Anti-Dühring

Friederich Engels


Prefácio à Primeira Edição


O presente trabalho não é, absolutamente, fruto de um "impulso interior". Muito pelo contrário.

Quando, há três anos, o Senhor Dühring surgia, cheio de rompante, apresentando-se, ao mesmo tempo, como adepto e reformador do socialismo, disposto a trazer o século à luta, alguns amigos da Alemanha expressaram várias vezes o desejo de que eu fizesse; no órgão do partido social-democrata, então o Volksstaat, um estudo crítico da nova doutrina socialista. Consideravam tal estudo grandemente útil, a menos que não se quisesse proporcionar ao sectarismo existente no jovem partido, ainda em formação e distante de sua unidade definitiva, uma nova oportunidade para divergência e confusão. Estavam eles, melhor do que eu, em condições de julgar a situação da Alemanha: via-me obrigado a dar-lhes crédito. Demais, pode-se verificar que Parte da imprensa socialista se pôs a dar boas-vindas ao novo apóstolo com um entusiasmo que não era unicamente condescendência, mas deixava transparecer alguma inclinação para acolher, sem reservas, o Senhor Dühring, e, o que é mais, a doutrina do Senhor Dühring.

Havia mesmo pessoas que já se julgavam no dever de difundir a doutrina entre os trabalhadores. Finalmente, o Senhor Dühring e seus correligionários punham a seu serviço todas os artifícios da propaganda e da intriga para obrigar o Volksstaat a tomar posição definitiva em face da nova doutrina, que entrava em cena com tão consideráveis pretensões.

Foi-me preciso, pois, um ano para me resolver a deixar de Parte outros trabalhos e trincar esse amargo pomo que, uma vez mordido, tinha que ser comido totalmente. E o mais grave é que esse pomo não era apenas muito amargo, mas, também, muito grande. A nova doutrina socialista apresentava-se como a última conseqüência prática de um novo sistema filosófico. Tratava-se, portanto, de estudá-lo em conexão com o sistema, ao mesmo tempo que ao próprio sistema; tratava-se do seguir o Senhor Dühring naquele vasto domínio onde ele encara todas as coisas possíveis..., e muitas outras ainda. Tal a origem de uma série de artigos que, a partir do fim de 1877, apareceram no jornal que sucedera ao Volkstaat, o Vorwaerts, de Leipzig, artigos esses que vão aqui reunidos.

É, pois, a natureza do assunto que obriga a crítica a tomar um desenvolvimento assaz considerável em relação ao que há de científico na matéria, isto é, nos escritos de Dühring. Mas duas outras circunstâncias poderiam ainda servir de escusas a este desenvolvimento. De um lado, proporcionar ocasião para expor em forma positiva os assuntos mais diversos que tivéssemos de abordar, concepções sobre as questões controvertidas que apresentam hoje interesse científico e prático mais geral. Foi o que fiz em cada capítulo, e, ainda que estes escritos não tenham por fim opor ao "sistema" do Senhor Dühring um outro sistema, espero, todavia, que o leitor não deixe de ver uma relação intima nas opiniões por mim expostas. Que, deste ponto de vista, meu trabalho não será completamente infrutífero, tenha, desde já, suficientes provas.

