Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Capítulo VIII - As Tentativas Constitucionais da Burguesia


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Examinamos o movimento de massas, que, em seu conjunto, constituiu, em 1905-1906, a Primeira Revolução Russa. As suas tendências — a operária e a camponesa — não coincidiram: a operária atingiu o apogeu em dezembro de 1905; a camponesa, no verão de 1906. O  movimento agrário desenvolveu-se na primavera e no verão de 1905 em 96 distritos, e, no outono do mesmo ano, em 171, estendendo-se no verão de 1905 a 305 distritos, isto é, mais da metade da Rússia europeia. O número de distritos "revoltosos" no outono desse ano baixou para 72; na primavera e no verão de 1907 aumentou ligeiramente (82 distritos), para ficar quase reduzido a zero (3 distritos) no outono deste último ano.(1)

A falta de uniformidade dos dois movimentos, naturalmente, não podia deixar de contribuir para o fracasso. Explicar, porém, este último, atribuindo-o exclusivamente a esta causa, seria um erro. O czarismo foi derrubado em 1917 — sem grandes esforços — unicamente pela cidade; a aldeia não teve tempo de participar do movimento. Para explicar o fracasso, é necessário tomar em consideração outra circunstância, que se resumia no fato das massas se aterem ainda ao "economismo". Enquanto os elementos avançados da classe operária já se haviam livrado da concepção economista em princípios deste século, (desde a época da Iskra haviam compreendido que começava a luta pelo poder e não um comércio de concessões com este), a massa não percebia isso claramente. E não se deve inculpá-la, quando, no Congresso de Estocolmo, (no chamado congresso de "unidade’') nada menos que Plekanov, na resolução sobre a insurreição armada, propunha substituir a expressão "arrancar o poder", pela de "arrancar o direito pela forca", provocando com isso uma indignada observação do camarada Lenine. Não podia ser mais desconcertante a modificação proposta. Na resolução sobre a insurreição, falava-se, não da luta pelo direito, mas da luta pelo poder. Imaginai a incrível confusão que esta fórmula oportunista determinaria na consciência das massas, e como seria absurda a desproporção entre a importância do meio (insurreição) e a pequenez do fim (arrancar o direito), isto é, arrebatar o direito do velho poder, obter uma concessão do poder e não derrubá-lo(2).

Se a classe operária em 1905 não se livrara ainda definitivamente do "economismo", os camponeses não começaram a libertar-se dele nem em 1906. Nem os elementos avançados dos camponeses tinham consciência de que se travava a luta pelo poder e não pelo direito. Um dos líderes do "Grupo do Trabalho" (trudoviki), Apaldin, julgou possível ler da tribuna da Primeira Duma cartas de camponeses falando das esperanças do povo no "papai czar", em que se dizia:

"O nosso czar é o czar do povo e não o czar dos funcionários e dos palacianos" e outras coisas semelhantes.

Os elementos dirigentes dos camponeses daquela época abrigavam ainda a firme esperança de obter das mãos do antigo poder o único direito de que sentiam necessidade premente: o direito à terra.

A revolução de 1905 não foi levada até o fim, porque a massa insurreta não era completamente revolucionária. Não se imagine, porém, o processo histórico como algo automático que age fora e independentemente da vontade dos homens, que dele participam e cujas ações o determinam. Na luta de classes, como nas lutas individuais, os combatentes aproveitam-se das debilidades e dos defeitos mútuos. Do revolucionarismo insuficiente das massas insurretas, como vimos, aproveitou-se o governo, isto é, os proprietários de terra, quer tentando subornar (Duma de Buliguin, 17 de outubro), quer intimidando (9 de janeiro, dezembro de 1905). A burguesia, tentando corromper o movimento, aproveitou-se ainda mais deste revolucionarismo deficiente. A massa, inocentemente, lutava pelo direito, sem compreender que não se podia esperar nenhum direito do antigo poder, que era necessário tomar o poder, para que os direitos viessem por si mesmos. A burguesia esforçava-se por insinuar à massa que a luta pelo direito era a verdadeira revolução e que a luta pelo poder era a "anarquia". Ao mesmo tempo, porém, que corrompia a massa, a burguesia utilizava-a para intimidar o poder, isto é, os proprietários de terra, os quais não queriam compartilhar seus "direitos" com ninguém, nem mesmo com a burguesia.

A circunstância de não chegar ao fim — que constituía o principal defeito da nossa primeira revolução — favorecia o jogo da burguesia. Apoiando-se nisso, ela tinha esperança de converter a grande revolução, que se iniciava, numa pequena revolução, substituir 1789 por 1848. Pareceu, durante algum tempo que o conseguiria. Outubro de 1917 destruiu definitivamente essas esperanças.

Resta-nos examinar o papel desempenhado pela burguesia na Primeira Revolução, para acabar de caracterizar esta última. Como veremos, este papel foi profético em muitos aspectos: a burguesia russa de 1905 permitiu predizer a burguesia russa de 1917.

A burguesia, diante da qual nos encontramos em 1905, 1906, constituía um todo unido só em relação ao proletariado. Não havia diferença, nesse aspecto: todos os grupes burgueses, sem exceção, aplaudiram o proletariado, quando começou a ser revolucionário, e o condenaram, também, unanimemente, quando queria levar a revolução até o fim. Mas, considerada em si, a burguesia era um conjunto de grupos diferentes e as divergências existentes entre seus interesses manifestavam-se acentuadamente em sua posição diante do poder. Estas divergências explicam o fato da burguesia não constituir um partido político único, embora dividido em facções, como acontecia com o proletariado; estava organizada em diversos partidos, cuja rivalidade era ainda mais acentuada que a existente, não já entre bolchevistas e menchevistas, porém entre os social-democratas e os socialistas revolucionários.

Enumerando-os, da esquerda para a direita, existiam os três seguintes grupos fundamentais: na extrema esquerda, achavam- se os intelectuais burgueses, parte do aparelho dirigente da indústria, parte dos representantes das profissões mais qualificadas e mais apreciadas na sociedade burguesa: engenheiros, advogados, médicos, jornalistas. Esses grupos representavam a ideologia burguesa em sua forma mais pura, e, encarnando-a concretamente, surgiu o direito da sociedade burguesa — baseado no predomínio da propriedade individual sendo a elaboração teórica do aludido direito efetuada pela sociologia burguesa — pelos teóricos e práticos da sociologia e do direito burgueses: — os professores, os advogados foram os chefes naturais do grupo. A "pequena intelectualidade", médicos rurais, mestres, agrônomos, estatísticos, técnicos, constituíam ora a ala esquerda do mencionado grupo, ora um setor intermediário entre ele e os partidos revolucionários.

Esperamos achar os representantes do capital industrial imediatamente à direita da intelectualidade burguesa; assim o foi em toda a Europa; salvo no nosso país. A revolução desencadeou-se, na Rússia, numa etapa muito mais avançada da evolução econômica, do que todos os demais países europeus. A Revolução Alemã de 1848 terminou com o apelo dos poucos comunistas alemães para criar um partido operário independente, com a particularidade desse apelo só encontrar eco 20 anos mais tarde. Partido independente do proletariado já existia no nosso país quando começou a revolução. Estes dois fatos são suficientes para mostrar até que ponto a diferenciação classista na Rússia era mais profunda do que na Alemanha de 1848. Da França, na época da "grande revolução", não se fala: ao começar a revolução, não existia em França, não dizemos partido proletário, mas nem classe operária no verdadeiro sentido da palavra; o proletariado francês não nasceu antes dos princípios do século XIX; foi a revolução, precisamente, que o criou.

