A Dialética da Natureza

Friedrich Engels


Prefácio


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A moderna investigação da Natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as intuições filosófico-naturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e em sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes. A moderna investigação da Natureza data, como toda a história moderna, dessa época poderosa a que nós, os alemães, denominamos a Reforma, depois da desgraça nacional que, por sua causa, nos aconteceu, a que os franceses chamam de Renascença e os italianos de Cinquecento, época que nenhum desses nomes explica exatamente. Ela se inicia na segunda metade do século XV. A realeza, apoiando-se nos habitantes das cidades ou sejam os burgueses, enfraqueceu o poder da nobreza feudal e fundou as grandes monarquias, baseadas essencialmente no conceito de nacionalidade. Sob esse regime, alcançaram grande desenvolvimento as modernas nações européias e a moderna sociedade burguesa. E, enquanto a burguesia e a nobreza continuavam engalfinhadas, a revolução camponesa alemã assinalou profeticamente as lutas de classe, trazendo à cena não só os camponeses sublevados — o que já não era novidade —, mas também, por trás deles, o esboço do proletariado atual, tendo, nas mãos uma bandeira vermelha e, nos lábios, a exigência da comunidade de bem.

Nos manuscritos encontrados depois da queda de Bizâncio e nas estátuas antigas descobertas em escavações feitas nas ruínas de Roma, desvendou-se aos olhos do Ocidente assombrado um verdadeiro mundo novo: a antiguidade grega. Diante de suas luminosas figuras, desapareceram os fantasmas remanescentes da Idade Média. Na Itália surgiu um florescimento artístico inesperado, resultado reflexo da antiguidade clássica e que nunca mais voltou a ser alcançado. Na Itália, na França e na Alemanha surgiu uma nova literatura, a primeira moderna. Inglaterra e Espanha viveram, pouco depois, sua época de literatura clássica. Foram derrubados os muros do antigo orbis terrarum; a Terra foi, então, realmente descoberta, lançando-se as bases do futuro comércio mundial, bem como a transição do artesanato à manufatura, que foi, por sua vez, o ponto de partida da moderna grande indústria. Foi atenuada a ditadura espiritual da Igreja. Os povos germanos repeliram-na, em sua maioria, tendo adotado o Protestantismo, enquanto que, entre os povos latinos, estabeleceu-se uma alegre liberdade de pensamento, imitada dos árabes e alimentada pela filosofia grega, recentemente descoberta, tendo-se assim preparado o terreno para o materialismo do século XVIII.

Foi essa a maior revolução progressista que a humanidade havia vivido até então, uma época que precisava de gigantes e, de fato, engendrou-os: gigantes em poder de pensamento, paixão, caráter, multilateralidade e sabedoria. Os homens que estabeleceram o moderno domínio da burguesia eram alguma coisa em quase nada limitados pelo espírito burguês. Muito pelo contrário, o caráter aventureiro dessa época neles se refletiu em certa dose. Não existia, então, quase nenhum homem de certa importância que não tivesse feito extensas viagens; que não falasse quatro ou cinco idiomas; que não se projetasse em várias atividades. Leonardo da Vinci era não só um grande pintor, mas também um grande matemático, mecânico e engenheiro, a quem os mais variados ramos da física devem importantes realizações. Albert Dürer era pintor, gravador, escultor, arquiteto e, além disso, inventou um sistema de fortificações que continha várias das idéias, muito mais tarde assimiladas por Montalembert, das modernas fortalezas alemãs.

Maquiavel era estadista, historiador, poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro escritor militar digno de menção nos tempos modernos. Lutero não só limpou os estábulos de Áugias da Igreja, como também o do idioma alemão: criou a prosa alemã moderna e escreveu o texto e a melodia desse coral triunfal que foi a Marselhesa do século XVI. Os heróis dessa época não se achavam ainda escravizados à divisão do trabalho, cuja ação limitativa, tendente à unilateralidade, se verifica frequentemente entre seus sucessores. Mas o que constituía sua principal característica era que quase todos participam ativamente lutas práticas de seu tempo, tomavam partido e lutavam, este por meio da palavra e da pena, aquele com a espada, muitos com ambas. Daí essa plenitude e força de caráter que fazia deles homens completos. Os sábios de gabinete são a exceção: ou eram pessoas de segunda ou terceira classe, ou prudentes filisteus que temiam queimar os dedos.

Assim também a investigação da Natureza evoluía então, acompanhando a revolução geral, e era, por seu turno, inteiramente revolucionária, uma vez que era forçada a lutar pelo seu direito à existência. Ao lado dos grandes italianos, iniciadores da filosofia moderna, a investigação da Natureza forneceu alguns mártires, levados à fogueira ou aos cárceres da Inquisição. É bastante significativo o fato de que os protestantes sobrepuseram-se aos católicos no que se refere à perseguição à livre investigação da Natureza. Calvino mandou queimar Miguel Servet, quando este estava prestes a descobrir a circulação do sangue, determinando que fosse assado lentamente, durante duas horas, ao passo que a Inquisição se contentava com, apenas e simplesmente, queimar Giordano Bruno.

O ato revolucionário pelo qual a investigação da Natureza declarou sua independência e repetiu, de certo modo, a queima de bulas papais, realizada por Lutero, foi a edição da obra imortal em que Copérnico, embora timidamente e já próximo da morte, lançou à autoridade eclesiástica sua luva de desafio a respeito das coisas da Natureza. A partir desse ponto, as ciências naturais se emanciparam da teologia, muito embora os esclarecimentos a respeito das pretensões daquelas e desta se arrastem até os nossos dias, não tendo ainda entrado em determinadas cabeças. Mas, desde então, o desenvolvimento das ciências se tem realizado a passo de gigante, podendo-se dizer que ganhou, em força, proporcionalmente ao quadrado da distância (o tempo), considerado o seu ponto de partida. É como se devêssemos demonstrar ao mundo que, daqui por diante, o mais excelso produto da matéria orgânica, — o espírito humano — é regido por uma lei de movimento, contrária à da matéria bruta.

