Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Capítulo VII - A Insurreição Camponesa


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Cabe à classe operária o mérito de haver iniciado a Revolução Russa. Foi ela a primeira a dar batalha ao czarismo. A primeira batalha perdeu-a. De fato, a sua derrota é a da revolução em sua totalidade, desde que, objetivamente, em 1905, não existiam outras forcas revolucionárias na Rússia. Mas, agora, é que se vê com clareza. A ideia predominante, então, era de que se tratava de uma revolução burguesa, em que — embora o proletariado formasse a vanguarda e exercesse o papel de "animador" — o setor da burguesia fornecia a base — interessada na vitória da revolução — e as demais classes, que se foram incorporando ao movimento, eram impulsionadas em parte pelo desejo de varrer os obstáculos, que se opunham ao desenvolvimento do capitalismo no país. Os menchevistas depositavam sua esperança, principalmente, na burguesia urbana, na grande e na média, enquanto os bolchevistas voltavam as vistas para os camponeses. E, com efeito, o que ocorria nas aldeias, desde o outono de 1905, parecia justificar as esperanças dos bolchevistas. Vimos que era precisamente a agitação camponesa que dava dores de cabeça ao governo, quando o movimento operário de Petrogrado principiou a decair. A partir de dezembro, os revolucionários contavam exclusivamente com o campo. O primeiro golpe operário — pensavam — foi reprimido, mas, quando os camponeses entrarem em ação, o movimento será invencível.

Se examinarmos os acontecimentos de então com um pouco mais de sangue frio, descobriremos logo que o movimento tinha um caráter francamente proletário, mas do proletariado urbano, com os operários das grandes empresas capitalistas das cidades como núcleo principal. Enquanto o tanto por cento de greves, em proporção ao número total de fábricas, era para as pequenas – de 20 operários — de 47%, o que supõe que a greve não alcançou todas elas, a percentagem de greves nos estabelecimentos de 500 a 600 operários era já de 163,8%; cada grande fábrica foi assim à greve mais de uma vez, e, para os estabelecimentos gigantes, de mais de 1.000 operários, a percentagem foi de 231,9%, indo cada uma dessas fábricas mais de duas vezes à greve. A comparação do número de greves nas cidades e nas aldeias permite acrescentar um detalhe. Apesar da maioria das fábricas russas, cerca de 60%, se acharem situadas fora da cidade, o número de greves nas aldeias foi sempre inferior ao das cidades. Na década, que precedeu a revolução, em compensação, quando o movimento era principalmente econômico, o contingente de greves fora da cidade aproximava-se da quarta parte da cifra total: na década 1895-1904, 24,8% de todas as greves realizaram-se em estabelecimentos situados nas aldeias. Durante o movimento político, porém, as greves fora das cidades baixaram para 15,7%. De onde se deduz:

  1. a produção, quanto menor, menos revolucionária;
  2. a aldeia, o seu proletariado inclusive, era, em sua tendência, mais "economista" que a cidade, apesar desta, como vimos, acusar, em seus setores mais amplos, uma "silhueta economista" muito definida.

E, entretanto, podia-se prever que a aldeia não levaria a revolução até a vitória final. Em 1905, podia-se predizer o que 1917 confirmou. Só o proletariado estava em condições de derrubar o czarismo; o mais que a aldeia podia fazer era participar na defesa das conquistas da revolução, naquela defesa que o camarada Lenine considerava mais difícil do que a conquista. Dar verdadeira forca à cidade no momento da conquista, coadjuvando-a, a aldeia não o podia fazer em hipótese alguma. O seu papel, em 1917, foi assim inteiramente secundário.

A ideia do revolucionarismo independente da aldeia era uma das reminiscências ligadas pelas concepções populistas, procriadas ao calor da ilusão bakunineana, segundo a qual cada camponês era socialista e revolucionário inato. O marxismo unicamente conseguiu destruir a primeira metade dessa afirmação errônea. Em 1905, excluindo-se os socialistas revolucionários, isto é, os não-marxistas, ninguém considerava o camponês como um "socialista inato". Muitos, porém, estavam inclinados a crer no "revolucionarismo congênito" da aldeia. Repetindo inconscientemente a teoria igualmente bakunineana da fome como fator revolucionário, imaginavam a revolução como um levante de famintos, cujo centro e foco eram formados pelas massas camponesas. Vimos já que a revolução urbana, proletária, foi conduzida ao fim, não pelos elementos mais famintos do proletariado, não pelos esfarrapados e peões, mas pelos setores melhor retribuídos: metalúrgicos, ferroviários, tipógrafos. É muito característico o fato do primeiro Soviet de deputados operários de Ivanovo-Voznesensk, apesar do movimento dessa cidade ser um movimento de operários têxteis, ter sido composto dos eletricistas e dos gravadores, que trabalhavam nas fábricas têxteis, os quais, pelo salário percebido, deviam ser classificados, naturalmente, na aristocracia operária. Tal era a situação nas fábricas. Vejamos o que se passava nas aldeias.