O amadurecimento mais acentuado das relações de classe, na Rússia, impedia que o nosso capital industrial pudesse conseguir os seus fins, o "regime de direito", de que tinha necessidade, apoiando-se no movimento de massa. É verdade que, no primeiro momento, não o compreendeu, abrigou a esperança de utilizar os operários como seus predecessores utilizaram, na França, "um povo", que não se diferenciara, que não se dividira em classes como era devido. No verão de 1905, houve fabricantes que chegaram a propor que se declarasse o lock-out geral, que se lançassem os operários nas ruas, para, deste modo, acelerar a revolução. Já, então, a maioria não manifestou desejo algum de seguir este caminho e, quando a greve de outubro se converteu espontaneamente na luta pela jornada de trabalho de 8 horas, o capital industrial tomou posição política completamente definida: se se podia marchar com alguém era com os que "reprimiam" e não com os "reprimidos".

No nosso país, por conseguinte, os vizinhos imediatos dos intelectuais burgueses foram, inesperadamente, os fazendeiros avançados. Este grupo, nas condições medievais da aldeia russa, antes de iniciar a exploração capitalista das terras, podia criar as condições preliminares necessárias para isso. Devido a esta circunstância, os zemstvos, formados por esses proprietários, exerceram na aldeia russa funções semelhantes às dos missionários nos países coloniais da Ásia e da África. Primeiramente, nesses países, apareceram os curas católicos e os pastores protestantes, que construíram escolas, hospitais e domesticaram. por assim dizer, a população indígena; depois, surgiram os capitalistas para explorar a população. No nosso país, os padres e os frades só desempenharam esse papel nos albores do capitalismo russo, nos séculos XV e XVI: em tempos mais recentes, eram decididamente incapazes de levar a cabo esse trabalho.

O fazendeiro tinha que desempenhar essas funções pessoalmente; porém, não o podia fazer e necessitava de auxiliares Intelectuais. Eis por que a pequena intelectualidade se converte num elemento necessário do zemstvo (eis a razão dessa intelectualidade ter sido qualificada de "terceiro elemento", como complemento dos dois elementos fundamentais da aldeia, os senhores da terra e os camponeses). O papel do "terceiro elemento" e a necessidade do mesmo para os senhores da terra foi bem caracterizado pelo conhecido zemets (membro do zemstvo), D. N. Schipov (presidente da administração provincial de Moscou, em 1919, presidente de uma das principais organizações de guardas brancos desta capital, o chamado "Centro Nacional"). Diz ele a Pleve:

"...Na atualidade, nenhum congresso, como tal, pode pretender desempenhar o papel diretivo da vida da sociedade. Esse papel pode pertencer, na atualidade e no porvir, unicamente aos grupos sociais em que se acham concentradas as forcas intelectuais e espirituais e essas forcas estão principalmente concentradas no "terceiro elemento". No "terceiro elemento" há, indubitavelmente, gente que se pode achar até entre os elementos dos zemstvos, porém disso não se pode concluir que a maioria dos componentes do "terceiro elemento não merecem confiança". Não se pode esquecer que certa inquietude de espírito, facilmente irritável, depende em grande parte da sua situação indeterminada, não só no Estado, mas também no zemstvo.

A maior parte dessa gente consagra o seu trabalho, com um desinteresse completo, à obra do zemstvo. E a outro arqui-reacionário, Sturmer — futuro ministro de Nicolau durante a guerra, quando o rasputinismo atingia o seu apogeu — propunha, com candidez enternecedora, apoiar-se no mesmo "terceiro elemento", seguindo o exemplo do zemstvo.

"O governo considera como perigosa essa intelectualidade, que cada dia se torna mais forte. Mas se, depois da reforma de 60, a nobreza perdeu sua importância, o governo deve procurar apoio em novos grupos sociais. Não se pode conservar uma atitude eternamente negativa em face da intelectualidade procedente de todas as camadas. É o próprio Estado que a cria, franqueando as portas das instituições de ensino secundário e superior e distribuindo : anualmente títulos acadêmicos a milhares de pessoas de todas as classes. É necessário utilizar as forcas intelectuais, tornando-as conservadoras, não deixá-las bandear para a oposição, não suscitar nelas um descontentamento justo, ferindo constantemente o seu amor próprio e não lhes dando oportunidade para colocar os seus conhecimentos ao serviço da vida social e do Estado".

Sturmer poderia mostrar-lhe, já naquela época, no exemplo dos elementos esquerdistas dos zemstvos, como um "ponto de apoio" tal faz vacilar para a esquerda quem nele se firma. Na "Aliança para a Emancipação", fundada com o dinheiro dos zemstvos da esquerda, o diretor, como recordamos, era precisamente do "terceiro elemento". O servidor indispensável tornou-se mais forte do que o amo. Mas, sem o "terceiro elemento", não sé podia sequer pensar em economista capitalista no campo. Quando, depois de 1905, os homens dos zemstvos viram o perigo do "terceiro elemento" não tiveram outro remédio senão acabar com as "instituições culturais", reduzir o número de escolas, de hospitais, etc., suprimir a agronomia e a estatística, isto é, rebaixar-se ao nível do senhor inculto da terra e depositar todas as esperanças nos resíduos do direito feudal, ou emigrar da aldeia, deixando-a à disposição do "camponês forte".

Dos dois grupos fundamentais da burguesia russa, se achou, portanto, à esquerda, a intelectualidade com a parte mais progressista da nobreza agrária, e, à direita, o capital industrial, não desligado politicamente do capital bancário e comercial. Ainda mais, à direita estava a grande agricultura de velho tipo, vivendo dos arrendamentos e do trabalho dos camponeses e não fazendo parte da burguesia no verdadeiro sentido da palavra. O lema do grupo da esquerda era a transformação da Rússia num país constitucional, "normal", no qual o monarca existe "para as grandes ocasiões" e os negócios correntes se acham nas mãos do Ministério emanado da maioria parlamentar.

O método de governo num Estado consiste na mistificação política das massas, às quais, por meio da imprensa, das escolas, das diferentes organizações culturais e de ensino, das assembleias eleitorais, etc., enganam constantemente a respeito dos seus verdadeiros interesses, fazendo-as crer que lhes é necessário e útil o que realmente só o é para a burguesia. Explicam-lhes, por exemplo, que lhes é mais útil e necessário o sistema bicameral, pois uma só Câmara resolve com excessiva "precipitação", e para as "emendas" convenientes é necessário uma segunda Câmara, cuja maioria se acha sempre ao lado da burguesia.

Esse sistema, como prova o exemplo da Europa Ocidental e da América, oferece muitas garantias, e com seu auxílio é possível sustentar-se durante muito tempo; mas pressupõe, como condição necessária, a superioridade cultural dos que mistificam sobre os mistificados; os primeiros devem ser mais instruídos que os segundos. Eis porque a nossa intelectualidade burguesa sentia uma inclinação especial por esse sistema. Ao mesmo tempo, sendo, como eram, "civis", não sentiam forte tendência pela forca, pois, em caso contrário, se veriam obrigados a empregam os braços de gente estranha, de elementos militares, e a experiência mostrava que os últimos, nestas condições, se convertem facilmente de servidores em amos.

Por essa causa, precisamente, o grupo da direita, em cujas mãos o exército se achava, depositava toda a esperança na violência. Tendo consciência de sua ignorância, não abrigava a ilusão de poder mistificar as massas; os processos empregados por esse grupo, tais como as diferentes "Alianças dos Homens Russos e do Povo Russo" eram suscetíveis de enganar unicamente os setores mais ignorantes da população, que nem valia a pena enganar; estes podiam ser utilizados somente como forca física. E como o lema do aludido grupo era a conservação da antiga ordem de coisas, em toda a sua integridade, custasse o que custasse, só podiam contar com a violência.