A tarefa principal, nesse primeiro período das ciências naturais, então iniciado, era o domínio das questões mais imediatas. Na maior parte do que havia, quanto a conhecimentos científicos, tornava-se necessário começar tudo desde o princípio. A antiguidade clássica nos havia legado Euclides e o sistema solar de Ptolomeu; os árabes, a numeração decimal, os primeiros elementos da álgebra, a numeração moderna e a alquimia. A Idade Média, cristã, nada nos deixou. Em face de tal situação, tornava-se necessário que se colocassem em primeiro lugar as ciências naturais mais elementares: a ciência dos corpos celestes e terrestres; e, ao lado dela, a seu serviço, a criação e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. Nesse terreno, grandes coisas foram realizadas. No fim do período assinalado por Newton e Lineu, vamos encontrar esses ramos da ciência já delineados em seus aspectos fundamentais. Os métodos matemáticos, principalmente, foram estabelecidos no que havia de essencial — a geometria analítica, por Descartes, os logaritmos, por Neper, o cálculo diferencial e integral, por Leibnitz e talvez por Newton.(1) O mesmo se pode dizer em relação à mecânica dos corpos sólidos, cujas leis principais foram definitivamente esclarecidas. Finalmente, no que diz respeito à astronomia do sistema solar, Kepler estabeleceu as leis dos movimentos planetários e Newton as incluiu nos leis gerais do movimento da matéria.

Os demais ramos das ciências naturais ficaram muito distanciados do desenvolvimento fundamental daquelas outras. A mecânica dos corpos líquidos e gasosos começou a elaborar-se justamente no fim desse período. A física propriamente dita não havia vencido seus processos iniciais, excetuando-se a ótica, cujos excepcionais progressos foram determinados pelas necessidades práticas da astronomia. A química começava, então, a emancipar-se da alquimia, mediante a teoria flogística. A geologia estava ainda na etapa embrionária da mineralogia; a paleontologia não podia, pois, existir. Finalmente, no campo da biologia, a preocupação principal era a coleta e uma primeira classificação do imenso material, tanto botânico e zoológico, como anatómico e fisiológico. Era apenas possível, então, a comparação das formas viventes entre si, a investigação de sua distribuição geográfica, bem como das condições climáticas e outras que pudessem influir sobre elas. A esse respeito, somente a botânica e a zoologia conseguiram, até certo ponto, completar-se com as obras de Lineu.

Mas o que, realmente, caracteriza esse período é a elaboração de uma peculiar concepção de conjunto, cujo centro é constituído pela noção da invariabilidade absoluta da Natureza. Fosse qual fosse o modo pelo qual a natureza tivesse chegado a existir, uma vez passando a existir devia permanecer tal como era, enquanto existisse. Os planetas e seus satélites, uma vez postos em movimento, pelo misterioso impulso primeiro, deviam continuar girando e girando, segundo as elipses estabelecidas, por toda a eternidade ou, pelo menos, até o fim de todas as coisas. As estrelas permaneceriam para sempre fixas e imóveis em seus lugares, sustentando-se nos mesmos graças à gravitação universal. A Terra havia sido a mesma, desde sempre ou desde o dia de sua criação, segundo se preferisse acreditar. Os atuais cinco continentes haviam sempre existido e haviam tido sempre as mesmas montanhas, vales e rios, o mesmo clima, a mesma flora e fauna, a menos que tivessem sido modificados pela mão humana ou pelo transplante. As espécies de plantas e de animais haviam sido fixadas para sempre, desde suas origens. Cada espécie gerava sempre outra igual e já era avançar muito o fato de Lineu admitir que aqui ou acolá poderiam talvez surgir novas espécies em consequência de cruzamentos. Em contraste com a história da humanidade, que se desenvolve no tempo, prescreveu-se à história natural um desenvolvimento apenas no espaço. Negava-se toda a modificação, todo o desenvolvimento na Natureza. A ciência natural, tão revolucionária a princípio, defrontou-se, de repente, com uma Natureza absolutamente conservadora, em que tudo era hoje da mesma forma que havia sido a princípio e na qual tudo teria que permanecer tal como era, até o fim do mundo ou por toda a eternidade.

A ciência natural da primeira metade do século XVIII era muito mais avançada do que a da antiguidade grega no que se refere ao conhecimento e à classificação de seus materiais, mas, ao mesmo tempo, abaixo dela no que diz respeito ao domínio ideal desse material, dentro da concepção geral da Natureza. Segundo os filósofos gregos, o mundo era algo que havia saído do caos e, depois se desenvolvera, isto é, algo que se fora fazendo. Para os naturalistas do período de que nós nos ocupamos, a Natureza era algo ossificado, algo invariável e, para a maioria deles, algo que havia sido feito de um só golpe. A ciência encontrava-se ainda profundamente dominada pela teologia. Por toda a parte se buscava e se encontrava, como último recurso, um impulso exterior que não podia ser explicado pela própria Natureza. Se as leis da atração, pomposamente batizadas por Newton com o nome de gravitação universal, forem concebidas como uma propriedade essencial da matéria, donde vem a força tangencial, não explicada, sem a que seriam impossíveis as órbitas planetárias? Como surgiram as inumeráveis espécies de animais e de plantas. E como surgiu o homem, que não consta ter existido desde a eternidade? A essas perguntas, a ciência natural frequentemente respondia lançando a responsabilidade sobre o Criador de todas as coisas. Copérnico, no início desse período, lança a luva do desafio à teologia; Newton o termina com o postulado do primeiro impulso divino. O conceito geral mais elevado a que conseguiu chegar a ciência natural foi o da utilidade das coisas da Natureza, a trivial teologia de Wolff, segundo a qual os gatos foram criados para comer os ratos, os ratos para ser comidos pelos gatos e toda a Natureza, para demonstrar a sabedoria do Criador. A mais alta honraria que se pode atribuir à filosofia dessa época é o fato de não se ter deixado extraviar em consequência da limitação dos conhecimentos das ciências naturais então existentes; o fato de haver — desde Spinosa até os grandes materialistas franceses — persistido em explicar o mundo por si mesmo e não deixar à ciência natural do futuro a justificação detalhada desse conceito.