Volvamos à aurora do movimento camponês em 1902. O fiscal Kovalenski, autor de um extenso relatório sobre as "desordens" na província de Poltava, no verão do mencionado ano, define do seguinte modo, a situação material dos camponeses insurretos: calculando-se todas as terras, corresponde um pouco menos de uma deciatina e meia para cada alma. Para que o trigo seja suficiente, não bastam 100 milhões e meio de puds anuais.

"A extensão de terra, que a população rural pode utilizar, mediante arrendamento, cobre as necessidades em 3 milhões e meio. Isto significa que essa gente se vê obrigada ainda a comprar cerca de 7 milhões de puds de trigo, que custam, à razão de 50 kopeks por pud de centeio, uma soma de cerca de 3 milhões e meio de rublos. E, como a população não tem dinheiro, vê-se forçada a obtê-lo com o acréscimo de juros consideráveis ou de trabalhos pesados. O material de que disponho permite ver que o trabalho jornaleiro é pago na província de um modo muito reduzido, a indústria acha-se pouco desenvolvida, artesanato não há. Com a crescente produção de máquinas agrícolas, os salários suplementares diminuem.

Isto, se se considera a população em conjunto; porém, "na província de Poltava, já em 1900, 16,9% da população não tinha terras". O povoado, que se cita como exemplo, pertence à categoria daqueles cujos habitantes tomaram parte ativa na insurreição. "Os preços de arrendamento num dos distritos revolucionários", "em 14 anos, isto é, de 1886 a 1900, elevaram-se de 123% para a sementeira da primavera e em 92% para a de outono". "Nota-se uma elevação muito sensível dos preços depois de 1897". "As duas condições em que vive a população camponesa aparecem com mais evidência se se considerar a circunstância dos proprietários de terra e arrendadores — que não têm outros fins senão as suas vantagens econômicas — cederem a terra aos camponeses, principalmente sob a condição destes não pagarem o arrendamento em dinheiro, mas em trabalho, durante a colheita. No distrito de Yonstantinograd, exige-se, por uma deciatina de terra, a colheita, frequentemente com o transporte, de duas deciatinas. No distrito de Poltava, os camponeses efetuam a colheita em 3 deciatinas por uma. Dá-se pasto ao gado, porém nem sempre em troca de trabalhos pesados no campo. Em outros lugares, os camponeses carecem em absoluto de gado, acham-se privados de vacas ou vêm-se obrigados a mantê-las presas".

A coisa não pode ser mais clara. Lançavam-se à insurreição, principalmente os camponeses pobres, oprimidos, levados ao desespero pela necessidade e exploração dos fazendeiros. As declarações dos fazendeiros durante a instrução do processo confirmam e completam as características dadas pelo fiscal:

"Quando o prejudicado Fasenko perguntou à multidão, que se juntara para saqueá-lo, porque ambicionavam sua ruína, o acusado Zaitsev respondeu: "Tu tens cem deciatinas, e cada um de nós não tem mais que uma; quisera ver como viverias com uma deciatina de terra".

"Quando a testemunha Kazenets se dirigiu a um dos acusados, já no fim do saque à fazenda de Iakontova, exortando-o a não prosseguir nas suas violências, que consistiam em quebrar as vidraças da casa do administrador, aquele respondeu: "Que achas? Pode-se viver ou não com 3/4 de deciatina?" E levou tranquilamente um carro carregado de objetos roubados".

As explicações dadas pelo acusado Kiian, participante do saque à fazenda Iakontova, são também típicas. Disse, aproximadamente, o seguinte: "Permiti-me que lhes conte algo de nossa desgraçada vida de camponeses. Tenho pai e seis filhos menores de idade, sem mãe, e vivo com 3/4 de deciatina de terra e 1/4 de deciatina de prado. Pagamos pelo pasto da vaca 12 rublos ao administrador Kusminov, e, por uma deciatina de campo semeado de trigo, temos que trabalhar na colheita de 10 deciatinas. E somos obrigados a fazer tudo isso somente com os braços. Agora, mesmo por um preço muito elevado, é difícil encontrar terra. Assim não podemos viver — prosseguiu Kiian — temos a corda no pescoço. Que fazer? Dirigimo-nos a todas as partes. Não fomos recebidos em nenhuma, ninguém veio em nosso auxílio..."