O grupo médio não podia sentir simpatia pelos métodos exclusivamente violentos, porque estes desorganizam a produção e esse grupo era formado por patrões capitalistas interessados em que a produção não fosse prejudicada. Alem disso, para mistificar as massas, o grupo em questão dispunha de poucos meios. Só elementos muito hábeis podiam apresentar-se como "amigos do povo" e isso mesmo perante massas excessivamente simples.

Os representantes do dito grupo não podiam contar com ruidosos triunfos eleitorais como os seus vizinhos da esquerda; contudo, concentravam, paulatinamente, o poder em suas mãos mediante a coação econômica. Havia uma multidão dependente materialmente deles; essa gente, os clientes, embora contrariada, não tinha outro recurso senão servir os seus "fornecedores"; os demais, temendo perder as suas possibilidades, não se atreviam a pronunciar-se contra eles. Como resultado, esse partido tornou-se o centro burguês mais poderoso. O mencionado grupo tinha necessidade não só de um monarca como adorno, mas também de um "poder forte" e não obstava a conservação de tudo quanto fosse possível da autocracia, contanto que servisse ao capital. Historicamente, todos esses "políticos de 60"; todos esses Miliutin, Samarin, Chicherin e Cavelin foram os pais dos outubristas, pois a sua meta era pôr a autocracia ao serviço do capitalismo.

Mas o grupo burguês historicamente mais antigo, a "Aliança do 17 de outubro" (não é preciso esclarecer que sob esta forma só podia aparecer depois de 17 de outubro de 1905), não podia de modo algum ocupar uma posição dominante na reação burguesa. Esse era um grupo do centro, e, nos momentos críticos, o centro não pode desempenhar nenhum papel. O público ingênuo só via em cena os direitistas com os seus pogroms e os "esquerdistas" com os seus discursos metódicos sobre a "liberdade popular" e à "evolução pacífica". O governo, na realidade, atuou de acordo com a orientação outubrista. Ocupar-nos-emos com mais detalhes disto mais adiante, quando estudarmos o stolipinismo.

Depois da desorganização da "Aliança da Emancipação" (que, de fato, se deu na primavera de 1905) a burguesia não contou, até outubro, com grupos políticos definidos. A antiga forma de sua organização eram os congressos dos zemstvos, que se esforçavam zelosamente em seguir a esteira da intelectualidade burguesa, que se orientava cada vez mais para a esquerda. Temos já uma ideia do estado de espírito do congresso de julho. Mas, em agosto (antigo calendário) apareceu o manifesto sobre a "Duma de Buliguin". Avizinhavam-se as eleições e não era possível apresentar nelas um nome "do congresso dos zemstvos ou da "Aliança da Emancipação", que não contava com nenhuma disciplina partidária e não podia dar diretivas práticas determinadas aos seus membros. Em outubro de 1905, precisamente, quando a greve proletária se encontrava no apogeu, a "Aliança" reunia-se pela última vez em congresso para terminar oficialmente os seus dias como "Aliança", e converter-se em autêntico partido. Depois de perder, já no congresso de março, a sua ala esquerda, em outubro a "Aliança" perdeu o seu centro. Prokovich, Kuskova, Bogucharski e outros negaram-se a tomar parte no novo partido fundado pelo congresso e criaram um grupo especial com o nome de "Sem título", que não teve nenhuma importância política. Consequentemente, só a ala direita da "Aliança" entrou no partido.

Entretanto, o estado de espírito era tal em outubro, que essa ex-ala direita da "Aliança da Emancipação" tomava resoluções "quase socialistas". O ex-líder da ala direita e atual líder do partido "Constitucional-Democrata", P. N. Miliukov, esforçava-se, antes de mais nada, por afastar-se da burguesia.

"A verdadeira fronteira — dizia — ...acha-se ali onde falam ("nossos adversários da direita") em nome dos estreitos interesses da classe dos agrários e industriais russos". "O nosso partido nunca desempenhará o papel de salvaguarda desses interesses". "Pelo contrário, à esquerda, na realidade, "não há fronteira" não há "adversários" no verdadeiro sentido da palavra". "Entre nós e os nossos, não queremos dizer adversários, mas aliados da esquerda — dizia Miliukov —, existe também um determinado limite, porém tem um caráter completamente diferente do limite que traçamos à direita. Como eles, achamo-nos na ala esquerda do movimento político russo. Não nos associamos, todavia, à sua reivindicação de República democrata e de socialização dos meios de produção. Uns não aceitam essas reivindicações porque as consideram, em geral, inaceitáveis, outros porque as consideram fora dos limites de nossa política prática. Enquanto for possível marchar juntos para a consecução de um objetivo comum, apesar dessas diferenças, ambos os grupos atuarão como um todo unido; porém toda tentativa para pôr em relevo as mencionadas tendências e introduzi-las no programa, terá como consequência imediata a cisão. Não duvidamos, contudo, que, em nossos meios, haverá o espírito político e o bom senso suficientes para evitar a cisão no momento atual".

Convém lembrar ao leitor que, naquele tempo, não havia nenhum partido que aspirasse praticamente a "socialização dos meios de produção", e que os bolchevistas e os menchevistas consideravam que a revolução na Rússia, no momento, era burguesa, e só discutiam a questão de saber como se devia compreender a "revolução burguesa". A mistificação começava. No momento em que o movimento operário se achava em seu zênite, os kadetes recém-constituídos em partido apressavam-se em declarar:

"Nós, também, somos socialistas, mas razoáveis, não exigimos o impossível; os da esquerda são ilógicos. Esta é a diferença".

E, de acordo com isso, o congresso adotava, a propósito da greve que se desenrolava, uma atitude de simpatia.

"As reivindicações dos grevistas, tal como eles próprios formularam — dizia a mencionada resolução — reduzem-se principalmente à instauração imediata das liberdades fundamentais, à livre eleição dos representantes populares à Assembleia Constituinte à base do sufrágio universal, igual, direto, secreto e à anistia política geral. Não pode restar dúvida que essas reivindicações coincidem com as do Partido Constitucional Democrata. Em vista desta comunidade de fins, o congresso constitutivo do Partido Constitucional Democrata considera do seu dever declarar a sua completa solidariedade ao movimento grevista. Pelos meios que se acham ao alcance do partido, os membros do mesmo anseiam realizar os mesmos fins, e, como os demais grupos combatentes, renunciaram decididamente à ideia de obter os seus objetivos por meio de negociações com os representantes do poder".

Os kadetes, naturalmente, foram à "Duma de Buliguin" com

"o fim exclusivo de lutar pela liberdade política e pela justa representação". "Não resta a menor dúvida que, para a consecução dos nossos objetivos, não podemos contar com nenhum acordo ou compromisso; devemos manter ereta a bandeira desfraldada pelo movimento de emancipação russa, quer dizer, lutar pela convocação da Assembleia Constituinte, eleita à base do sufrágio universal, igual, direto e secreto", afirmava Miliukov.

Numa palavra: não só os "quase socialistas", mas também os "quase republicanos", aspiravam exclusivamente a "liberdade popular" (o subtítulo do partido era precisamente este: "Partido da Liberdade Popular") e não estavam dispostos a assumir compromissos com o czarismo. Os espíritos ingênuos podiam não compreender que a denominação do Partido já era um "compromisso". Por "Constituição", no sentido comum do vocábulo, subentendia-se Constituição monárquica, isto é, poder czarista limitado pela representação popular, de um modo análogo à Constituição de todas as monarquias ocidentais de então. Por "democracia", todo o mundo entendia "República". A denominação "Constitucional Democrata" significava, em essência, "monárquico-republicano"; isto é, nem um nem outro, nem Monarquia nem República. Praticamente, isto significava:

"como as circunstâncias aconselharem". "Se a revolução avançar ainda mais, seremos republicanos. Se a revolução bater em retirada, voltaremos à Monarquia".

