Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Capítulo IV - A Crise Industrial e a Política Exterior. A Guerra com o Japão


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O movimento operário, o movimento camponês e o movimento da intelectualidade pequeno-burguesa das cidades minavam os alicerces do Estado feudal, mas o edifício parecia ainda forte e prometia manter-se em pé durante muitos anos. Os homens de 80 estavam convictos de que na Rússia, pelo menos naquela época, toda a revolução era impossível. A juventude de 90 inquiria-se melancolicamente: estalará a revolução algum dia? A partir de 1901, todo o mundo sentiu o prenuncio de uma revolução próxima. Mas, como começaria? Como atacar a rocha de granito da autocracia? As ondas arrebentavam há muito tempo contra a sua base, porém o pico estava tão longe das ondas mais altas! Toda greve, toda manifestação, terminava inevitavelmente com a dispersão, com detenções, com desterros. E nenhuma delas pudera, até então, tomar um caráter nacional, pondo em movimento toda a massa popular. Contra as ações parciais, o governo vencia sempre.

Em 1903, no apogeu de Pleve, fora dos círculos propriamente revolucionários — que continuavam incansavelmente o seu trabalho de organização e propaganda — nas esferas intelectuais, o estado de espírito baixava frequentemente ao nível do “dos homens de 80”. As prédicas dos “marxistas legais”, que naquela época tinham assimilado inteiramente a ideologia revisionista e demonstravam “cientificamente” que nenhuma revolução era possível, os indiscutíveis êxitos do “zubatovismo” na classe operária exerciam uma desmoralizadora influência entre os intelectuais. E a nenhum desses “céticos” ocorria a ideia de verem os Romanov cavando a própria sepultura e não compreendiam que o bloco de granito da autocracia só se sustentava pela inércia: bastava um golpe certo para o bloco vir ao solo com estrépito.

A causa da ruína dos Romanov foi criada pela forca e pela fama. Os fundadores do “Império russo” fracassaram ao fazer nova tentativa de ampliação de limites.

Antes de passar à política exterior de Nicolau II — que em virtude dela se converteu em seu próprio coveiro e de toda a dinastia — é necessário dizer algumas palavras sobre a política de seus antecessores. Deixamos Alexandre II na tentativa fracassada de apoderar-se de Constantinopla e no “escândalo” do Congresso de Berlim em 1870 (veja-se a segunda parte(1)). Não nos esqueçamos de que as esperanças de Alexandre II se baseavam no Tratado Secreto com a Alemanha, em virtude do qual esta se comprometia a “ajudar” a Rússia, embora no momento oportuno arranjasse pretextos para não cumprir a promessa. O czar da Rússia não podia perdoar ao dirigente da política alemã, o “chanceler” Bismarck, esta “traição”, do mesmo modo que noutra ocasião não perdoara à França a paz de Paris(2) de 1856. Depois de se inimistar com a Alemanha, o czar tinha fortes motivos para dirigir os seus olhares à França: nas manobras de 1879, os militares franceses foram acolhidos com atenções e honras particulares. Apressou-se Bismarck, naquele mesmo ano, a concertar um Tratado com a Áustria, que estivera a dois dedos de uma guerra com a Rússia; mas Bismarck não queria estraçalhar definitivamente suas relações com a Rússia. As relações entre os dois países eram frias; entretanto, desta ou daquela maneira, a aliança russo-alemã foi renovada 3 vezes, em 1880, 1884 e 1887. Os dois últimos tratados foram combinados com Alexandre III. Bismarck seduziu este último com Constantinopla, à qual já se aludia de um modo direto no tratado de 1887, evitando assim os “equívocos” de 1873, em virtude dos quais se falava então numa guerra indeterminada com uma potência não menos indeterminada; contudo, em compensação, falava-se do “auxílio” alemão de uma forma muito menos concreta: dizia-se unicamente que, nesse caso, a Alemanha se obrigava a não “estorvar” a Rússia. Noutras palavras, Bismarck comprometia-se a enganar a Áustria no caso de uma guerra no Oriente, como em 1877 enganara a Rússia (o Tratado russo-alemão de 1877 mantivera-se em segredo, afim da Áustria não se inteirar dele).

Naquele mesmo ano, entretanto, Alexandre teve oportunidade de se convencer de que, se Bismarck ia enganar a Áustria neste ou naquele dia, a ele já estava enganando. Na falta de Constantinopla, a Rússia contentou-se com a província da Bulgária setentrional, compreendida entre o Danúbio e a cordilheira balcânica, um principado semi-independente, segundo o Congresso de Berlim, vassalo formal da Turquia, mas, na realidade, dependente da Rússia; foi nomeado príncipe desta província um sobrinho de Alexandre III, chamado também Alexandre, príncipe de Battenberg. O capitalismo russo, que não conseguira grandes “reparações”, procurou tirar o maior lucro possível do pequeno bocado obtido.

A Bulgária era tratada como um domínio russo; obrigava-se, por exemplo, o governo búlgaro, a comprar velhos fuzis russos, considerados inservíveis durante a guerra russo-turca. pelo preço de armas novas. Tudo isso era fácil, visto que, à testa do governo búlgaro, se achavam generais russos, mandados de Petrogrado. A burguesia búlgara, que se desenvolvia rapidamente sob o domínio turco, e que agora aumentava com mais rapidez ainda, suportava tudo pacientemente.

O capital russo contava lucrar, principalmente, com a construção de estradas de ferro na Bulgária, cujos trabalhos deviam ser superintendidos por engenheiros russos, empregando obrigatoriamente materiais russos, com a particularidade do plano da rede ferroviária ser traçado de tal modo que as estradas búlgaras ficassem diretamente ligadas com as russas e exclusivamente com elas; se este plano fosse exequível, a situação da Bulgária como “província transdanubiana” teria durado muitos anos.

Não falemos que o plano “russo" custava o dobro de qualquer outro, nem que a Bulgária ficava completamente incomunicável com a Europa ocidental. A Bulgária fora libertada por “nós”; “nós” a empanturramos de bens; consequentemente, devia por-se ao “nosso” serviço. Mas a burguesia búlgara, compreendendo que se lhe queria lançar a corda ao pescoço, rebelou-se decididamente e deu provas da mais negra ingratidão. Os búlgaros declararam que eles mesmos construiriam a estrada de ferro, o que lhes seria mais vantajoso. Alexandre de Battenberg pôs-se ao lado dos capitalistas búlgaros — o que lhe valeu o qualificativo de “traidor" dado em Petrogrado — ganhando assim enorme popularidade na Bulgária. Alexandre III evidenciou nessa ocasião toda a rudeza e inabilidade que lhe eram peculiares. Arrancou o seu primo da Bulgária, não se envergonhando de inventar um “complô contra o Estado legal” (não se deve esquecer de que, formalmente, a Bulgária era um “principado independente” e destituir simplesmente Alexandre como se fosse um governador russo era impossível). Tentou entregar a Bulgária aos sérvios, retirando, durante a guerra da Sérvia com a Bulgária, os oficiais russos que se achavam neste último país, e que orientavam o exército búlgaro, deixando, por conseguinte, o mencionado exército sem comando no momento mais crítico: apesar disso, a única coisa que se conseguiu foi a Bulgária lançar-se aos braços da Áustria, de cujas mãos aceitou o novo príncipe Fernando Koburg, que governou esse país não mais com o nome de “príncipe” mas com o de “czar” até 1918.

Entrementes, Alexandre III convence-se definitivamente da pouca confiança que se podia depositar na Alemanha para a luta com a Áustria. Do único lugar que o czar russo sempre teve certo apoio foi de Paris. O resto da Europa, inclusive a Alemanha, estendia a mão ao búlgaro. Isto era suficiente para ressuscitar o velho pensamento de uma aliança franco-russa, ideia que Alexandre II havia acariciado. As condições econômicas impunham essa aliança de um modo decisivo.

