Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção I. Grandes Panoramas
A questão americana na Inglaterra
(Marx. Escrito em 18/09/1861 e publicado pela primeira vez no New-York Daily Tribune, n. 6403, 11/10/1861, republicado no New York
Semi-Weekly Tribune
, n. 1710 de 15/10/1861)


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Londres, 18 de setembro de 1861

Sejam quais forem suas qualidades intrínsecas, a carta enviada pela sra. Beecher Stowe para lorde Shaftesbury teve o mérito de obrigar os órgãos antinortistas da imprensa londrina a expor para o grande público as pretensas razões de sua hostilidade com o Norte e de suas simpatias mal dissimuladas em relação ao Sul. Notemos de passagem que essa é uma atitude estranha entre pessoas que manifestam horror à escravidão.

A atual guerra americana proporciona um grande tormento para esta imprensa, uma vez que “não se tratando de um conflito para a abolição da escravidão”, não se pode solicitar ao cidadão britânico, alma nobre, obrigado a conduzir suas próprias guerras, a se interessar pelas guerras dos demais povos e, sob o ponto de vista de seus “grandes princípios humanitários”, experimentar a menor simpatia pelos primos do Norte.

O The Economist se expressa nos seguintes termos: “Em primeiro lugar, é tanto imprudente quanto falso simular que o conflito entre o Norte e o Sul seja uma disputa pela liberdade de negros de um lado, e pela escravidão dos negros do outro lado”. A Saturday Review declara: “[o Norte] não proclama a abolição e jamais pretendeu lutar contra a escravidão. O Norte jamais inscreveu em suas bandeiras o símbolo sagrado da justiça para com os negros. Seu grito de guerra não é a abolição incondicional da escravidão”. Por fim, o Examiner escreve: “Se nós nos equivocamos acerca da significação real deste movimento sublime, quem serão os responsáveis senão os próprios federalistas?”.

É de bom grado reconhecer que, no primeiro caso, o ponto de partida é correto. De fato, a guerra não se iniciou com o objetivo de abolir a escravidão, e o governo dos Estados Unidos causou a si mesmo este grande mal, por haver rejeitado qualquer ideia do gênero. Mais ainda, é necessário lembrar que o Sul começou a guerra, o Norte apenas se defendeu. Com efeito, só depois de longas hesitações e de manifestar uma paciência sem igual nos anais da história da Europa, o Norte desembainhou a espada, não para acabar com a escravidão, mas para preservar a União. O Sul, por sua parte, iniciou a guerra proclamando em altos brados que a “instituição particular” era o primeiro e único objetivo da rebelião, embora confessasse, ao mesmo tempo, lutar pela liberdade de reduzir outros homens à escravidão, liberdade que, a despeito das negativas do Norte, entende ameaçada pela vitória do Partido Republicano e pela eleição de Lincoln à presidência. O congresso dos confederados se jactava de que a nova Constituição – diferentemente daquela de Washington, Jefferson e Adams – reconhecera, pela primeira vez, a escravidão como algo bom em si e por si, uma salvaguarda da civilização e uma instituição divina. Enquanto o Norte professou combater simplesmente para preservar a União, o Sul se vangloriou por estar em rebelião pelo triunfo da escravidão. Mesmo que a Inglaterra antiescravista e idealista não se sinta seduzida pela declaração do Norte, como explicar que não tenha expressado a mais viva repulsa pelas cínicas confissões do Sul?

A Saturday Review se desembaraça desse dilema cruel recusando-se, pura e simplesmente, a acreditar nas declarações dos estados sulistas. Vai ainda mais longe e descobre “que a escravidão não tem grande coisa a ver com a secessão”; quanto às declarações contrárias de Jefferson Davis e companhia, não são mais do que “banalidades” mais ou menos destituídas de sentido, como costumam ser as proclamações “quando o que está em questão são altares violados e habitações desonradas”.

O arsenal de argumentação dos jornais antinortistas é extremamente reduzido e nota-se que as mesmas frases são, de alguma forma, retomadas, como nas fórmulas de uma série matemática, que retornam em intervalos regulares com poucas variações ou combinações.