No congresso de janeiro (1906) dos kadetes, essa mudança foi verificada imediatamente depois da derrota da insurreição operária, com grande facilidade. O programa foi completado com uma frase assim redigida:

"A Rússia deve ser uma Monarquia constitucional e parlamentar"...

E, para quebrar a solidariedade com os "aliados da esquerda", disseram no mencionado congresso, referindo-se à tática dos kadetes.

"O Partido Constitucional Democrata apoia toda a sua forca numa vasta organização da opinião pública valendo-se de todos os meios, menos da insurreição armada".

Desde os primeiros passos, o novo partido, que era integrado pela intelectualidade burguesa, com os catedráticos e advogados à frente e os senhores de terra mais liberais do tipo de Petrunkievich e dos irmãos príncipes Dolgorruki, desenvolveu amplamente a sua tática para a mistificação das massas. Tudo, nesse partido, a começar pelo nome, era falso. Se, porem, enganavam a massa era porque nela se apoiavam, porque a consideravam como uma força. Quando Witte, no período de pânico do governo, procurando um ponto de apoio, se dirigiu, entre outros, ao novo partido dos kadetes, convidando-os a tomar parte no governo, responderam-lhe orgulhosamente:

"Só tomaremos parte num governo que se comprometa a convocar a Assembleia Constituinte".

Essa foi a resposta oficial. Mas oficialmente, os kadetes eram mais francos. Quando Hessen, um dos seus chefes, visitou Witte "com intuito de saber – conta este — qual seria a minha atitude em relação ao partido dos kadetes, recebeu esta resposta:

"Sinto, de um modo geral, simpatia pelas opiniões desse partido e compartilho de muitas delas, e por isso estou disposto a apoiá-lo, com a condição indispensável de cortarem a cauda revolucionária, isto é, pronunciarem-se decidida e abertamente contra o partido dos revolucionários (naquela época ainda não havia revolucionários da direita, havia unicamente esquerdistas), que agem por meio de bombas e brownings. Hessen respondeu-me ser isso impossível, e que a minha proposta equivalia a que eles nos propusessem que renunciássemos à nossa forca física; isto é, à forca armada em todos os seus aspectos".

Assim, pois, até dezembro de 1905 os kadetes, empregando termos bolsistas, jogavam na alta da revolução. Os kadetes previam a possibilidade de um estado de coisas semelhante ao que se produziu tempos depois, em fevereiro de 1917, quando a massa popular triunfante, sob a influência dos intelectuais "democratas", entregou o poder ao ministério kadete de Lvov. É indubitável que se em dezembro de 1905 o povo triunfasse, os menchevistas e socialistas-revolucionários insinuariam que chamassem ao poder os chefes kadetes "instruídos" e "experimentados". Digamos, entre parêntesis, que isto mostra que, até dezembro, criam na insurreição armada não só os "insensatos" bolchevistas, mas também os "burgueses razoáveis", com a diferença de que estes últimos, naturalmente, preferiam que nas barricadas se batessem os outros e não eles próprios...

Mas, como quer que fosse, no jogo dos kadetes na alta havia um cálculo acertado. E, quando as coisas se modificaram, puderam jogar na baixa, como veremos, com a máxima facilidade.

Mas, antes de abordar essa questão, é necessário lançar um golpe de vista nos futuros outubristas. Estes, naturalmente, no que se referia à revolução, mantinham uma posição diferente, e, digamos mesmo, mais sincera que a dos kadetes. O futuro chefe dos outubristas, Guchkov, dizia no congresso dos zemstvos de novembro de 1905:

"Nos momentos excepcionais não há nenhum país que possa prescindir do estado de guerra. Os representantes da Polônia dizem que em seu país a proclamação não é justificada. Não é assim, porém, na Polônia há a insurreição armada. Além disso, que se entende na revolução por "proteção contra a violência?" A violência foi iniciada pela revolução. Se se fala em proteção, é necessário proteger-se contra uns e contra outros. Entretanto, propõem-se castigar uns e anistiar outros... Naturalmente, não estamos dispostos a estender a mão aos partidos extremos".

O príncipe E. Trubetskoi, que mais tarde formou o partido da "renovação pacífica", tão anêmico como o grupo "Sem título" e que naquele período era muito chegado aos outubristas, embora não pertencesse à "Aliança de 17 de Outubro", escrevia nas Russkie Viedomosti:

"A sociedade russa acha-se diante da seguinte alternativa: ou seguir a violência, cujo fim lógico é a anarquia, isto é, a destruição geral, ou tentar, por via pacífica, transformar, melhorar e, com isso, reforçar o governo atual, débil, e, por conseguinte, mau. Não pode haver mais senda intermediária. E, no momento atual, é mais perigoso ocupar uma posição intermediária, pois entre os dois caminhos indicados acha-se, precisamente, o abismo que ameaça tragar primeiramente o liberalismo e depois toda a cultura russa... Ao ocupar uma tal posição em relação ao governo, estabelecemos uma linha de demarcação bem nítida entre nós e os partidos extremistas. Mas é tempo, enfim de reconhecer que, como não sacrificamos os nossos princípios, essa linha de demarcação é inevitável".

Era natural que, se os kadetes, com o objetivo de enganar as massas, procuravam estabelecer uma linha de demarcação bem definida entre eles e os "direitistas" e esclarecer os limites que os separavam dos "esquerdistas", os outubristas, como lídimos representantes do grande capital e da grande agricultura (não atrasada) quebrassem a sua solidariedade, de um modo bem definido, com a "esquerda". Os kadetes julgavam desejável a implantação da jornada de 8 horas "onde fosse possível". Os outubristas não diziam uma palavra sobre isso. Os kadetes declaravam-se partidários da expropriação pela forca das terras senhoriais em benefício dos camponeses, "de acordo com uma justa avaliação" (mais tarde, depois de dezembro, diziam que por "justa avaliação" se devia entender, não a que se baseava nos preços de arrendamento artificiosamente engordados, mas no preço real da terra, pago em rublos contados e sonantes...) Os outubristas somente reconheciam como

"admissíveis, nos casos de necessidade pública, a alienação forçada das terras de propriedade em troca de unia justa compensação".

Um documento firmado por um dos fundadores da "Aliança", o fabricante Krestonikov, punha em relevo todos os perigos encerrados na

"expropriação forçada". Nos programas dos socialistas revolucionários e social-democratas — diz esse documento — fala-se unicamente da nacionalização da terra senhorial e da coroa, porém isto é só no princípio; "depois, exigirão a nacionalização dos demais bens. Por isso, não podemos concordar com os que falam em ceder terras gratuitamente aos camponeses, de tirar as terras dos senhores".

Assim, pois, é preciso tratar da "propriedade sagrada" com as maiores cautelas e lutar irreconciliavelmente contra todos os que atentarem contra ela. Já vimos como Guchkov, antes de dezembro, justificava as repressões governamentais, o estado de guerra, etc., etc. Pouco faltou para o primeiro congresso da "Aliança de 17 de outubro", reunido em fevereiro, recusar uma resolução em que, adaptando-se ao estado de espírito da massa pequeno-burguesa urbana, diante da qual era preciso apresentar, em breve candidatos às eleições para a Duma, o Comitê Central da "Aliança" dizia:

"A proclamação do estado de guerra só pode ser motivada pela insurreição armada ou pela preparação da mesma e deve ser levantada logo que deixe de ser excepcionalmente necessária. Não se deve abusar deste direito rigoroso e menos ainda onde foi implantado por necessidade. Deve-se pôr termo imediatamente, em todos os casos, à aplicação da pena de morte sem formação de culpa". Esta resolução foi adotada por 142 votos contra 140. Um dos delegados exclamou: "Por Deus! Só podemos falar depois da proclamação do estado de guerra!"

