Processo de Nuremberga

Arkadi Poltorak


IV - Wilhelm Keitel e Alfred Jodl


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A Carreira do Coronel

Depois de Ribbentrop foi a vez de Keitel. O Tribunal Internacional tinha a tarefa de julgar aquele que tinha ocupado o lugar cimeiro na hierarquia militar hitleriana. Ele tinha, mais do que qualquer outro oficial, usufruído do favoritismo do Fuhrer.

Interrogatório de Funk
O interrogatório do réu Funk
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No decorrer de um interrogatório Funk queixou-se de sempre ter sido excluído das reuniões onde se fazia a grande política. Keitel, quanto a ele, não tinha razões para se lamentar de tal injustiça: o acesso aos altos lugares do Terceiro Reich nunca lhe esteve vedado. Muito popular na Alemanha nazi, foi-o também no processo de Nuremberga. Ele e Goering tiveram a primazia nos debates do Tribunal Internacional. Nenhum outro nome estava tão intimamente ligado aos inúmeros documentos aviltantes do governo hitleriano.

Este endurecido criminoso de guerra tinha um colega digno dele: o general Alfred Jodl. No início do processo não me espantei que o marechal-de-campo Keitel estivesse sentado na primeira fila, não longe de Goering, e Jodl na segunda. Porque o nome de Keitel incessantemente aparecera nos jornais, ao passo que o de Jodl mal era conhecido. Aos olhos de muita gente ele parecia a sombra do marechal-de-campo. Keitel era o chefe do OKW (Comando Supremo das Forcas Armadas da Alemanha) e Jodl, que dirigia o Gabinete de Operações, era nominalmente seu subordinado. Mas se fosse possível mudá-los de lugar à medida que o processo ia pondo a nu o papel de cada um dos réus na concepção e realização dos crimes nazis, eu teria certamente posto Jodl ao lado do seu superior.

Wilhelm Keitel, rebento de uma velha família de junkers contando numerosas gerações de latifundiários e militares, enveredou ele próprio pela carreira das armas em 1901, como aspirante num regimento de artilharia. No fim da Primeira Guerra Mundial exercia as bastante modestas funções de chefe de estado-maior de um corpo da Marinha nas Flandres, e até à tomada dó poder pelos nazis o seu avanço foi mais para o lento. Nas cúpulas do Alto Comando alemão não deixava de se saber que Keitel tinha falta de talentos estratégicos. Mas este defeito era largamente compensado por sólidas tendências pró-nazis, e a partir de 1933 subiu rapidamente de posto. Em 1938 é chefe do Estado-Maior do Comando Supremo das Forças Armadas, em 1939 general de infantaria, e depois da campanha do Ocidente de marechal-de-campo.

Em Nuremberga tive ocasião de ver e ouvir muitos oficiais superiores alemães como Rundstedt, Manstein, Brauchitsch. Ouvi também, falar de Blomberg, de Fritsch, de Beck. Todos tinham tido, desde antes da Segunda Guerra Mundial, uma certa reputação de estrategos. Mas em 1938, quando foi reorganizada a direcção das Forças da Alemanha. Hitler não hesitou em nomear Keitel chefe do OKW. Não era só pelo facto de o ditador nazi, convencido do seu próprio génio militar, julgar as capacidades de Keitel suficientes para a execução das suas ordens. Entravam aí outros importantes factores.

Hitler julgava-se infalível em política. Qualquer objecção, qualquer crítica às «prescrições sublimes» do Fuhrer passavam a seus olhos por um atentado aos princípios nazis. Ora os senhores generais que acabo de mencionar não tomavam sempre toda e qualquer directriz sua como verdade absoluta. Não que se opusessem aos projectos de guerra, Hitler sabia que esses generais eram dos mais ardentes revanchistas. Era preciso ser-se muito ignorante para se não ver que os seus discursos dedicados à estratégia de agressão eram inspirados, entre outros, pelo Alto Comando. É um facto. Mas as dúvidas e a prudência de alguns desses velhos senhores irritavam Hitler. Talvez lhe tenham chegado aos ouvidos estas palavras de Beck:

«Não é o que fazemos que está mal, é a maneira de o fazer».

Havia além disso outra coisa que acaba por pôr Hitler contra Beck, Fritsch e os outros generais da «velha escola». Com certeza queeles desejavam a guerra tanto como ele. Neste particular o regime de Weimar não lhes convinha. O partido nazi, que falava abertamente na desforra como elemento fundamental do seu programa, parecia-lhes um aliado muito mais seguro. E os velhos militarões tinham a princípio acreditado que ao ajudarem os nazis a tomar o poder teriam, na pessoa de Hitler, um «Fuhrer domesticado» e que seriam eles os donos do país. Mas era justamente isso O que mais repugnava a esse maníaco vaidoso até à medula.

Aliás Hitler não era o único a não gostar dos generais. Goering, presunçoso como não havia outro, tinha a convicção de ser ele o mais apto para comandar a Wehrmacht. Foi ele quem arranjou tudo, é como o leitor já viu, para que Blomberg e Fritsch fossem destituídos.