Se nos detivermos nisso, depararemos com o espetáculo habitual dos levantes dos camponeses contra a nobreza, dos ex-servos contra os ex-senhores de terra. Kovaleniki, embora ele próprio se colocasse nesse ponto de vista, na qualidade de funcionário consciencioso, comunicou às autoridades tudo o que pôde saber, e eis o que conta a propósito da geografia da insurreição de Poltava de 1902:

"Dos dados fornecidos pela instrução deduz-se que o movimento fora preparado por uma prévia propaganda na "sociedade"(1) de Lisich, cujos membros foram ativíssimos agitadores, participaram nas "desordens", propagaram as novas ideias e introduziram livros e folhetos de conteúdo criminoso. Segundo a opinião geral, os camponeses da aludida "sociedade" distinguiam-se antes pelos seus bons costumes e por uma assiduidade ao trabalho (declaração de Lomits e do ex-ispravnik(2) Andievski; possuíam mesmo terras compradas com o auxílio do Banco Camponês; porém, segundo as testemunhas, três anos atrás deixaram inopinadamente de pagar juros, afirmando que o Banco não lhes podia arrebatar as terras".

Noutra passagem do relatório, inteiramo-nos de que se estabeleciam tais condições, que só o camponês de recursos poderia comprar terras.

Assim, pois, os camponeses de Lisich (a propaganda entre eles foi feita pelos social-democratas "iskristas") não eram simplesmente pobres: eram camponeses proprietários, que começavam a empobrecer. Acrescentemos, para completar esta característica, que os camponeses de Lisich não atacavam o fazendeiro, mas sim o grande arrendador capitalista, ao qual intimavam:

"Suma-se! Nossos pais e nós mesmos temos trabalhado aqui; tudo isto é nosso’'.

À noite invadiram a casa do tal arrendador, que relatou detalhadamente, durante o processo, como, no decorrer "destes últimos anos", foram se revestindo, paulatinamente, de grande acrimônia as relações entre eles e os camponeses de Lisich.

Pode-se, pois, afirmar que os pobres constituíam o exército do movimento camponês de 1902. Não era constituído por eles o estado maior, mas pelos pequenos produtores agrícolas, cuja situação econômica se arruinara, na concorrência superior às suas forcas, com a agricultura capitalista. O "pugachevismo" começa a tomar formas mais em harmonia com o século XX.

Nas primeiras revoltas de 1905, achamos de novo, aparentemente, um movimento de caráter "pugachevista". Eis, por exemplo, como se descreve a ação dos camponeses na província de Kursk em fevereiro de 1905:

"No dia marcado, a pouca distância da fazenda, acendiam uma fogueira ou ateavam fogo a um monte de palha na ponta de um pau e isto servia de sinal para a reunião dos camponeses com seus carros; o número deles chegava, às vezes, a 500 e 700. Em certa ocasião (em Rotnanovka), o sinal foi dado por meio do toque de rebate. Uma vez reunidos, os camponeses dirigiam-se à fazenda, faziam alguns disparos de fuzil, forçavam as portas do celeiro, enchiam de trigo os carros e voltavam. A presença do proprietário ou do administrador não os abalava. Permitiam-lhes ser testemunhas do ocorrido, nada faziam contra eles, embora não lhes dessem explicações. Roubavam, principalmente, trigo; era raro levarem outros produtos; por isto, habitualmente, só saqueavam os celeiros". "Tomavam parte no saque aldeias inteiras, homens, mulheres e crianças; entre os presos, figurava um mendigo cego; os aldeãos deram-lhe um carro e um cavalo, ajudaram-no a colocar o trigo no mesmo e deste modo o cego levou a sua parte. A princípio, em alguns casos, só um pequeno número de camponeses tomava parte no saque; porém, seduzidos pelos primeiros, os demais não tardavam em saquear a fazenda. O roubo não era distribuído na aldeia; apresentavam-se os que queriam compartilhar dele, e, às vezes, vinham camponeses de lugares muito distantes".

Durante o processo, à pergunta "que quereis?", os camponeses respondiam unanimemente: "Queríamos e queremos comer(3)".

