Sobre o Uso Capitalista das Máquinas no Neocapitalismo de Raniero Panzieri
Apresentação

Marco Vanzulli(1)


Observação: Leia o texto Sobre o Uso Capitalista das Máquinas no Neocapitalismo de Raniero Panzieri

Fonte: Crítica Marxista, n.42, p.125-128, 2016.

Tradução: Plinio Freire Gomes

HTML: Fernando Araújo.

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Raniero Panzieri (1921-1964) foi um intelectual e militante marxista, cuja figura é relevante por várias razões. Ao contrário da maior parte dos comunistas italianos de sua época, não fez parte do PCI, organizado em torno da ideologia nacional-popular do colaboracionismo e da “mitologia do Estado-guia”, segundo uma expressão do próprio Panzieri. Participou, sim, da ala esquerda do PSI, que gradualmente o colocou à margem e o excluiu, rejeitando assim sua tentativa de resgatar para o partido uma política de classe. Sua formação não foi crociana-gramsciana, ou seja, não foi idealista e historicista — não foi um acadêmico, exceto por um breve período na Sicília, de 1948 a 1951, a convite de Galvano Della Volpe, um dos marxistas italianos mais originais do pós-guerra, ele também excêntrico em relação à orientação dominante no PCI, porque estranho ao gramscismo. Mas, na Sicília, Panzieri fez sobretudo a primeira e instrutiva experiência dos movimentos de massa, militando entre os organizadores das lutas camponesas para a ocupação de terras incultas.

Incumbindo-se de questões culturais para o partido, Panzieri insistiu sobre a liberdade do intelectual comunista, defendendo a autonomia da cultura contra sua dependência em relação às posições de partido típicas do historicismo gramsciano-togliattiano. Deste ponto de vista, opôs-se à “reconstituição completamente artificial das linhas tradicionais de desenvolvimento da cultura nacional” (Azione politica e cultura, 1957), impostas pela direção política, atacando diretamente a invenção de uma linha de desenvolvimento histórico-intelectual que fundia marxistas e idealistas (em particular, Labriola para os primeiros e Croce para os últimos) até desaguar em Gramsci. Ainda no partido, Panzieri propunha uma diversa relação entre o próprio partido e as massas proletárias. Donde a crítica da “absurda identidade entre a classe operária e o partido” (La crisi del comunismo, 1956), um erro não mais repetível depois do stalinismo.

O debate de 1956 sobre a crise do stalinismo depois do XX Congresso encontra, de fato, Panzieri pronto para lutar pela democratização do movimento operário (democracia operária, não parlamentar), contestando a ideia que esta deva produzir-se num segundo momento, quando as condições se apresentassem, como aparece nas controversas Tesi sul controllo operaio: “a sociedade socialista não é um reino milagroso que se cria ao toque de uma não menos mágica varinha, mas algo que se conquista desde agora, que tem seu germe vital já na luta pelo poder. Cabe perguntar-se o que quer dizer uma luta que na Itália exclua o controle vindo de baixo, o controle dos trabalhadores sobre a produção. Depois que o poder for arrancado da burguesia, o partido se identifica, ou tende a identificar-se com o Estado: os sindicatos ou se burocratizam, ou restam instrumentos reivindicativos e de defesa dos trabalhadores (é esta a experiência concreta soviética, polonesa, húngara, iugoslava, e não mais uma nebulosa previsão). Qual é a garantia democrática do poder socialista se falta o controle operário?” (La democrazia diretta e il controllo operaio, 1958). Como se vê, é novamente proposta, depois da experiência traumática do stalinismo, a questão dos conselhos de fábrica, levantada já por Gramsci e pelo grupo “Ordine Nuovo” após a Primeira Guerra Mundial. A este propósito, Panzieri parte de uma tese que será pressuposta no mesmo texto que aqui se apresenta, isto é a extensão do novo tipo de monopólio industrial da fábrica à sociedade como um todo. Contesta, assim, a distinção entre luta defensiva (a de tipo sindical, ou a garantia dos direitos individuais) e ofensiva (o controle operário, justamente), porque uma tal distinção “se pode ainda fazer na velha fábrica, mas não no complexo monopolístico, o qual [...] tende a absorver e a subordinar tudo às suas leis de direção” (La democrazia diretta e il controllo operaio, 1958).