A crise dos preços dos grãos não só prejudicou o fazendeiro russo, mas atingiu mais sensivelmente ainda o junker prussiano, cujas explorações eram mais capitalistas, e, por conseguinte, dependia mais do mercado. O fazendeiro prussiano vociferou a favor da “proteção à agricultura nacional”, como o fabricante russo vociferava a favor da “proteção à indústria nacional”. Bismarck, representante dos interesses da classe dos fazendeiros no governo alemão, não podia fazer-se surdo aos clamores dos seus representados. Em 1880, estabeleceram-se na Alemanha direitos aduaneiros sobre o trigo, que em 1885 foram triplicados, e, em 1887, quintuplicados. O mercado alemão tinha grande importância para a exportação russa de cereais. O centeio só se exportava para a Alemanha e nos anos 90 saíram da Rússia 90 milhões de puds desse cereal.

Bismarck estava convencido de que, sob o ponto de vista econômico, a Rússia estava em suas mãos: sabia que o governo dos Romanov não podia prescindir dos empréstimos estrangeiros, e esses empréstimos, até então, lançavam-se em Berlim. Quando Petrogrado começou a reclamar sobre os negócios da Bulgária e os direitos aduaneiros, Bismarck deu ordem para não serem aceitos os papeis russos nos bancos alemães. Mas o “Chanceler” cometeu um erro. Naquela época, na Europa, (graças ao prolongado período de paz, pois na Europa ocidental desde 1871 não houvera nenhuma guerra) o dinheiro era mais barato que nunca. Expulso da bolsa berlinense, o ministro de Alexandre III, Vinagradski, dirigiu-se a Paris onde foi recebido de braços abertos. Todos os empréstimos russos, em fins dos anos 80, foram “cobertos” em condições sumamente vantajosas.

Em rigor, a colocação dos empréstimos russos em Paris selou a aliança franco-russa: a burguesia francesa, que havia comprado os papéis russos, achava-se interessada no florescimento dos negócios do czar, tanto no interior do país como no exterior. Dois motivos de ordem formal opunham-se à aliança. O primeiro era o fato da França ser uma República. A nós, que sabemos o que é uma República burguesa, pode causar certo assombro constituir isso um obstáculo. Os punhos dos policiais franceses não eram mais carinhosos do que os dos policiais russos; a jornada de trabalho era de 12 horas, perseguiam-se de tal maneira os grevistas que, como vimos mais atrás, o governo do czar tinha algo a aprender da República democrática. Que escrúpulos, por conseguinte, poderiam experimentar os Romanov para estabelecer um acordo com um aliado tão “decente”? Mas é bom recordar quem era Alexandre III. Não podia admitir, de modo algum, que o governo republicano estivesse em mãos de advogados, e que se visse obrigado a receber como a um igual ao advogado Crevy, presidente francês. Ninguém ignora o juízo que se fazia dos advogados no círculo dos Romanov. Quando, sob Alexandre II, se discutia o projeto de admissão de representantes das assembleias provinciais no Conselho de Estado, um: das objeções principais era a seguinte:

 “E se forem eleitos advogados?”

Dava-se muita importância a essa objeção(3). Imagine-se, pois, o efeito que produziria o fato de um advogado sentar-se ao lado do czar! Num momento de irritação, Alexandre III chegou a dizer ao Embaixador francês:

“Que canalha há em vosso governo!...”

O embaixador não era advogado, e sim general, isto é, um dos “seus”.

Isto no que toca à Rússia. Quanto à França, este país não pôde acostumar-se durante muito tempo com certos gostos e costumes do novo aliado. Para Petrogrado, a aliança significava, naturalmente, que tanto os inimigos exteriores como interiores eram comuns. “Nós te defenderemos contra os alemães, e tu nos entregarás os “niilistas” russos refugiados na França". O fundador da República francesa — o verdadeiro fundador — Gambeta — compreendia isto perfeitamente. Quando se dispunha a concertar uma aliança com a Rússia, necessária a ele e ao seu partido — não tardaremos em ver porque — estava decidido a entregar, sem mais nem menos, todos os revolucionários russos, que se achassem em França, a Alexandre III. Mas Gambeta morreu antes de terminarem as conversações a respeito da aliança e seus herdeiros eram homens de opiniões menos “amplas”.

A República ainda era nova; as massas respeitavam-na seriamente; os operários faziam pressão; havia pouco tempo, em 1880, que se concedera anistia aos “comunardos" (e em 1884 concedera-se a liberdade de agremiação); os advogados que governavam a França sentiam-se “coibidos”. Para agradar ao governo czarista cometeram muitos ultrajes, mantiveram Kropotkine na prisão, expulsaram Plekanov do país, mas não se decidiram a entregar os “niilistas” à vingança czarista. Os dois contratantes viram-se forçados a adaptar-se e adaptaram-se. Os gendarmes russos organizaram a sua secção em Paris, com todo um Estado Maior, com o fim especial de incitar os revolucionários russos, pouco experimentados, ou inábeis, a realizar atos proibidos pela lei francesa. Podiam, assim, metê-los no cárcere sem espalhafato. Embora não entregassem os revolucionários, os franceses puseram-se a expulsar para a Alemanha, como “estrangeiros indesejáveis”, os mais ativos, e ali a polícia alemã tomava-os por sua conta e os enviava para o “seu país". Todos estavam satisfeitos e a Constituição republicana permanecia incólume. Mas, antes das coisas se normalizarem, houve não poucos atritos.

Mas outra circunstância fazia com que uma aproximação demasiado estreita com a França atemorizasse Alexandre III. Alexandre, como todos os Romanov, tanto antes como depois da aliança, estava disposto a fazer a guerra somente por Constantinoploa(4). Ainda não chegara o momento oportuno para isso: a frota do mar Negro estava em construção; a infantaria russa, somente três anos antes da morte de Alexandre III, fora dotada de fuzil de novo tipo. Os franceses, pelo contrário, logo que se concertou a aliança com a Rússia, começaram a limpar os sabres, e o Ministro da Guerra daquele tempo, o general Boulanger, grande amigo dos obscurantistas russos, orientou-se no sentido da revanche contra os alemães pela derrota de 1870. Freyssinet, um dos ministros franceses daquela época, braço direito de Gambeta, confessa em suas Memórias terem tido os franceses grande trabalho para o czar resolver-se a firmar o tratado militar com a França, e que foram, inclusive, obrigados a recorrer a uma personalidade tão elevada como o conhecido provocador e espião Rachkovski — chefe de polícia especial de Alexandre III — porém essa mediação para nada serviu, e o Tratado militar secreto só foi firmado em 1893, depois que cessou o ruído provocado por Boulanger.

Como consequência de tudo isso, estreitou-se ainda mais a aliança entre o Palácio de Inverno e a Bolsa Parisiense. Em Paris, o verdadeiro amigo de Alexandre III não era o presidente ou qualquer ministro, mas o banqueiro Gosquier, que mais tarde se vangloriava de haver recebido de Alexandre o encargo de preocupar-se dos negócios financeiros de seu filho Nicolau II. fosse como fosse, a influência da Bolsa de Paris era muito forte em Petrogrado, e, se Alexandre III se mostrava surdo às incitações guerreiras dos generais franceses, tanto ele como Nicolau II, que o sucedeu no trono em outubro de 1894, serviram de instrumentos dóceis dos banqueiros franceses, até que em 1904-1905, se produziu na Manchúria a primeira catástrofe dos Romanov.

O capital francês, ou melhor, o capital europeu, que, exceção feita da Inglaterra, estava concentrado em fins do século XIX nos cofres das instituições bancárias francesas, achou nos empréstimos russos dos anos 80 a 90 um estímulo para passar ao Oriente. O interesse russo era, naturalmente, o mais elevado da Europa, porém não seria possível perceber um tanto por cento a mais no Oriente? Não foi sem motivo que a construção da linha de ferro siberiana, decidida precisamente em 1887, adquiriu rapidamente enorme importância política, Para celebrar a inauguração das obras no território do Oriente, foi enviado, em 1897 o próprio Nicolau, então ainda czarevitch (nessa ocasião, Nicolau saboreou pela primeira vez o gosto do sabre japonês(5), acontecimento que as pessoas supersticiosas consideraram de mau agouro). E, quando, em 1895, na margem oriental do continente asiático, apareceu o Japão que, com uma rapidez inesperada pela burguesia europeia, destruiu o exército e a marinha chineses (e a lenda do renascimento da China, custeado pelos empresários europeus), a Rússia, em aliança com a França e a Alemanha, apressou-se em intervir. Colhidos de improviso, os japoneses não obtiveram nenhum pedaço de terra no continente e tiveram de contentar-se com uma contribuição. A fim de que fosse mais fácil satisfazer a China, e pôr em ordem sua situação financeira, contrataram um empréstimo, etc., etc.; e, nesse mesmo ano de 1895, o Ministro da Fazenda, Witte, de acordo com os banqueiros franceses mais importantes, criou o Banco Russo-Chinês.