A etapa seguinte deveria ser a nomeação de Goering para o posto de comandante-em-chefe. Mas da mão à boca se perde a sopa. Hitler preferia manter o seu «fiel paladino» afastado dos cargos demasiado influentes. Embora de acordo com ele sobre a necessidade de reorganizar a direcção das Forças Armadas e de se desembaraçar dos orgulhosos generais do Kaiser, Hitler preferiu no entanto atribuir a si próprio o comando supremo, o que fez a 4 de Fevereiro de 1938.

Só faltava escolher um bom chefe do OKW, Hitler queria ver nesse cargo, mais do que um especialista militar, um homem que acreditasse sem reservas no génio estratégico do seu Fuhrer e que estivesse portanto de acordo a não ser mais que a sua sombra, a partilhar todas as suas ideias nazis.

Wilhelm Keitel era o candidato ideal.

O coronel Keitel, no seu meio, passava por ser um fervoroso nazi. No decurso dos seus longos anos de serviço ele dera provas, senão de brilhantes qualidades, pelo menos de um excepcional conformismo e, mais do que isso, de uma absoluta submissão a Hitler. Em Nuremberga, no interrogatório da instrução prévia de 3 de Agosto de 1945, declarou:

— No fundo de mim mesmo eu era um fiel paladino de Adolfo Hitler e as minhas convicções políticas eram nacional-socialistas. Quando o Fuhrer depositou em mim a sua confiança, os contactos pessoais que com ele tive fizeram-me evoluir para o nacional-socialismo. Ainda hoje continuo convicto partidário de Adolfo Hitler, o que não implica que adira a todos os pontos do programa e da política do partido.

A fé nacional-socialista de Keitel e a sua obediência a Hitler valeram-lhe o ser nomeado chefe do OKW.

«LaKeitel»(16) ou Moltke!?

Nas primeiras audiências, nas quais foi abordado o papel de Keitel na perpetração dos crimes, tentei imaginar qual teria sido o seu peso real dentro da camarilha militar. Ele próprio se esforçava por convencer o Tribunal que mesmo sendo, depois de Hitler, a personalidade mais altamente colocada na hierarquia militar da Alemanha nazi, no fundo tinha apenas poderes limitados. Bem gostaria ele de passar aos olhos do Tribunal por um mero homem às ordens.

Tentativas para apresentar Keitel como um funcionário sem influência foram reiteradas depois do processo em certos escritos alemães ocidentais. Por outro lado, os generais que dizem que cada um deles ganha uma batalha e que todos juntos perdem a guerra, esses estavam prontos a exagerar o poder de Keitel, para o disfarçarem de chefe absoluto da Wehrmacht. Ora, como eles lhe recusavam qualquer talento estratégico, o mais simples era descarregarem para cima dele a culpa da derrota da Alemanha acusando-o de lhes ter posto entraves. Não teriam sido eles, os generais, os culpados da derrocada do Terceira Reich, mas apenas Hitler e Keitel.

Rudenko procurador geral da URSS
R. Rudenko, procurador-geral da URSS
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Evidentemente que ele não gostava disso. Tal como não gostava dos argumentos de Rudenko, que achava que com a sua sólida formação e a sua experiência das questões militares Keitel podia influenciar consideravelmente Hitler nas suas decisões de ordem estratégica e em todas as questões respeitantes às Forças Armadas.

O ex-chefe do OKW procurava no entanto fazer acreditar que Hitler tinha génio suficiente para poder dispensar os seus conselhos.

— Não, senhor procurador — replicava obsequiosamente. — A esse propósito devo declarar que Hitler estudara, a um ponto inconcebível, tanto para um leigo como para um oficial de profissão, obras de estado-maior, opúsculos militares...ele tinha das questões militares um conhecimento verdadeiramente surpreendente.

Não sei se Keitel, ao dizer isso, estava a olhar para os seus co-réus, se estava a ver os sorrisos sardónicos de Jodl, de Goering, de Raeder. Mas, como arriscara tudo por tudo, continuou no mesmo espírito:

— Eu poderia demonstrar, senhor procurador, por meio de um exemplo, que os outros oficiais da Wehrmacht podem confirmar, que Hitler conhecia tão bem a organização do armamento, o comando, o equipamento de todos os exércitos e, o que é ainda mais notável, de todas as marinhas do mundo, que era impossível apanhá-lo em erro. Durante a guerra, quando eu estava no seu Quartel-General, ele estudava, pela noite fora, todos os grandes livros de Moltke, de Schliefen e de Clausewitz, donde extraía os seus conhecimentos autodidácticos. Era por isso que todos pensávamos que só um génio poderia fazé-lo.

Ao observar Keitel durante o processo, tive muitas vezes ocasião de constatar que ele de modo nenhum fazia questão de ser uma figura notória do banco dos réus. Mas, como que propositadamente, o seu nome ecoava todos os dias no Palácio de Justiça e a quase toda a hora: «Keitel ordenou», «Keitel mandou», «Keitel exigiu»... Achou-se no centro dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, estando sempre no séquito de Hitler que ele acompanhava para todo o lado e de quem em suma era um outro «eu». Não é sem razão que a sua bajulice para com o Fuhrer valeu ao marechal-de-campo a pouco honrosa alcunha de «LaKeitel».