Incluo os materialistas do século XVIII nesse período, porque não dispunham eles de nenhum outro material de ciências naturais, a não ser o já descrito. A obra transcendente de Kant, que sintetizou todo o conhecimento dessa época (na qual estabelecia que o mundo tivera sua origem no seio de uma nebulosa), continuava desconhecida, sendo que Laplace só veio muito depois deles. É preciso não esquecer que essa antiquada concepção da Natureza, muito embora desmentida em todos os seus pontos pelo progresso da ciência, continuou predominando em toda a primeira metade do século XIX e ainda hoje, no essencial, continua sendo ensinada em todas as escolas( I ).

A primeira brecha nessa concepção petrificada da Natureza foi aberta, não por um naturalista, mas por um filósofo. Em 1755 apareceu a História Natural e Teoria Geral sobre o Céu, de Kant. A questão do primeiro impulso era por ele eliminada: a Terra, bem como todo o sistema solar, constituíam algo que se foi formando no transcurso do tempo. Se a grande maioria dos naturalistas houvesse tido menos horror a pensar, esse horror que Newton expressou com a advertência: "Física, toma cuidado com a metafísica"!, seriam levados a deduzir dessa genial concepção de Kant conclusões que lhes teriam poupado intermináveis extravios, bem como um trabalho e tempo imensos, desperdiçados em direções erradas. Isso porque, na obra de Kant, estava o ponto de partida para todo o progresso ulterior. Se a Terra era algo que se tinha sido formando, então estava claro que seu atual estado biológico, geográfico e climático, suas plantas e animais deveriam também ter-se ido formando pouco a pouco. A Terra havia de ter uma história, não só no espaço, das coisas colocadas umas ao lado das outras, como também no tempo, das coisas sucedendo-se umas depois da outra. Se, imediatamente depois da publicação da obra de Kant, houvessem prosseguido decididamente as investigações nesse sentido, as ciências naturais estariam hoje muito mais adiantadas do que estão. Mas, da filosofia, que poderia resultar de bom? A obra de Kant não encontrou eco imediato; só longos anos depois, Laplace e Herschel tiveram ocasião de aplicar sua doutrina, dando-lhe fundamentos mais detalhados e impondo, gradualmente, a hipótese da nebulosa.(2) Descobertas ulteriores concederam-lhe, enfim, a vitória. Entre elas, as mais importantes foram: o movimento próprio das estrelas fixas; a verificação de que há um meio que opõe certa resistência nos espaços interestelares; a prova realizada, por intermédio da análise espectral, da existência dos mesmos corpos químicos em todo o universo e a existência também das massas radiantes sugeridas por Kant.

Apesar disso, pode-se pór em dúvida que a maioria dos naturalistas tivesse chegado, desde logo, a adquirir consciência da contradição contida no fato de uma Terra que se modifica (embora contenha em si organismos invariáveis} caso a idéia nascente de que a Natureza não é, mas sim, um permanente vir-a-ser e passar, não tivesse recebido o apoio de outros fatos. Surgiu a geologia e não só se verificou a existência de camadas terrestres colocadas umas sobre as outras, formadas uma depois da outra, como também foram encontrados, nessas camadas, carcaças e esqueletos de espécies animais já extintas, ao lado de troncos, folhas e frutos de plantas que já não existiam, Era, portanto, forçoso reconhecer que não só a Terra, em seu conjunto, mas também sua atual superfície, bem como as plantas e animais que nela vivem, deviam ter uma história, no tempo. Isso foi, a princípio, reconhecido com muita má vontade. A teoria de Cuvier sobre os cataclismas verificados na Terra era revolucionária nas palavras, mas reacionária de fato. Em lugar de uma criação divina única, estabelecia uma série de rápidos atos de criação, convertida esta, por milagre, em uma alavanca essencial da Natureza. Recentemente, Lyell introduziu um conceito racional na geologia, ao substituir essas súbitas revoluções, provocadas por um simples capricho do Criador, por ações graduais de lentas modificações processadas na Terra.(II)

Essa teoria de Lyell era, no entanto, ainda mais incompatível com a noção de espécies orgânicas imutáveis do que as teorias precursoras. A transformação gradual da superfície terrestre, e de todas as condições de vida sobre a mesma, conduzia diretamente à transformação gradual dos organismos e sua adaptação a esse meio que se transformava: — conduzia, pois, à variabilidade das espécies. Mas a tradição é uma força não só na Igreja Católica, mas também nas ciências naturais. O próprio Lyell não atinou com a contradição durante muitos anos, e seus discípulos ainda menos. Isso só se pode explicar como resultado da divisão do trabalho, que havia sido introduzida nas ciências naturais, o que limitava cada um, mais ou menos, dentro de uma determinada disciplina especial e que somente a muito poucos não despojava da visão de conjunto.

Entretanto, a física havia feito progressos gigantescos. Seus resultados foram coordenados, quase simultaneamente, em 1842, ano transcendental para esse ramo de investigação da Natureza, por três homens, em diferentes pontos. Mayer, em Heilbronn; e Joule, em Manchester, assinalaram a transformação do calor em energia(3) mecânica e da energia mecânica em calor. Em consequência, ficou fora de qualquer dúvida a determinação do equivalente mecânico do calor. Ao mesmo tempo, demonstrou Grove — que não era naturalista profissional, mas advogado inglês, tendo apenas coordenado os resultados físicos já conseguidos — o fato de que todas as chamadas forças físicas podem transformar-se umas em outras, sob determinadas condições: a energia mecânica, o calor, a luz, a eletricidade, o magnetismo e até mesmo a denominada força química. Essa transformação é produzida sem perda alguma de energia. Dessa maneira e por intermédio da física, Grove demonstrou o princípio de Descartes segundo o qual a quantidade de movimento existente no mundo é invariável. Assim sendo, as diferentes energias físicas, por assim dizer, as espécies invariáveis da física, permaneciam unificadas como formas de movimento da matéria, diferenciadas e transformáveis umas em outras segundo leis determinadas. Era assim eliminada da ciência a casualidade da existência de determinado número de forças físicas, ao demonstrar-se suas correlações e formas de transformação.

A física chegava, pois, como havia chegado já a astronomia, ao resultado que aponta inevitavelmente, como princípio último, a eterna circulação da matéria em movimento.