Parece surpreendente que, com um tal estado de espírito os outubristas não respondessem ao apelo de Witte, quando este depois de outubro, os convidou — como fizera aos kadetes — a tomar parte no seu gabinete. Vale a pena determo-nos um momento nesta questão, pois isso nos mostrará até que ponto os outubristas eram mais inteligentes que o governo de Witte e como estava arraigada a sua consciência de classe. Naturalmente, não podia haver discussão sobre a "Assembleia Constituinte" entre os outubristas e Witte; o centro burguês não tinha necessidade desta frase, pois não baseava a sua política em frases, como os kadetes.

Como vimos, estavam de acordo em cortar as asas da revolução. Havia, porém, dois pontos de divergência muito sérios. Em primeiro lugar, depois de outubro, já não era possível negar aos operários — como a Constituição de Buliguin o fazia — o direito de voto nas eleições. Vimos que o manifesto de 17 de outubro fora, até certo ponto, um meio de "aproximar-se" da classe operária. Sobre isto não havia dúvida, entre os outubristas e Witte. Porém, quanto a Witte, o que mais temia era o predomínio dos partidos "extremistas" na Duma, fortes entre o proletariado, pelo que procurava dar aos operários o menor número possível de lugares naquela, encerrando-se por isso numa seção particular, cuja composição era puramente classista e na qual votavam todos os operários de maioridade, os líderes outubristas, nas conferências celebradas por motivo da nova lei eleitoral (publicada a 11 de dezembro, quando a insurreição se encontrava no apogeu), insistiam na necessidade de conceder simplesmente o sufrágio universal aos cidadãos maiores de 25 anos (como na Prússia).

Parecia aos outubristas um meio muito mais "seguro" afogar a minoria proletária na massa camponesa e pequeno-burguesa, na "cúria" proletária. "Foram apresentados dois projetes — dizia Guchkov na conferência realizada em Tsarkoie-Selo — sob a presidência do czar". O primeiro é baseado no princípio censitário e, no entanto, faz participarem das eleições os operários — dando preferência aos que mais se agitaram durante os últimos tempos. Privam-se os porteiros, vigilantes, cocheiros, artesãos, etc., do direito eleitoral. Concede-se aos operários uma representação especial de quatorze deputados, que terão em suas mãos os fios do movimento operário e representarão um comitê de greve legalizado. Não se deve temer a massa popular; fazendo-a participar da Vida política do país, conseguir-se-á obter uma tranquilidade estável. A concessão do direito eleitoral geral é inevitável e, se não o concedermos agora, num futuro próximo ele será arrebatado. A proclamação deste princípio, no momento atual, é um ato de confiança, de justiça e de "bondade".

A consideração de que o sufrágio universal permitiria afogar a parte consciente do proletariado ("os que mais se agitaram durante os últimos tempos") na massa dos "porteiros, vigilantes e cocheiros", pareceu tão razoável, que um dos representantes da grande agricultura — ao mesmo tempo grande fabricante de açúcar, o marquês Bobrinski — se uniu a Guchkov e Schipov.

"Há pouco, no Conselho de Ministros, e quando me dirigia para cá, era partidário das eleições à base do agrupamento por classes dos eleitores — disse Bobrinski — mas agora, depois de ter ouvido os discursos pronunciados e os argumentos aduzidos nos mesmos, renuncio à minha opinião anterior e me pronuncio pelo sufrágio universal".

Era assim que a burguesia compreendia, já em 1905, como se tornaria vantajoso o famoso "sufrágio universal". Os funcionários, porém, que constituíam a grande maioria da conferência, eram pessoas atrasadas. Como nos tempos de Pleve, o que mais temiam era que um grande número de representantes do maldito "terceiro elemento" penetrasse na Duma e apressaram-se a encerrar os operários e camponeses num compartimento especial. Que o representante dos camponeses seja o camponês e dos operários o operário. Este ponto de vista foi sustentado ardorosamente pelo Ministro do Interior. Durnovo, que com esse discurso encerrou esta parte da conferência de Tsarkoie-Selo. Durnovo foi também causa dos outubristas negarem-se a mirar no gabinete Witte. Este dava-lhes a pasta que desejassem, salvo a do Interior — reservada a Durnovo. Os outubristas mostravam ainda nesse caso que nada tinham de tolos; compreendiam perfeitamente que, no momento da luta com a revolução, o Ministro do Interior, chefe supremo da Polícia era tudo. E, com efeito, na prática, Durnovo tornou-se mais forte que o próprio Witte. Desempenhar o papel de "decoração social" sob Durnovo não era vantagem para os outubristas.

O proletariado, porém, não manifestou desejo de aproveitar-se imediatamente do direito que lhe era concedido pelo ukase de 22 de dezembro de 1905. Convencido de que o vagalhão revolucionário de outubro-dezembro não seria o último, que, pelo contrário, estava iminente um novo levante, como consequência do movimento insurrecional nas aldeias, os elementos dirigentes do proletariado não acharam razão para manter, em face da Duma de Witte, uma atitude diferente da mantida em relação à Duma de Buliguin. Os bolchevistas declararam o boicote das eleições. Nesta, só tomaram parte os setores mais atrasados do proletariado, alguns menchevistas, não em caráter oficia!, pois oficialmente os mesmos menchevistas não se decidiram a combater a tática do boicote até a retirada deste no Congresso de "unidade" do partido realizado em Estocolmo. (Chamou-se de "unidade" a este congresso porque o seu objetivo era unir as facções bolchevista e menchevista). Celebrou-se este acordo quando as eleições, realizadas em março, estavam a terminar. Como consequência, nas eleições, o partido mais esquerdista foi o dos kadetes.

Estes, que, em novembro, procuraram aproveitar-se das bombas, dos brownings e da insurreição armada, tentavam explorar agora o aniquilamento dessa insurreição. Depois de ter jogado na alta sem resultado, não desanimaram e jogaram na baixa Para eles, era extraordinariamente vantajoso o estado de espírito da massa pequeno-burguesa urbana, que, nas cidades, constituía a maioria esmagadora dos eleitores (segundo a lei de Witte, concedia-se o direito eleitoral a todos os operários "que tivessem casa alugada por sua conta", isto é, à minoria insignificante, que não vivia nos quartinhos das fábricas, sublocados) favorável à separação dos operários numa "cúria" especial. Ao mesmo tempo, porém, a pequena burguesia urbana estava irritada contra o governo, em razão das repressões (em Moscou, onde os habitantes pacíficos tanto sofreram com os canhões de Dubassov, a irritação era vivíssima) e contra os partidos da esquerda, que, com a sua "irreflexão", haviam provocado as repressões. Socialistas, mas "razoáveis"; republicanos, mas "moderados"; era precisamente esta a isca com que se apanhava o peixe pequeno-burguês. Os kadetes demonstraram ser uns excelentes pescadores. Prometeram tudo quando se possa imaginar; prometeram "esmagar" a cabeça da "serpente", isto é, da autocracia... por meio de papeletas eleitorais. O órgão central do partido kadete, Riech escrevia:

"Ao penetrar na Duma, começaremos por negar a própria Duma. No terceiro congresso dos kadetes, realizado em abril, tomou-se uma resolução em que se dizia que "o partido não se deterá ante a possibilidade da ruptura com o governo".

Em síntese: o pequeno-burguês das cidades podia estar contente: os kadetes dirão verdades a Dubassov pelo seu bombardeio. Quanto a ser adversário da insurreição armada, demonstra que são pessoas inteligentes; o pequeno-burguês agora não podia falar dela sem indignação.