Ciente do perigo que implicava uma tal situação, ele cada vez mais se agarrava à sua táctica de defesa. Respondendo a uma pergunta que Rudenko lhe fizera, o desafortunado chefe do OKW declarou:

— Eu era, devo admiti-lo- com franqueza, o discípulo e não o conselheiro.

Os outros réus ouviram esta réplica sorrindo. Alguns achavam que ele se estava de facto a fazer pequeno demais, que apesar de tudo havia limites a não ultrapassar na escolha dos meios de defesa. Foi de resto o que a si próprio deve ter dito Keitel ao assistir, alguns dias depois, às proezas do seu vizinho de banco Ernst Kaltenbrunner. Vê-se melhor os outros que a si próprio, é caso para dizer!

Numa suspensão de audiência Gilbert perguntou a Goering o que pensava ele das declarações de Keitel. O Reichsmarschall não defendeu evidentemente as mentiras absurdas do marechal-de-campo a propósito de Hitler, mas confirmou de boa vontade as suas outras asserções.

— Eu já disse ao Tribunal que Keitel não tinha funções de comando.

Que pode concluir-se ao reflectir-se na verdadeira posição de Keitel no Q.G. de Hitler? O que é certo é que depois de terem examinado o seu caso, nenhum dos juízes foi de opinião que ele tinha sido a personagem principal do Alto Comando. Pelo contrário, o processo pôs em evidência que a grande «cozinha» da estratégia militar hitleriana era o Gabinete de Operações do OKW que tinha Jodl como chefe. Hitler dava-se conta que o seu «LaKeitel» não era nem um Moltke, nem um Scharnhorst. Não era a ele que competia resolver as questões operacionais. Hitler encarregava disso Jodl, de que falarei mais adiante.

Que fazia então Keitel? Se se imaginar uma organização política em que o Estado-Maior-General existe paralelamente ao ministério da Guerra, Keitel era ministro da Guerra e Jodl chefe do Estado-Maior-General. Convencionalmente, claro, porque as funções de Keitel e de Jodl se interpenetravam.

O OKW compreendia diversos serviços: Forças Armadas, Armamento, Informações, Contra-Espionagem. Keitel dirigia as actividades destes serviços. Mas esse não era o seu trabalho essencial. O alfa e ómega da estratégia hitleriana consistia em atacar os outros países sem lhes declarar guerra, mas depois de ter elaborado toda a espécie de provocações, para provocar e camuflar a agressão. E aí Keitel revelou insignes talentos.

O leitor recorda-se que Goering gostava por vezes de «assumir» os actos deste ou daquele dos seus co-réus. Mas desde que foi questão de Keitel, ele manteve-se sossegado: já não era altura para fanfarronices.

Keitel sabia perfeitamente que os fins particulares da agressão nazi marcariam os métodos de guerra. Esses fins eram o extermínio de determinados povos («de raça inferior»), o enfraquecimento biológico dos outros, a germanização maciça dos territórios conquistados e o seu saque total. Países inteiros deviam ser devastados e transformados em desertos.

Esses monstruosos objectivos não podiam ser atingidos por meios puramente militares. Era necessário prever de antemão todo um sistema de crimes. Os crimes de guerra tornaram-se parte integrante dos planos estratégicos. Os hitlerianos projectavam a ocupação perpétua dos territórios invadidos, a sufocação implacável de toda a resistência, o massacre das populações civis, os Auschwitz e os Maidanek.

A realização desses planos exigia do chefe da Wehrmacht a ausência de todos e quaisquer escrúpulos. O marechal-de-campo Keitel possuía essa qualidade.

Uma vez no banco dos réus, ele tentou justificar os seus crimes pelo «fanatismo da obediência». Mas o Tribunal Internacional provou que ele não era o executor cego das ordens de Hitler, que ele estava inteiramente de acordo com elas e as achava indispensáveis.

Um Virtuoso das Provocações Militares

O embaraço que sentia Goering e Ribbentrop quando o Ministério Público lhes falava da agressão contra os outros países sugeriu a Keitel a táctica a seguir. Goering e Ribbentrop só tinham que falar dos pactos e dos acordos, de invocar Munique. Quando a Keitel, isso não era do seu pelouro. Ele era um militar e não um político. A palavra «agressão» não tinha para ele qualquer sentido, podiam os juízes acreditar.

— Como soldado devo dizer-vos que o termo «guerra de agressão» nada significa para mim, porque nós aprendemos a conduzir operações ofensivas, defensivas e de recuo. Mas, pela minha experiência militar pessoal, o conceito de guerra de agressão é essencialmente político... Os serviços militares não são competentes nessa matéria.