Noutros casos, muito curiosos, a causa imediata era a luta contra a sobrevivência do direito feudal. Algumas vezes, como causa das revoltas, encontramos as famosas "parcelas". Foi assim na aldeia Dolbenkov, pertencente a Sérgio Romanov, morto em 4 de Fevereiro de 1905 por uma bomba dos socialistas revolucionários.

"Os camponeses da aldeia Dolbenkov achavam-se rodeados pela fazenda do mesmo nome, de 17 mil deciatinas. Algumas vezes, durante os cinco anos de sua gestão ao serviço da "Sociedade", o "starosta" Ivan Yudinov apresentou-se na administração afim de pedir que lhe vendessem por qualquer preço ("a sociedade pagará o que se pedir"), 300 sagen(4) de terras, por causa das quais os camponeses haviam pago muitas multas; mas a terra continuou pertencendo à fazenda, pois era muito vantajosa’'.

Mesmo na aldeia, num ângulo de rua, havia um pedaço de terra, que, em caso de incêndio, podia servir para concentrar o gado. Há muito tempo que a "sociedade" de Dolbensk desejava possuir essa parcela de terra, que media meia deciatina e pela qual ofertara 500 rublos. Mas essa parcela de terra foi vendida por 1.000 rublos a um kulak, que nela instalou uma taberna, continuando a aplicar multas nos camponeses em proveito próprio.

Tal era a situação dos camponeses de Dolbensk, que, em fevereiro, destruíram a propriedade. Essa propriedade produzia ao grão duque Sérgio, 130.000 rublos de lucro líquido".

As parcelas de terras davam-se habitualmente em troca de trabalho e era isto o que constituía uma das causas das agitações, A propriedade e a fábrica açucareira Tereschenko foram destruídas em consequência de Tereschenko não querer dar terras por dinheiro, mas por troca de trabalho... "Se não conseguirmos recolher a colheita a tempo, custar-nos-á o dobro, e de novo nos veremos obrigados a trabalhar para cobrir o débito... Atualmente, poucas multas são pagas com dinheiro. Pagamos só 85 rublos em 15 anos. Por que? Porque as multas são pagas por meio de trabalho e por isto ninguém as vê... "

"Uma deciatina de prado custa-nos nominalmente 12 rublos, embora na realidade nos saia por 30, pois não querem receber dinheiro, mas nos obrigam a pagar em trabalho... "Se nos queres pagar em dinheiro — dizem-nos — não aceitaremos nem 20 rublos; preferimos transformar o prado em pasto para gado... Em certa ocasião perderam-se assim, inutilmente, dez deciatinas de prado..."

As sobrevivências do direito feudal, porém, não eram a causa principal das agitações. Não só os ex-servos, mas também os camponeses das terras que pertenciam ao Estado, atacavam os senhores da terra. Na província de Pskov, por exemplo, temos o seguinte caso:

"Os camponeses das antigas fazendas do Estado receberam parcelas de terra à razão de cinco deciatinas; mas, na atualidade, há insuficiência de terras e sem arrendamento é impossível viver. Os arrendamentos eram muito raros; em consequência das más colheitas, o dinheiro não foi pago, inteiramente, e, na atualidade, há grande falta de pastos e de prados; a situação é péssima. O preço dos arrendamentos aumenta em toda parte; pela parcela de terra pela qual, desde a abolição da servidão, se pagava 30 rublos, paga-se hoje 400. Se observarmos todos os casos de agitação nessas províncias, veremos que dos 121, 62, isto é, mais de 50%, foram provocados pela insuficiência de terras, com a particularidade de que só "em dois casos" o descontentamento pelos privilégios da aristocracia desempenhou papel preponderante". O lema distintivo de todo o movimento camponês da grande Revolução Francesa: "Abaixo os privilégios", em nosso país foi relegado a um plano secundário" .

As palavras de ordem política também não ocuparam melhor lugar. Das causas, que acabamos de enumerar, do movimento da província de Pskov, essas palavras de ordem não fazem parte, exceto uma vaga alusão à "influência do manifesto de 17 de outubro, na liberdade de palavra e no estado de espírito revolucionário geral" de que se faz menção em seis casos. O movimento esteve melhor organizado na província de Saratov, onde os socialistas-revolucionários levaram a cabo intensa propaganda nas aldeias.

 "Foram organizadas cerca de 200 irmandades camponesas. Recomenda-se "agir por todos os meios: greves, boicotes, destacamentos de combate".