Todos estes acontecimentos não eram desconexos; faziam parte de um plano geral, como o demonstraram as palavras pronunciadas pelo próprio Witte, três anos antes, em 1892:

 “A Estrada de Ferro Siberiana — escrevia o Ministro da Fazenda, que recentemente havia tomado posse do cargo — rasga uma nova senda e novos horizontes ao comércio mundial, e sua importância a coloca entre os acontecimentos que apontam o início de uma nova era na História dos povos, e que, amiúde, provocam uma transformação radical das relações econômicas estabelecidas entre os Estados”.

Não há necessidade de demonstrar que esse “acontecimento mundial” converteu os banqueiros franceses em comanditários de Witte; entretanto, para dizer a verdade, não eram eles os comanditários de Witte, e sim o inverso, pois a Rússia tinha deficiência de capitais, e, se as moedas soaram em seus bolsos, não eram suas, mas francesas. Não é difícil compreender a razão que levou a Alemanha a associar-se a essa companhia; a Rússia não contava com muitas mercadorias, além do dinheiro, para exportar para o Oriente; era claro que a Estrada de Ferro Siberiana exportaria mais produtos das fábricas alemãs do que das fábricas russas; quando os russos ocuparam Porto Artur, os agentes das firmas alemãs fizeram ato de presença ali antes de qualquer representante dos fabricantes russos.

Seria possível, porém, que a Rússia, no Oriente, fosse simples representante dos banqueiros e dos fabricantes alemães. Naturalmente não, e o que dissemos da resistência de Alexandre III à política agressiva de Boulanger mostra que, onde não houvesse nenhum interesse “nacional”, onde o capital russo não pudesse lucrar e o futuro nada prometesse ao czarismo, este governo saberia oferecer resistência. Se foi ao Extremo Oriente docilmente, sem opor embaraços, não era pelo temor aos golpes e magnas (que medo podiam inspirar-lhes esses “japonesinhos”, esses jodis(6)) mas a perspectiva de lucros.

Já vimos que a grande indústria russa dos fins do século passado, num só dos seus ramos — no têxtil — se apoiava exclusivamente no grande consumo; outro ramo, a metalurgia, apoiava-se mais na economia do Estado do que na privada. Dai os interesses da nossa metalurgia tomarem mais depressa do que as outras uma forma “estatal”. Vimos um exemplo disso na política búlgara de Alexandre III — e é curioso observar que esta se desenvolveu, sobretudo, na situação criada pela crise de princípios do ano 80.

Em fins de 90, houve outra crise, que foi, também, antes de tudo, uma crise metalúrgica. Nesta crise, vemos de novo uma tentativa bem determinada e consciente, para levar a construção ferroviária russa além das fronteiras políticas do império.

Já no famoso “Tratado moscovita”, concertado pelo “reformador” chinês Li-Iun-Chan, por ocasião da coroação de Nicolau II (22 de maio de 1896), concedia-se à Rússia o direito de construir linhas férreas no território chinês. Aludindo a esse tratado, o Ministro da Fazenda falava em 1902 da “imensa importância da mencionada concessão para os nossos interesses na China. Podia-se afagar a esperança de, por meio do Banco Russo-Chinês, conseguirmos obter novas vantagens nesse terreno. O Banco, graças aos consideráveis recursos monetários e ao direito de participar em todas as empresas ferroviárias da China, e, apoiado por essa missão, tinha todas as possibilidades de desempenhar um papel notável nas empresas ferroviárias do país. Evidentemente, compreendendo isso, desde os primeiros anos de sua atividade, diferentes empresários ferroviários, tanto chineses como estrangeiros, recorreram aos serviços do Banco Russo-Chinês.

O concorrente do capital russo, na construção de estradas de ferro chinesas, era o capital inglês. Graças à intervenção dos ingleses, não se conseguiu obter o monopólio para a construção de vias férreas na China, ao norte do rio Amarelo, isto é, as linhas que punham a capital chinesa, Pequim, em comunicação com as regiões centrais do império, situadas ao sul da mesma.

A princípio, resolveram construir a linha em direção a Vladivostok, pelo território russo, ao longo do rio Amur. Depois, considerando esse traçado incômodo e desvantajoso, decidiram reduzir a linha. Em vez do arco do Amur devia-se seguir a corda desse arco, através da Manchúria do norte, pertencente já à China. Como a Manchúria setentrional se achava pouco povoada e era um país semi-deserto, no qual, na opinião russa, não havia uma ordem verdadeira, a companhia ferroviária obteve autonomia completa e até o direito de manter tropas no território chinês para a defesa da linha e das estações. Noutras palavras, a Manchúria setentrional foi submetida a uma autêntica ocupação russa, pois as tropas da companhia ferroviária eram compostas de soldados russos, sob o comando de oficiais russos. Isto em 1896. Vladivostok continuava a ser considerado o ponto final da linha. Mas, dois anos depois, perceberam que não só era preciso modificar a direção da linha, como também o seu ponto final. Vladivostok achava-se situado longe de todos os caminhos comerciais do Extremo Oriente. O clima ali é extremamente rigoroso e o porto, durante alguns meses do ano, é fechado pelo gelo. Os portos da Manchúria meridional quase nunca gelam, e estão situados no caminho comercial mais importante, que leva ao coração do Império chinês, a Pequim; a linha foi desviada para o sul. Para isto, em 1898, foram “arrendados" da China os dois portos mais meridionais da Manchúria, Porto Artur e Dalian-Van. O “arrendamento” teve como complemento uma ocupação militar: Porto Artur era uma fortaleza, que deveria ser ocupada por guarnição russa, e converter-se, pelos esforços dos engenheiros russos, em inexpugnável; Porto Artur deveria transformar-se, dessa forma, numa base para a esquadra russa do Pacífico, que se pretendia reforçar consideravelmente. O porto comercial deveria ser Dalian-Van, onde foram construídos docas, uma central elétrica, etc. Foram despendidos, nesses empreendimentos, 16 milhões de rublos ouro.

Dessa maneira, Witte — a alma da política oriental nos fins do século anterior — ampliou o mercado da metalurgia russa. A política de Witte recordava exatamente a de Nicolau I no Oriente Próximo, com a diferença de que não se tratava, neste caso, da indústria têxtil. E, também, a conquista direta, por meio de baionetas, desempenhava na política de Witte um papel menos importante do que na de Nicolau: Witte era um homem mais do mundo burguês que do mundo feudal. Cedo ou tarde, podia-se também chegar, naturalmente, à guerra. A Rússia preparava-se pouco a pouco para ela: entre 1892 e 1902 os gastos militares anuais aumentaram de 48%, e os gastos com a esquadra em mais de 100%, pois passaram de 40 milhões de rublos ouro, para 98. Esta última cifra mostra com clareza que, nesta ocasião, não se tratava de Constantinopla: a esquadra do mar Negro foi construída por Alexandre III e durante os anos 90 não foi aumentada. Além disso, as despesas militares da Rússia cresceram mais vertiginosamente do que as de qualquer Estado da Europa: sob esse aspecto, a Alemanha e á Áustria-Hungria seguiam logo abaixo da Rússia; no entanto, aquela não acrescera os seus gastos militares no período compreendido entre 1892 e 1902, de mais de 36% e a Áustria de 32%. A Rússia preparava-se para a guerra com mais energia do que todos os demais Estados. Mas Witte procurava retardá-la o mais possível.