Os kadetes obtiveram um êxito maior do que esperavam. Foram eleitos, nas cidades, quase que exclusivamente representantes seus, e ainda os camponeses, como vimos, mandaram 24 deputados(3). Os kadetes obtiveram um total de 179 cadeiras (os progressistas e o partido das reformas democráticas, que lhes era muito afim, 197). Mas, como na Duma tinham assento 478 deputados, os kadetes não contavam com a maioria absoluta.

Nisso consistiu a maior dificuldade da situação. Se contassem com a maioria não teriam vacilado em enganar, sem tardança, os seus eleitores e em trocar apertos de mãe com o governo; se só contassem com uma minoria insignificante, teriam continuado a repetir "bravamente" as mesmas frases altissonantes com que cativaram o pequeno-burguês durante as eleições, argumentando que se estas frases não tinham nenhuma consequência real, era lógico, sendo, como eram, tão pouco numerosos. Mas os kadetes não constituíam nem maioria esmagadora nem uma minoria insignificante; eram o partido dirigente da Duma; tiveram de criar outra maioria, valendo-se de elementos heterogêneos cuja parte, menos agradável, era uma grande ala esquerda, surgida inesperadamente, — não só para eles — encarnada no "Grupo do Trabalho" ou trudoviki (90 deputados). Estes, do ponto de vista político, eram, como já dissemos, sumamente cândidos e pouco conscientes, mas, desgraçadamente para os kadetes, eram sinceras. Os trudoviki criam, efetivamente, que, por meio da Duma, se podia obter o direito à terra. Os kadetes prometeram trabalhar neste sentido, contudo, sabiam perfeitamente que isto era uma ilusão inteiramente irrealizável. Os trudoviki não sabiam nem queriam saber de truques e combinações. Era, por isso, muito difícil "arrastar" semelhantes elementos.

A situação tornava-se cada vez mais difícil, visto que, fora da Duma, a atmosfera mudava com rapidez inesperada para todos. Vimos como desde princípios até fins de 1906 foi decaindo o número de greves e grevistas. Deixamos deliberadamente, porém, em claro, o segundo trimestre do ano, compreendendo os meses em que a Primeira Duma foi eleita, convocada e iniciou os trabalhos (as sessões foram inauguradas em 27 de abril). Enquanto, durante o primeiro trimestre de 1906, temos somente 73.000 grevistas, no segundo trimestre o número é mais de três vezes maior, 222.000, para dois terços dos quais, aproximadamente (144), a greve terminou com a vitória dos operários ou com um "compromisso", isto é, com concessões por parte dos patrões. O número de greves foi aumentando do seguinte modo: 17 em fevereiro; 92, em março; 1.026. em abril; 449, em maio; 86, em junho. A vaga, como vemos, foi breve, mas é característica das ilusões que, ainda em 1906, continuavam a existir no proletariado. Alguma coisa os operários esperavam da Duma. A sua convocação, pelo menos, parecia- lhes um acontecimento importante, e, na realidade, a Duma foi convocada simplesmente em virtude do acordo com a Boba de Paris, que, afinal, dera dinheiro ao czar para "restabelecer-se" depois da guerra. Não que a Duma fosse imposta como condição para s concessão do empréstimo; depois das matanças de dezembro o crédito pessoal dos Romanov podia considerar-se restabelecido. Mas os franceses tinham necessidade de uma folha de parreira para os subscritores do novo empréstimo. Outorgamos o empréstimo, não à autocracia, porém à Rússia "constitucional" .

Poincaré, Ministro da Fazenda na época, aconselhou calma para arranjar um cenário útil e poder representar a obra prometida da "convocação dos representantes populares". Como este era também o desejo dos círculos de capitalistas russos (que quase não contavam com representação; os outubristas sofreram uma séria derrota nas primeiras eleições). Tsarkoie-Selo resolveu convocar a Duma. Parecia não haver nisso perigo algum; o dinheiro já estava no bolso. Havia sido resolvido, porém, previamente, que, se a Duma se atrevesse a colocar na ordem do dia a questão agrária, seria imediatamente dissolvida. Poincaré não podia trazer objeção, pois não exigira que se concedessem direitos efetivos à Duma...

Agora é que se conhece esta história dos bastidores da Primeira Duma. Então, repetimos, alguns operários consideravam-na como algo sério e viam nela uma espécie de "etapa" da revolução. Já fizemos notar a credulidade infantil das massas pequeno burguesas. Vimos, também, que o movimento camponês se converteu num grande incêndio, precisamente na primavera e no verão de 1906, isto é, no período da "Primeira Duma". E o movimento camponês exercia uma poderosa influência sobre as tropas. As notícias sobre as "desordens" nos vários regimentos chegavam às dezenas. O movimento estendeu-se à guarnição de Petrogrado. Até o primeiro regimento da guarda o regimento de Preobajenski, expressou a sua solidariedade ao grupo dos trudoviki. Vimos também a causa disto o "Grupo do Trabalho" era o porta-voz dos interesses do "camponês forte", que constituía a percentagem mais considerável da massa dos soldados da capital. É sintomático que já em 1902 uma das primeiras insurreições camponesas fosse dirigida por um suboficial da reserva de Preobajenski. Para o governo, isto representava, naturalmente, menor perigo que as revoltas dos soldados, menos frequentes, desde o outono de 1905, pois só no fundo geral da ação revolucionária do proletariado podiam as revoltas dos soldados adquirir uma grande significação. Estes dois fatos, contudo, produziam grande efeito sobre a massa "neutra’' e sobre o governo.

Tudo isto contribuía para criar uma situação cada vez mais difícil para os kadetes da Duma. Não só era necessário agir de acordo com os trudoviki na Duma, como também dirigir o movimento das massas. Os kadetes — como eles próprios reconheciam — foram à Duma para extinguir a revolução, e, pelo que se via, era justamente na Duma onde ela começava a se manifestar de novo. No terreno puramente político, os kadetes, aproveitando-se da pouca consciência política dos trudoviki e da completa ausência daquela nas massas, conseguiram dominar a situação. Vimos que a mensagem ao czar, que eles elaboraram, o trudoviki a aceitaram docilmente. Mas, no terreno social, conseguir a paz interior foi mais difícil. Os senhores de terras da esquerda eram nobres e desejavam perpetuar a sua nobreza. E, quando se pôs em ordem do dia a questão da supressão das "castas", os representantes do Partido Constitucional Democrata pronunciaram os mais estranhos discursos. Kokoschkin, kadete especialista em direito público, dizia:

"Desejamos conservar as castas, porém todo o conteúdo real das mesmas se acha condicionado, pela desigualdade do direito, a determinados privilégios ou limitações. Sendo os privilégios e as limitações suprimidos, não existirá uma diferença real. A única coisa que resta é uma questão de nome, que não tem nenhuma importância".

Que os nobres continuem chamando-se nobres e os camponeses camponeses... E, quando os nobres sofreram uma derrota na província de Tambov, os kadetes obtiveram a anulação das eleições à Duma, e, como consequência, 10 deputados camponeses tiveram que se retirar. Os camponeses não se esqueceram disso.

As contradições, porém, apareceram irreconciliáveis, quando começaram os debates em torno da questão agrária, proibida para a Duma, sem que esta soubesse. A Duma, como é do nosso conhecimento, deveria ser dissolvida se tratasse desta questão. E, em rigor, quase não se ocupou de outra coisa. A questão agrária ocupou 3/4 do breve período da sua existência. Um acordo não era difícil; lembremos que a própria ala esquerda da Duma, os trudoviki, sustentavam nessa questão uma posição de compromisso; verdadeiros revolucionários agrários não existiam na Duma. Mas, os trudoviki, neste caso, eram sinceramente partidários do compromisso: contavam obter uma parte das terras senhoriais, não todas, e nem gratuitamente; porém, já era alguma coisa. Os kadetes, sob a pressão dos fazendeiros do partido, trabalhavam para que a maior parte das terras ficasse em poder dos proprietários e que estes não se vissem, em hipótese alguma, privados da mão de obra necessária. O único ponto em que estavam de acordo era o de sacrificar o "fazendeiro inculto" ao "usurário agrário".

