O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Sétima Seção: O processo de acumulação do capital

Vigésimo quarto capítulo: A chamada acumulação original


7. Tendência histórica da acumulação capitalista


capa

Em que é que vem a dar a acumulação original do capital, i. é, a sua génese histórica? Enquanto não é transformação imediata de escravos e servos em operários assalariados e, portanto, uma mera mudança de forma, apenas significa a expropriação dos produtores imediatos, i. é, a dissolução da propriedade privada assente em trabalho próprio.

A propriedade privada, como oposição à propriedade social, colectiva, subsiste apenas ali onde os meios de trabalho e as condições exteriores do trabalho pertencem a pessoas privadas. Porém, consoante essas pessoas privadas são os operários ou os não operários, a propriedade privada tem também um carácter diferente. Os infinitos matizes que ela à primeira vista oferece reflectem apenas as situações intermédias que ficam entre estes dois extremos.

A propriedade privada do operário sobre os seus meios de produção é a base da pequena empresa, a pequena empresa é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da individualidade livre do próprio operário. Sem dúvida que este modo de produção também existe no interior da escravatura, da servidão e de outras relações de dependência. Mas só floresce, só lança toda a sua energia, só conquista a sua forma clássica adequada, ali onde o operário é proprietário privado livre das suas condições de trabalho por ele próprio manejadas, o camponês, do campo que ele amanha, o artesão, do instrumento em que ele toca como um virtuoso.

Este modo de produção supõe a fragmentação da terra e dos restantes meios de produção. Assim como exclui a concentração destes últimos, exclui também a cooperação, a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e regulação sociais da Natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais. Só é compatível com barreiras naturais estreitas da produção e da sociedade. Querer etemizá-lo, significaria, como Pecqueur diz, com razão, «decretar a mediocridade em tudo»[N221]. A partir de um certo grau superior, ele traz ao mundo os meios materiais do seu próprio aniquilamento. A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade, forças e paixões que se sentiam agrilhoadas por ele. Ele tem de ser aniquilado, ele é aniquilado. O seu aniquilamento, a transformação dos meios de produção individuais e fragmentados em [meios de produção] socialmente concentrados, portanto, [a transformação] da propriedade anã de muitos na propriedade maciça de poucos, portanto, a expropriação da terra, dos meios de vida e dos instrumentos de trabalho da grande massa do povo, esta terrível e difícil expropriação da massa do povo forma a pré-história do capital. Ela abrange uma série de métodos violentos, dos quais nós só passámos em revista os que fizeram época como métodos da acumulação original do capital. A expropriação dos produtores imediatos foi completada com o vandalismo mais sem piedade e sob o impulso das paixões mais infames, mais sórdidas e mais mesquinhamente odiosas. A propriedade privada adquirida pelo trabalho próprio, por assim dizer, assente na fusão do indivíduo trabalhador, singular, independente, com as suas condições de trabalho, foi suplantada pela propriedade privada capitalista, que assenta na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre(251).

Logo que este processo de transformação decompôs de alto a baixo suficientemente a velha sociedade, logo que os operários foram transformados em proletários e as suas condições de trabalho em capital, logo que o modo de produção capitalista ficou de pé, a ulterior socialização do trabalho e a ulterior transformação da terra e outros meios de produção em [meios de produção] explorados socialmente (portanto, em meios de produção comunitários), por conseguinte, a ulterior expropriação dos proprietários privados, ganham uma forma nova. O que agora é de expropriar já não é mais o operário trabalhando para si, mas o capitalista que explora muitos operários.

Esta expropriação completa-se pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Um capitalista mata sempre muitos. De braço dado com esta centralização ou com esta expropriação de muitos capitalistas por poucos, a forma cooperativa do processo de trabalho desenvolve-se numa escala sempre crescente; [desenvolve-se] a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planificada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis apenas comunitariamente, a economização de todos os meios de produção através do seu uso como meios de produção de trabalho social, combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o carácter internacional do regime capitalista. Com o número continuamente decrescente de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe operária, sempre a engrossar e ensinada, unida e organizada pelo mecanismo do próprio processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que com ele e sob ele floresceu. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tomam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Este é rompido. Soa a hora da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.

O modo de apropriação capitalista, proveniente do modo de produção capitalista, portanto, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, fundada em trabalho próprio. Mas a produção capitalista engendra com a necessidade de um processo natural a sua própria negação. E negação da negação. Esta não restabelece a propriedade privada, mas, sim, a propriedade individual na base das conquistas da era capitalista: da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.

A transformação da propriedade privada fragmentada assente em trabalho próprio do indivíduo em [propriedade privada] capitalista, é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a transformação da propriedade privada capitalista, já efectivamente assente num funcionamento de produção social, em [propriedade] social. Tratava-se ali da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo(252).


Notas de rodapé:

(251) «Estamos [...] numa condição completamente nova da sociedade... tendemos a separar [...] toda a espécie de propriedade de toda a espécie de trabalho.» (Sismondi, Nouveaux príncipes de l'écon. polit., t. II, p. 434.) (retornar ao texto)

(252) «O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora involuntária e sem resistência, põe no lugar do isolamento dos operários pela concorrência a sua reunião revolucionária pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria é retirada, portanto, de debaixo dos pés da burguesia a própria base sobre que produz e se apropria dos produtos. Ela produz, portanto, antes do mais, o seu próprio coveiro. A decadência dela e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis... De todas as classes que, hoje em dia, defrontam a burguesia, só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes arruínam-se e decaem com a grande indústria; o proletariado é o produto mais próprio desta. Os estados médios, [Mittelstànde], o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês, todos eles, face à decadência, combatem a burguesia para assegurarem a sua existência como estados médios... são reaccionários, pois procuram fazer andar para trás a roda da história.» (Karl Marx e F. Engels(1*), Manifest der Kommunistischen Partei, London, 1848, pp. 11, 9.(2*)) (retornar ao texto)

(1*) Nas edições anteriores preparadas por Marx: F. Engels e K. Marx. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Cf. K. Marx-F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982, t. I, pp. 117, 116. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N221] Constantin Pecqueur, Théorie nouvelle d'économie sociale et politique, ou études sur l’organisation des sociétés. Paris, 1842, p. 435. (retornar ao texto)

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Inclusão:06/11/2019