Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção V. Tensões diplomáticas
O humanitarismo inglês e a América
(Marx. Die Presse, número 168 de 20 de junho de 1862)


capa

Londres, 14 de junho de 1862

O humanitarismo está se tornando hoje, na Inglaterra, o que a liberdade foi na França: um artigo de exportação para os traders in politics. Lembremo-nos da época em que o Czar Nicolau permitiu que damas polonesas fossem espancadas por soldados, e em que o Lorde Palmerston considerou “pouco política” a indignidade moral demonstrada por alguns parlamentares ante tal ocorrido. Lembremo-nos que, há aproximadamente um decênio, houve uma revolta nas Ilhas Jônicas, a qual motivou o então regente inglês da região a mandar açoitar um número nem tão insignificante de mulheres gregas. Probatum est [está aprovado], disseram Palmerston e seus então colegas whigs que se encontravam à frente do governo. Ainda há poucos anos, documentos oficiais deram mostras ao Parlamento dos métodos de extorsão utilizados pelos coletores de impostos na Índia contra as mulheres dos ryots — camponeses indianos —, cuja infâmia me impede de fornecer os pormenores aqui.

Palmerston e seus colegas não ousam dar justificativas para tais atrocidades. Contudo, como não teriam esbravejado caso um governo estrangeiro ousasse proclamar publicamente sua indignação acerca da infâmia inglesa, dando a entender, claramente, intervir caso Palmerston e seus colegas não destituíssem de pronto as autoridades fiscais indianas! Mas o próprio Cato Censorius não pôde assistir aos costumes dos cidadãos romanos com mais angústia que os aristocratas ingleses e seus ministros ao “humanitarismo” dos beligerantes ianques!(1)

As damas de Nova Orleans, louras beldades, insipidamente drapeadas de joias (algo comparáveis às esposas dos velhos mexicanos, embora estas não devorassem seus escravos in natura) são a causa dos desdobramentos recentes do humanitarismo inglês. Antes a causa eram os portos de Charleston.(2) As mulheres inglesas (que não são damas, mas também não possuem escravos), as mesmas que estão passando fome em Lancashire, até agora não fizeram um lábio parlamentar sequer se mover. O grito de socorro das mulheres irlandesas que, com a desapropriação dos pequenos arrendamentos na verde Erin, são atiradas às ruas seminuas e caçadas mesmo dentro de suas casas, como se tivessem caído às graças de Tártaros, só foi capaz de produzir um eco na Câmara dos Lordes, Comuns e do governo de Vossa Majestade — a saber, uma homília em prol do direito absoluto de propriedade privada. Mas as damas de Nova Orleans... Trata-se de um caso bem diferente. Tais damas foram esclarecidas o bastante para participar do tumulto da guerra, como as deusas do Olimpo, a ponto de mergulharem nas chamas como as mulheres de Sagunto.(3) Elas inventaram uma nova e segura forma de heroísmo, uma forma que só poderia ser inventada por proprietárias de escravos, e mais, somente por proprietárias de escravos em um país onde a parcela livre da população exerce suas profissões na mercearia, no comércio de algodão, do açúcar ou do tabaco — e não possui escravos, como os cives do mundo antigo. Depois que seus maridos fugiram de Nova Orleans ou se arrastaram para seus aposentos, essas mulheres correram para as ruas para cuspir na cara das forças vitoriosas da União, ou esticar a língua para elas, ou até para fazer “um gesto indecente” como Mefistófeles, acompanhado com palavras de insulto. Essas megeras acreditavam que podiam ser “malcriadas” sem sofrer punição.

Foi esse seu heroísmo. O general Butler expediu uma proclamação dizendo que, se quisessem ser tratadas como mulheres de rua, bastava que continuassem se portando feito mulheres de rua. Butler, porém, é advogado de sua testemunha, mas parece não ter estudado a Statute Law inglesa corretamente. Caso contrário, ele teria proibido, de forma análoga, que as leis impostas à Irlanda sobre Castlereagh tivessem sido postas em vigor. O aviso de Butler às “damas de Nova Orleans” causou tamanha indignação moral no Conde Carnarvon, no Sir J. Walsh (que desempenhou papel tão ridículo e odioso na Irlanda) e Gregory (o mesmo que pediu reconhecimento da Confederação há um ano), que o conde na Câmara Alta, o cavaleiro e o homem da Câmara Baixa “sem títulos em seu nome” interpelaram ao Ministério para que considerasse as medidas a ser tomadas em resposta ao “humanitarismo” ofendido.