A maravilhosa rapidez do desenvolvimento da química, a partir de Lavoisier, e especialmente de Dalton, destruiu, por outro lado, as velhas concepções a respeito da Natureza. Ao preparar no laboratório, ou seja, por via inorgânica, combinações até então só encontradas em organismos vivos, a química demonstrou a validade de suas leis quer no que se refere aos corpos orgânicos, quer aos inorgânicos, dessa maneira transpondo, em grande parte, o imenso abismo que, mesmo depois de Kant, continuava a existir entre a natureza orgânica e a inorgânica.

Finalmente, o uso do método comparativo, por sua vez, tornou possível e necessário, no domínio da investigação biológica (graças à acumulação crescente de material resultante de viagens e expedições científicas, empreendidas sistematicamente desde meados do século XVIII) a exploração mais minuciosa das colónias européias, em todos os países, por especialistas neles radicados (em geral, devido aos processos da paleontologia, da anatomia e da fisiologia, especialmente depois do emprego sistemático do microscópio e do descobrimento da célula). Por um lado, as condições de vida das diferentes floras e faunas foram estabelecidas por meio da geografia física comparada; e por outro, os diferentes organismos foram comparados no referente a seus órgãos homólogos. E o foram, não somente depois da maturidade, como também em todas as fases de seu desenvolvimento.

Quanto mais profunda e exata se ia fazendo essa investigação, tanto mais se ia desfazendo, entre suas mãos, aquele rígido sistema de uma natureza orgânica invariavelmente fixa. Não somente se transformavam umas em outras, sem remédio, diferentes espécies de plantas e animais, como também apareciam certos animais como o Amphioxus e a Lepidosirena,(4) que desafiavam todas as classificações existentes, tendo sido encontrados organismos a respeito dos quais não era sequer possível decidir se pertenciam ao reino animal ou vegetal. As lacunas, no arquivo paleontológico, iam sendo gradativamente preenchidas, razão pela qual se impunha, mesmo aos mais recalcitrantes, o resultante paralelismo existente entre a história do desenvolvimento do mundo orgânico, em seu conjunto, e de cada organismo em particular. Tornava-se necessário lançar mão do fio de Ariadne, capaz de apontar o caminho para fora do labirinto em que a botânica e a zoologia parecia que se extraviavam cada vez mais. Era significativo o fato de que, quase simultaneamente com o ataque de Kant à eternidade do sistema solar, lançasse C. F. Wolff, em 1759, o primeiro ataque à invariabilidade das espécies e proclamasse a teoria transformista. E aquilo que, então era apenas uma antecipação genial, tomou forma consistente com as obras de Oken, Lamarck e Baer, sendo levado à vitória por Darwin exatamente cem anos depois, em 1859. Quase ao mesmo tempo, verificou-se que o protoplasma e a célula, (que anteriormente haviam sido já apontados como formas primárias de todos os organismos), existem com vida independente, tal como as formas orgânicas mais primitivas. Dessa maneira, o abismo entre a Natureza orgânica e inorgânica ficava reduzido a um mínimo, sendo eliminada uma das principais dificuldades que se opunham, até então, à teoria da transformação progressiva de todos os organismos. A nova concepção da Natureza ficava, assim, configurada em suas linhas gerais: tudo aquilo que se considerava rígido, se havia tornado flexível; tudo quanto era fixo, foi posto em movimento; tudo quanto era tido por eterno, tornou-se transitório; ficara comprovado que toda a Natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação.

Dessa forma, voltava-se às concepções dos grandes fundadores da filosofia grega: em toda a Natureza desde o menor ao maior, do grão de areia aos sóis, dos protistas(5) ao homem, há um eterno vir a ser e desaparecer, numa corrente incessante, num incansável movimento e transformação. Tudo isso, apenas com uma diferença essencial: tudo quanto, entre os gregos, era uma intuição genial, tornou-se agora para nós o resultado de uma investigação severamente científica, ligada à experiência e, por conseguinte, o conhecimento se apresenta sob uma forma muito precisa e clara. Na realidade, a determinação empírica dessa circulação universal, não está inteiramente livre de falhas, mas estas são insignificantes em comparação com o que já foi determinada com perfeita exatidão. Não podia deixar de ser incompleta a descrição dos detalhes, se considerarmos que os principais ramos da ciência — astronomia, a química, a geologia — contam apenas um século de existência; a fisiologia comparada, cinquenta anos; e o elemento fundamental de quase todo o desenvolvimento vital — a célula — foi descoberto faz apenas quarenta anos.

De torvelinhos e vapores incandescentes (cujas leis de movimento talvez sejam descobertas depois que as observações de vários séculos, os esclareçam sobre o movimento próprio das estrelas) desenvolveram, por contração e esfriamento, os inumeráveis sóis e sistemas solares de nosso universo insular,(6) limitado pelos anéis estelares mais afastados da Via Látea. Essa evolução não se produziu, evidentemente, em todas as partes, com igual ritmo. A existência, em nosso sistema solar, de corpos escuros não planetários (quer dizer, de sóis apagados), cada vez mais se impõe no campo da astronomia (Madler). Além disso, (segundo Secchi,) fazem parte de nosso sistema estelar algumas manchas nebulosas que ainda não constituem sóis completos, razão pela qual é possível admitir que outras nebulosas (como sustenta Madler) sejam universos insulares independentes, muito afastados, cujo desenvolvimento relativo deverá determinar o espectroscópio.

Laplace estabeleceu, de maneira até agora não superada, que todo o sistema solar é proveniente de uma só massa nebulosa; e a ciência posterior cada vez mais o tem confirmado.(7)

Nos diferentes corpos assim formados — sóis, da mesma maneira que planetas e satélites — predomina, de início, a forma de movimento da matéria a que denominamos de calor. Não são possíveis combinações químicas nem mesmo a uma temperatura semelhante à que possui ainda o Sol. Em que medida o calor se transforma em eletricidade ou magnetismo(8) será determinado por continuadas observações solares. Que os movimentos mecânicos, produzidos no Sol, são resultantes, principalmente, do conflito entre o calor e a gravidade, é um assunto quase resolvido.

Os diferentes corpos se esfriam tanto mais rapidamente quanto menores são. Primeiramente os satélites, os asteróides e os meteoros; do mesmo modo que a nossa Lua está morta há muito tempo. Os planetas se esfriam mais lentamente; e ainda mais lentamente, o corpo central.