A política russa no Extremo Oriente era, inegavelmente, um imperialismo em germe, mas um imperialismo por assim dizer, “normal”, “natural”. Sua finalidade não era submeter países ou povos, e sim apoderar-se de mercados. Mas, a este imperialismo “normal” de Witte, opunha-se o imperialismo selvagem, primitivo e feudal dos Romanov.

Estes últimos também passavam por uma espécie de crise. Em princípios deste século, a fecundidade dos Romanov tomara proporções incríveis: os Romanov com os parentes de 2.° grau eram mais de meia centena. Foi preciso dividir os “grão-duques” em categorias. Como “grão-duques autênticos” foram reconhecidos unicamente os filhos e os netos do imperador reinante; os restantes eram somente “príncipes de sangue imperial” e tinham o tratamento de “alteza” e não de “alteza real”. Foi necessário — o que era muito mais delicado — submeter os membros da família imperial à “ração”. Antes, cada um recebia tudo o que lhe faltava, não só para satisfazer as suas “necessidades”, como também para manter na abundância o bando de folgazões que o rodeavam. Agora, por mais ricos que fossem os Romanov, não havia mais recursos suficientes para que todos pudessem viver de um modo “decente”. Já sob Alexandre III foi preciso substituir o sistema de satisfazer todas as “necessidades" pela entrega de uma quantidade determinada dos dinheiros familiares. Por esse sistema, os “príncipes de sangue” não percebiam recursos superiores aos de um fazendeiro rico. Viver “à moda do czar” não mais lhes foi possível.

Como consequência disso, o primeiro multimilionário teve que pensar num modo de aumentar os seus milhões. O Departamento encarregado de nutrir os Romanov lançou-se em diversas empresas: organizou, por exemplo, a venda dos vinhos das fazendas czaristas. O vinho não era mau e vendia-se bem; porém o aumento de dinheiro obtido mediante sua venda era insignificante. Iniciou-se, então, a colocação dos capitais dos Romanov no estrangeiro, nas mais variadas empresas. Circulava insistentemente o boato de que a firma inglesa Wickers, construtora de navios de guerra, canhões, etc., contava, entre os seus acionistas, os Romanov. É curioso isso, pois era precisamente essa firma que servia a esquadra japonesa, que podia, por conseguinte, disparar contra os encouraçados russos com os canhões dos “Romanov” (finalmente, uma “produção nacional” no seu gênero). Contudo, isso, na realidade, não tinha grande importância: as amplas fauces dos Romanov eram capazes de tragar dez Wickers com seu dinheiro.

Nessa ocasião, como sucede amiúde com os fazendeiros arruinados, apresentou-se um demônio tentador, que começou a fascinar o czar com uma empresa cujos lucros seriam superiores a todos os cálculos. Esse demônio tentador era um coronel reformado, um tal Vonliarliaski, nome, naturalmente, desconhecido para os nossos leitores, mas que é digno de passar à História. Witte qualificou esse coronel reformado de “homem de negócios da pior espécie”. Tratava-se, simplesmente, de conselheiro de indústria, de um desses vadios que adejam sempre em torno dos senhores arruinados. Fez sua aparição em 1898, justamente no momento em que, devido a Witte, o Extremo Oriente fora lançado em moda, e, por mediação de um parente do czar, o grão-duque Alexandre Mikailovich (como vemos, estamos no círculo mais íntimo dos Romanov), chegou às mãos de Nicolau II uma nota que dizia:

“1) que na Coreia se acha em vigor o direito consuetudinário, em virtude do qual não existe propriedade privada no país, e toda terra pertence ao Imperador da Coreia; 2) que há possibilidade de apoderar-se da Coreia, obtendo-se concessões de várias de suas riquezas não exploradas pelos estrangeiros (!); 3) aludia-se à “importância da concessão florestal de Briner, que permite uma expedição à Coreia, sob pretexto de inspecionar os bosques”.

Que era a Coreia? A vizinha mais próxima da Rússia, situada na fronteira da região de Ussuri, e cuja capital, Vladivostock, dista apenas umas dezenas de verstas da fronteira coreana. A Coreia, que era, antes, um reino semi-independente, vassalo da China, a partir de 1895, depois da guerra sino-japonesa, converteu-se num “império independente” que, de fato, de nenhuma independência gozava. O domínio era de influência ora russa, ora japonesa. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, numa nota secreta, confessava mais tarde que

 “o destino da Coreia, como futura componente do Império Russo, estava prefixado pela forca das condições geográficas e históricas”.

Como consequência disso, segundo relata a nota mencionada, os diplomatas russos recusaram a divisão da Coreia, proposta pelo Japão em 1896, pois isto significava “cercear voluntariamente sua própria liberdade de ação no futuro”. É verdade que, dois anos mais tarde, depois da Rússia se haver apoderado de Porto Artur, foi necessário fazer concessões: a Rússia comprometeu-se à “não criar obstáculos” ao “predomínio do Japão” na esfera das empresas comerciais e econômicas da Coreia”, mas, como solenemente manifesta a aludida nota, a coisa não passava de um evidente engano da diplomacia russa, pois naquela época não havia em parte alguma da Coreia “empresa comercial ou econômica” russa, nem nada parecido. A Rússia, por assim dizer, não cedia outra coisa mais que o ar, e recebia em troca uma coisa tão real como os portos da Manchúria do Sul que nunca se gelavam.

Naquela época, foi organizada na Coreia uma “empresa comercial-econômica” pertencente aos próprios Romanov. A empresa não se limitava a uma concessão florestal qualquer no rio Yalu, sobre o qual tanto barulho armaram em 1905-1906 os jornais russos: a concessão não passava de um pretexto para a posse da Coreia; por uma ninharia como uma concessão florestal, os Romanov não enlameariam as mãos. Tratava-se de tomar posse de todo um país, um pouco menor que a Itália, com uma extensão de 200.000 verstas quadradas e uma população de mais de 10 milhões de habitantes. Mas os Romanov não necessitavam das terras nem da gente; tanto de uma como de outra tinham em quantidade na Rússia. Contavam-se verdadeiras lendas a respeito das riquezas minerais da Coreia, das jazidas de ouro. das minas de ferro e de carvão, etc. O elevado funcionário palaciano que se encontrava à frente da expedição — o assunto foi tratado como negócio particular dos Romanov — conseguiu obter do imperador coreano uma concessão para a exploração de todas essas riquezas. O objetivo fundamental do mencionado funcionário, segundo confissão da diplomacia russa — era

“atrair à Coreia capitais russos e estrangeiros para exploração das riquíssimas minas de ferro e das jazidas de ouro do departamento imperial (coreano), com o fim de evitar que as ditas riquezas caíssem nas mãos dos japoneses”.

Por conseguinte, enquanto a diplomacia prometia “não criar obstáculos”, um enviado especial de Nicolau II — que não figurava em nenhum dos documentos diplomáticos — apresentava-se na Coreia com o objetivo de “entorpecer”. Os japoneses não podiam deixar de perceber imediatamente essa duplicidade e isso levou forçosamente a um grau de extrema delicadeza as relações entre os dois países. Respirava-se a guerra no ar: isto em 1899. O quinquênio seguinte, até o princípio da guerra, acha-se cheio de desesperadas tentativas do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia e, sobretudo, de Witte, para adiar a explosão da guerra; porém Nicolau II, com a silenciosa tenacidade que lhe era peculiar, não deixava de insistir em sua “empresa comercial econômica”. Vonliarliaski fora relegado a segundo plano, há muito tempo, e substituído por outras pessoas mais hábeis, apesar de serem da mesma espécie: o palaciano Besobrazov, alçado por Nicolau II à categoria de “secretário de Estado” (algo como ministro sem pasta) e o oficial de marinha Abaz, feito almirante por Nicolau. Foram-se introduzindo, pouco a pouco, tropas na Coreia: soldados em forma de “operários”, oficiais disfarçados de “vigias” ou de inspetores dos trabalhos. Tudo isto se fazia, naturalmente, em proporções mínimas: dissimular um grande destacamento era impossível; os japoneses responderiam enviando outro destacamento. O choque seria inevitável. Também não foi possível penetrar no interior do país: das minas e das jazidas, no momento, falava-se apenas, e, na realidade, o que se explorava era a concessão florestal da margem do rio Yalu, que separa a Coreia da Manchúria. Entretanto, o Japão armava-se não menos febrilmente do que a Rússia. Claro que, sem uma verdadeira guerra, era impossível obter a Coreia.

