Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção III. Questões de política interna e sociedade
Manifestações abolicionistas na América
(Marx. Die Presse, 30 de agosto de 1862)


capa

Londres, 22 de agosto de 1862

Faz algum tempo que chamamos a atenção nesta coluna para o fato de que o presidente Lincoln – em razão de seus escrúpulos jurídicos, seu espírito mediador e constitucionalista, suas origens e ligações com o estado fronteiriço escravagista do Kentucky – tem tido grande dificuldade para escapar do controle dos escravagistas “leais”. Contudo, ao tentar evitar qualquer ruptura aberta com eles, acaba por suscitar um conflito com os elementos mais consequentes no domínio dos princípios, no interior dos partidos do Norte, fazendo com que esses elementos sejam empurrados sistematicamente para o primeiro plano dos acontecimentos. Pode-se considerar como um prólogo do conflito o discurso proferido por Wendell Phillips em Abbington, Massachusetts, por ocasião do aniversário da emancipação dos escravos nas índias ocidentais britânicas.

Juntamente com Garrison e G. Smith, Wendell Phillips é o chefe dos abolicionistas da Nova Inglaterra. Durante trinta anos ininterruptos e colocando em risco a própria vida, ele tem sustentado o grito de combate pela emancipação dos escravos, apesar das chacotas da imprensa, dos rugidos de ódio dos capangas remunerados e dos apelos conciliadores de alguns de seus amigos. Seus próprios adversários reconhecem nele um dos grandes oradores do Norte: ele alia uma vontade de ferro a uma energia indomável e uma probidade inquestionável. A edição de hoje do Times de Londres – o que poderia caracterizar melhor este magnânimo jornal? – denuncia o discurso de Wendell Phillips em Abbington ao governo de Washington, por “abuso” da liberdade de expressão

É difícil imaginar (diz o Times) alguma coisa mais violentamente desmedida. Jamais em tempos de Guerra Civil em nenhum outro país, um homem de espírito são e apreciador do valor da vida e da liberdade pronunciou palavras de uma audácia tão insana. Ao ler o discurso é inevitável concluir que o objetivo do orador é forçar o governo a perseguir Phillips.

E o Times, em detrimento de (ou talvez por causa de) seu ódio pelo governo da União, parece um tanto inclinado a desempenhar o papel de promotor público.

Na situação atual, o discurso de Wendell Phillips em Abbington é mais importante do que um boletim de campanha. Por isto, reproduzirei aqui as passagens mais impressionantes.

O governo luta pela manutenção da escravidão, por essa razão está lutando em vão. Lincoln conduz a guerra como um político. Mesmo neste momento, ele tem mais temor do Kentucky do que do Norte inteiro. Ele confia no Sul. Quando alguém pergunta aos negros dos campos de batalha do Sul, se eles se sentem amedrontados pelo dilúvio de ferro e fogo que se abate sobre a terra e faz as árvores em pedaços, ouve a seguinte resposta: “Não, massa (monsieur), sabemos que isto não nos diz respeito”! Os rebeldes poderiam dizer a mesma coisa das bombas de McClellan. Eles sabem que elas não têm por finalidade lhes fazer qualquer mal. Não digo que McClellan seja um traidor, porém que, se fosse um traidor, não agiria de maneira diferente. Não temam por Richmond: McClellan não vai tomá-la. Se continuarmos a conduzir a guerra dessa maneira, destituída de princípios, não faremos senão desperdiçar em vão o sangue e o ouro. Melhor seria conceder imediatamente a independência do Sul do que pôr em perigo uma única vida humana em uma guerra fundada sob a execrável política atual. São necessários 120 mil homens e 1 milhão de dólares por dia para conduzir a guerra nas condições atuais.

Mas vocês não conseguirão se livrar do Sul. Como dizia Jefferson: “Os Estados do Sul seguram o lobo pelas orelhas, mas não podem nem prendê-lo e nem soltá-lo”.(1) Da mesma maneira, nós temos um Sul no lugar das orelhas, sem que dele possamos nos apoderar, nem nos desembaraçar. Reconheçam-no amanhã e isto não trará a paz. Durante oitenta anos o Sul tem convivido conosco, temendo-nos metade do tempo, odiando-nos a outra metade, sempre criando problemas e tirando vantagens. Tornado-se presunçoso pela aceitação de suas reivindicações atuais, não se conteria um só ano no interior de uma linha de fronteira imaginária. Não! No instante em que falássemos de condições de paz, eles proclamariam vitória! Até que a escravidão seja eliminada, não pode haver paz! Enquanto mantiverem estas tartarugas à frente do atual governo, o buraco que vocês abrirem com uma mão terão de fechar com a outra. Permitam que toda a nação endosse as decisões da Câmara de Comércio de Nova York:(2) assim o exército terá motivos reais para se bater em combate. Mesmo se Jefferson Davis tivesse poder, ele não se apoderaria de Washington. Ele sabe muito bem que a bomba que cairia sobre esta Sodoma levantaria o conjunto da nação, fazendo com que o Norte inteiro gritasse com voz de trovão: “Abaixo a escravidão! Abaixo todos aqueles que criam obstáculos ao bem-estar da república!”.