Por outro lado, o Senhor Dühring, como "criador de sistema", 'não é uma aparição isolada na Alemanha contemporânea. De algum tempo a esta Parte, os sistemas de cosmogonia, de filosofia da natureza em geral, de política, economia, etc., proliferam na Alemanha, da noite para o dia, às dúzias, como os cogumelos. Qualquer doutor em filosofia e até mesmo o simples estudante não mais se contentam senão com um sistema integral. Da mesma forma que, no Estado moderno, todos os cidadãos se supõem aptos para julgar as questões em que são chamados a dar voto; da mesma maneira pela qual, em economia política, se considera o comprador com conhecimentos profundos sobre todas as coisas que adquire para o seu sustento; da mesma forma se pretende proceder com respeito à ciência. A liberdade científica consistirá, assim, na possibilidade de cada qual escrever sobre ciência tudo o que nunca aprendeu, dando-o como o único método rigorosamente científico. O Senhor Dühring é um dos mais característicos tipos. desta pseudociência presunçosa, que atinge a primeira plana, em toda a Alemanha hodierna, e domina o espaço com seu estrepitoso ruído de... latão. Ruído de latão em poesia, em filosofia, em política, em economia, em história; latão na cátedra dos professores e na tribuna; em toda Parte, um ruído de latão que aspira à superioridade e à profundeza do pensamento e que não deve ser confundido com o ruído de latão comum, liso e vulgar das outras nações. É esse o mais característico e abundante produto da indústria intelectual alemã, "barato, sim, porém de má qualidade", tal como outros produtos nacionais com que o país, infelizmente, não se fez representar na Exposição de Filadélfia. O próprio socialismo alemão, de algum tempo para cá, notadamente após o bom exemplo do Senhor Dühring fez, ultimamente, grandes progressos na arte do ruído de latão e exibe tal ou qual produto batizado de ciência e da qual não contém uma palavra. Trata-se de uma doença infantil, sintoma e fenômeno inseparáveis da conversão que se está iniciando do estudioso alemão à social-democracia e de que esta, graças à maravilhosa saúde de nossos operários, já se ia curando.

Não me cabe a culpa de haver acompanhado o Senhor Dühring em regiões em que eu não passarei de um diletante. Em tais casos, limitei-me a opor. na maior Parte das vezes, às afirmações falsas ou mal alinhavadas do meu adversário, os fatos incontestáveis: deu-se isso nas ciências jurídicas e freqüentemente nas ciências naturais. Além disso, trata-se de idéias gerais em ciência teórica da natureza, de um campo em que até o naturalista técnico é forçado. por vezes. a sair da especialidade e a invadir os domínios circunvizinhos - domínios que. como reconheceu Virchov, ele conhece tanto quanto nós outros, A indulgência mútua, admissível em semelhantes casos, para pequenas inexatidões ou impropriedades de expressão, ser-me-á, eu o espero, facilmente concedido.

No momento de concluir este prefácio, recebo de uma livraria um anúncio redigido pelo Senhor Dühring, no qual o filósofo promete uma nova obra"capital" intitulada:"Novas leis básicas da química e da física nacionais". Tenho pleno conhecimento da insuficiência de meus conhecimentos em física e em química; apesar disso, porém, acredito conhecer bastante o meu caro Dühring, para adiantar, mesmo sem lhe haver lido a obra, que as leis físicas e químicas aí estabelecidas poderão competir, em confusão ou em banalidades com as leis econômicas, cosmológicas e outras que ele até agora descobriu e examinei no meu livro. Só espero que o rigometro, instrumento construído pelo Sr. Dühring para medir as temperaturas mais baixas, sirva para medir, não temperaturas altas ou baixas, mas simplesmente a arrogante ignorância do Senhor Dühring.

Londres, 11 de junho de 1878.


Prefácio à Segunda Edição

A necessidade de fazer-se desta obra uma segunda edição foi para mim verdadeira surpresa. A personagem, que neste livro se crítica, está hoje inteiramente esquecida. A obra em si mesma não só teve numerosos leitores, quando apareceu em fragmentos no Vorwaerts de Leipzig, em 1877 e 1878, como dela se tiraram, em separado e integralmente, inúmeros exemplares. Como poderá alguém interessar-se pelo que eu disse há vários anos a propósito do Senhor Dühring?

Devo-o, antes de tudo, à circunstância de que esta obra, como, aula, quase todos os meus escritos ainda agora em circulação, foi interditada no império alemão logo após a promulgação da lei contra os socialistas. Quem quer que não estivesse preso aos hereditários preconceitos dos funcionários dos países da Santa Aliança, deveria claramente prever o efeito de semelhante medida: dupla ou tripla venda para os livros interditados e manifestação de impotência por Parte daqueles Senhores de Berlim, que promulgam leis cuja execução não conseguem impor. Realmente, a amabilidade do governo do império forçou-me a novas edições que não poderia satisfazer: como não tenho tempo para corrigir o texto, coisa que seria de desejar, sou obrigado a contentar-me com uma simples reimpressão.