O The Economist exclama:

Ainda ontem, quando o movimento de secessão começou a adquirir um aspecto sério, por ocasião do anúncio da eleição do senhor Lincoln, o Norte ofereceu ao Sul, caso este quisesse permanecer na União, todas as garantias possíveis para que continuasse a funcionar na inviolabilidade suas detestáveis instituições. O Norte não proclamou solenemente que renunciava a se imiscuir em seus assuntos, ao passo que os dirigentes nortistas propunham ao Congresso compromisso atrás de compromisso, baseados todos na concessão segundo a qual eles não se envolveriam com a questão da escravidão.

Como é possível, afirma o The Examiner, que o Norte tenha se prestado a estabelecer tais compromissos e realizar concessões tão elevadas sobre o tema da escravidão? Como se chegou ao ponto de propor ao Congresso uma zona geográfica no interior da qual a escravidão deveria ser reconhecida como uma instituição necessária? Os estados sulistas não se satisfizeram com isto. O The Economist e o The Examiner deveriam questionar por que o compromisso Crittenden e outras medidas do tipo não foram aprovados pelo Congresso e não por que foram apresentados. Alegam falsamente que o Norte aceitou essas propostas e o Sul as rejeitou, quando, na verdade, elas foram condenadas ao fracasso pelo partido do Norte que, assim, assegurou a eleição de Lincoln. Essas propostas jamais se transformaram em resoluções, permanecendo, de fato, no estado de desejos piedosos, por isto, o Sul jamais teve a oportunidade de aceitá-los ou rejeitá-los. A observação seguinte do The Examiner nos conduz ao coração da questão.

A sra. Stowe disse que o partido escravista decidiu acabar com a União ao constatar que não poderia mais utilizá-la para seus propósitos. Admite assim que, até então, o partido escravista utilizara a União para tais fins, no entanto seria bom que a senhora Stowe demonstrasse claramente quando o Norte começou a se opor à escravidão.

Seria de se esperar que o The Examiner e outros oráculos da opinião pública inglesa tivessem familiaridade suficiente com a história contemporânea a ponto de não precisar recorrer às informações da sra. Stowe acerca de assuntos de tão grande importância. A usurpação crescente da União pelos poderes escravistas atuando em aliança com o Partido Democrata do Norte é, por assim dizer, a fórmula geral da história dos Estados Unidos desde o início deste século. As sucessivas medidas de compromisso correspondem também a sucessivos graus de usurpação através dos quais a União foi se transformando, sistematicamente, em uma espécie de serva dos proprietários de escravos do Sul. Cada um desses compromissos significa uma nova usurpação pelo Sul e uma nova concessão do Norte.

Da mesma maneira, nenhuma das sucessivas vitórias do Sul foi obtida sem um intenso enfrentamento com uma força adversa no Norte, que se apresentou sob vários nomes de partido, com múltiplas palavras de ordem e todo tipo de coloração. Se o resultado efetivo e final de cada um desses combates singulares favoreceu o Sul, um observador atento não poderia deixar de perceber que cada novo avanço da potência escravista foi um passo a mais na direção de sua derrota final. Mesmo na época do Compromisso do Missouri, as forças em confrontação se equilibravam de maneira tão estrita que Jefferson temia, como se pode ler em suas memórias, que a União estivesse ameaçada de desagregação ao cabo deste antagonismo fatal.

As pretensões dos poderes escravistas não paravam de aumentar, enquanto a lei Kansas-Nebraska destruía, pela primeira vez na história dos EUA – como o próprio senhor Douglas reconheceu –, todas as barreiras legais à extensão da escravidão no território do país, ao mesmo tempo que um candidato nortista comprava sua indicação presidencial prometendo a aquisição de Cuba pela União para transformá-la em um novo campo para a dominação dos escravistas, enquanto na sequência da decisão sobre Dred Scott se proclamava que a extensão da escravidão pelo poder federal se inscrevia na Constituição americana, e, por fim, o comércio de escravos era retomado de facto em uma escala mais vasta do que a da época de sua existência legal.