Porém, Jefferson Davis está plenamente satisfeito com os resultados que tem obtido. Eles ultrapassam todas as suas expectativas. Se continuar manobrando com sucesso até 4 de março de 1863, a Inglaterra – de forma bastante previsível – reconhecerá a Confederação do Sul [...]

O presidente não colocou em prática a lei sobre os confiscos. Ele pode ser honesto, mas sua honestidade não tem nada a ver com este assunto. Ele não possui visão nem previsão. Durante minha permanência em Washington, pude me aperceber que já fazia três meses que Lincoln havia redigido a proclamação da emancipação geral dos escravos. McClellan o fez adiar tal decisão através da intimidação, ao passo que os representantes do Kentucky lhe impuseram McClellan, em quem não depositava a menor confiança. Serão necessários muitos anos até que Lincoln aprenda a combinar seus escrúpulos legalistas de advogado com as necessidades inerentes da Guerra Civil. Eis a terrível situação de um governo, e seu mal maior.

Na França uma centena de homens convencidos da justeza de sua causa arrastaram consigo toda uma nação.(3) Mas, para que nosso governo possa dar um passo, é necessário que antes 19 milhões de pessoas se ponham em movimento. Ora, ao longo dos anos, estes milhões de seres humanos ouviram a pregação que dizia que a escravidão era uma instituição abençoada por Deus. Com tais prejuízos, que amarram o coração e as mãos, vocês pedem ao presidente que os salve dos negros. Se esta teoria estiver correta, somente o despotismo escravagista poderá assegurar uma paz temporária [...]

Eu conheci Lincoln. Pude avaliá-lo em Washington: trata-se de uma mediocridade de primeira categoria. Ele espera honestamente, como uma boa vassoura, que a nação o tome nas mãos e varra embora a escravidão. No ano passado, não muito longe da tribuna onde estou falando no dia de hoje, disparos de morteiro feitos por conservadores tentaram sufocar minha voz. Qual foi o resultado?

Os filhos daqueles conservadores agora cavam suas próprias sepulturas nos pântanos de Chikahominy. Dissolvam esta União em nome de Deus e substituam-na por uma nova, em cujo frontispício vocês escreverão: Liberdade política para todos os homens da terra. Durante minha permanência em Chicago, solicitei aos juristas de Illinois que haviam conhecido Lincoln que me dissessem que tipo de homem ele era. Em vez de me dizer não, a resposta de um deles foi: ele não tem espinha dorsal. Se os americanos queriam eleger um homem absolutamente incapaz de governar e tomar iniciativas, eles tinham a obrigação de eleger Abraham Lincoln. Jamais alguém o ouviu dizer não. Eu perguntei: “McClellan é um homem que diz não?”. O diretor da Estrada de Ferro Central de Chicago, de quem McClellan fora empregado, respondeu: “Ele é incapaz de tomar uma decisão. Faça uma pergunta, e ele ficará uma hora pensando na resposta. Durante o tempo em que esteve ligado à administração da Estrada de Ferro Central, ele jamais decidiu uma única questão controversa.

Estes são os homens que, mais do que todos os outros, têm em suas mãos os destinos da República do Norte! Homens bem informados sobre a situação do exército garantem que Richmond poderia ter sido tomada cinco vezes, se o come-dorme que se encontra à frente do exército tivesse permitido; mas ele prefere ficar cavando trincheiras nos pântanos de Chickahominy, para abandonar a localidade em seguida, através de suas escarpas enlameadas. Porque teme covardemente os estados escravistas da fronteira, Lincoln mantém este homem em sua posição atual, mas há de chegar o dia em que terá que reconhecer que nunca confiou em McClellan... Cultivemos a esperança de que esta guerra vai durar tempo suficiente para que nos transformemos em homens, então venceremos rapidamente. Deus colocou em nossas mãos o relâmpago da emancipação, para que possamos reduzir esta rebelião a pó.


Notas:

(1) “Segurar o lobo pelas orelhas” (Tenir le loup par les oreilles), estar numa situação difícil e sem solução.(retornar ao texto)

(2) O texto alude a uma resolução da Câmara do Comércio de Nova York, que dizia: ”É preferível que morram todos os rebeldes do que só um de nossos soldados”. (retornar ao texto)

(3) Wendell Phillips desempenhou, na Guerra Civil dos EUA, o mesmo papel que um Buonarroti, por exemplo, desempenhou na Revolução Francesa, na defesa das mesmas ideias: “A experiência da Revolução Francesa e mais particularmente os distúrbios e vacilações da Convenção Nacional demonstraram suficientemente, a meu ver, que um povo, cujas opiniões foram formadas sob um regime de desigualdade e despotismo, encontra-se pouco preparado, no início de uma revolução regeneradora, para designar através dos votos os homens encarregados de dirigir e consolidar a revolução. Esta difícil tarefa não pode caber senão aos cidadãos sábios e corajosos. Pode até ser necessário, no início de uma revolução política, até por respeito à soberania efetiva do povo, se ocupar menos de recolher os sufrágios da nação do que fazer que a autoridade suprema caia, da forma menos arbitrária possível, em mãos sábias e decididamente revolucionárias” (Buonarroti, Conspiration pour L’Égalité dite de Babeuf. v.I. Éditions Sociales, p. 111). (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022