A essa, junta-se outra razão, o "sistema" do Senhor Dühring, de que este livro é uma crítica, estende-se a domínios teóricos muito vastos: tive de segui-lo por toda Parte e opor às suas concepções as minhas. Assim, a crítica negativa resultou positiva; a polêmica transformou-se em exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos. Esta concepção, desde o seu aparecimento na Miséria da Filosofia de Marx e no Manifesto Comunista, tem atravessado um período de incubação de mais de vinte anos, até este momento em que, com a apresentação d'O Capital, ela alcançou regiões cada vez mais distantes, e, hoje, já fora das fronteiras da Europa, prende a atenção em todos os países em que há proletários e cientistas imparciais. Pareceu, então, que havia um público altamente interessado, capaz de acolher, para perpetuar, a polêmica contra a tese do Senhor Dühring (polêmica julgada hoje sem razão de ser por muita gente), e adepto das digressões positivas que acompanham a crítica.

Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro, não conviria que eu a publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da Parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a história crítica) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu o tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um.

Esta nova edição, exceto um capítulo, é idêntica à precedente, De um lado, faltou-me o tempo para a revisão cuidada em que pudesse fazer alterações na exposição. Eu tinha o dever de preparar para a impressão os manuscritos deixados por Marx, diante do que, qualquer outra tarefa é menos importante, Por outro lado, minha consciência opõe-se a qualquer modificação. É esta uma obra de polêmica e não me julgo na obrigação de modificá-la, uma vez que meu adversário em nada se corrigiu.

Só poderia aspirar ao direito de replicar ainda uma vez à resposta do Senhor Dühring. Não sei se o Sr. Dühring escreveu alguma coisa respondendo aos meus ataques; e, salvo razão especial, não o lerei jamais: teoricamente liquidei minhas contas com ele. De resto, há outra razão que me obriga a observar, com maior cuidado ainda, o decoro das lutas literárias, em relação ao meu adversário: a vergonhosa indignidade contra ele praticada, posteriormente, pela Universidade de Berlim. A bem dizer, esta última foi punida: uma Universidade que se atreve a cassar ao Senhor Dühring, nas circunstâncias que sabemos, a liberdade de ensinar, não tem o direito de admirar-se de lhe terem imposto o Senhor Schwenninger, noutras circunstâncias que igualmente conhecemos.

O único capítulo em que me permiti adições explicativas foi o segundo da terceira Parte: Teoria. Ali, tratou-se unicamente de expor um ponto de vista essencial da concepção que represento: meu adversário não poderia, pois, lamentar-se de que me haja esforçado no emprego de linguagem mais acessível, completando a sucessão das idéias sistemáticas. É certo que fui instigado por outros a fazê-lo. Três capítulos da obra (o primeiro da Introdução e o primeiro e o segundo da terceira Parte) foram transformados em brochura especial, por meu amigo Lafargue, atendo-se este à tradução francesa da obra; e, quando a versão francesa serviu de base à polonesa e à italiana, fiz uma edição alemã intitulada:"Do socialismo utópico ao socialismo científico", obra que em poucos meses alcançou três edições e apareceu vertida para o russo e o dinamarquês. Em todas as edições, o capítulo em questão era o único que havia sido aumentado: seria um excesso de zelo que me limitasse, na edição da nova obra, ao texto primitivo, em vez da forma ulterior, tornada internacional.

Quanto às demais modificações, que desejaria fazer, referem-se principalmente a dois pontos: primeiramente, à história primitiva da humanidade, assunto de que Morgan só nos deu a chave em 1877. Mas, como, em minha obra"As origens da família, da propriedade privada e do Estado", tive ocasião de ordenar e expor a matéria por mim reunida desde o aparecimento deste livro, bastará recorrer a esse trabalho ulterior.

