e taxas de passagem e traficavam com os privilégios corporativos e direitos mestrais. Aos camponeses que viviam sob sua jurisdição, tratavam pior que a própria nobreza e os curas; os corregedores e funcionários municipais, nas aldeias, acrescentaram à dureza e à cobiça dos aristocratas, certo pedantismo e rigor burocrático na arrecadação. A fazenda municipal assim unida era administrada com a maior arbitrariedade; a contabilidade dos livros municipais era puramente formal e feita do modo mais descuidado e confuso possível. As malversações eram frequentes. É fácil de compreender a facilidade com que uma casta fortalecida por seus privilégios e vinculada pelo parentesco e pelo interesse pôde enriquecer-se com os dinheiros públicos, quando se levam em conta as numerosas defraudações que se revelaram no ano de 1848.

Os patrícios tinham procurado consumir, pouco a pouco, os direitos da comunidade, sobretudo no que tocava à fazenda. Mais tarde quando as extorsões desses senhores se tornaram intoleráveis, as comunidades se mobilizaram finalmente para reconquistar o controle sobre a administração municipal, o que efetivamente lograram na maioria das cidades. Porém, graças às constantes lutas entre as corporações, graças à obstinação dos patrícios e à proteção que encontraram perto do poder imperial e nos governos das cidades amigas, os conselheiros patrícios puderam prontamente restaurar seu regime, quer por astúcia, quer por violência. Em princípios do século XVI as comunidades encontravam-se novamente na oposição.

Esta se dividia em dois ramos que se manifestam claramente na guerra camponesa.

A Oposição burguesa, precursora do liberalismo de nossos dias que compreendia tanto os burgueses médios e ricos, como também uma parte da pequena burguesia que segundo as circunstâncias locais era mais ou menos numerosa.

Suas reivindicações não ultrapassavam o estritamente constitucional. Pediam o controle da administração municipal e uma representação no poder legislativo por meio da assembleia comunal, ou da representação municipal (Câmara, Municipalidade), queriam limitar o favoritismo praticado com crescente desenvoltura por algumas famílias patrícias, em prejuízo do próprio patriciado. Finalmente, reivindicavam alguns cargos do Conselho para seus homens de confiança. Este partido de vez em quando reforçado pela facção descontente dos patrícios decaídos, tinha maioria esmagadora em todas as assembleias comunais ordinárias e nas corporações.

Os partidários da Câmara, junto à oposição extrema, não constituíam mais do que uma ínfima minoria da verdadeira burguesia.

Veremos como no movimento do século XVI esta oposição “moderada”, “legal”, de gente “acomodada’ e inteligente desempenha o mesmo papel, com resultado igual ao de seu herdeiro, o partido constitucional de 1848 e 1849.

Esta oposição burguesa atacava violentamente os frades, cujos hábitos dissolutos a escandalizavam. Exigia medidas contra a vida escandalosa desses dignos homens. Queria acabar com a jurisdição própria e a isenção tributária dos curas e pedia a restrição do número de monjas.

A oposição plebeia se compunha de burgueses arruinados e da massa citadina excluída do direito de cidadania: trabalhadores, assalariados e numerosos representantes do “lumpemproletariado” que se encontrava até nas etapas inferiores do desenvolvimento urbano. O “lumpemproletariado” em suas formas mais ou menos desenvolvidas constitui fenômeno comum a todas as etapas da civilização. Naquele tempo, o número de pessoas sem profissão definida e sem residência fixa ia em crescimento, pois ao decompôr-se o feudalismo ainda reinava uma sociedade que, com inúmeros privilégios, dificultava o acesso a todas as profissões e esferas de atividade. Nos países civilizados, jamais o número de desocupados tinha sido maior do que na primeira metade do século XVI. Uma parte desses vagabundos se alistava no exército em tempo de guerra, outros mendigavam pelas estradas e os restantes ganhavam sua vida mísera realizando trabalhos como diaristas e em outras profissões não regulamentadas pelas corporações. Esses três grupos participaram da guerra camponesa: o primeiro, nos exércitos dos príncipes que aniquilaram os camponeses; o segundo nas conspirações e nos grupos de camponeses armados, onde sua influência desmoralizadora se manifesta a cada momento; o terceiro, na luta entre partidos no interior das cidades. Quanto ao mais, não se deve esquecer que uma grande parte dessa classe, sobretudo a que vivia nas cidades, conservara um fundo de robustez camponesa e se achava muito afastada da venalidade e degeneração de nosso moderno “lumpemproletariado”.

Observa-se que a oposição plebeia nas cidades reunia os elementos mais diversos. Ao lado dos restos degenerados da velha sociedade feudal e corporativa, começou a manifestar-se o elemento proletário, — ainda pouco desenvolvido, — da sociedade burguesa nascente. Uns eram arruinados sócios de grêmios e a quem somente os privilégios ligavam à ordem vigente; outros eram camponeses desesperados e criados despedidos que ainda não podiam ser proletários. Entre ambos se encontravam os funcionários que, excluídos da sociedade de então, encontravam- se em situação idêntica à do proletariado atual, tendo em conta a diferença entre a indústria de hoje e a que era regida pelo privilégio das corporações. Porém, ao mesmo tempo, e em virtude desse privilégio, quase todos se consideravam futuros amos burgueses. A posição política dessa mescla de elementos tinha de ser muito vacilante, variando segundo o lugar. Antes da guerra camponesa, a oposição plebeia não toma parte nas lutas políticas como partido autônomo. Aparece como apêndice da oposição burguesa, como um bando de desordeiros dedicados à pilhagem, cuja atuação ou silêncio se compra com algumas pipas de vinho. Foi durante as insurreições camponesas que essa oposição se organizou por fim, em partido independente, porém, mesmo assim, continuou ligada aos camponeses em suas reivindicações e em sua ação o que mostra até que ponto a cidade ainda dependia do campo. Quando age em seu próprio nome, fá-lo para pedir a criação, no campo, do monopólio industrial da cidade; opõe-se a toda redução das rendas da municipalidade pela abolição dos encargos feudais em seu território; em tudo isso se mostra reacionária e se submete a seus próprios elementos pequeno-burgueses, o que constitui um prelúdio característico da tragicomédia que, sob o nome de democracia, vem representando, há três anos, a atual pequena burguesia.