Esta táctica despertou o interesse dos outros réus: como ideia aquilo não estava nada màl, apesar de tudo! Doenitz e Raeder conferenciaram com Jodl para ver se não poderiam tirar partido disso. Mas antes de eles terem decidido, o Dr. Nelte, advogado de Keitel, fez ao seu constituinte uma pergunta que lhes deu a entender que a «ideia» não deu os resultados desejados.

— Marechal-de-campo Keitel, o senhor não é apenas um soldado, mas também um homem com uma vida própria... Nunca fez nenhumas reflexões quando teve conhecimento de factos que revelaram o carácter ilegal das operações em vista?

Semelhante pergunta parecia ser, antes, a de um procurador. No entanto Nelte defendia o seu constituinte muito energicamente e diria até que com mais competência que a maioria dos seus colegas. Porém ele tinha visto logo que a versão de Keitel mais não serviria do que para demonstrar a sua hipocrisia aos olhos dos juízes. Quem poderia acreditar que este velho lobo do militarismo alemão era tão ingénuo que não soubesse ao certo o que era a agressão?

Infelizmente Keitel não compreendeu esse alerta e respondeu de uma maneira que nitidamente irritou o seu defensor:

— Creio, senhor advogado, dizer a verdade ao declarar que no decurso da minha carreira militar sempre defendi concepções tradicionais que nada tinham a ver com esta questão. Evidentemente que cada um tem o seu ponto de vista pessoal e como oficiais, nós, a bem dizer, renunciámos à nossa vida pessoal no exercício do ofício militar.

Keitel não tardou a aperceber-se que a sua «ideia» não surtira qualquer efeito sobre os juízes. Estes ficaram convencidos de que, por mais «soldado e oficial» que ele fosse, sabia muito bem o que é a sua vítima. Ao compreender isso, Keitel nada de melhor encontrou do que recorrer a um vulgar plagiato. Os caducos argumentos de Goering e de Ribbentrop entraram na liça. O marechal-de-campo agarrou-se de repente ao tratado de Versalhes. Achou oportuno falar dele ao procurador soviético: não tinha o país deste último considerado o tratado de Versalhes injusto? Pois bem, Keitel fazia questão de informar o procurador soviético que a política externa alemã, erradamente apelidada de agressora, visava precisamente reparar a injustiça cometida em relação à Alemanha. Mas Rudenko desarmou-o com uma única pergunta:

— Réu, o senhor acaba de mencionar o tratado de Versalhes. Diga-me, será que Viena, Praga, Belgrado, a Crimeia pertenciam à Alemanha antes desse tratado?

Keitel esqueceu logo Versalhes. Mas Rudenko não se ficou por aí. Não era dos que largavam facilmente a presa.

O procurador soviético interroga Jodl. Apresenta um documento muito curioso que atestava que após a vitória sobre a União Soviética, da qual nem Keitel nem Jodl duvidavam, o Alto Comando alemão se propunha enviar um corpo expedicionário pela Transcaucásia em direcção ao Golfo Pérsico, ao Iraque e à Síria. Jodl abre os braços: vejamos,

«foi no primeiro optimismo das grandes vitórias que certos oficiais do Estado-Maior traçaram esses planos».

Quanto às decisões, essas eram tomadas por «pessoas de mais idade e mais calmas». Claro que o Ministério Público não irá levar a sério os exercícios teóricos desses novatos! As pessoas «de mais idade, mais calmas» como Keitel e Jodl não podiam conceber semelhantes aventuras.

Para grande desprazer desses cavalheiros, Rudenko resolveu demonstrar que os que se intitulavam de «pessoas de mais idade, mais calmas» eram precisamente os mais perigosos inimigos da paz. O Ministério Público revelou em primeiro lugar a actividade de Keitel como virtuoso das provocações militares.

No fundo foi na sequência de uma dessas provocações que ele se tornou chefe do OKW. É certo que a vítima não era um país estrangeiro, mais sim o superior de Keitel, o ministro da Guerra, Blomberg. Keitel, outrora desejoso de unir com ele laços de parentesco, tinha casado o seu filho com a filha do ministro. Mas os tempos mudam e os homens também. Keitel cobiçava o cargo ocupado pelo seu parente por aliança. Este, que tinha contribuído com o seu melhor para a subida de Keitel, nem sequer desconfiava que ele tinha complacentemente entregue a Goering as informações sobre Erika Gruhn, tão comprometedoras para o seu «querido patrão».

Pouco tempo depois da sua nomeação para o cargo de chefe do OKW, Keitel teve de novo ocasião de cair nas boas graças do Fuhrer. Dá-se conta que Hitler não quer vê-lo passar as noites traçando planos estratégicos. A cada um a sua tarefa. Keitel não é um estratego, é um hábil organizador do que hoje é tão desagradavelmente designado por «agressão».

É-lhe perguntado se ele alguma vez participou em negociações diplomáticas com homens de Estado estrangeiros. Responde com modéstia:

— Quando da visita de homens de Estado eu assistia às audiências.

Que género de audiências eram essas?