Com o esfriamento progressivo, adquirem maior importância as variações das formas físicas de movimento, as quais se transformam umas em outras, até ser alcançado um ponto a partir do qual começam a prevalecer as afinidades químicas, isto é, em que os elementos químicos até então indiferentes, se diferenciam quimicamente, uns depois dos outros, adquirindo propriedades químicas e combinando-se entre si. Essas combinações variam constantemente, de acordo com a queda da temperatura, que não só influi, de diferentes maneiras, sobre cada elemento, mas também sobre as diferentes combinações de elementos em seguida, pela transformação resultante da queda de temperatura de uma parte da matéria gasosa, primeiro no estado líquido e, depois, no estado sólido; e finalmente, em consequência das novas condições assim produzidas.

A época em que o planeta adquire uma crosta sólida e se verificam acumulações de água em sua superfície coincide com aquela em que seu calor natural é cada vez menor relativamente ao calor recebido do corpo central. Sua atmosfera se torna cenário de fenómenos meteorológicos, no sentido em que hoje entendemos essa palavra; e sua superfície sofre transformações geológicas em consequência das quais os depósitos produzidos pelas precipitações atmosféricas, predominam cada vez mais sobre a influência progressivamente debilitada do seu núcleo incandescente no sentido do exterior. Quando a temperatura desce o suficiente para que, pelo menos em uma parte importante da superfície, não ultrapasse os limites dentro dos quais pode existir a proteína(9), então é possível formar-se, sob condições químicas favoráveis, o protoplasma vivente.

Quais são essas condições prévias favoráveis, não o sabemos ainda, o que não é de estranhar, porque até agora não se conseguiu obter a fórmula química da proteína, já que não sabemos sequer quantas proteínas quimicamente diferentes existem, dado que somente há uns dez anos é conhecido o fato de que a proteína, embora carecendo totalmente de estrutura(10), realiza todas as funções essenciais à vida: digestão, eliminação, movimento, contrações, reação contra as irritações, reprodução. É possível que tenham transcorrido milhares de anos até que aparecessem as condições sob as quais se realizou o primeiro progresso e essa proteína amorfa pudesse constituir a primeira célula, tendo formado seu núcleo e sua membrana. Mas essa primeira célula representava a constituição de todo o mundo orgânico. Primeiro, como é possível admitir-se em virtude de todas as analogias do arquivo paleontológico, desenvolveram-se inumeráveis espécies de protistas não celulares e celulares, dos quais nos foi transmitido unicamente o Eozoon canandense(11), tendo-se alguns diferenciado gradualmente, transformando-se nas primeiras plantas e, outros, nos primeiros animais. E, dos primeiros animais, se desenvolveram, principalmente por meio de novas diferenciações, as inumeráveis classes, ordens, famílias, gêneros, espécies animais; em último lugar, o animal em que o sistema nervoso atinge o desenvolvimento mais completo — a dos vertebrados —; e finalmente, entre eles, o vertebrado em quem a Natureza adquire consciência de si mesma: o homem.

Também o homem surge por diferenciação. Não somente individual, diferenciado de uma célula ovular até o organismo mais complicado que produz a Natureza, mas também historicamente. Quando, depois de lutas milenares(12), se fixou finalmente a diferenciação da mão e do pé, donde resultou o caminhar ereto, o homem se tornou diferente do mono; constituiu-se o fundamento do desenvolvimento da linguagem articulada e da formidável expansão do cérebro que, desde então, tornou intransponível o abismo que separa o homem do macaco.

A especialização da mão: ela significa a ferramenta; e a ferramenta significa a tarefa especificamente humana, a reação transformadora do homem sobre a Natureza, sobre a produção. Também os animais, entendidos num sentido limitado, possuem ferramentas; mas apenas como membros de seu corpo: a formiga, a abelha, o castor. Há também animais que produzem, mas sua influência produtiva sobre a Natureza circundante é igual a zero. Unicamente o homem conseguiu imprimir seu selo sobre a Natureza, não só trasladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de seu lugar de habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado grau que as consequências de sua atividade só poderão desaparecer com a morte da esfera terrestre. E tudo isso ele o conseguiu, em primeiro lugar e principalmente, por intermédio da mão. Até mesmo a máquina a vapor, por enquanto sua mais poderosa ferramenta para transformar a Natureza, em última análise e pelo fato de ser uma ferramenta, repousa sobre a mão. Mas, ao lado da mão, se desenvolveu passo a passo o cérebro, tendo aparecido a consciência, primeiro das condições necessárias para serem alcançados determinados efeitos práticos úteis; e, mais tarde, entre os povos mais favorecidos, e resultante dela, a penetração e investigação das leis naturais que os condicionam. E, como o conhecimento rapidamente crescente dessas leis naturais, aumentaram os meios de reagir sobre a Natureza. A mão, por si mesma, não teria jamais realizado a máquina a vapor, se o cérebro do homem não se tivesse desenvolvido qualitativamente, com ela, ao lado dela e, até certo ponto, por meio dela.

Com o homem, entramos na história. Também os animais têm uma história: a de sua descendência e desenvolvimento gradual até seu estado atual. Mas essa história é feita para eles e, na medida em que eles mesmos dela participam, se realiza sem que o saibam ou queiram. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastam do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico aos objetivos previamente estabelecidos.

Mas, se aplicarmos essa medida à história humana, mesmo que seja a dos povos mais avançados da época atual, verificaremos que inclusive entre eles persiste ainda uma colossal desproporção entre os objetivos fixados e os resultados obtidos; veremos que predominam os efeitos não previstos; que as forças não controladas são muito mais poderosas do que as postas em movimento de acordo com o plano estabelecido. E não pode ser de outra maneira, enquanto a principal atividade histórica do homem, aquela que o elevou da animalidade à humanidade, a que constitui o fundamento material de todas as suas outras atividades — a produção para as necessidades de sua vida, isto é, hoje em dia a produção social — enquanto essa atividade estiver submetida ao jogo flutuante de influências indesejáveis, de forças não controladas, só excepcionalmente se realizando o objetivo desejado, mas com maior frequência, exatamente o contrário. Nos países industriais mais avançados, o homem dominou as forças naturais, submetendo-as ao seu serviço. Dessa maneira, se conseguiu multiplicar infinitamente a produção, de modo que um menino, hoje em dia, produz mais que cem adultos antes. Qual a consequência daí decorrente? Crescente excesso de trabalho e crescente miséria das massas; e a cada dez anos, um grande krach (craque ou crise). Darwin não teve a menor idéia da amarga sátira que escrevia sobre os homens (e especialmente sobre seus compatriotas), quando afirmou que a livre competição, a luta pela existência, que os economistas celebram como sendo a maior conquista histórica do homem, constitui exatamente o estado natural do reino animal.