A partir do final dos anos 1940, Panzieri dedicou-se a intensos estudos marxistas. Traduziu o Livro II de O capital e os textos juvenis de Marx. Dele se disse que “reintroduziu, de forma não escolástica e acadêmica, mas militante, o marxismo teórico na Itália”;(2) e isto porque, partindo diretamente de Marx, e não de Gramsci, começara a desenvolver uma análise materialista das relações sociais de produção, totalmente ausente entre os intelectuais do PCI. Uma análise que ligava Marx ao quadro do neocapitalismo italiano, que se caracterizava por um rápido desenvolvimento tecnológico, pela concentração do poder econômico em grandes empresas privadas e públicas, por novos consumos de massa, a formação de uma nova classe operária da fábrica fordista (o “operário massa”, com o crepúsculo do operário-artesão e o maciço afluxo de jovens migrantes das zonas mais pobres do país). Panzieri preconizou “um marxismo que tem sabor de fábrica e não de cátedra ou sessão de partido” (Sergio Bologna). E a atitude de Panzieri, como de todo o operaísmo, se caracteriza por uma releitura de Marx privada de temores reverenciais, fortemente voltada a aplicar no presente o magistério marxiano (ainda que com desvios hiperbólicos dessa atitude, como os de Toni Negri). Assim, em notas de 1963, Panzieri sublinhava que O capital devia ser retomado, porém liberando-o de categorias investidas de “dados históricos contingentes”, como as condições oitocentistas de miséria do proletariado industrial e o excessivo peso dado à concorrência e à “anarquia” capitalista. Em torno dos Quaderni Rossi, a revista por ele fundada, foram redescobertas e atualizadas partes negligenciadas da obra marxiana, como a quarta sessão do Livro I de O capital, o “Fragmento sobre máquinas” dos Grundrisse, o Capítulo VI inédito. Ora, não resta dúvida alguma que o gramscismo dominante na Itália dos anos 1950 e 1960 comportara um afastamento de Marx e de seus textos a favor de uma reaproximação à tradição idealística. Como disse corretamente Toni Negri, Panzieri não apenas foi o primeiro a sair da lógica do compromisso político que era própria da versão togliattiana do gramscismo, mas foi também o primeiro a reler através de Marx a nova realidade social e a tentar assim uma crítica do marxismo oficial.(3)

Quando, expulso do grupo dirigente do partido, e depois também da editora Einaudi — para a qual trabalhara no início internamente como redator e depois externamente como consultor, e que o demitiu sob acusação de ter usado a editora “principalmente como instrumento de uma batalha político-ideológica” — , parece isolado e politicamente extinto, Panzieri organiza um grupo de jovens em Torino, com contatos em vários centros italianos, entre os quais em primeiro lugar Roma e Milão. Sob sua orientação, esse grupo começa um amplo trabalho autônomo de investigação operária e de conhecimento da fábrica; e disso nascem, em 1961, os Quaderni Rossi. Entre os elementos de novidade da revista, destaca-se o resgate da pesquisa sociológica, ignorada pelos intelectuais do PCI, que privilegiavam o debate cultural e não a análise da realidade social. A sociologia industrial era então importada do estrangeiro, enquanto na Itália o aspecto sociológico do pensamento de Marx começava naqueles anos a ser trazido à luz.(4) Para Panzieri o uso da investigação sociológica não era tanto ou apenas um instrumento de coleta de dados reais; mas, como foi justamente observado, “um instrumento em vista da ação política que almeja ampliar a consciência do antagonismo”.(5) A última intervenção de Panzieri será precisamente sobre o tema do Uso socialista dell’inchiesta operaia [Uso socialista da investigação operária].