Besobrazov e Cia. empurravam o país para a guerra, convencidos de antemão da “vitória completa”. Mas Witte manteve-se longo tempo apoiado pelo ministro da Guerra, Kuropatkin. Este, que participara da guerra russo-turca de 1877-78, e que, além disso, se recordava bem do choque russo-alemão, só compreendia uma guerra, a guerra por Constantinopla, em cujo caminho via um único inimigo: a Alemanha. Cada batalhão, cada bateria mandados para o Extremo Oriente debilitavam a defesa no Vístula; isto era suficiente para Kuropatkin ser o inimigo de toda aventura no Extremo Oriente. Desgraçadamente para ele e para Witte, a sua conduta não se caracterizava pela decisão nos campos de batalha, nem nas numerosas “conferências” que Nicolau convocava para tratar de sua “empresa” favorita. Kuropatkin teve valor suficiente para dizer ao czar, que a guerra com o Japão custaria quase mil milhões de rublos ouro e 30 000 vidas humanas (na realidade, custou muito mais) e dando a entender que a conquista da Coreia não justificava tantos sacrifícios. Mas, quando viu que Nicolau se obstinava em sua ideia, como soldado obediente perfilou-se e disse:

“Contudo, far-se-á o que ordenardes”.

 Quanto aos milhões do Estado, fornecidos pelo povo e não procedentes do bolso dos Romanov, e às vidas humanas, dos operários e camponeses, Nicolau tinha ideias próprias. Pensando nos milhares de milhões que, procedentes da Coreia, iriam para o seu cofre, enternecia-se embalado pela berceuse de sua riqueza futura. De antemão, estava disposto a ceder parte do dinheiro e, como o comerciante da lenda, que, toda a vez que se saía bem de um negócio sujo, dava um sino à sua paróquia, Nicolau prometeu, por escrito, empregar “as sobras” de seu dinheiro coreano na “construção de templos ortodoxos”.

Uma série de causas, além da resistência indecisa de Witte e Kuropatkin, continham Nicolau. A Estrada de Ferro Siberiana não estava completamente terminada. Em 1904, quando a guerra já havia estalado, construía-se ainda em torno de Baikal a parte mais difícil; foi preciso transportar as tropas em quebra-gelo através do lago. A grande esquadra russa (fazer guerra ao Japão, potência marítima, sem esquadra, era impossível), não estava também terminada; os quatro encouraçados mais poderosos só foram concluídos em maio de 1906, para afundarem-se nas águas do estreito de Tsu-Sima. Porto Artur estava longe de ser uma “fortaleza inexpugnável”. Finalmente, pouco depois de iniciada a “empresa coreana”, evidenciou-se que a nossa posição na Manchúria era pouco firme. Os tratados e concessões eram insuficientes para a Rússia converter-se em dona dessa província chinesa. Os pacíficos chineses, que falavam numa língua ininteligível, provocavam o desprezo dos “colonizadores” russos. Com eles, “não se gastava latim”: o próprio Witte, em relatório a Nicolau II, sobre a sua viagem ao Extremo Oriente, não pôde deixar de se referir às atrocidades das tropas russas na Manchúria: os roubos, os assassinatos, as violações eram comuns. É necessário dizer que os russos não constituíam, nesse ponto, uma exceção: a China era saqueada por todo o mundo: no momento em que os russos se apoderavam de Porto Artur, os ingleses apossavam-se de Bei-Kai-Bei e os alemães de Kaio-Chao. Quando, no verão de 1900, estalou na China a insurreição contra os “diabos estrangeiros”, o movimento se estendeu imediatamente à Manchúria. A parte já construída da linha de ferro foi quase totalmente arrancada. Foi necessário conquistar a Manchúria. Conquista prenhe de incríveis atrocidades: milhares de chineses foram afogados no rio Amur; grande número de aldeias saqueadas, incendiadas; em resumo, depois disto, os chineses, até então inimigos dos japoneses, achavam-se dispostos a prestar-lhes qualquer serviço, contanto que expulsassem os russos.

Até o fato dos japoneses participarem, também, da chamada guerra chinesa de 1900, na repressão aos chineses (as tropas japonesas, russas, inglesas, francesas, norte-americanas, etc., tomaram Pequim), foi esquecido e perdoado depois da campanha russa na Manchúria.

A situação interior da Rússia foi a última circunstância que contribuiu para a guerra: o poderoso aliado, que decidiu o litígio entre Witte e Besobrazov, foi Pleve. Vimos que, em 1903, este havia conseguido amedrontar, até certo ponto, a intelectualidade russa e desmoralizar os operários. Entretanto, não lhe podia passar despercebido que tudo isso era insuficiente. Era preciso empregar meios muito mais fortes para desviar a onda revolucionária que avançava. O ódio popular contra os Romanov e seus acólitos aumentava sempre. Seria possível canalizar esse ódio noutra direção?

Começou, então, a procurar um “inimigo nacional”, primeiro interior e depois exterior.

As massas ignorantes olham sempre com desconfiança as pessoas que não se parecem com as que estão habituadas a ver. Todo estrangeiro suscita entre as pessoas incultas esse sentimento: não é em vão que na língua dos povos antigos “estrangeiro” e “inimigo” têm o mesmo significado ou procedem de uma mesma raiz. Para os pequeno-burgueses ignorantes, todo estrangeiro é suspeito, e, se, por acaso, lhes faz concorrência, trabalha ou comercia melhor, acaba por odiá-lo. Não se poderia aproveitar disso e, ao mesmo tempo, amedrontar os revolucionários “com a cólera popular”?

A partir da reação de 80, o governo olhava os judeus de soslaio, pois estes constituíam a parte mais laboriosa, mais viva e mais inteligente da população urbana, do sul e do ocidente da Rússia. Por esta circunstância, era entre a massa urbana que a agitação revolucionária encontrava terreno mais propício. Entre a juventude hebraica existiam círculos de narodnovolsti(7) e a bibliografia marxista da “Emancipação do Trabalho” foi conhecida em Vilna, Minski e Kiev antes de o ser em qualquer outra parte da Rússia, a partir de meados de 80.

Não se pode afirmar que houvesse mais revolucionários entre os judeus de que entre os russos; mas para o governo czarista era vantajoso existirem hebreus revolucionários. Como vimos, noutro tempo, aproveitaram-se do fato de Karakazov, que havia disparado contra Alexandre II em 1866, ser nobre: podia ser mais útil ainda o revolucionário hebreu.

Desgraçadamente para o governo, entre os organizadores do 1.° de março só havia um judeu, o qual, além disso, desempenhara um papel inteiramente secundário. Os participantes principais do atentado eram russos de puro sangue e de nome russo conhecido, como, por exemplo, Perovskaia. Contudo, a presença de hebreus entre os narodnovoltsi serviu de pretexto à organização dos primeiros pogroms do sul da Rússia em 1881 e 1882. O organizador dos mesmos foi Pleve, diretor do Departamento de Polícia daquela época e futuro ministro.

Os pogroms puseram em evidência o seu lado desagradável para o governo. A multidão excitada pelos agentes de polícia, devastava, saqueava, e, como havia mais a roubar em casa dos hebreus ricos do que na dos pobres, a burguesia hebreia, que nada tinha a ver com a revolução, perdia mais do que os pobres. Evidentemente, era necessário organizar as perseguições aos judeus de outro modo. Os pogroms por meio da multidão são substituídos — na segunda metade do reinado de Alexandre III — pelo pogrom silencioso, em forma de perseguições policiais de toda espécie, contra os hebreus. Praticava-se secretamente o princípio do chamado “limite de residência”, de acordo com o qual os judeus não podiam viver nas províncias da Grande Rússia, nem nas províncias ucranianas e na Rússia Branca; só podiam habitar nas cidades (onde, em alguns lugares, constituíam a maioria da população e, por conseguinte, tornava-se impossível expulsá-los), e não nas aldeias. Aos hebreus era vedado o acesso às instituições docentes em virtude do chamado “tanto por cento de norma”: em cem alunos não podia haver mais de três hebreus. Cuidava-se escrupulosamente de evitar que os judeus desempenhassem cargos no Estado, o que sucedia no reinado “liberal” de Alexandre II.