12 de Fevereiro de 1938. Obersalzberg. Hitler recebe o chanceler da Áustria Schuschnigg para lhe dar a assinar a condenação à morte do seu país. Hitler exige que ele dê aos nazis os principais cargos no governo austríaco, que deixe o terreno livre para a propaganda e o terror nazis. Schuschnigg vê que não haverá adiamentos. No entanto tenta resistir:

— Não posso assinar este acordo.

Hitler sobe de tom:

— Deve assiná-lo!

Schuschnigg recusa. Hitler está furioso:

— É só dar uma ordem para que a fronteira seja varrida numa única noite...

Pronuncia estas palavras e levanta-se, encaminha-se para a porta em grandes passadas e abre-a.

Keitel!

O chefe do OKW aparece, sem fôlego, na companhia dos generais Reichenau e Sperrle.

Por que teria Hitler necessidade deste golpe de teatro? Quando perguntaram isso a Keitel no processo, ele pretende não ter tido a mínima ideia do que o Fuhrer lhe queria. Mas algumas perguntas mais e a leitura de certos testemunhos fazem o marechal-de-campo dar a mão à palmatória.

— No decorrer desse dia compreendi que a presença de três representantes da Wehrmacht significava, em certo sentido, uma demonstração militar.

Keitel confessa que a sua entrada no gabinete de Hitler teve um «efeito aniquilador» em Schuschnigg, que assinou logo o «acordo».

Mas não se tratava ainda da Anschluss. Eram necessárias operações destinadas a quebrar definitivamente o governo austríaco e a levá-lo a aceitar a anexação. É aí que Keitel entra em actividade. Por ordem sua é posta a correr o boato de que o comando alemão teria suprimido as licenças nas unidades do 7º exército e teria concentrado material ferroviário circulante na fronteira germano-austríaca. Boatos que são espalhados através da Áustria pela rede de espionagem e pelos alfandegários.

A 12 de Março de 1938 a Áustria capitula.

Seguem-se os acontecimentos da Checoslováquia. O Estado-Maior elaborou o «Plano Grun». Mas Hitler, encorajado pelos muniquenses, decide apossar-se do país sem luta. São metidos ombros à tarefa. O governo checo sofre a mesma sorte que o da Áustria. Em Março de 1939 Hitler convoca o presidente Hacha a Berlim, é-lhe preparada uma recepção «apropriada». O protocolo é elaborado com grande pormenor. O chefe do OKW, que não tem uma ideia bastante nítida do derrotismo de Hacha, certifica ao Fuhrer que se a ameaça de invasão foi suficiente para intimidar Schuschnigg, para Hacha é necessária uma demonstração espectacular. É encarada a conquista de duas cidades checas pelas tropas alemãs.

A 14 de Março de 1939 Hacha vai a Berlim. Nesse mesmo dia Keitel dá ordem para serem tomadas Moravska Ostrava e Vitkovice.

— Sim? E precisamente na altura em que o presidente Hacha estava a caminho de Berlim para negociar com Hitler? — pergunta Rudenko.

Keitel vê-se obrigado a concordar.

— Mas isso é uma ignomínia! — salienta o procurador-geral soviético.

Keitel fica calado, de ar sombrio.

É-lhe recordado um outro episódio relativo à Checoslováquia. É já do conhecimento do leitor que os nazis, para motivarem a invasão, tinham resolvido assassinar o seu próprio embaixador em Praga. Keitel, interrogado a este propósito, não contesta mas finge estar mal informado.

— Foi dito que «pode acontecer que o encarregado de negócios seja assassinado»...Hitler, creio, disse: «Contudo a guerra de 1914 foi causada por um assassinato em Sarajevo. Incidentes destes podem acontecer...»

Que candura! Keitel, que puxava todos os cordelinhos dos preparativos da agressão contra a Checoslováquia, não consegue adivinhar de que assassinato se tratava.

No Verão de 1939, quando a Áustria e a Checoslováquia já não existiam como Estados independentes, o Estado-Maior alemão elaborou o «Plano Weiss»: a invasão da Polónia. Keitel aprimora-se em assegurar a execução. Uma nova provocação se prepara. O chefe do OKW colabora na encenação de um odioso simulacro: o «ataque» à estação de rádio Gleiwitz por SD e alguns delinquentes de direito comum de campos de concentração alemães, disfarçados com uniformes polacos. Aconteceu isto a 31 de Agosto de 1939. E no 1º de Setembro as tropas alemãs invadem a Polónia. No próprio dia a imprensa alemã publica uma comunicação sensacionalista:

«Gabinete de informações alemão. Breslau, 31 de Agosto. A noite passada, por volta das oito horas, os polacos atacaram e tomaram a estação de rádio Gleiwitz. Tendo penetrado à força no interior do edifício, conseguiram difundir em polaco e parcialmente em alemão um apelo à população. A polícia viu-se obrigada a recorrer às armas. Há mortos entre os assaltantes».

A sequência disto foi programada como música em pauta. Os nazis gritaram aos quatro ventos que os polacos, não contentes com terem atacado a estação, tinham passado a fronteira alemã em vários pontos, obrigado a Wehrmacht a tomar contra-medidas.