Realizaram-se atos terroristas em alguns lugares. Quando em outubro estalou a greve geral, os camponeses de Saratov não permaneceram à margem do movimento; ao contrário, resolveram aderir à insurreição. A Aliança Camponesa do partido dos socialistas-revolucionários deliberou sustentar o movimento e esforçou-se por canalizá-lo. As organizações locais deviam prover-se de armas. Estas foram obtidas por meio do desarmamento dos guardas rurais. Criaram-se destacamentos de combate ("drugini"), que apareceram nas aldeias para depor as autoridades e abolir a antiga ordem de coisas. Novas autoridades foram eleitas(5).

Eis, entretanto, o que os camponeses de um dos distritos da província de Saratov, o de Balaschov — em que a agitação atingiu maiores proporções — escreviam ao Conselho de Ministros:

"Para poder sustentar nossas famílias vemo-nos obrigados a arrendar terras dos comerciantes e fazendeiros. Os preços de arrendamento aumentam cada dia. Este ano, o preço por deciatina chegou a 20 rublos. É impossível viver nestas condições. Não sabemos como continuar a viver, pagando os arrendamentos e sustentando-nos.

"A guerra priva-nos de braços. Ao terminar a guerra, seremos sobrecarregados de impostos, subirão os preços das mercadorias, e a terra, esgotada, cada ano produz menos e, por causa da nossa ignorância, não encontraremos meios de nos auxiliar mutuamente.

"Também não temos possibilidade de obter dinheiro.

"Cremos que o justo seria suprimir o comércio da terra, que deve passar ao poder dos que a trabalham e dela vivem.

A ignorância é a nossa segunda desgraça...

"Além disso, desejamos que não nos proíbam a leitura de livros e jornais...

"Desejamos, por outro lado, que se permita escrever livremente nos jornais, como se faz em outros países, há muito tempo...

"A nossa terceira desventura é a ausência de todo direito e a multidão de autoridades; ofendem-nos e aumentam os nossos sofrimentos, não agem com justiça e nunca acodem em nossa defesa... "

Assim, pois, mesmo com o auxílio dos socialistas-revolucionários, não se ia, no terreno político, além da liberdade de imprensa. Se no meeting dos operários de Ivanovo-Voznesensk o grito "Abaixo a autocracia!" provocou barulho, no meeting camponês da província de Moscou, ao ser lançado esse grito, surgiram da multidão exclamações como esta: "Irmãos! Ouvistes? Metamos-lhes o pau na cabeça!"

Ao mesmo tempo, o caráter econômico do movimento não pôde aparecer com mais clareza na petição dos camponeses de Balaschov. E era esse caráter econômico que determinava toda a tática das ações camponesas na província de Saratov. As testemunhas assim descreviam as ações:

"Os aspectos principais da ação dos camponeses eram os seguintes: 1) — expulsão dos fazendeiros e de suas famílias das propriedades; 2) — divisão do trigo e dos produtos, e, às vezes, dos móveis domésticos; 3) — expropriação do gado; 4) — dispensa dos criados e do serviço doméstico; 5) — frequentemente, incêndio das diversas dependências da fazenda. Os proprietários de terra, prevenidos pelos camponeses, abandonaram as suas fazendas; os atos de violência contra eles não são tolerados. Os camponeses, ao mesmo tempo que destroem a fazenda, decidem, em princípio, a partir da primavera, entregar as terras ao mir, com o fim de serem usufruídas de um modo igualitário. Os uriadnik(6) e os strajniki(7) escondem-se, e, em muitos lugares, são presos pelos camponeses. Encontra-se, habitualmente, à vanguarda dos camponeses, que atacam a fazenda dos senhores de terras, uma drugina armada; a divisão do trigo, dos produtos e do dinheiro é efetuada por comitês ou irmandades compostas de camponeses da localidade.