O general governador de Moscou, o grão-duque Sérgio, irmão mais moço de Alexandre III, distinguia-se particularmente pela sua crueldade para com os hebreus. Muitos artesãos judeus, residentes há muito tempo em Moscou, e que prestavam bons serviços à população, foram arruinados e confinados no “limite de residência”. Ao mesmo tempo, um dos familiares do palácio era o milionário hebreu Poliakov, conhecido proprietário ferroviário: os hebreus, desejosos de comerciar em Moscou, eram inscritos como empregados de Poliakov e o número desses “empregados” era de algumas centenas. Deste modo, os lobos estavam fartos, as ovelhas incólumes, o ódio da família czarista e de seus servidores satisfeito, e a burguesia hebraica continuava intacta: sabia-se onde pedir dinheiro nos momentos difíceis da vida.

Os vexames de que os hebreus pobres eram vítimas contribuíam, naturalmente, para fomentar o espírito revolucionário dos mesmos. Basta dizer que o “limite de residência”, ao dificultar a procura de trabalho pelo operário hebreu, entregava o proletariado judeu de pés e mãos atados ao capitalista do “limite de residência”. As organizações social-democratas começaram a formar-se em primeiro lugar entre o proletariado hebreu, as quais em 1897 se fundiram na “União Operária Hebraica” (o Bund, palavra alemã que significa “União”: o judeu russo, como é sabido, fala um idioma semelhante ao alemão).

A intelectualidade hebraica, em princípios do século XX, já desempenhava entre os chefes do movimento revolucionário um papel muito mais saliente do que havia desempenhado entre os narodnovoltsi. Os judeus constituíam a quarta ou terça parte do setor organizado de todos os partidos, segundo dados de diferentes congressos.

Isto, naturalmente, não podia melhorar a atitude do governo czarista quanto aos hebreus, sobretudo, quando, à frente dele, se achava um antissemita encarniçado como Pleve. Entrementes, a situação do governo fizera-se tão difícil, que salvar a burguesia hebraica já era impossível. Pleve recorreu novamente à arma afiada dos pogroms e desta vez em proporções desconhecidas até então. Em Kishinev, em abril de 1903, a multidão pequeno-burguesa fez uma das suas, espancando e matando centenas de judeus e devastando mais de mil casas e negócios hebraicos; os “pogromistas” chegavam, formando multidões compactas, das cidades próximas. A polícia contemplava esses fatos com uma indiferença tão suspeitosa, que ninguém poderia duvidar das suas simpatias pelo pogrom. O processo que, apesar de tudo, foi preciso instaurar, pois os fatos foram demasiados ruidosos — toda a imprensa europeia os comentou — pôs em relevo a coparticipação direta das autoridades locais, inclusive do governador. Tudo isto, naturalmente, foi encoberto da melhor maneira possível, e ninguém, salvo dois ou três “pogromistas” secundários, foi castigado. Mas foi necessário novamente suspender os pogroms: o processo era ainda mais arriscado do que parecia, após as experiências de 90. Recorreu-se à eles unicamente num momento de desespero, quando já as chamas da revolução serpenteavam, em outubro de 1905. O que se tornou absolutamente impossível, mesmo com o apoio da Polícia, foi organizar pogroms nos distritos industriais. O proletariado não só não participava dos pogroms, como também prestava todo apoio à autodefesa dos hebreus. Por outro lado, nas aldeias não havia judeus; por conseguinte, os pogroms não serviam para a luta contra o movimento camponês. Se se quisesse desviar a atenção para o “estrangeiro” era preciso buscá-lo fora do país.

Para isso, os japoneses prestavam-se à maravilha, pois não eram cristãos, mas “pagãos”, “incrédulos”. Embora não fosse senão por isto, todo o ortodoxo tinha o dever de odiá-los. O único inconveniente era acharem-se demasiado longe, e a massa popular russa não ter quase ideia deles. Voliarliaski, pelo contrário, conseguiu fazer o litígio japonês inteiramente compreensível para Pleve: infundiu-lhe a ideia dos adversários da Rússia no campo internacional serem os mesmos hebreus que “faziam a revolução” na Rússia. Isto era o bastante para Pleve. “Uma pequena guerra vitoriosa no Extremo Oriente”, pareceu-lhe absolutamente necessária. Que a guerra seria “pequena” e necessariamente “vitoriosa” não duvidavam em nada os reacionários russos. Seria possível um pigmeu, como o Japão, enfrentar um colosso como a Rússia? No verão de 1903, o Novoie Vremia escrevia:

“para o Japão a luta contra nós significa o suicídio”.

Assim, pois, decidiu-se a “desvanecer os sonhos revolucionários” com a guerra. Em fins do verão desse mesmo ano, as administrações do Amur e da Manchúria, ocupadas pelas tropas russas (prometera, em 1902, evacuar, esta última, exceção feita da parte meridional, porém, agora nem pensava mais nisto), foram fundidas sob o comando de uma espécie de vice-rei, investido pelo czar de poderes extraordinários. Foi nomeado vice-rei o almirante Alexeiev — criatura de Besobrazov. Este, por sua vez, converteu-se em chefe reconhecido do “Partido da guerra”, e na personalidade mais influente do palácio, depois de Pleve. O prestígio de Witte começara já a declinar, mas como era, na opinião de Besobrazov, um elemento em que não se podia ter confiança completa, viu-se obrigado a apresentar sua demissão em agosto de 1903. A resposta às proposições recebidas do Japão foi confiada a Besobrazov.

O governo japonês já há tempos compreendera a inevitabilidade da guerra e tomara todas as medidas de previsão (a aliança com a Inglaterra em 1902, entre elas). O Japão, no verão do ano seguinte, iniciou as negociações, não por esperar resultados das mesmas, e sim para obter provas documentais dos planos da Rússia na Coreia. Por isso, nas proposições japonesas, a questão estava colocada com toda a precisão e clareza: o Japão reconhecia o direito da Rússia sobre a Manchúria, mas, em compensação, exigia o reconhecimento pela Rússia do direito do Japão sobre a Coreia. A resposta, elaborada por Besobrazov e emendada pelo próprio Nicolau, pode-se resumir do seguinte modo:

“Da Manchúria somos os donos indiscutíveis; quanto a Coreia, veremos’'.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia não se atreveu a transmitir ao Japão uma resposta assim tão acintosa. Mas o comunicado ao governo japonês era suficientemente claro: a Rússia negava ao Japão o direito de manter tropas na Coreia, enquanto os russos continuavam ocupando a Manchúria; exigia a “neutralização” de toda a Coreia setentrional, enquanto no rio Yalu já havia soldados e oficiais russos; em síntese, a Rússia não se achava disposta a ceder a Coreia ao Japão. Mas a burguesia japonesa estabelecera-se solidamente, há muito tempo, naquele país; em princípio de 1904 havia lá 25.000 japoneses estabelecidos; 90% dos navios que fundeavam nos portos coreanos traziam a bandeira japonesa; todos os faróis situados em torno da península achavam-se nas mãos dos japoneses; as linhas férreas em construção pertenciam a uma companhia japonesa; em todo o país funcionavam agências dos correios e telégrafos japoneses, etc., etc.

A perda da Coreia acarretaria consequências funestas para o governo japonês e poderia mesmo determinar, como atestam os diplomatas da época, uma revolução no Japão. Isto foi inteiramente confirmado pelo embaixador russo Rozen, que declarava oficialmente, em janeiro de 1903, estar persuadido da

 “inevitabilidade de um choque armado com o Japão, no caso de uma séria tentativa por nossa parte de tomar posse da Coreia, ou de qualquer ponto de seu território”.