"As terras arrendadas antes de 1.° de janeiro de 1906 — diz o projeto kadete — devem ser expropriadas em troca de dinheiro ou de trabalho, assim como as trabalhadas principalmente com ferramentas agrícolas e as terras abandonadas, cuja possibilidade de cultura esteja reconhecida".

Mas não podem, de modo nenhum, ser expropriadas as terras onde estejam instalados estabelecimentos fabris ou industrial-agrícolas, isto é, as terras necessárias para os mesmos e em que se acham os vários acessórios, armazéns, etc.

Assim, pois, podeis tomar as terras que o senhor não quer explorar; porém, as grandes explorações, Deus nos guarde e livre de tocá-las.

Entretanto, como já notamos, todo o antagonismo residia entre a grande e a pequena exploração, e os camponeses fizeram objetivo de sua cólera, precisamente, os arrendatários capitalistas. A este respeito, porém, o programa dos kadetes fala de um modo categórico:

"Desejamos que se garanta aos camponeses a norma de consumo, isto é, que se lhes conceda uma quantidade tal de terra que, levando em conta as condições locais e o dinheiro complementar onde exista, seja suficiente para cobrir as necessidades médias de subsistência, vivenda, indumentária e contribuição."

Os kadetes achavam que a economia camponesa podia subsistir, que o mujik não sofresse fome; porém, Deus nos guarde que faça concorrência no mercado ao fazendeiro. Um dos kadetes mais francos, E. N. Schepkin, reconhecia abertamente que o projeto dos kadetes era "a repetição da reforma de 1861". Houve, então, "emancipação" entre aspas; agora haverá "repartição" de terras, também entre aspas. Os camponeses, porém, não eram os mesmos dos dias da "grande reforma".

"Agora não nos devemos deter nas meias medidas como em 1861", declarou um dos deputados camponeses à Duma. "Se os proprietários não concordam com a cessão das suas terras (subentendia-se: de acordo com as condições fixadas pelo "Grupo do Trabalho"), — dizia outro — o povo as tomará e nada pagará por elas".

Do ponto de vista governamental, esses discursos, evidentemente, provocavam a dissolução. Witte já não estava no governo Nicolau apressara-se a separar-se de um ministro que lhe era extremamente antipático, logo que obteve o empréstimo para cuja obtenção colocara Witte à frente do gabinete, o pretexto foi a maioria da "esquerda" da Duma (kadetes e trudoviki); mais tarde, Stolipin não foi afastado do seu cargo, apesar da Segunda Duma ser ainda mais esquerdista". Stolipin, ex-governador de Saratov, onde era considerado "liberal" (mostrou-se, algum tempo depois, outubrista da direita), era, na realidade, a alma do novo gabinete. O primeiro ministro era formalmente o antigo funcionário Goremikin, do qual, sempre que era preciso, se lançava mão, e que distinguia, antes de mais nada. por completa falta de personalidade. Stolipin foi nomeado em junho, no momento em que o congresso da nobreza exigiu que Nicolau pusesse fim aos boatos espalhados em toda a Rússia a respeito da questão agrária; a dissolução impunha-se. Esgotara-se a paciência da nobreza.

Stolipin — então Ministro do Interior — tomou a seu cargo a missão de dissolver a Duma, valendo-se dos seus próprios meios. Mas isto pressupunha uma confiança absoluta na força armada, e Trepov, que continuava ao lado de Nicolau (Trepov morreu em fins do verão de 1906), não tinha essa confiança. Se não se podia ter confiança no regimento de Preobajenski, a situação nos demais era ainda pior. Ocorreu-lhes, então, a ideia de utilizar os kadetes para dissolver a Duma. O governo não podia deixar de apreciar em seu justo valor a habilidade dos kadetes em mistificar os seus eleitores em março. Por que não conseguiria o mesmo em julho? Dissolver-se-á a Duma, mas restará um ministério organizado à base da Duma, um comitê da representação popular", que se pode apresentar como "um grande passo à frente".

Stolipin tinha pouco desejo de ceder o posto aos kadetes. Insistiu junto a Nicolau para que se formasse um gabinete de coalizão de funcionários (em primeiro lugar, dele mesmo) e de "homens públicos", repetindo assim a tentativa de Witte em novembro de 1905. Entretanto, os "homens públicos", encarnados em Schipov, convidados a integrar o gabinete, concordaram que os kadetes, justamente, deviam ser chamados ao poder. Dizia Schipov a Nicolau na entrevista que tiveram em Peterhof:

"No momento atual, o único governo possível é um governo formado de representantes da maioria da Duma. O espírito de oposição, que se manifesta atualmente no Partido Constitucional Democrata, não deve inspirar temor. Este caráter do partido e determinado, em grande parte, pela posição irresponsável que ocupa. Se, porém, os representantes do partido forem chamados ao poder e arcarem com as graves responsabilidades inerentes ao mesmo, o aspecto atual do partido se modificará, indubitavelmente, e seus representantes, ao entrar no gabinete, considerarão como um dever limitar as reivindicações do seu programa e pagar as letras de câmbio nas assembleias eleitorais, não integralmente, mas à razão de 20 ou 10 kopeks por cada rublo".

Nicolau desejou saber orno os kadetes iam fascinar os seus eleitores. Schipov satisfez essa curiosidade explicando-lhe a maneira de efetuá-lo a respeito de cinco questões principais: a abolição da pena de morte, a anistia política, a questão agrária, a igualdade de direitos de todas as nacionalidades e a autonomia da Polônia.. Como complemento, disse Schipov:

"Se os representantes do partido kadete forem chamados ao poder, é mais que provável que num futuro próximo reconheçam a necessidade da dissolução da Duma e efetuem novas eleições com o objetivo de desfazer-se da numerosa ala esquerda e convoquem uma Câmara constituída pelos elementos progressistas do país. O monarca, segundo me pareceu, mostrou-se satisfeito com as minhas explicações e perguntou-me qual dos membros do partido kadete desfrutava maior autoridade e possuía maior capacidade para desempenhar um papel diretivo".

Miliukov, em seu artigo sobre as Memórias de Schipov, não refuta esta característica e quase a confirma. Disse Miliukov:

"Inegavelmente, tinha razão Schipov afirmando que os kadetes no poder não seriam tão destruidores e revolucionários como Stolipin, e todos os seus sequazes diziam. É inegável que, na prática, seriam introduzidas no programa todas as emendas e complementos ditados pelas considerações do governo".

"Mas — a junta —, naturalmente, os kadetes não podiam renunciar à anistia para os terroristas (era o ponto fundamental da divergência, mais séria até que a questão agrária)".

Os kadetes estavam dispostos a sacrificar as terras camponesas, mas em hipótese alguma a pôr em perigo suas cabeças, expondo-se, para restabelecer a "ordem", a cair vítimas das bombas e dos revólveres dos socialistas-revolucionários. Era este um ponto de divergência muito importante. Para Nicolau, como sabemos, as bombas e os revólveres constituíam a "verdadeira revolução", e os socialistas-revolucionários os "verdadeiros revolucionários"; os que iam contra eles, eram de fato fiéis ao trono e à pátria. Stolipin arriscou a cabeça, deu provas de fidelidade; a ausência desta nos kadetes era um mau augúrio para o seu ministério.

Outra circunstância fatal aos kadetes residia no fato dos intelectuais burgueses, que ainda não haviam arrebatado as pastas ministeriais à burocracia, acharem-se dispostos a brigar por elas... Muromtsév, presidente kadete da Duma, fez chamar Miliukov — "líder" efetivo do partido — embora fosse derrotado nas eleições — e, segundo relata o próprio Miliukov,

"depois de algumas preliminares, perguntou-me à queima-roupa qual de nós dois será presidente do Conselho".