Concomitantemente a essas manifestações de debilidade culposa do Partido Democrata do Norte ante as piores usurpações do Sul, havia sinais inegáveis de que os poderes do Norte se reforçavam de modo a reverter, em pouco tempo, a correlação de forças em seu favor. A guerra do Kansas, a formação do Partido Republicano e a grande quantidade de votos obtidos pelo sr. Frémont na eleição presidencial de 1856 eram provas palpáveis de que o Norte acumulara energia suficiente para retificar as aberrações que caracterizaram a história dos Estados Unidos durante o meio século em que esteve sob o poder dos senhores de escravos, restabelecendo os verdadeiros princípios de seu desenvolvimento.

Para além desses fenômenos políticos, um eloquente dado estatístico e econômico indicava que o abuso da União federal pelos interesses escravistas deveria retroceder de bom grado ou pela força: o crescimento do Noroeste, os imensos esforços realizados por sua população no período 1850-1860, e a nova e revigorante influência que trouxe para os destinos dos EUA.

Tudo isto, por acaso, representa um capítulo secreto na História? Era necessária a “confissão” da sra. Beecher Stowe para revelar ao The Examiner e a outros luminares políticos da imprensa londrina a verdade meticulosamente oculta de que “até aqui o partido escravista tem usado a União para a realização de seus propósitos”? É culpa dos norte-americanos que os homens de imprensa britânicos tenham sido surpreendidos pelo violento choque de forças antagônicas, cujo confronto tem sido a força motriz da História ao longo de meio século? É culpa dos americanos que a imprensa inglesa, ludibriada por suas próprias elucubrações fantasiosas, tenha sido confrontada, em um único dia, com o resultado maduro de longos anos de lutas? O simples fato de que a formação e o desenvolvimento do Partido Republicano mal tenham sido registrados pela imprensa londrina é evidência de que suas bravatas contra a escravidão não passavam de moinhos de vento.

Consideremos, por exemplo, os dois antípodas da imprensa londrina, o Times de Londres e o Reynold’s Weekly Newspaper, maior órgão das classes respeitáveis e único da classe operária que ainda subsiste atualmente. O primeiro deles, pouco antes que o sr. Buchanan encerrasse sua carreira, publicou uma apologia detalhada de sua administração e um libelo difamatório contra o movimento republicano. O Reynold’s, por sua vez, durante a visita que Buchanan fez a Londres, fez dele o seu alvo favorito e desde então não perde uma única oportunidade de submetê-lo a julgamento e denunciá-lo como adversário.

Como explicar a vitória do Partido Republicano no Norte, cujo programa se baseava na oposição aberta às usurpações praticadas pelo sistema escravista e à transformação da União em instrumento dos defensores da escravidão? Mais do que isto, como foi possível à grande maioria do Partido Democrático do Norte ter se desembaraçado de suas ligações tradicionais com os líderes da escravidão, passando por cima de meio século de velhas tradições, e sacrificar grandes interesses comerciais e preconceitos políticos, acorrendo em defesa da atual administração republicana, a ponto de lhe oferecer dinheiro e homens com generosidade?

Em vez de responder a estas indagações, o The Economist proclama:

Podemos, por acaso, nos esquecer que os abolicionistas são habitualmente mais ferozmente perseguidos e maltratados no Norte e no Oeste do que no Sul? Alguém pode negar que a teimosia e a indiferença – para não dizer a má-fé – do governo de Washington tem sido, ao longo dos anos, o principal obstáculo aos esforços para suprimir efetivamente o comércio de escravos na costa africana; que uma parte considerável das embarcações efetivamente envolvidas naquele comércio foram construídas com capital do Norte e são exploradas por comerciantes do Norte e pilotadas por marinheiros nortistas?