E agora em Nuremberga Keitel é interrogado sobre a provocação de Gleiwitz. Faz a fita da ignorância. É então chamado à barra o general Lahousen, chefe adjunto do serviço de informações do OKW.

— O assunto sobre o qual estou agora a depor — diz ele — é uma das mais misteriosas acções que pode haver. Era em meados de Agosto. A primeira secção da Abwehr, bem como a minha, a II secção, receberam a missão de fornecer uniformes e equipamentos polacos, bilhetes de identidade, etc., para a «operação Himmler». Canaris informou-nos que pessoas dos campos de concentração tinham sido disfarçadas com esses uniformes...

Pouco a pouco se foi chegando ao ponto de Keitel, que juntamente com Hitler tinha aprovado o «Plano Weiss» e sem a ordem do qual nem um único soldado podia marchar sobre a Polónia, já não negar ter dado o seu contributo à provocação de Gleiwitz.

— O almirante Canaris disse-me nesse dia que devia arranjar alguns uniformes polacos... Ambos ficámos com a convicção de que se tratava de uma operação secreta.

Tirar a Sorte

A cada nova provocação Keitel é condecorado e sobe do posto. Esmagamento da Noruega, da Bélgica, da Holanda, da França... Keitel é promovido a marechal-de-campo.

1941. A Alemanha hitleriana domina quase toda a Europa. As condecorações que constelam o peito de Keitel vão-se multiplicando. As «doações» que recebe do Fuhrer vão aumentando. O fidalgote de província arredonda o seu património: recebe de presente uma vasta propriedade.

Keitel não está farto da glória. Os lauréis também, de modo nenhum, lhe, pesam. Mas por mais limitado que seja em matéria política e estratégica, começa a compreender que, prosseguindo a expansão indefinidamente, se corre o risco de ter surpresas que porão em causa as conquistas da Alemanha e as suas próprias (o que não deixa de ser menos importante!). Apesar do espírito aventureirista que caracteriza os militaristas alemães, Keitel preferiria consolidar as suas posições ou, pelo menos, não se lançar em nada que pudesse acarretar a sua perda. Mas, como de propósito, no Verão de 1940 Hitler anuncia-lhe a sua intenção de atacar a URSS e ordena-lhe que prepare uma «nova operação».

No processo de Nuremberga Keitel declarou:

— Quando me dei conta de que a situação se tinha tornado grave, fiquei muito estupefacto e achei isso muito lamentável. Procurei seriamente os argumentos militares que poderiam ser usados para influenciar Hitler. Nessa época, como sucintamente já aqui o expôs o ministro dos Negócios Estrangeiros, escrevi um memorando que dava conta da minha opinião, independentemente dos peritos do Estado-Maior de operações e do Estado-Maior-General da Wehrmacht...

Facto curioso é o de Keitel sustentar que o seu memorando continha uma evocação do acordo germano-soviético de não-agressão. Este virtuoso das monstruosas provocações, este mestre das conspirações criminosas contra os países vizinhos (igualmente ligados à Alemanha por pactos de não agressão), tinha-se subitamente posto a brandir o ramo de oliveira.

Sabe-se que a guerra contra a URSS era a pedra angular da política externa da Alemanha hitleriana. Mas mal Hitler a pôs na ordem do dia já Keitel se sentia desamparado. Nos meses que antecederam o ataque teve encontros com outros oficiais superiores entre os quais alguns, pelos vistos, que não estavam encantados com o projecto.

Uma guerra fácil de desencadear, mas da qual haveria todas as dificuldades do mundo para dela sair. Alguns diplomatas também se opunham, como o embaixador alemão em Moscovo, Schulenburg, e o adido militar na URSS, Kestring. Esses estavam bem colocados para saberem com o que tinham de contar.

Jackson procurador-geral do EUA
R. Jackson, procurador-geral dos EUA
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Keitel, apesar de não dever muito à inteligência, não cai na palermice de afirmar que a Alemanha estava mal preparada na Segunda Guerra Mundial. Ele viu outros réus e suas testemunhas esforçarem-se debalde por provarem que a Alemanha tinha perdido a guerra porque nunca tinha pensado na agressão. Um «brilhante exemplo» dessas tentativas era-lhe dado pelo interrogatório do marechal-de-campo Milch.

Jakson. E agora o senhor vem aqui para testemunhar, se bem compreendo as suas declarações, que o regime de que fazia parte arrastou a Alemanha para vima guerra para a qual ela não estava absolutamente nada preparada. Compreendi-o bem?

Milch. Não me lembro de ter ouvido declarar isso publicamente; mas estou tentado a acreditar que, mesmo para os réus aqui presentes, a guerra foi uma grande surpresa.

Jackson. O senhor estaria tentado a acreditar?

Milch. Acredito mesmo.

Jackson. O senhor acredita mesmo. Quanto tempo foi preciso para que as forças alemãs conquistassem a Polónia?

Milch. Para conquistar a Polónia? Dezoito dias, acho.

Jackson. Dezoito dias. E quanto tempo foi preciso para correr com a Inglaterra do continente, até ao desastre de Dunkerque?