Em segundo lugar, teria desejado modificar a Parte relativa às ciências naturais. Nota-se ali grande descuido de exposição e há várias coisas que hoje poderiam ser expressas com maior precisão e clareza, Não me arrogando o direito de corrigir, julgo-me na obrigação de fazer esta crítica.

Marx e eu fomos, sem dúvida alguma, os únicos que salvaram da filosofia idealista alemã a dialética consciente, incluindo-a na nossa concepção materialista da natureza e da história. Mas uma concepção da história, a um tempo dialético e materialista, exige o conhecimento das matemáticas e das ciências naturais. Marx foi um consumado matemático: mas, de nossa Parte, não pudemos estudar senão fragmentariamente, de quando em quando, as ciências naturais. A medida que ocupações comerciais e a minha mudança para Londres mo foram permitindo, fiz uma completa mise en mue, como diria Liebig, das matemáticas e ciências naturais, tarefa em que empreguei quase oito anos. Estava eu em meio desse trabalho, quando me ocupei do Senhor Dühring e de sua pretensa filosofia da natureza. Se, pois, nem sempre atino com a exata expressão técnica, e se, por vezes, me vejo em alguma dificuldade no domínio das ciências naturais, é naturalíssimo. Por outro lado, a consciência da própria incerteza me fez prudente: ninguém me poderá atribuir erros patentes sobre fatos então conhecidos, nem inexatidão na exposição das teorias professadas na época. A tal respeito, só surgiu um grande matemático pouco conhecido, a queixar-se, numa carta dirigida a Marx, de que eu havia criminosamente atentado contra a honra da XXX. Tratava-se, evidentemente, de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos - sobre o conjunto eu não tinha dúvidas, - de que, na natureza, se impõem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemente fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo a fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, alcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. Será excusado dizer que a velha filosofia natural, - apesar das muitas coisas boas que realmente continha e dos muitos germes fecundos que encerrava (1)- não poderia contentar-nos: conforme se expõe minuciosamente neste livro, consiste-lhe o defeito na forma hegeliana de não reconhecer na natureza nenhum desenvolvimento no tempo, nenhuma"sucessão", mas simplesmente uma "coexistência" (Nacheinandr-Nebeinander). Tal defeito tinha razão de ser, de uma Parte, no sistema hegeliano de per si, que não atribuia ao espírito seqüência de desenvolvimento histórico, e, de outro lado, no estado das ciências naturais na época. Assim, Hegel recua, neste ponto, bem para antes de Kant que, em sua teoria da nebulosa, já punha em foco o problema das origens e cujo descobrimento do obstáculo que, segundo se supunha, as marés criavam ao movimento de rotação da terra, anunciava já a consolidação do sistema solar. Finalmente, o problema, para mim, consistia, não em impor à natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e desenvolvê-las, partindo da mesma natureza.