Apenas na Turíngia, sob a influência direta de Münzer e em outras partes, graças a seus discípulos, a fração plebeia das cidades foi arrastada pela tempestade geral e o proletariado embrionário pôde momentaneamente impôr-se a todos os demais elementos em luta. Este episódio, que constitui o ponto culminante da guerra camponesa, simbolizado pela figura gloriosa de Tomás Münzer, é também o mais curto. Compreende-se o rápido fracasso desse movimento, as formas fantásticas de que se revestiu e a falta de precisão de suas reivindicações: não pôde encontrar uma base firme naquela época.

Todas essas classes, exceto a última, oprimiam a grande massa da nação: os camponeses. O camponês suportava o peso total de todo o edifício social: príncipes, funcionários, nobreza, clero, patrícios e burgueses. O príncipe e o barão; o mosteiro e a cidade, todos o tratavam como simples objeto, pior que às bestas de carga. Como servo, era entregue a seu senhor atado de pés e mãos. Vassalo, os serviços a que o obrigava a lei eram já suficientes para aniquilá-lo; porém, seu número aumentava continuamente. A maior parte do tempo devia trabalhar nas terras do senhor; com o que ganhava em suas tarefas livres, tinha que pagar os dízimos, censos, peitas, o viático, e impostos regionais e imperiais. Não podia casar-se, nem morrer, sem que o seu senhor lhe não cobrasse alguma coisa. Além dos serviços regulares, tinha de apanhar palha, colher morangos e bagas, pegar caracóis, ajudar na casa, cortar lenha, etc., tudo para o senhor. A pesca e a caça pertenciam ao senhor; o camponês tinha de calar-se resignado enquanto a caça do amo destruía sua colheita. Os senhores se haviam apropriado de quase todas as pastagens e bosques comunais dos camponeses. O que ocorria com a propriedade, ocorria também com as pessoas do camponês, e de sua mulher e filhas, de que o senhor dispunha arbitrariamente. Tinha o direito de pernada. Quando queria, mandava prender seus servos em calabouços onde os esperava a tortura, tão certo quanto o juiz de instrução os espera hoje. Matava-os ou mandava-os degolar quando queria. Não há capítulo daquela edificante “Carolina”,(1) “desorelhamento”, da “amputação de nariz”, do “vazamento dos olhos”, da “amputação dos dedos e das mãos”, da “decapitação”, do “suplício da roda”, da “fogueira”, do “suplício das tenazes”, do “esquartejamento”, etc., que os senhores não hajam aplicado a seus camponeses. Quem iria protegê-los? Os tribunais eram compostos de barões, frades, patrícios ou juristas, que não ignoravam a razão pela qual eram pagos, pois todas as classes altas do império viviam da exploração do camponês.

Sob tão intolerável opressão, eles rangiam os dentes. Contudo, era difícil decidir-se pela insurreição. Sua divisão dificultava ao extremo todo acordo para uma ação coletiva. O costume secular da submissão, transmitido de geração em geração e, em muitas regiões, a perda do hábito de usar armas, a dureza maior ou menor da exploração, que variava conforme o senhor, contribuíam para mantê-los imobilizados. Na Idade Média, deparamo-nos com uma imensidão de pequenas insurreições locais, porém, — pelo menos na Alemanha — antes da guerra camponesa não houve nenhuma insurreição geral dos camponeses. Enquanto se lhes opôs o poder organizado dos príncipes, da nobreza e das cidades unidas, os camponeses não foram capazes de se lançar sozinhos a uma revolução. Sua única oportunidade de vencer seria a aliança com outras classes; mas como fazê-lo se todas os exploravam com igual encarniçamento?

Vimos que no começo do século XVI as diferentes classes do Império, os príncipes, a nobreza, os prelados, os patrícios, os burgueses, os plebeus e os camponeses formavam uma massa sumamente confusa, com interesses divergentes e inteiramente contraditórios. Cada classe constituía um estorvo para a outra e todas se encontravam em luta contínua. Aquela divisão de uma nação inteira em dois campos, que existiu na França ao estalar a primeira revolução e que hoje se manifesta em uma etapa superior nos países adiantados, era completamente impossível nessas circunstâncias. Semelhante divisão não se podia produzir senão por meio da sublevação da camada inferior da nação, explorada por todas as outras: os camponeses e plebeus. A confusão que reinava nos interesses, opiniões e tendências daquela época será facilmente compreendida se tivermos em mente a confusão que acarretou a divisão atual, muito mais simples, da nação alemã, em aristocracia, burguesia, pequena burguesia, campesinato e proletariado.


Notas de rodapé:

(1) CAROLINA - O Código Penal do imperador Carlos V (1519-1556). (retornar ao texto)

Inclusão: 17/01/2022