Schipov tentou também, nessa ocasião, desempenhar o papel de "intermediário honrado", propondo a seguinte combinação: Muromtsév, presidente, e Miliukov, Ministro dos Negócios Estrangeiros. Muromtsév, entretanto, respondeu a esta proposta:

"É difícil dois ursos poderem conviver no mesmo covil".

Miliukov, no entanto, segundo o testemunho dos que o observavam naquele período, considerava-se já presidente do governo.

Mas todas essas insignificâncias — tão características, entretanto — poderiam ser resolvidas de qualquer forma. Os kadetes fracassaram no principal: no momento decisivo, perceberam não estarem senhores da situação na Duma, e que, com a sua entrada no ministério, Nicolau não ganharia absolutamente nada.

Isto se evidenciou do seguinte modo: sob a pressão da assembleia da nobreza, o governo Goremikin-Stolipin publicou uma nota declarando que não haveria "expropriação violenta das terras privadas". Isto era uma grosseira intromissão nos trabalhos da Duma, que estava longe de ter terminado o exame da questão agrária. A "expropriação violenta" figurava em todos os projetos e eis que, de golpe, o governo declarava que a Duma podia deliberar o que quisesse, contanto que ninguém tocasse nas terras senhoriais. A "representação popular", indignada, resolveu responder à "nota" do governo com uma "mensagem ao povo", refutando a "nota" e pondo as coisas no devido lugar. Os kadetes assustaram-se; os seus juristas perceberam imediatamente que um passo semelhante, da Duma, podia transformar- se, nas mãos de um Stolipin, em magnífico pretexto formal para a sua dissolução. Era tal, porém, o estado de espírito dos deputados, que os kadetes não se atreveram a opor-se diretamente a "mensagem ao povo". Tentaram sabotar o documento fazendo, a Duma aceitar um texto

"cuja ideia principal", segundo palavras de um representante da facção social-democrata, "se limitava a induzir o povo à calma e não a denunciar os atos violentos do governo, que reduziam a Duma à impotência".

Ao proceder-se à votação desse estranho documento "revolucionário", que "induzia o povo à calma", originou-se o escândalo; o projeto só teve os votos dos kadetes (124). Os direitistas e os social-democratas (52) votaram contra, e 101 trudoviki abstiveram-se. Já passara o tempo em que essas cândidas criaturas votavam pela mensagem kadete ao czar. Alguma coisa aprenderam nesses dois meses de sessões da Duma. Isto ia produzir em Trepov o efeito de uma bomba. Então esses kadetes não contavam com a maioria na Duma? Que valor tem um ministério organizado por eles?

Stolipin triunfava. Em 8 de julho, apareceu o ukase do czar dissolvendo a Duma, medida motivada por esta se haver imiscuído em negócios que escapavam à sua alçada. Marcaram-se ao mesmo tempo novas eleições para janeiro de 1909. Constituiu-se um novo ministério; Goremikin teve que se demitir e o presidente do Conselho não foi Miliukov, mas Stolipin. Com intuito de ornamentar o seu gabinete, Stolipin tentou convidar outra vez os "homens públicos"; mas estes tinham um aspecto tão burlesco que, inclusive os outubristas, se consideraram ofendidos. Entretanto, não podiam mostrar-se descontentes com a política ulterior do gabinete Stolipin. Os temores de Trepov a respeito da "ordem" e da "tranquilidade pública", só se confirmaram em mínimas proporções.

A prisão do Soviet de Petrogrado teve um eco muito mais sonoro que a dissolução da Primeira Duma. Em Sveaborg e Cronstadt estalaram rebeliões militares; mas o governo estava prevenido e sufocou-as com muito mais facilidade que a de Sebastopol, em novembro de 1905. Os camponeses responderam com agitações grandiosas, sobretudo na província de Stavropol, sobre cujo deputado, Onipko, pesava a ameaça de morte por participação na rebelião de Cronstadt. Mas isto também não tinha a importância que o governo julgava. O proletariado, que "boicotara" a Duma, lembrou, entretanto, à autocracia triunfante, que ele ainda existia, tentando uma greve geral. Em Moscou e Petrogrado a greve foi quase unânime; porém, para os próprios grevistas, tratava-se de urna simples manifestação sem nenhum objetivo prático. A resposta mais lamentável foi a dos heróis da Duma dissolvida, dos kadetes. Reunidos em Viborg, na fronteira finlandesa, lançaram um novo "manifesto ao povo" Nada melhor que nos servirmos das palavras do seu líder para caracterizar o pensamento e a significação desse documento:

"O manifesto de Viborg, sobre o qual tantas coisas absurdas se disseram, foi o mínimo que se podia fazer para dar expansão ao estado de espírito existente. Para os membros do "Partido da Liberdade do Povo" tratava-se de evitar a luta armada nas ruas de Petrogrado, condenada evidentemente ao fracasso e dar à indignação geral uma forma de expressão que não se achasse em contradição com o constitucionalismo e se colocasse no limite entre a existência legal contra os infratores da Constituição e a revolução. Conservava-se gravada na memória de todo mundo a recordação de uma resistência desta índole na Hungria, a propósito de questões sobre a instrução pública.

"Os elementos constitucionais, que haviam entrado num acordo — em Viborg — com a ala esquerda da Duma para a ação constitucional comum, imediatamente depois de Viborg, na Conferência de Teriokai, pronunciaram-se contra as ações revolucionárias, assim como, mais tarde, contra as insurreições de Cronstadt, Sveaborg, etc.

"O próprio convite feito ao povo para não pagar impostos e não dar soldados tinha uma significação condicional para o caso de não se marcarem eleições para uma nova Duma; a aplicação dessas medidas não deviam começar imediatamente, mas depois que se visse claramente o estado de espírito do povo e não antes da convocação do outono. Assim, pois, na realidade, o manifesto de Viborg era uma manifestação política e uma medida a ser adotada em caso extremo — que não chegou a se apresentar pois foram marcadas as eleições para a Segunda Duma".

Estas linhas foram escritas por Miliukov em 1921, quando não tinha motivo para ocultar o seu revolucionarismo de 1906. mas, ao contrário, para exagerá-lo, agora que se apresenta como o líder da ala esquerda "republicana" dos kadetes. Mas, nesta ocasião, a consciência do historiador prevaleceu sobre a do político e não pôde dissimular que até o único manifesto "revolucionário" dos kadetes tinha fins contrarrevolucionários(4).

Pelo que se via, os intelectuais burgueses deixavam para sempre de desempenhar um papel político. Começava uma reação profunda da nobreza, porém esta não trabalhava para si, desbravando apenas o caminho para a reação burguesa. Ao analisar o sentido social da "política stolipiana", veremos que, sob o ponto de vista da "revolução burguesa" — tal como os menchevistas a entendiam — o jogo não terminara com uma perda completa, apesar da derrota dos kadetes.


Notas de rodapé:

(1) Para que o leitor faça uma ideia da densidade do movimento camponês é necessário fazer notar que o número de casos de insurreição correspondente a cada distrito, em média, não passava de três ou quatro. Só em alguns lugares se estendeu a distritos inteiros. (N. do A.). (retornar ao texto)

(2) Informe sobre o Congresso de unidade. (N. do A.). (retornar ao texto)

(3) Dos proprietários de terras da esquerda havia 29 kadetes,isto é, a metade de todos grandes proprietários eleitos para a Duma. (N. do A.). (retornar ao texto)

(4) Três tentativas (da Historia do pseudo-constitucionalismo russo), pags. 63-64. (N. do A.). (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015