Na corte de Nicolau II não se temia esse choque, como já tivemos oportunidade de ver; ao contrário, ia-se ao seu encontro com a alma engalanada, embora, coisa estranha, não se preparassem para ele. Estavam convencidos de que o Japão “não se atreveria” a atacar e que esperaria orientalmente o ataque russo. Mas, como de costume, não estavam preparados para esta contingência, e por isso Nicolau, em janeiro de 1904, dizia "não desejar a guerra(8). Mas os japoneses não estavam dispostos a esperar até que Nicolau arranjasse “desejos” de declarar guerra. Logo que se convenceram de que as negociações ulteriores não conduziriam a nenhum resultado positivo, que um novo adiamento serviria apenas para ajudar os russos a prepararem-se, decidiram pôr mãos à obra. Em 5 de fevereiro de 1904, o Japão rompeu as relações diplomáticas com a Rússia e, na noite de 8 para 9, os destroyers japoneses atacaram a esquadra russa na enseada de Porto Artur.

O governo czarista só pôde responder com vociferações ao “ataque traiçoeiro do inimigo astucioso”, vociferações hipócritas, pois o ato dos japoneses, admitido pelo Direito Internacional, que não exige necessariamente declaração solene de guerra ao começarem as ações militares, era muito mais franco do que os projetos de Besobrazov de ocupar a Coreia setentrional com tropas russas, cuja neutralização a Rússia exigia do Japão. Patenteia-se nisso a perspicácia do Japão — que soube agir com rapidez — fazendo fracassar os intuitos astutos de Besobrazov.

Os telegramas trocados entre Nicolau e Alexeiev permitem afirmar categoricamente que a Rússia estava disposta a encetar a guerra sem esperar a provocação do Japão, o que só não o fez porque o exército e a marinha não se achavam preparados. As autoridades militares e navais russas, pelo visto, compartilhando da opinião do Palácio de Inverno, acreditavam que o japonês “não se atreveria”. Consideravam o Japão muito mais fraco do que o era, na realidade, mas, assim mesmo, segundo Kuropatkin, para a guerra com o Japão era necessário um exército de 300.000 homens. Na realidade, na Manchúria, em princípios de 1904, estava concentrado um exército de pouco mais de 100.000 homens. A esquadra russa do Extremo Oriente era mais poderosa que a do Japão, porém estava espalhada por lugares diferentes: as forcas principais estavam em Porto Artur, outra menos importante em Vladivostok; havia navios isolados nos portos coreanos. Tudo isso se achava num estado de completa negligência, como se a guerra se achasse ainda muito distante, enquanto o Japão, desde 5 de janeiro, estava inteiramente preparado para ela. Não foram estabelecidos sinais distintivos para o reconhecimento dos próprios navios durante a noite, e, graças a isso, os destroyers japoneses puderam penetrar em Porto Artur impunemente, e só quando começaram a lançar minas contra os navios russos é que estes se convenceram do equívoco: os navios não eram russos, mas japoneses. Assim, ficaram fora de combate três navios russos, entre os quais dois poderosos encouraçados.

A esquadra russa tornou-se, pois, imediatamente, mais fraca do que a japonesa e foi encerrada num, porto que os japoneses principiaram logo a bloquear, aproveitando-se também, diga-se de passagem, de outra negligência nossa: o comando russo esqueceu-se de ocupar as ilhas de Eliott, que se acham a poucas milhas de Porto Artur e nas quais os japoneses estabeleceram as suas bases. Ali, protegida por sólidas medidas de defesa, aesquadra japonesa achava-se fora de perigo, sem temer os ataques dos destroyers russos. Os japoneses estavam absolutamente seguros de que, à sua esquadra, não podia suceder o que havia acontecido à russa.

Bloqueada a esquadra russa (dois cruzadores “esquecidos” por nós na Coreia foram destruídos pelos japoneses), o Japão resolveu o primeiro objetivo da guerra: desembarcar sem embaraços as suas tropas no continente. Em primeiro lugar, conseguiram uma posição sólida na Coreia: foi ali que desembarcou o primeiro exército japonês destinado às operações da Manchúria; durante os meses de fevereiro, abril e março, esse exército foi avançando lentamente para o norte, ocupando o país em “litígio”. As incursões dos cruzadores russos em Vladivostok pouco dificultavam a operação de desembarque de tropas japonesas no continente. A esquadra de Porto Artur, sob o comando do enérgico almirante Makarov, enviado de Petrogrado, tentou romper o bloqueio. Mas, numa das primeiras tentativas realizadas para sair do porto, produziu-se uma catástrofe: o navio almirante chocou-se com uma mina colocada pelos japoneses e foi a pique com o almirante a bordo. Depois disto (31 de março e 13 de abril de 1904) a esquadra russa conservou-se imóvel — até meados de junho — em Porto Artur.

Três semanas depois (1.° de maio), o exército japonês chegava às margens do rio Yalu. Kuropatkin, comandante das forças de terra na Manchúria, não se animou a sair ao encontro do inimigo, nem a retirar-se, atraindo os japoneses para o interior da Manchúria, o que ele considerava como mais conveniente. Escolheu a solução intermédia, mandando ao rio Yalu um destacamento duas vezes mais fraco que o exército japonês. Este rechaçou sem dificuldade o destacamento (batalha perto de Tuirenschen) e entrou na Manchúria. Quase simultaneamente, os japoneses, garantidos contra qualquer ataque pelo mar, desembarcaram o segundo exército, mas, desta vez, diretamente, já no sul da Manchúria. Esse exército ocupou a linha férrea que ligava Porto Artur à Rússia e avançou rapidamente para o sul, dominou o istmo que une a península em que se acha Porto Artur e Dalian-Van com a Manchúria. O istmo era considerado como inexpugnável no caso de poder ser defendido do mar, mas, como aí se encontrava a esquadra japonesa, manter-se no istmo era impossível. Imediatamente depois, Dalian-Van; foi ocupada, servindo aos japoneses, com o seu porto, seus armazéns, etc., de base excelente para Porto Artur, que se achava fechado por mar e por terra.

Kuropatkin, previamente preparado para esta contingência — isto estava previsto no seu plano de campanha — obrigado a agir debaixo da pressão de Petrogrado, decidiu-se, também, neste caso, a tomar uma medida intermediária: para “salvar” Porto Artur enviou um destacamento mais fraco que o exército japonês que sitiava a fortaleza; os japoneses, no entanto, haviam já desembarcado um terceiro exército. A empresa, naturalmente, fracassou como a do rio Yalu (batalha perto de Van-Fon-Hou em 14-15 de junho). O estado de espírito do exército russo decaiu completamente ao ver que sofria revezes por todos os lados enquanto o exército japonês ia-se impregnando de uma profunda confiança em suas forcas e estava convencido da próxima derrota dos russos.

Esta convicção, parece, era compartilhada também pelo generalíssimo russo. Kuropatkin não se decidia a passar à ofensiva enquanto os efetivos do seu exército não tivessem uma preponderância indiscutível sobre o dos japoneses. Qualitativamente, os japoneses eram muito superiores aos russos. O Japão enviara para a guerra, que considerava questão de vida ou de morte, as suas melhores forcas O governo russo, pelo contrário, reservava essas forcas para a luta contra o inimigo interno, para o aniquilamento da revolução; por isto mandou para a Manchúria apenas as suas reservas; homens que orçavam pelos 40 anos e que, às vezes, passavam dessa idade, desacostumados à vida de campanha e que frequentemente não sabiam manejar o novo tipo de fuzil. Os artilheiros desconheciam o manejo dos novos canhões de tiro rápido, que o exército russo recebera ao começar a campanha. Por isso, a artilharia japonesa — inferior à russa — fazia emudecer geralmente com o seu fogo as baterias russas.

Kuropatkin tomou posição em Liao-Yang, ponto principal da intersecção das linhas da Manchúria meridional, por onde passava a linha férrea que unia Porto Artur à Rússia. Em volta de Liao-Yang foi construído um vasto campo fortificado, no qual o exército russo aguardou o inimigo. Este desembarcou o seu quarto exército, de modo que contra Kuropatkin agiam diretamente três exércitos que avançavam lentamente em direção ao norte, quase sem encontrar resistência. Este avanço durou todo o mês de junho e julho e grande parte de agosto; em meados deste mês os exércitos japoneses uniram-se e atacaram Liao-Yang. Kuropatkin não realizou nenhuma tentativa para atacá-los em separado e impedir que se unissem, apesar de, em agosto, graças aos esforços chegados da Rússia, ser mais forte do que os japoneses, pois contava com 150.000 soldados enquanto nos três exércitos havia pouco mais de 130.000 homens.