Seria, no entanto, tarefa de gigante seguir este preceito de forma sistemática e em todos os domínios. Não só porque o objetivo a considerar é de quase impossível cálculo, mas ainda porque em todo este terreno a própria ciência da natureza é dominada por um desenrolar tão violento de fenômenos, que a custo a poderia seguir o homem que dispusesse de todo o seu tempo. Ora, desde a morte de Carlos Marx, meu tempo tem sido ocupado por deveres mais urgentes, que me forçam à interrupção do próprio trabalho. Estou, pois, provisoriamente, na contingência de me limitar, na presente obra, a aguardar a ocasião, se é que ela não virá muito tarde, de reunir e publicar os resultados obtidos, bem como, ao mesmo tempo, os importantíssimos manuscritos matemáticos deixados por Marx, Possivelmente, de resto, o progresso da ciência teórica tornará supérflua grande Parte, senão a totalidade do meu trabalho. Porque é considerável a simples tarefa de pôr em ordem as descobertas puramente empíricas, que se acumulam sempre, a fim de tornar progressivamente mais evidente o caráter dialético dos fenômenos, ainda mesmo aos mais recalcitrantes empiristas. As velhas antíteses rígidas, as linhas nítidas de demarcação intransponíveis, desaparecem pouco a pouco. Desde a fluidificação dos últimos gases"autênticos"; desde a prova obtida de que um corpo pode ser reduzido a um estado em que a forma liquida e a forma gasosa são indiscerníveis, os estados de agregação perderam a última Parte do caráter que possuíam anteriormente. Com a fórmula da teoria cinética dos gases, pela qual, nos gases perfeitos, os quadrados das velocidades com que se move cada molécula gasosa são, a iguais temperaturas, inversamente proporcionais aos pesos moleculares, o calor entra, por seu turno, na série de fórmulas diretamente mensuráveis. Ainda há dez anos, a grande lei fundamental do movimento, que acaba de ser descoberta, era conhecida como lei da"conservação da energia", simples expressão da indestrutibilidade e da invariabilidade do movimento do ponto de vista puramente quantitativo; mas, cada vez mais, esta estrita expressão negativa se substitui por uma expressão positiva: a da transformação da energia, onde se tem em conta, pela primeira vez, o conteúdo qualitativo do processus e o desaparecimento das últimas reminiscências de um criador sobrenatural. Já não há necessidade de afirmar-se, como se fora novidade, a idéia de que a quantidade de movimento (daquilo a que se dá o nome de"energia") não se transforma quando, de energia cinética, dita"força mecânica", ela se converte em eletricidade, calor, energia potencial e reciprocamente. Ela serve de base, doravante bem mais sólida, do processus de metamorfose em si mesmo, do grande processus fundamental cujo conhecimento encerra o conhecimento integral da natureza. E, desde que a biologia se desenvolve à luz da teoria evolucionista, foram-se apagando igualmente, no domínio da natureza orgânica, uma a uma, as linhas divisórias da classificação: elementos intermediários quase inclassificáveis multiplicam-se dia a dia; qualquer estudo mais acurado nos revela organismos de uma classe em outra e os caracteres distintivos, tornados quase artigos de fé, perdem o seu valor absoluto: possuímos hoje mamíferos ovíparos, e, se a notícia se confirma aves que caminham sobre quatro patas. Se a célula impôs a Virchow, há anos, a contingência de resolver a individualidade animal (consequentemente humana), numa federação de elementos celulares, este fato ainda mais se complica pela descoberta dos glóbulos brancos do sangue, que circulam à maneira de amebas no corpo dos animais superiores. Ora, são estas, precisamente, as contradições diametrais tidas como insolúveis; são estas as linhas divisórias e de distinção entre as classes estabelecidas arbitrariamente, que deram à ciência teórica moderna o seu acanhado caráter metafísico. Reconhecer que estes contrastes e diferenciações se encontram sem dúvida na natureza, mas relativamente apenas; que esta rigidez pressuposta, este valor absoluto não se enquadram na natureza senão pela nossa reflexão; eis em que consiste, na essência, a concepção dialética da natureza, Chega-se a tal concepção através da acumulação dos fatos da ciência da natureza; com maior facilidade a ela se chegará com a compreensão anterior da consciência das leis do pensamento dialético. Em todo caso, a ciência da natureza está hoje na situação de não mais poder fugir à síntese dialética. A compreensão do pensamento dialético facilitará a síntese, desde que não perca de vista que os resultados, em que se resumem suas experiências, são outros tantos conceitos, e a arte de operar com eles não é nem inata nem dada pelo senso comum ordinário, mas exige uma verdadeira ação do pensamento, que, por sua vez, é possuidor de uma longa história experimental, da mesma forma que a investigação empírica da natureza. Exatamente por isso, pelo fato de que vão aprendendo a utilizar os resultados de três milênios de história filosófica, por isso é que as ciências econômicas se estão emancipando de toda essa pretensa filosofia da natureza, estranha e superior a elas, assim como se vão também emancipando do mesquinho método especulativo, herdado do empirismo inglês.

Londres, 23 de setembro de 1885.


Inclusão 30/10/2002