Ora, os jovens marxistas, que Panzieri soube por um breve período fazer trabalhar em conjunto, punham, como foi dito, “o centro de gravidade da luta no interior da fábrica” (Lelio Basso). Mas Panzieri tinha já recusado o qualificativo de operaísta, em consonância com sua tese segundo a qual “a fábrica se generaliza: a fábrica tende a invadir, a permear toda a sociedade civil” (Lotte operaie nello sviluppo capitalistico). Operaísmo, ao contrário, é para Panzieri sinônimo de sin­dicalismo, que separa a fábrica da sociedade civil, que se atém a uma concepção empírica da fábrica (cf. Lotte operaie nello sviluppo capitalistico). O que Panzieri temia, acima de tudo, recusando o apelativo de operaísta, era a derivação sectária de uma fuga para a frente em relação ao movimento oficial, da qual esperava de algum modo recuperar algumas franjas relevantes. O sectarismo, de fato, para Panzieri, acaba sempre por afastar-se da realidade de classe.

Sull’uso capitalistico delle macchine nel neocapitalismo [Sobre o uso capitalista das máquinas no neocapitalismo] é publicado no primeiro número dos Quaderni Rossi, e é uma análise conduzida através de uma leitura crítica de O capital. Como já sugere o título, a tese de Panzieri é que o desenvolvimento tecnológico é um aspecto das relações capitalistas de produção, de tal modo que as forças produtivas não são consideradas neutras. Contestava-se assim o marxismo objetivístico, para o qual o desenvolvimento tecnológico, em seu desvinculamento e contraposição às relações de exploração, podia ter de per si uma função positiva e emancipatória. Concepção esta expressa nitidamente no “mito tecnológico” que sempre renasce - basta pensar na exaltação da internet de alguns anos atrás - e para o qual “o socialismo virá na onda da automação”. Mas não há racionalidade tecnológica imparcial: a tecnologia, para Panzieri, é um modo de controle do capital sobre o trabalho vivo, e o capitalismo sabe “planificar, com o desenvolvimento capita­lista das forças produtivas, até mesmo os limites do próprio desenvolvimento” (Plusvalore e pianificazione). Caso contrário, acaba-se por ver a indústria, com sua alienação, como um mal necessário, uma responsabilidade não do capi­talismo, mas do próprio desenvolvimento. Como dirá em Lotte operaie nello sviluppo capitalistico, a objetividade das máquinas “não é a objetividade da classe operária”. Porque essa objetividade serve para integrar o operário, para fazer com que não se reconheça como “operário coletivo”. O desenvolvimento tecnológico é um aspecto do plano do capital, de seu “despotismo”, que o plasma inteiramente. Donde o tema que será desenvolvido pelo operaísmo: a formação da subjetividade operária se dá na luta, a ponto de reter que esta última não tenha algum apoio no desenvolvimento objetivo do capital. É a luta que está na base do desenvolvimento capitalistalístico e que o determina, não vice-versa. A luta entre capital e trabalho vivo que, não obstante tudo, no capitalismo, não pode nunca ser concluída vantajosamente de uma forma definitiva para a classe mais forte.


Notas de rodapé:

(1) Professor da Università degli Studi di Milano-Bicocca. (retornar ao texto)

(2) Vittorio Foa, Per una storia del movimento operaio. Torino: Einaudi, 1980, p.284. 126Crítica Marxista, n.42, p.125-128, 2016. (retornar ao texto)

(3) Cf. Antonio Negri, Dall'operaio massa all'operaio sociale. Intervista sull'operaismo, ombre corte, 2007 [1979], p.39-44. (retornar ao texto)

(4) Il marxismo come sociologia, de Lucio Colletti, é de 1959, e desenvolve a tese do marxismo como metodologia científica de Galvano della Volpe (retornar ao texto)

(5) Cesare Pianciola, Il marxismo militante di Raniero Panzieri, Centro di Documentazione di Pistoia, 2014, p.34. (retornar ao texto)

Inclusão: 29/11/2019
Última alteração: 17/10/2023