Russell e Palmerston, em conjunto, puniram Butler; ambos esperavam que o governo de Washington o destituísse. O extremamente sentimental Palmerston, que deu reconhecimento ao golpe de Estado de dezembro de 1851 pelas costas da rainha e sem conhecimento de seus pares por pura admiração “humanitária” (na mesma ocasião, as mesmas “damas” em questão chegaram a matar pessoas a tiros, e outras pessoas foram estupradas pelos zouaves)(4) — o mesmíssimo visconde sentimental expediu um alerta contra a “infâmia” de Butler. De fato, damas, damas possuidoras de escravos — tais damas não deveriam sair impunes por seu cuspe e malícia frente às tropas comuns da União, aos camponeses, aos artesãos e ao populacho. “É infame”.

Aqui da plateia, ninguém se engana acerca desse humanitarismo falsário. Ele serve como motivação para uma intervenção externa, sobretudo do lado francês — em partes para evocá-la, em partes para confirmá-la. Os cavaleiros humanitários da Câmara Alta e da Câmara Baixa retiraram suas máscaras de preocupação, como quem obedece a ordens, logo após esses primeiros despontes melodramáticos. Sua declamação serviu apenas como prólogo para uma questão: se o Imperador dos franceses reagiria, frente ao governo inglês, de forma intervencionista, e se o mesmo governo, como era de se esperar, se aproveitaria dessa oferta. Russell e Palmerston disseram que não sabiam nada da tal oferta. Russell declarou que, no momento atual, qualquer tipo de intervenção seria extremamente desfavorável. Palmerston, mais cauteloso e reservado, contentou-se em dizer que o governo inglês não tinha nenhum propósito em intervir naquele momento.

O plano é que a França atue como intermediária durante o período de recesso do Parlamento inglês e intervenha no outono, quando o México já estiver garantido. O cessar-fogo no teatro de guerra americano despertou do marasmo os especuladores intervencionistas em St. James e nas Tulherias [i.e. respectivamente, o centro comercial de Londres e o centro do poder francês]. O cessar-fogo se deve a um erro estratégico na guerra ao Norte. Se o Exército do Kentucky tivesse avançado rapidamente pelos centros ferroviários da Geórgia, logo após suas vitórias no Tennessee, em vez de se arrastar pelo sul do Mississippi, então [Theodore L.] Reuter e companhia teriam dissipado os rumores de “intervenção” e “mediação”. Seja como for, a Europa só consegue desejar com mais ardor que um golpe de Estado tente “restabelecer a ordem nos Estados Unidos” e “salvar a civilização” também ali.


Notas:

(1) Catão, o velho (234-149 AEC), atuou como censor da República Romana, cuja função era executar pesquisas censitárias, supervisionar a moralidade pública e assegurar a regularidade das contas públicas em diferentes regiões. Ficou conhecido como uma figura particularmente rigorosa e conservadora.(retornar ao texto)

(2) Isto é, os mesmos portos de onde saía boa parte do algodão que alimentava a indústria têxtil inglesa. (retornar ao texto)

(3) Sagunto fica próxima à atual Valência, na Espanha. Referência ao episódio dramático que deu início à Segunda Guerra Púnica no século III AEC, entre Cartago e Roma. Diz-se que as mulheres de Sagunto, após oito meses de bloqueio cartaginense, promoveram um suicídio em massa ateando fogo na cidade — assim, Aníbal e seu exército não conseguiriam saquear o local e capturar sua população. (retornar ao texto)

(4) Referência ao autogolpe do então presidente Louis-Napoléon Bonaparte, em 2 de dezembro de 1851. Zouaves foram forças mercenárias francesas que atuaram, também, naquele século, na Guerra da Crimeia e nas campanhas imperialistas francesas na África invadida. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022