As somas arrecadadas nos escritórios dos fazendeiros, nos estabelecimentos de bebidas do Estado, são convertidas em propriedade comum. O incêndio das dependências das fazendas é justificado pelos camponeses do seguinte modo: a) se se incendiarem as dependências, os fazendeiros não se encontrarão em condições de voltar logo à aldeia e, por conseguinte, será muito raiais fácil consolidar a nova ordem de coisas estabelecida a respeito do usufruto da terra; b) se as dependências permanecerem intactas, poderão servir de locais cômodos para os cossacos, pelos quais sentem um ódio geral. Como resultado dos incêndios, foram destruídas dependências no valor de vários milhões de rublos. Foram completamente incendiadas as dependências de fazendas tão grandes como a do duque Lichtenberg, do príncipe Viazenski, verdadeiros palácios como os dos príncipes Progovski e Demidov. Incendeiam-se frequentemente as casas senhoriais, sem levar em conta as relações existentes anteriormente entre os camponeses e os proprietários, sem considerar as opiniões dos fazendeiros; foram incendiadas as fazendas dos conhecidos liberais zemstvos Lvov, Ermolaev, Veselovski e outros. Em Valaschovski, Aktarsk, Peterovsk e Sierdobsk, as fazendas dos senhores que ficaram intactas são contadas a dedo. Foram inteiramente destruídas dezenas de casas senhoriais, com bibliotecas, quadros, etc., de grande valor(8)".

Achamo-nos em presença da insurreição do pequeno produtor contra o grande proprietário que lhe atravessa o caminho. Aquele, como vemos, tinha a sua lógica: os camponeses eram mais práticos do que os socialistas revolucionários, que pretendiam dirigir o movimento. Os camponeses compreenderam que não bastava um ukase ou manifesto, que era necessário destruir efetivamente a economia dos fazendeiros, afim de que a antiga ordem de coisas não tivesse por onde voltar. Por isto, o movimento tomava formas revolucionárias. Mas a atividade da organização camponesa, formada pelos esforços dos socialistas revolucionários — a Aliança Camponesa — mostra como era pouco revolucionário, em essência, esse movimento, como pouco ameaçava não só a grande propriedade agrária, mas também a ordem política por ela criada.

Encontramos o embrião dessa Aliança na primavera de 1905; sua primeira ação organizada consistiu em petições enviadas a Petrogrado pelos camponeses sobre as suas necessidades; uma delas (a da aldeia Petrovska, no distrito de Balachevsk) foi transcrita atrás. Essa espécie de "súplica" ao czar, na época em que a "Associação das Associações" chamava o governo de "corja de bandidos", e ate o Congresso dos fazendeiros se dispunha a arreganhar os dentes ao czar, mostra até que ponto os camponeses — inclusive os que sofreram a influência da propaganda – se achavam em retrocesso, não só em relação ao proletariado, mas, também, em relação à burguesia. Enviaram-se ao czar mais de 60.000 petições; entretanto, Nicolau e Trepov só se inquietaram quando os camponeses abandonaram as "petições" para passar à ação.

As testemunhas do movimento dizem, de modo preciso, que a Aliança Camponesa (formada definitivamente no Congresso de Moscou, de 31 de julho—3 de agosto de 1905) se achava nesse caso muito mais à direita do que a massa camponesa.

"O Congresso — diz um dos seus integrantes — dirigido por kadetes e socialistas revolucionários, pronunciou-se contra determinadas resoluções relativas à expropriação das terras senhoriais, sem indenização e pela luta armada para instauração da República na Rússia. Os socialistas-revolucionários, que nas assembleias de intelectuais acusavam os social-democratas de moderados em suas reivindicações, mostravam-se, no Congresso, liberais autênticos, sem que a presença dos verdadeiros camponeses, que suportavam o jugo dos fazendeiros e todas as arbitrariedades das autoridades czaristas, modificasse o seu aspecto.

À pergunta, se se devia ou não indenizar os fazendeiros, os socialistas-revolucionários, pela boca de Fundaminski, responderam: "Não condenar os fazendeiros à necessidade e à fome, não os privar de uma determinada extensão de terra (até 59 deciatinas), e dar-lhes, além disso, uma pensão vitalícia". Diante da minha insistência, os socialistas-revolucionários declararam que, "em princípio", não se opunham ao confisco das terras dos grandes proprietários, mas, quando a questão tocava às chamadas "fazendas de cultura de tipo elevado", voltavam atrás. Os socialistas revolucionários fizeram o Congresso aprovar uma cláusula da resolução sobre as terras (n.º 3), que diz: "A terra dos proprietários privados deve ser tirada, em parte por meio de compensação e, em parte, sem ela; as condições detalhadas, de acordo com as quais as terras serão confiscadas, devem ser fixadas pela Assembleia Constituinte, que, a esse respeito, publicará uma nova lei". "A Aliança Camponesa deve estudar detalhada mente a questão. Os dirigentes do congresso, junto aos socialistas-revolucionários, não consentiram que o debate sobre essa questão fundamental para os camponeses se desenvolvesse(9)".