Eis aqui, na verdade, uma obra-prima de lógica. A Inglaterra antiescravista não pode simpatizar com um Norte em processo de ruptura com a influência nefanda da escravatura porque não pode esquecer que o Norte, quando sob aquela influência, apoiou o comércio de escravos, espezinhou os abolicionistas e teve suas instituições democráticas contaminadas pelos preconceitos escravistas. Ela não pode simpatizar com a administração de Lincoln porque esta desaprovou a administração de Buchanan! Seguindo essa lógica, ela deve esvaziar o movimento de renovação do Norte e encorajar aqueles que, no Norte, são estigmatizados pela plataforma republicana por simpatizarem com o comércio de escravos, ela necessita flertar com a panelinha escravagista do Sul, que edificou um império em separado, isto porque a Inglaterra não pode esquecer que o Norte de ontem não é o de hoje. A necessidade de justificar a sua atitude recorrendo a esse tipo de chicana prova, sem dúvida, que a parcela antinortista da imprensa inglesa é impulsionada por motivações ocultas, demasiadamente baixas e infames para ser abertamente apresentadas.

Uma das manobras favoritas da imprensa inglesa consiste em criticar a atual administração republicana pelas ações de seus predecessores pró-escravistas. Para realizá-la, ela se esforça em tentar convencer o povo inglês de que o New York Herald é o único órgão que expressa autenticamente a opinião do Norte. Desde que o Times de Londres seguiu nessa direção, o núcleo escravista dos demais órgãos antinortistas, sejam eles grandes ou pequenos, têm enveredado pela mesma via.

Diz o The Economist:

No auge da Guerra Civil, não faltaram jornais nem políticos em Nova York para instar os combatentes, agora que existem grandes exércitos em formação, para lutar não uns contra os outros, mas contra a Grã-Bretanha; assim que estabelecerem compromissos em torno de todas as querelas, incluindo a questão da escravidão, invadirão o território britânico sem qualquer aviso e com forças de uma superioridade esmagadora.

O The Economist sabe perfeitamente que os esforços do New York Herald, vivamente encorajados pelo Times de Londres, visam envolver os Estados Unidos em uma guerra contra a Inglaterra com o único objetivo de garantir a vitória da secessão e arruinar o movimento de renascimento do Norte. No entanto, a imprensa antinortista inglesa faz uma concessão. É a esnobe Saturday Review que a anuncia: “O que é questionável na eleição de Lincoln e precipitou a crise é pura e simplesmente a limitação da escravidão aos estados onde ela já existia”. Enquanto o The Economist observa:

Com efeito, o objetivo do Partido Republicano, que elegeu o senhor Lincoln, é impedir a extensão da escravidão aos territórios ainda não colonizados [...] Talvez seja verdade que uma vitória completa e incondicional do Norte lhe permita limitar a escravidão aos quinze estados nos quais ela já existe, o que poderá eventualmente levar ao desaparecimento dela, porém, isto é mais uma possibilidade do que uma certeza.

Na época da expedição de John Brown a Harpers Ferry em 1859, até mesmo o The Economist publicou uma série de artigos detalhados a fim de provar que, por força de uma lei econômica, a escravidão americana estaria fadada à extinção gradual a partir do momento em que fosse privada de seu poder de expansão. Essa lei econômica foi perfeitamente compreendida pelos escravocratas:

Se dentro de quinze anos, dizia Toombs, nós não nos beneficiarmos de um aumento substantivo do montante de terras destinadas à escravidão, teremos que permitir que os escravos fujam dos brancos, isto se os próprios brancos já não tiverem fugido de seus escravos.

Limitar a escravidão ao território em que esta existe legalmente, tal como proclamavam os republicanos, foi o princípio visível da ameaça de secessão exposta pela primeira vez à Câmara de representantes no dia 19 de dezembro de 1859. O sr. Singleton, representante do Mississippi, indagou o sr. Curtis, de Iowa, “se o Partido Republicano jamais permitiria ao Sul adquirir um único palmo de terra escrava enquanto este permanecesse na União”. Diante da resposta afirmativa do sr. Curtis, o sr. Singleton retrucou dizendo que, em tais condições, a União seria dissolvida. Singleton então aconselhou a administração do Mississippi a sair o quanto antes da União: “Esses senhores deveriam recordar que Jefferson Davis conduziu nossas forças armadas ao México; ora, ele ainda está vivo e poderia perfeitamente comandar o exército do Sul”.

