Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção V. Tensões diplomáticas
Introdução, por Felipe Vale da Silva


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Dos 52 artigos escritos sobre a Guerra Civil, quase metade se volta a questões diplomáticas entre os EUA e as grandes potências europeias. Este fator revela uma série de dados importantes sobre o método do materialismo histórico de meados de 1860: os autores esforçavam-se para pensar como a transformação dos modos de produção estadunidenses (da exploração escravista para a exploração do trabalho assalariado) afetaria a dinâmica de acumulação nos mercados globais.

Para darmos um exemplo já pincelado em artigos das seções I e II, uma vez que os portos de cidades sulistas foram fechados pela marinha unionista e o algodão deixou de chegar às indústrias de Manchester, a Inglaterra foi lançada em uma crise profunda. Sua indústria têxtil tornara-se dependente do escravismo americano, de forma que medidas drásticas teriam de ser tomadas para que se freasse o colapso do capitalismo industrial. A primeira reação foi a de repensar sua política colonial na longínqua Índia, cuja administração desastrosa e a falta de infraestrutura colonial mínima impediram, por fim, que os ingleses utilizassem aquele território para cultivar algodão. A segunda reação foi considerar uma intervenção na Guerra Civil dos americanos — isso significava se colocar ao lado dos escravistas.

O acúmulo de contradições da política internacional inglesa ocupou Marx em artigos como Humanitarismo inglês e a América, onde se observa que liberais, tão afeitos a florear o próprio discurso com elogios à
democracia e à liberdade, não titubeiam em se desfazer de qualquer resquício de humanidade em si para salvar o grande capital. Quando o sistema econômico esteve prestes a colapsar em 1862, todas as desculpas possíveis surgiram por parte de políticos britânicos e da mídia subordinada para justificar a legitimidade da causa dos Confederados escravagistas. Os artigos que daí se seguem perfazem a fase mais ativa, mais ligada à práxis política de Marx, na medida em que reconhecem como uma intervenção inglesa, naquele momento, teria impedido qualquer sucesso na luta contra a escravidão. Aqui os artigos não se reduzem a análises passivas; eles se dirigem diretamente à classe trabalhadora inglesa e visam conscientizá-la de que uma intervenção serviria exclusivamente aos interesses dos industriários: ela não mitigaria a crise do proletariado de qualquer forma mas, ao contrário, só aprofundaria o poder dos monopólios.

Temos, portanto, um exemplo valioso do método do materialismo histórico, mostrando como, sob o capitalismo, a política e o poder do Estado são meros joguetes nas mãos de interesses comerciais. A política britânica é analisada a partir do jogo de aparências.(1) Como expressou Marx em um artigo anterior sobre o primeiro-ministro inglês:

“Palmerston engana por meio da aparência de superficialidade. Ele sabe ocultar sua intenção real com arte sob frases de efeito soltas, descontextualizadas, e concessões banais à opinião pública mais imediata” (“Zur Kritik der letzten Rede Palmerstons”. Die Presse, 1855).

A política na mão de um Palmerston se torna um jogo de simulacros, que se perde em conflitos sem importância para ocultar as questões essenciais — uma prática cada vez mais imperativa das democracias atuais. Aqui entra o método marxiano: ele expõe relações concretas entre economia e esse tipo de política — entre realidade e aparência. Se parasse somente na análise das batalhas políticas e dos disparates dos políticos, estaria se rendendo ao seu jogo de simulações.

Em toda a guerra, para Marx, não houve evento diplomático mais crucial do que o Caso Trent, que quase concedeu à Inglaterra o pretexto legal para uma guerra contra a União americana. Os desdobramentos do evento ocupam a presente seção de seu início até o artigo Intervenção no México, voltado aos interesses de Napoleão III na região e à Guerra do Texas. Em seguida, há um breve tratamento das reações francesas à guerra, do artigo O Times de Londres e os Príncipes de Orléans na América em diante.

Abaixo segue um resumo do Caso Trent para fins de contextualização:

Em um porto das Índias Ocidentais, o capitão Wilkes, comandante do navio de guerra estadunidense USS San Jacinto, leu sobre o caso de dois emissários confederados, Mason e Slidell, acompanhados por seus secretários, estarem prontos para atravessar o Canal das Bahamas a bordo do transatlântico britânico RMS Trent. Depois de consultar os manuais de direito marítimo internacional, Wilkes acreditou que tinha o direito de abordar o navio em questão e capturar os agentes sulistas. Em 8 de novembro de 1861, embarcou no RMS Trent, prendeu os quatro homens e navegou para Boston. Durante todo o episódio, Wilkes agiu por sua própria iniciativa, como o Secretário de Estados Unidos, Seward, deixou claro em uma carta datada a 30 de novembro e endereçada ao embaixador americano em Londres. No mesmo dia, o Conde Russell, ministro britânico das Relações Exteriores, escreveu a Lorde Lyons, embaixador do Reino Unido em Washington: ele dava a Seward um prazo de sete dias para aceitar o pedido expedido pela Grã-Bretanha de libertar os emissários sulistas. Passaram-se quase três semanas até que o ministro britânico informasse Seward a respeito, e mais quatro dias antes que os termos da carta se tornassem oficialmente conhecidos. Em 26 de dezembro, o Secretário de Estado dos EUA replicou: o que Wilkes havia feito tinha base no direito internacional. Seward anunciou sua intenção de libertar os emissários do Sul, uma vez que tal procedimento estaria em harmonia com a política internacional dos EUA, favorável aos direitos dos neutros em alto mar. Com base neste despacho, o incidente foi encerrado e em 1º de janeiro de 1862 os emissários ingleses embarcaram no navio de guerra inglês HMS Rinaldo, com destino à Inglaterra.


Notas:

(1) Axel Rüdiger desenvolve uma análise valiosa da categoria da aparência, entendida aqui como manobra ilusionista que cria a falsa impressão de participação política da gente miúda nos processos democráticos modernos. Na análise de Marx, o primeiro-ministro Palmerston é mestre do ilusionismo dos interesses da classe financeira, e os grandes jornais ingleses seu veículo de contato com a população (ver artigo “Der Beruf der Politik. Karl Marx über Lord Palmerston, Louis Bonaparte und Abraham Lincoln“. Marx-Engels-Jahrbuch. De Gruyter, 2009, p. 148-175, sobretudo p. 157 em diante). (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022