Somente uma organização consciente da produção social, de acordo com a qual se produza e se distribua obedecendo a um plano, pode elevar os homens, também sob o ponto de vista social, sobre o resto do mundo animal, assim como a produção, em termos gerais, conseguiu realizá-lo para o homem considerado como espécie. A partir daí, iniciar-se-á uma nova época histórica, em que os homens como tais, (e com eles, todos os ramos de suas atividades, especialmente as ciências naturais) darão à sociedade um impulso que deixará na sombra tudo quanto foi realizado até agora.

Entretanto, tudo quanto é criado acaba perecendo. Podem escoar-se milhões de anos, centenas de milhares de gerações poderão crescer e morrer; mas inexoravelmente avançava a hora em que o calor solar, que declina lentamente(13), não consiga derreter os gelos invasores, provenientes dos pólos; em que os homens, cada vez mais impelidos para uma faixa em torno do Equador, também ali não encontrarão calor suficiente para viverem; em que, pouco a pouco, desaparecerá até o último resquício de vida orgânica e em que a Terra, esfera congelada e morta como a Lua, girará dentro da mais profunda escuridão, segundo uma órbita cada vez mais próxima do Sol (que também se irá apagando), até ser por ele absorvida. Outros planetas a terão precedido, outros seguirão a mesma sorte; em vez do sistema solar, harmonicamente articulado, luminoso e quente, apenas uma esfera fria e morta prosseguirá seu caminho solitário através do espaço. E a mesma coisa acontecerá, mais cedo ou mais tarde, a todos os outros sistemas de nosso universo insular; sucederá a todos os outros inumeráveis universos insulares, mesmo àqueles cuja luz jamais alcançará a Terra, enquanto nela exista um olho humano vivo, capaz de recebê-la. E, quando um sistema solar tiver terminado o seu ciclo de vida e encontrar o destino de tudo quando é perecível e sucumbe na morte, que mais poderá acontecer? Será que o cadáver solar circulará, pela eternidade do espaço, indefinidamente, como cadáver; e todas as forças naturais, antes diferenciadas numa ilimitada multiplicidade, se dissolverão na única forma de movimento denominada atração? "Ou será que (como pergunta Secchi, pág. 310) existem forças na Natureza que restituem ao sistema morto o seu estado inicial de névoa radiante e podem fazê-lo despertar para uma nova vida? Nada sabemos a respeito”.

Na realidade, não o sabemos no mesmo sentido em que 2 X 2 = 4 ou seja, que a atração da matéria aumenta ou diminui segundo o quadrado das distâncias. Mas, de acordo com a teoria das ciências naturais, que elabora sua concepção possível segundo um todo harmónico, e sem a qual nem mesmo o empírico mais empedernido poderá hoje dar um passo, temos que contar frequentemente com fatores não perfeitamente conhecidos; e a lógica do pensamento deve ter ajudado, em todos os tempos, ao conhecimento insuficiente. Pois muito bem: a moderna ciência natural deve ter adotado, da filosofia, o princípio da indestrutibilidade do movimento, sem o qual não poderia subsistir. Mas o movimento da matéria não é apenas o grosseiro movimento mecânico, a simples mudança de lugar; é calor e luz, tensão elétrica e magnética, associações e dissociações químicas, vida e, finalmente, consciência. Afirmar que a matéria, durante toda a sua existência ilimitada no tempo, apenas uma única vez se encontra diante da possibilidade de diferenciar seu movimento e desenvolver, assim, toda a riqueza desse mesmo movimento, acontecendo isso por um espaço de tempo desprezível em relação a sua eternidade; dizer que antes e depois ela fica reduzida a simples mudanças de lugar, isso equivale a afirmar que a matéria é mortal e o movimento é coisa transitória. A indestrutibilidade do movimento não pode ser concebida apenas no sentido quantitativo, mas também no qualitativo. Uma determinada matéria cujas mudanças simplesmente mecânicas de lugar apresentem a possibilidade de transformar-se, sob certas condições favoráveis, em calor, eletricidade, ação química e vida, mas que não é capaz de gerar, por si mesma, essas condições, semelhante matéria terá perdido o movimento. Um movimento que tenha perdido a capacidade de transformar-se nas diferentes formas que lhe são próprias, possui ainda dynamis, mas já não apresenta nenhuma energia(14) e assim terá sido, em parte, destruído. Mas ambas essas coisas são inconcebíveis.

O certo é que houve um tempo em que a matéria de nosso universo insular havia transformado em calor uma massa tal de movimento (não sabemos até agora de que classe seria esse movimento) que, em virtude do mesmo, puderam desenvolver-se pelo menos vinte milhões de sistemas solares (segundo Madler), correspondentes a outras tantas estrelas cuja extinção é também certa. Como se teria produzido essa transformação? Sabemo-lo tão pouco quanto o Padre Secchi sabe se o outro caput mortuum de nosso sistema solar será transformado, algum dia, em matéria prima para um novo sistema solar. Mas, uma de duas: ou devemos, neste caso, recorrer ao Criador, ou somos forçados a admitir a conclusão de que a matéria prima incandescente dos sistemas solares de nosso universo insular foi gerada, em forma natural, por determinadas transformações do movimento, transformações que são naturalmente próprias da matéria em movimento e cujas condições têm, portanto, que ser reproduzidas pela própria matéria, muito embora o sejam depois de muitos milhões de anos e mais ou menos casualmente, mas obedecendo à necessidade, que é também inerente à casualidade.