O autor do extrato, que reproduzimos acima, explica o caráter anódino das resoluções camponesas, principalmente pela influência nefasta dos socialistas revolucionários. Estes, no entanto, deviam contar com um ponto de apoio firme, pois não eram tão fortes que pudessem impor aos camponeses russos alguma coisa que estes não quisessem ouvir. É inegável que um congresso operário arrojaria simplesmente da tribuna um Fundaminski, que lhe viesse falar dos pobres fazendeiros com os olhos cheios de lágrimas. Nosso autor vê-se obrigado a reconhecer que as "resoluções indefinidas" dos congressos provinciais da "Aliança Camponesa" refletiam, naturalmente, em primeiro lugar, o atraso político da massa camponesa e, principalmente, de seus elementos burgueses. Aí está onde se deve procurar a explicação. Os socialistas revolucionários expressavam os interesses, não dos camponeses pobres, mas dos elementos mais folgados da aldeia(10).

Os socialistas-revolucionários viam-se obrigados a adaptar-se ao "camponês forte", que, em 1905, da mesma maneira que em 1902, continuava a dirigir o movimento. Notou-se isto em vários lugares. Assim, na província de Podolsk, onde o movimento (na primavera de 1905) tomou um caráter principalmente grevista,

"os dirigentes foram os camponeses mais folgados (ricos não havia); os mais temerosos eram os que não tinham terras, pois sem o produto diário do trabalho não podiam subsistir e viam-se obrigados a cessar logo a greve para evitar a fome. Realizaram-se tentativas para sustentar os camponeses por meio de coletas de provisões entre as famílias folgadas, porém esse expediente fracassou com a chegada das tropas(11)".

Mas é no principal teatro da insurreição camponesa, na província de Saratov, que este traço se manifesta de modo mais definido. Um fazendeiro do distrito de Balaschov (na mencionada província) escrevia à Sociedade Econômica Livre, em princípios de 1908:

"O setor folgado da classe camponesa apoderou-se do movimento. O camponês folgado, que, em época bem recente, lançava a luva aos revolucionários e os entregava às autoridades, atualmente figura nas suas fileiras".

Como vemos, esse fazendeiro de Balaschov compartilhava de um preconceito populista sobre o reacionarismo do kulak. Parecia-lhe novidade o que observava, apesar dos propagandistas rurais, tanto social-democratas como socialistas-revolucionários já terem compreendido esse fenômeno cinco anos antes. Prossigamos, porém, a nossa citação. Eis o que dizia o camponês folgado:

 "O traficante e o senhor não têm necessidade de terras, visto que não as trabalham e nem delas cuidam. Ao mujik pobre, de que pode servir a terra quando não tem possibilidade de explorá-la, visto que necessita de gado, sementes, arado, dinheiro no bolso para o caso de má colheita, etc.? Dar terras aos camponeses pobres não passa de um capricho de senhores. O Banco deve dá-las aos "camponeses fortes" e não à razão de 13 deciatinas, mas de 50, de 100". Tais são as manifestações que quase diariamente ouço dos lábios dos "camponeses fortes", os quais aderem ordinariamente aos partidos da esquerda", resume o correspondente da Sociedade Econômica Livre.

Assim, pois, não era por mero acaso que os socialistas-revolucionários "moderados" desempenhavam o papel de dirigentes políticos do movimento camponês e que os congressos camponeses tomavam resoluções "indefinidas". Da mesma forma que em 1902, os camponeses constituíam o exército dos revoltados; o estado maior desse exército era formado pelos elementos folgados da aldeia, pelo pequeno produtor, que odiava o fazendeiro, não tanto como "ex-senhor"; mas por ser seu competidor no mercado do trigo que se abrira novamente.

O papel dirigente do "camponês forte" manifestou-se mais uma vez na composição social dos deputados camponeses da Primeira Duma. Falamos, mais adiante, detalhadamente, desse momento da História da revolução; agora é necessário uma alusão para terminar a característica da insurreição camponesa. Dos deputados camponeses do "Grupo do Trabalho" (trudoviki), o mais esquerdista, só 14, isto é, cerca de 30%, possuíam glebas de terra não superiores a duas deciatinas, quer dizer, pertenciam à categoria dos camponeses médios (seredniak) típicos; porém dois deles tinham mais de dez deciatinas. Os treze restantes, que não indicavam a extensão das suas propriedades, inspiram fortes suspeitas. E esse era o grupo mais da esquerda, mais revolucionário. Entre os "sem partido" possuidores de mais de 10 deciatinas, havia 11 deputados, isto é, mais de 25%. Além disso, os camponeses mandaram à Duma vinte e quatro kadetes, cujas propriedades — diz o citado autor — eram ainda maiores(12)".