Abstraindo a lei econômica, segundo a qual a extensão da escravidão seria uma condição vital para a sua sobrevivência dentro de seu território legal, os líderes do Sul jamais tiveram qualquer ilusão quanto à necessidade absoluta de preservar a hegemonia política nos Estados Unidos. Ao defender suas propostas no Senado, em 19 de fevereiro de 1847, John Calhoun afirmou que “o Senado era a única instância através da qual o Sul poderia garantir o equilíbrio de poder em relação ao governo” e que a formação de novos estados escravistas se tornara necessária “para conservar o equilíbrio de forças no Senado”.(1) De resto, a oligarquia de 300 mil proprietários de escravos não poderia manter o poder sobre a plebe branca sem a miragem de futuras conquistas e ampliação de territórios, tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos. Se doravante, de acordo com o oráculo da imprensa inglesa, o Norte tomar a firme decisão de circunscrever a escravidão a seus limites atuais, liquidando-a, assim, pela via legal, isto não deveria ser suficiente para lhe assegurar as simpatias da Inglaterra antiescravista?

Parece que os puritanos ingleses não se contentam senão com uma guerra abolicionista expressa. O The Economist afirma: “Como não se trata verdadeiramente de uma guerra pela emancipação da raça negra, sobre quais bases se espera que simpatizemos calorosamente com a causa dos federados?”. Houve uma época, diz o The Examiner, “na qual nossas simpatias estavam com o Norte, porque pensávamos que se opunha seriamente às usurpações dos estados escravistas e defendia a emancipação como uma medida de justiça para a raça negra”. No entanto, nos mesmos números onde negam simpatia ao Norte por não ser esta uma guerra abolicionista, também se pode ler: “O meio radical de proclamar a emancipação dos negros é convocar os escravos para uma insurreição geral”. Ora, este é um tipo de proposta “cuja simples enunciação é repugnante e temível” e diante da qual “um compromisso é, de longe, preferível a um triunfo conquistado a tal preço e maculado por este tipo de crime”.

Como se vê, a ansiedade inglesa por uma guerra revolucionária não passa de hipocrisia, mas podem se vislumbrar as intenções dissimuladas por ela nas seguintes sentenças publicadas no The Economist: “Finalmente, a tarifa Morrill merece nossa gratidão e nossa simpatia; mas será que a razão pela qual nós desejamos ardorosamente seu sucesso é a certeza de que, em caso de vitória do Norte, a tarifa seria estendida a todo o território da república?”. Já o The Examiner diz: “Os americanos do Norte não levam nada mais a sério do que a tarifa aduaneira que os protege de maneira egoísta. Os estados sulistas estão cansados de ter os frutos de seu trabalho escravo roubados pelas tarifas protecionistas do Norte”.

The Examiner e The Economist completam-se mutuamente. Este último é suficientemente honesto para admitir finalmente que, para ele e seus seguidores, a simpatia é uma simples questão de tarifa aduaneira, o primeiro reduz a guerra entre o Sul e o Norte a um simples conflito tarifário, uma guerra entre o protecionismo e o livre mercado. Talvez o The Examiner não esteja informado de que mesmo aqueles que desejavam revogar a lei da Carolina do Sul em 1832 – como demonstrado pelo general Jackson – utilizaram o protecionismo como mero pretexto para a secessão. Entretanto, mesmo The Examiner deveria saber que a atual rebelião sequer espera pela aprovação da tarifa Morrill para ser deflagrada. Verdade seja dita, os sulistas não poderiam se queixar de que estavam cansados de ter os produtos do trabalho de seus escravos subtraídos pela tarifa protecionista do Norte, uma vez que, de 1846 a 1861, esteve em vigor um sistema de livre-comércio.