A possibilidade de semelhante transformação é hoje cada vez mais admitida. Chega-se assim à noção de que os corpos solares estão destinados a se chocarem uns contra os outros e chega-se até a calcular a quantidade de calor que se pode desenvolver em consequência desses choques. O súbito aparecimento de novas estrelas, o repentino aumento da luminosidade de outras já conhecidas coisas sobre as quais somos informados pela astronomia), são fatos mais facilmente explicados uma vez admitidos esses choques(15). Além disso, não só nosso grupo planetário se move em torno do Sol e este dentro de nosso universo insular, como também todo este nosso universo insular move-se, no espaço — num equilíbrio temporário em relação às outras ilhas, isso porque, mesmo um equilíbrio relativo de corpos que flutuam no espaço, só pode subsistir em virtude de movimento reciprocamente condicionado, sendo que alguns cientistas admitem que a temperatura não é a mesma em lodo o espaço interestelar. Finalmente: sabe-se que, com exceção de uma parte insignificante, o calor dos inumeráveis sóis de nosso universo insular é perdido no espaço, sendo vãs seus esforços para elevar sua temperatura pelo menos de um milionésimo de grau centígrado (16). Que será feito de toda essa enorme quantidade de calor? Ter-se-á perdido para sempre na tentativa de aquecer o espaço interestelar? Terá deixado praticamente de existir, subsistindo apenas teoricamente pelo jato de que a temperatura do espaço elevou-se de uma fração decimal que começa por dez zeros ou mais? Esse conceito nega a indestrutibilidade do movimento; admite a possibilidade de que, através das sucessivas precipitações dos corpos solares, uns sobre os outros, todo o movimento mecânico existente é transformado em calor e este irradiado no espaço, daí resultando que todo o movimento acabaria destruído, apesar da indestrutibilidade da força. (De passagem, é necessário assinalar como é distorcida a denominação indestrutibilidade da força(17), ao invés de indestrutibilidade do movimento). Chegamos assim à conclusão de que, por um processo que caberá à futura pesquisa da Natureza esclarecer, o calor irradiado no espaço deve ter a possibilidade de transformar-se em outra forma de movimento, podendo assim voltar a acumular-se e novamente pór-se em ação. Dessa maneira, desaparece a dificuldade principal que se opõe à possibilidade da transformação dos sóis extintos em névoa incandescente.

Por outro lado, a repetição, segundo um ciclo eterno, dos mundos no espaço infinito, é apenas o complemento lógico da existência de um número infinito de mundos no espaço ilimitado. Este é um princípio cuja necessidade se impõe até mesmo a um cérebro ianque antiteórico de um Draper (John William. 1811-1882)(III).

É um ciclo eterno(18) esse em que se move a matéria, um ciclo cuja trajetória fica encerrada em períodos de tempo para os quais nosso ano terrestre não constitui medida possível; um ciclo em que o momento do mais elevado desenvolvimento (o momento da vida orgânica e, mais ainda, da vida animal e de seres conscientes de sua natureza) está tão rigorosamente medido como o espaço em que a vida e a consciência conseguem realizar-se. Um ciclo em que todo o estado definido da matéria, seja sol ou nebulosa, animal individual ou espécie animal, combinação química ou dissociação, tudo é igualmente passageiro; em que nada é eterno a não ser a matéria em eterna transformação e eterno movimento, bem como as leis pelas quais se move e transforma.

No entanto, por mais frequente e inexorável que seja a realização desse ciclo, no tempo e no espaço; sejam quantos forem os milhões de sóis e terras que se possam produzir e perecer; por mais longo que seja o tempo requerido para o aparecimento, em um sistema solar (e só em um de seus planetas) das condições necessárias à vida orgânica; embora sejam inumeráveis os seres orgânicos que devam aparecer e desaparecer antes de que, entre eles, se desenvolvam animais com um cérebro capaz de pensar e que encontrem, por um curto período, condições que tornem possível sua vida, para serem logo depois destruídos inexoravelmente; podemos ter a certeza de que a matéria, em todas as suas transformações, permanece sempre a mesma; que não pode perder nenhum de seus atributos; e que, portanto, com a mesma férrea necessidade com que voltará a destruir, na Terra, sua mais alta floração — o espírito pensante — voltará a engendrá-lo em outra parte e noutro tempo.


Notas:

(1) Não padece quase dúvida nenhuma de que Newton e Leibnitz inventaram, independentemente, o cálculo diferencial. Neste e noutros pontos, Engels critica, talvez com uma dureza demasiada, a obra de Newton. Deve-se recordar que a concepção essencialmente mecanicista da natureza, defendida por Newton, havia obtido tão grande êxito durante mais de um século que era já admitida como um dogma e que, em consequência disso, estava retardando o progresso da ciência. Agora que podemos ver o ponto em que Newton se equivocou, talvez possamos apreciar melhor sua grandeza do que era possível fazê-lo quando era absolutamente necessário criticá-lo. (Nota de Haldane) (retornar ao texto)

(I) Com que inquebrantável firmeza podia sustentar essa opinião, inclusive no ano de 1861, um homem cujos trabalhos científicos forneceram material da maior significação para rebatê-la, fica bem claro nas seguintes e clássicas palavras: "Todas as configurações de nosso sistema solar, na medida em que podemos compreendê-las, tendem à conservação do que existe e a sua invariável continuação. Da mesma forma que, desde os tempos mais remotos, nenhum animal e nenhuma planta tornaram-se mais perfeitos (ou de alguma maneira diferentes); da mesma forma que, em todos os organismos, só encontramos etapas umas ao lado das outras e não sucessivamente; da mesma maneira que nossa raça tem permanecido sempre a mesma no referente aos seus aspectos corporais; assim também, a maior diversidade dos corpos celestes coexistentes não nos autoriza a supor que essas formas são, meramente, diferentes etapas de desenvolvimento, ou melhor, tudo aquilo que é criado é igualmente perfeito por si mesmo" ( Madler, Astronomia Popular, Berlin. 5a edição, 1861, pág 316). (Nota de Engels) (retornar ao texto)