Milch. Seis semanas, creio.

Jackson. E quanto tempo foi preciso para invadir a Holanda e a Bélgica?

Milch. Alguns dias.

Jackson. Quanto tempo foi preciso para invadir a França e tomar Paris?

Milch. Ao todo, dois meses.

Jackson. Quanto tempo foi preciso para invadir a Dinamarca e tomar conta da Noruega?

Milch. Muito pouco tempo também. Quanto à Dinamarca foi muito rápido, porque ela cedeu imediatamente; quanto à Noruega, algumas semanas.

Jackson. E o senhor quer convencer o Tribunal de que a Alemanha não estava preparada para a guerra e que os oficiais não tinham conhecimento de preparativos deste género? É esse o seu testemunho de oficial?

Milch. Peço desculpa, não compreendi bem.

Sim, as guerras de que falava Milch eram magníficas do ponto de vista de Keitel e seus pares, podiam desencadear-se com a certeza absoluta da vitória. Mas a guerra contra o colosso do Leste era outra coisa. Keitel e os outros hitlerianos tinham consciência disso, por mais pronunciado que fosse o seu gosto pela aventura.

Ao procurador que lhe perguntara o que era feito do memorando dirigido a Hitler, Keitel respondeu:

— Entreguei-o a Hitler algum tempo depois, no Berghof, a seguir a uma exposição sobre a situação, quando estávamos a sós. Ele disse-me então, creio bem, que o ia estudar. Pegou nele e não me deu tempo a que lhe desse explicações.

Keitel não adianta mais no processo. Uma maneira de dar a entender que a sua discussão com Hitler se ficou por ali.

Mas estava nitidamente reticente. Soube-se muito mais tarde o que é que ele tinha silenciado. Quando, terminado o processo, os juízes se retiraram para deliberar sobre o veredicto de sentença, o Dr. Nelte foi visitar o seu cliente. Estava-se a 25 de Setembro de 1946, alguns dias antes de ser lida a sentença. O advogado pediu a Keitel para que escrevesse as suas memórias de guerra. As suas relações não se limitavam ao domínio judicial. Conheciam-se desde há muito, eram mesmo parentes afastados. Keitel concordou de boa vontade. Escreveu as suas recordações na cela e confiou-as a Nelte.

É aí que vamos encontrar outros pormenores respeitantes ao memorando de Berghof. Keitel confessa ter esperando em vão pela resposta, durante vários dias. Depois lembrou a coisa a Hitler e, em Agosto de 1940, tiveram uma entrevista. Keitel qualifica-a de «edificante». Diz-lhe Hitler:

«A Rússia está apenas na fase da criação da sua indústria de guerra, nesse aspecto está longe de estar preparada».

Era uma maneira de dizer que a Rússia era, em suma, um Estado fraco e que se podia estar seguro do êxito da agressão.

Keitel escutou-o com uma obsequiosa atenção, mas não pôde mudar de opinião. Enquanto o seu Fuhrer falava, rememorava ele o ano de 1931. Tinha então visitado a URSS e, aproveitando as boas relações entre este país e a República de Weimar, tinha atentamente observado a sua vida. Na entrevista com Hitler, nove anos depois, voltou a recordar mesmo sem querer as suas impressões de então; espaços infinitos, riquezas naturais abundantes e variadas que garantiam o desenvolvimento de uma economia independente. Fé inquebrantável do povo na reconstrução e no plano quinquenal... Cadência muito rápida dos trabalhos... O ocidente da Rússia faz lembrar um estaleiro gigante... Cada empresa tem o seu plano quinquenal que tenta levar a bom termo em emulação com as outras. O dinheiro não desempenha aqui qualquer papel... O Exército Vermelho beneficia da solicitude do Partido Comunista.

Quando mais Hitler insiste na fraqueza interna da Rússia, mais Keitel revê o que o impressionou nesse misterioso país...

A entrevista com Hitler prolongou-se e foi convincente para Keitel. E se pensarmos que as dúvidas do marechal-de-campo se reportavam exclusivamente à época da agressão contra a URSS e não à necessidade dessa agressão em geral, chegaremos à conclusão de que os interlocutores não tiveram dificuldade em entender-se.

Hitler estava mais do que convencido de vencer a União Soviética. Quanto ao chefe do OKW, esse tinha outras dúvidas...relativas às suas dúvidas passadas. Em caso de vitória, se Hitler, Jodl e os jovens generais que estavam de acordo com eles viessem a ter razão, que seria feito dele? Ei-lo pois preparando com zelo a agressão contra a URSS.

No banco dos réus, Keitel e Jodl não são já da mesma opinião a propósito da guerra no Leste. O chefe do Gabinete de Operações afirma que se tratava de uma guerra preventiva, e o chefe do OKW está persuadido de que ninguém acreditará nessa versão. Não se compreende então por que é que ele se tinha, oposto no início, por que é que Goering tinha proposto invadir a URSS depois do termo da guerra com a Inglaterra e por que é que Raeder tinha apoiado este último.