Em seu último número, The Spectator caracteriza o pensamento secreto de certo número de veículos antinortistas da seguinte maneira marcante:

O que desejavam então, verdadeiramente, estes órgãos antinortistas para justificar sua pretensão de não se apoiar em outra coisa senão na lógica inexorável dos fatos? Eles apregoam que a secessão é desejável, pois é a única forma possível de acabar com este “conflito fratricida que não tem razão de ser”. Mas eis que descobrem, em seguida, outras razões adaptadas às exigências morais do país, agora que o desenrolar dos eventos é evidente. É lógico que estas razões não são mencionadas, nenhuma reflexão é realizada além de um humilde elogio à Providência e à “justificação dos desígnios divinos em relação ao homem”, no exato momento em que a necessidade inelutável se tornou manifesta aos olhos de todos. Descobre-se então que será uma grande vantagem para os estados serem divididos em dois grupos rivais. Cada qual porá em xeque as ambições do outro e neutralizará sua força. Se a Inglaterra entrar em conflito com um, o simples desafio do grupo adversário lhe será de grande valia. É de se assinalar que se seguirá uma situação extremamente favorável, que nos aliviará da ansiedade e encorajará a “concorrência” política, esta grande salvaguarda da honestidade e da franqueza nas relações entre os estados. Esta é a situação expressamente evidenciada por aqueles que, entre nós, começam a simpatizar com o Sul. Traduzindo em bom inglês – e nós lamentamos que um argumento formulado em inglês tenha necessidade de uma tradução deste tipo –, isto significa que deploramos o grau de magnitude atingido por esta “guerra fratricida”; é espectável que no futuro ela continue a suscitar convulsões terríveis, uma série de pequenas guerras crônicas, de paixões e rivalidades entre os estados. A verdade efetiva – e precisamente este modo nada inglês de sentir oculta esta verdade, ainda que a encobrindo com fórmulas decentes – é que os grupos de estados americanos rivais não poderão conviver em paz e harmonia. As situações de inimizade, decorrentes das próprias causas que geraram o conflito atual, se tornarão crônicas. Tem-se afirmado que os diferentes grupos de estados possuem interesses aduaneiros distintos. Não somente os diferentes interesses tarifários serão a fonte das pequenas guerras permanentes, uma vez que os estados se separarão uns dos outros, mas também a escravidão, raiz de todo o conflito, agravará as inomináveis inimizades, discórdias e manobras. Logo não será mais possível restabelecer o equilíbrio entre os estados rivais. E ainda se afirma que a perspectiva de um longo conflito oferecerá o encaminhamento mais favorável para a solução da grande questão do momento. No fundo, o que se julga como sendo o aspecto mais favorável do vasto conflito atual, que poderá restabelecer uma unidade política nova e mais poderosa, é a possibilidade de um grande número de pequenos conflitos e de um continente dividido e enfraquecido, ao qual a Inglaterra não precise temer. Nós não negamos que os americanos sejam eles mesmos os causadores desta situação lamentável e deplorável devido à atitude inamistosa e fanfarrona que constantemente adotam em relação à Inglaterra; seja como for, precisamos admitir que nossos próprios sentimentos nesta matéria são vis e desprezíveis. Sabemos que não existe qualquer esperança de uma paz profunda e duradoura nos marcos de uma solução precária, pois ela significaria involução e desagregação da nação americana em povos e países hostis, entretanto, levantamos nossos braços aos céus como se estivéssemos horrorizados diante desta guerra “fratricida”, porque ela encerra a perspectiva de uma solução estável. Nós desejamos aos americanos um porvir de inomináveis e incessantes conflitos, que serão igualmente fratricidas e possivelmente ainda mais desmoralizantes: nós o desejamos unicamente para podermos nos ver livres do estorvo representado pela concorrência americana.


Notas:

(1) C. Calhoun, Works. ed. R. K. Crallé. v.IV. Nova York, p. 340, 343. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022