Em 24 de agosto, os japoneses iniciaram o ataque contra o campo fortificado de Liao-Yang. Nos dois primeiros dias, o ataque fracassou; as tropas japonesas sofreram enormes perdas. No terceiro dia, um dos exércitos japoneses (o mesmo que atravessara o rio Yalu) penetrou no campo de Kuropatkin. Depois de fracassada a tentativa de rechaçar os japoneses (estes avançavam cada vez mais) Kuropatkin, temendo ver cortada sua retirada para a Rússia e sitiado como em Porto Artur, decidiu abandonar Liao-Yang e retirar-se para o norte, para Mukden (capital da Manchúria). O campo de Liao-Yang, com suas enormes reservas, caiu em poder dos japoneses. O exército russo não foi desmantelado; retirou-se em perfeita ordem; suas perdas foram mesmo inferiores à dos japoneses, porém, depois de Liao-Yang, a convicção da impossibilidade de Vencer o Japão, foi geral na Rússia. A batalha de Liao-Yang, sem ser decisiva para a guerra, determinou uma transformação radical na opinião pública russa. Em vez do “entusiasmo patriótico”, o pesar apoderou-se de todo o mundo.

“Que necessidade tínhamos de nos meter nesta desgraçada guerra?”

Para vencer este estado de espírito, deu-se ordem a Kuropatkin de passar à ofensiva logo que se apresentasse ocasião. Começaram a enviar-lhe tropas escolhidas. Em princípios de outubro já contava com mais de 200.000 homens ao passo que os efetivos japoneses não iam além de 160.000. Em 10 de Outubro, os russos iniciaram a ofensiva, que se prolongou por mais de uma semana e nos custou 45.000 baixas (combate no rio Schaie). Desta vez as perdas dos japoneses foram muito menores. Os informes oficiais russos puseram particularmente em relevo o último momento da refrega, quando o exército de Kuropatkin conseguiu destruir uma brigada japonesa e apoderar-se de 11 canhões (os únicos troféus dessa guerra). Na realidade, a batalha de Schaie foi uma derrota completa. O exército japonês permaneceu em suas posições e ainda fez os russos retrocederem um pouco. Em geral, a situação não sofreu nenhuma modificação e Kuropatkin viu-se obrigado a preparar-se para invernar nas cercanias de Mukden.

O desenlace veio seis meses mais tarde, mas, nesse meio tempo, os japoneses lograram desfechar-nos um golpe decisivo noutro lugar, conseguindo um dos objetivos da guerra. Já no verão, junho-julho, a situação de Porto Artur era tão desesperada, que a esquadra russa ali bloqueada, para não cair nas mãos dos japoneses, resolveu romper o cerco e dirigir-se para Vladivostok. Em 12 de agosto saiu do porto, chocando-se imediatamente com as unidades principais da esquadra japonesa. Os japoneses, entretanto, haviam perdido dois grandes encouraçados, postos a pique pelas minas russas, de modo que as forcas eram iguais. O resultado do combate, em rigor, foi indeciso; contudo, durante ele, morreu o almirante russo e o navio almirante ficou fora de combate. O comando russo desconcertou-se e os nossos navios dispersaram-se em diferentes direções. Uma grande parte deles regressou a Porto Artur; a minoria refugiou-se em vários pontos neutros e teve que se desarmar. Ao mesmo tempo, os japoneses atacavam a esquadra de Vladivostok. Até o mês de maio do ano seguinte, o Oceano Pacífico não viu a bandeira russa em suas águas.

O destino dos restos da esquadra russa do Pacífico achava-se agora ligado ao de Porto Artur. Mas não há fortaleza, por poderosa, por valorosa que seja a sua guarnição, que se possa manter indefinidamente: se não é salva pelo exterior, tem que se render. Sobretudo, depois do fracasso de Schaie, não havia esperança de se salvar Porto Artur pelo exterior.

A nova esquadra do Pacífico, formada em Kronstadt — em parte por navios cuja construção não estava terminada ao começar a guerra, e em parte por navios velhos, que, por sua velhice, não quiseram utilizar no princípio — só se pôs a caminho no outono, para passar pelo cabo da Boa Esperança, e chegar às costas da Coreia antes da primavera. Era impossível Porto Artur resistir tanto tempo. Os japoneses disputaram o lugar com toda a energia de que eram capazes. Os fracassos sofridos no começo, em agosto. quando não dispunham ainda de artilharia pesada, não os desanimou. Trouxeram canhões de grande calibre, que até então só tinham sido empregados na guerra em terra. Os fortes de Porto Artur não poderiam resistir ao fogo desses canhões; a guarnição sofreu enormes perdas.

Em 30 de novembro, protegidos pela artilharia, os japoneses ocuparam as elevações que dominam Porto Artur, o que lhes deu a possibilidade de destruir os navios russos com os seus canhões pesados. A esquadra estava condenada à destruição, as reservas de munições estavam esgotadas, os víveres eram insuficientes. Nos últimos dias de dezembro, o general Stoessel, comandante das forças de Porto Artur, iniciou as negociações com os japoneses e, em 2 de janeiro de 1905, rendeu-se com todas as suas tropas e os restos da esquadra. Os japoneses apoderaram-se de mais de 32.000 prisioneiros, 500 canhões, 4 encouraçados, dois cruzadores e mais de 20 navios de segunda ordem.

A queda de Porto Artur tirou a guerra do ponto morto em que cairá, depois das primeiras grandes vitórias do Japão em terra e mar. A guerra já estava meio ganha pelos japoneses. Se os russos tivessem a sorte de desbaratar o exército japonês, teriam que se apoderar de Porto Artur, o que era impossível sem o auxílio da esquadra. Mas, além disso, a situação do exército japonês reforçara-se consideravelmente, pois se tinham unido a ele as forcas utilizadas para o cerco da fortaleza Logo após a queda de Porto Artur, os japoneses começaram a preparar-se para nova ofensiva. Mas estas consequências estratégicas da vitória japonesa nada eram em comparação ao eco que os acontecimentos tiveram na Rússia. O estado de espírito de Liao-Yang transformou-se em verdadeira indignação contra o Governo que levara a Rússia à guerra. A queda de Porto Artur assinalou para a Rússia o começo da Revolução Popular.


Notas de rodapé:

(1) Alusão à guerra russo-turca de 1877, a que o Tratado de Berlim pôs termo. A burguesia, que depositava grande esperanças na guerra, considerou um fracasso os resultados desse congresso, apesar da Rússia obter Batum, que logo se converteu num porto importante, e de haver ocupado, de fato, a Bulgária. (retornar ao texto)

(2) O autor refere-se ao Tratado de Paris, que pôs termo à guerra da Crimeia, e em virtude do qual a Rússia perdeu o direito de ter uma esquadra no Mar Negro. (retornar ao texto)

(3) Isto não se referia só aos advogados, mas em geral a todos os intelectuais. Nicolau II, durante muito tempo, não podia conceber que se pudesse dar a mão, indiferentemente, a um doutor e a um oficial do exercito (N. do A.). (retornar ao texto)

(4) A guerra com o Japão, assunto que trataremos adiante, não deve ser levada em conta, pois não a consideravam “séria” (N. do A.) (retornar ao texto)

(5) Durante a visita a um templo japonês, um oficial dessa nacionalidade deu um golpe de sabre na cabeça de Nicolau. (N. do A.). (retornar ao texto)

(6) Qualificativo depreciativo que os russos do Extremo Oriente aplicavam aos chineses. (N. do A.). (retornar ao texto)

(7) Membros da Narodnaia Volia (A Liberdade do Povo). (retornar ao texto)

(8) Em outubro de 1903, Nicolau afirmava ao imperador alemão, Guilherme II, que visitou naquela época, que “em 1904 não haveria ainda guerra, pois a Rússia não estava preparada”. (N. do A.). (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015