Entretanto, ao pé do projeto agrário do "Grupo do Trabalho" figuram as assinaturas de todos os deputados camponeses: eram todos solidários na questão econômica.

A opinião relativa à "solidez da muralha do conservantismo camponês", que inspirara os autores da lei eleitoral de Buliguin, foi, portanto, naturalmente desmentida pela realidade. Na esfera que mais interessa ao fazendeiro, o camponês não se mostrou conservador, nem coisa parecida. Havia, contudo, alguma razão no que diziam os fazendeiros. Tinham razão, em primeiro lugar, quando afirmavam que "os camponeses são completamente alheios à ideia da limitação do poder da autocracia". Isto não era verdade em relação à toda a massa camponesa. Na sua forma mais simples, sintetizada no lema "é necessário trocar de czar", o estado de espírito antimonárquico — embora os próprios camponeses não tivessem consciência disso — acha-se difundido em toda zona de terras férteis. Isto, porém, era verdade nos setores folgados, que dirigiam o movimento sob o ponto de vista político. O "Grupo do Trabalho" na Duma, em todas as questões puramente políticas, seguia docilmente os kadetes, que se esforçavam por "levantar a coroa do lodo". Os camponeses estavam de acordo que "só a união do czar com o povo é a fonte do poder legislativo", que "a não concessão da anistia não podia constituir pretexto para a ruptura" (como veremos, por esse motivo, houve ruptura entre os kadetes) e que "não deve haver mais guerras na Rússia; na Rússia a paz deve reinar".

Um dos deputados caracterizou magistralmente a mensagem da Duma ao czar, à qual o "Grupo do Trabalho" aderiu.

"Imagino o autor da mensagem — disse o deputado Merkulov — com os braços cruzados e a cabeça baixa implorando misericórdia, pedindo clemência... Não expressa claramente os seus pedidos, balbucia-os apenas. A ideia geral do autor da mensagem é a ideia da humilhação. Apressa-se em empregar palavras calorosas ao dirigir-se ao poder... Quando fala da abolição da pena de morte, não diz uma palavra sequer sobre a não aplicação das sentenças já pronunciadas. Quando fala da reforma agrária, parece que as suas palavras não exprimem um verdadeiro desejo, mas uma declaração forçada".

Sim, ainda na questão da reforma agrária, os "cem negros", que haviam depositado esperanças nos camponeses, tiveram razão até certo ponto. O revolucionário camponês não chegava também, nesta questão, às últimas consequências, não era de todo intransigente. Isto se evidencia com toda clareza no projeto agrário, apoiado unanimemente pelo "Grupo do Trabalho". O revolucionarismo camponês não se colocava no ponto de vista — sustentado por todos os revolucionários desde Pestel — do confisco da grande propriedade agrária, mas admitia — da mesma forma que o projeto agrário dos socialistas revolucionários — a indenização, por conta do Estado, das terras alienadas. Em suma, admitia também o acordo com os fazendeiros.

Só o proletariado era consequente, sob o ponto de vista revolucionário. E se, em 1905, hão pôde levar a resolução até a ultima etapa, os camponeses, com muito maior razão, eram menos capazes disso.


Notas de rodapé:

(1) Os membros da "drugina" ou piquetes de combate. (retornar ao texto)

(2) Chefe de Polícia rural. (retornar ao texto)

(3) P. Máslov: A questão operaria na Rússia, tomo II, paginas 150-153. (N. do A.). (retornar ao texto)

(4) "Sagen", medida equivalente a 1,234 m. (retornar ao texto)

(5) Todas as citações que damos, para caracterizar o movimento camponês de 1905, foram extraídas da obra de Máslov, que já citamos varias vezes. (N. do A.). (retornar ao texto)

(6) Chefes subalternos da Polícia rural. (retornar ao texto)

(7) Guardas-campestres. (retornar ao texto)

(8) Ruskii Viedomosti, 7 de novembro de 1905. (N. do A.). (retornar ao texto)

(9) A. Schestiakov: A revolta da terra (em russo, pág. 53- 54). (N. do A.). (retornar ao texto)

(10) A. Schestiakov: Obra citada, pág. 52. (N. do A.). (retornar ao texto)

(11) Máslov: Obra citada, pág. 162. (N. do A.). (retornar ao texto)

(12) Máslov: Obra citada, pag. 277. (N. do A.). (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015