(2) Esta era a regra de que o Sol e seus planetas são a condenação de uma nebulosa rotante. Foi considerada plausível durante mais de um século. Mas atualmente não resta dúvida de que as nebulosas são todas elas enormemente maiores do que o sistema solar; e as nebulosas espirais (duma das quais se pensou haver-se originado o sistema solar) são sistemas de milhares de milhões de estrelas tal como a nossa própria Via Láctea, porém muito mais distantes. Essa hipótese foi, contudo, de uma imensa importância, pois demonstrou, pela primeira vez, que o sistema solar tem uma história. O fato pode ser comparado com as idéias dos antigos a respeito da evolução biológica. (Nota de Haldane) (retornar ao texto)

(II) A falha na concepção de Lyell — pelo menos na sua primeira forma — consiste em considerar as forças que atuavam sobre a Terra constantes em qualidade e quantidade. Não concebia ele o esfriamento da Terra; esta não se desenvolvia — segundo ele — em uma determinada direção: transformava-se, mas de um modo incoerente e casual. (N. de Engels) (retornar ao texto)

(3) Ao longo de todo esse parágrafo, a palavra alemã Kraft (força) foi traduzida por energia. Joule e outros contemporâneos seus empregavam a palavra força justamente onde agora costuma usar energia. Veremos mais adiante (pág. 29) que Engels opós-se ao uso da palavra Kraft (ou força) por energia. Em certa época, preferiu movimento, mas, em seus últimos escritos, empregava o termo energia tal como a maioria dos autores modernos. A mudança realizada esclarece mais o sentido do trabalho de Engels do que se a palavra força tivesse sido empregada. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(4) Lepidosirena — cordado que pode respirar ar durante meses ou até o fim de sua vida. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(5) Protistas — animais e plantas unicelulares, tais como o Paramoecium, a Ameba, o Bacilus. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(6) O fato se refere ao sistema de estrelas de que faz parte o Sol e que representa a região mais densa da Via Láctea. Madler estava com a razão ao sustentar que muitos dos outros corpos então considerados como nebulosas eram massas semelhantes de estrelas. Sua opinião de que há sóis extintos é mais duvidosa. Também não é provável que as nebulosas gasosas se possam, por acaso, condensar em sóis. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(7) A teoria de Laplace quase se pode garantir que está errada. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(8) Nas manchas solares foram descobertos intensíssimos campos magnéticos e sabe-se também que a matéria expelida pelas protuberâncias solares é eletricamente carregada. Esses dois fatos eram insuspeitados pela maior parte, senão pela totalidade, dos astrónomos da época em que escrevia Engels. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(9) Em todo este livro, a palavra Eiweiss, empregada por Engels, é traduzida por proteína. A palavra albumina, empregada na tradução de algumas obras de Engels, é agora unicamente aplicada a um certo grupo de proteínas. As fórmulas químicas de umas poucas proteínas foram estabelecidas, com bastante exatidão, por Bergmann, um refugiado judeu-alemão, em Nova Iorque, em 1936. Mas a ordem em que estão dispostos seus elementos constitutivos é mais incompletamente conhecida. É provável que haja muitos milhões de proteínas diferentes. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(10) Proteína carente de estrutura: o Bathybius Haeckell que — segundo se supunha — era um organismo composto de uma massa de proteína carente de estrutura, ficando logo depois provado ser um artefato, isto é, não um produto natural, mas sim constituído de substâncias químicas que se supunha poder preservá-lo. No entanto, Engels estava, na essência, com a razão. Alguns dos vírus, isto é, os menores agentes causadores da enfermidade, são nada mais do que grandes moléculas de proteína, conforme foi demonstrado por Stanley, em 1936. Parece que não exercem todas as funções da vida, mas apenas algumas. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(11) O Eozoon canadense não é, quase sem dúvida, um produto orgânico. No entanto, há muitas razões para crer na verdade fundamental deste parágrafo. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(12) A escala geológica do tempo é mais ampla do que se acreditava há uns cinquenta anos. Seria mais correto dizer-se milhões de anos. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(13) Até há muito pouco tempo pareciam inevitáveis essas conclusões tão fúnebres, principalmente pelo fato de se haver demonstrado que a escala do tempo era enormemente maior do que a suposta. Mas, entre 1936 e 1938, Milne e Dirac chegaram, independentemente, à conclusão de que as próprias leis da Natureza evoluem; e Milne, em particular, concluiu que as transformações químicas se aceleram (numa proporção de aproximadamente 1/2.000.000.000 parte, por ano) em relação às transformações físicas. Se assim for, é concebível, pelo menos, que esse processo possa ser suficientemente rápido para compensar o esfriamento das estrelas e a vida, portanto, nunca se torne impossível. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(14) Dynamis e Energia são palavras gregas empregadas por Aristóteles. Podem ser traduzidas, aproximadamente, como potência e atividade. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(15) O aparecimento de novas estrelas é agora explicado, em geral, não como consequência de uma colisão, mas devido a uma crise interna da própria estrela, o que estaria mais de acordo com a dialética. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(16) Na realidade, a temperatura das partículas de pó cósmico, existentes entre as galáxias, deve ser provavelmente de vários graus acima do zero absoluto. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(17) Engels protesta, com toda a razão, contra o uso da mesma palavra Kraft para designar força e energia. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(III) "A multiplicidade de mundos, no espaço infinito, conduz à concepção de "uma sucessão de mundos, no tempo infinito." (Draper, History of the Intellectual Development of Europe, 1864, II, pág. 525). (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(18) Atualmente os físicos estão divididos em face dessa questão. Alguns poucos participam da opinião de Engels, segundo a qual o universo experimenta transformações cíclicas, diminuindo, de certa forma, a entropia por processos até agora desconhecidos (por ex.: formação de matéria originária de radiações interestelares). Outros pensam, como Clausius (ver Apontamentos, nota IV), que haverá degradação. Há, porém, uma terceira possibilidade. Como foi dito mais acima, o trabalho de Milne sugere que o universo, em seu conjunto, tem uma história, muito embora seja infinita, no passado e no futuro. É quase certo que Engels teria dado seu beneplácito a essa idéia, apesar de admitir a eternidade das leis segundo as quais se move e se transforma a matéria. Mas a pág. 223 deixa bem claro o quanto Engels se aproximou do ponto de vista de Milne. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

Inclusão 10/07/2018