Jodl fala de uma concentração perigosa das tropas soviéticas na fronteira alemã, presumível testemunha das intenções agressoras do Exército Vermelho. Keitel, rendendo-se à evidência durante o interrogatório, é obrigado a desmenti-lo.

Sob Cobertura do «Seelowe»

O princípio fundamental dos preparativos de guerra contra a URSS era a instantaneidade do ataque. Nesse tempo os nazis não escondiam o seu projecto de desembarcarem nas Ilhas Britânicas. Efectivamente, tinham elaborado nesse sentido o «Plano Seelowe». Mas, a partir de 17 de Setembro de 1940, Hitler, já decidido a atacar a URSS, fez adiar para as calendas gregas o dia «D» da invasão da Inglaterra. A 12 de Outubro ordenou a cessação completa dos preparativos dessa campanha.

Em Nuremberga, Keitel e Jodl reconheceram naturalmente que a partir de Setembro de 1940 o «Plano Seelowe» serviu apenas de acessório a uma provocação grandiosa.

Na atmosfera tensa dos meses que antecederam a invasão da URSS, Keitel fez com que se falasse cada vez mais do «Plano Seelowe», mas confiou essa tarefa a um outro serviço do OKW e não ao Gabinete de Operações, isto para enganar a futura vítima da agressão.

A 15 de Fevereiro de 1941 apareceu assinada por ele uma directriz em que era dito:

«A desinformação visa dissimular os preparativos da operação «Barbarossa».

Esta finalidade essencial deve estar na base de todas as medidas tomadas no sentido de lograr o inimigo».

A propaganda contra a Inglaterra foi ampliada o mais possível. Não há discurso de Hitler, Rosenberg, Goering, Ribbentrop que não estigmatize a «plutocracia inglesa» e não prometa acabar com ela o mais rapidamente possível. O «Plano Barbarossa» estava aprovado, as forças alemãs amontoavam-se a leste, Hitler conhecia o grau de preparação das tropas escolhidas para atacar a URSS, mas Goebbels e Fritzsche continuavam a anunciar alto e bom som a próxima invasão da Inglaterra. Mas, quanto mais eles berravam, menos Goering bombardeava as Ilhas Britânicas. Os raids por cima da Inglaterra diminuíam a um ponto tal que o observador do Daily Telegraph and Morning Post chegou a interpretar essa acalmia, em fins de Janeiro de 1941, como sendo o presságio de uma grande ofensiva.

«A Alemanha concentra as suas reservas de aviadores experientes».

Nova ofensiva? Sim. Mas contra quem? Contra a Inglaterra, bem entendido, afirma Berlim por tudo e por nada.

Em Fevereiro de 1941 o boletim oficial alemão Dienst aus Deutschland publica:

«Pensa-se em Berlim que as possibilidades de invasão são tão variadas que os ingleses terão dificuldades em distrair a atenção da Alemanha desta operação por meio de falsas manobras. Nos meios alemães é assinalado o erro de Ludendorff que, no momento dos decisivos combates a ocidente, teve falta de homens e de material para o ataque principal. Cometeu o erro de dispersar as forças para sectores afastados. A Alemanha, segundo declaram os meios militares, não admitirá que semelhante erro se repita».

E Hitler, usando da palavra em Munique pouco tempo depois, por ocasião do aniversário do partido nazi, teve o cuidado de adensar ainda mais o nevoeiro. Carregou de imprecações a Inglaterra e ameaçou invadi-la em breve:

— Em Março-Abril os ingleses deverão preparar-se para uma coisa muito diferente. Irão então saber se estivemos a dormir durante o Inverno e quem é que aproveitou melhor o tempo.

No entanto cada vez eram enviadas mais tropas para o Leste e a coisa era difícil de ser escondida. Keitel emitiu uma ordem dizendo que

«o desdobramento estratégico das forças para a operação «Barbarossa» devia sair à luz do dia como sendo uma diversão sem precedentes na História destinada a camuflar os preparativos para a invasão da Inglaterra...»

«É necessário — salientava Keitel — manter no engano, o mais tempo possível, mesmo as tropas que terão de marchar para Leste».

Por ordem de Keitel e de Jodl, falava-se um corpo expedicionário que só provisoriamente se encontrava no Leste e se preparava para desembarcar em Inglaterra. Keitel e Jodl tinham mandado incluir nas tropas do Leste intérpretes...de língua inglesa.

Chega a Primavera de 1941. Aproxima-se o dia «D» do ataque à URSS. Mas os desinformadores redobram de zelo. Keitel manda publicar e difundir entre as tropas dados topográficos sobre a Inglaterra. É organizado de urgência o «isolamento» de certas regiões do litoral da Mancha, do Pas-de-Calais e da Noruega, onde teriam sido «instaladas» baterias de foguetes alemães.

O segredo da próxima agressão contra a URSS era cuidadosamente guardado.

Lembro-me a este propósito de um episódio muito curioso. Um alto funcionário do Ministério de Propaganda, Schirmeister, interrogado como testemunha no processo de Nuremberga, contou como Goebbels ajudava Keitel e Jodl a desinformar a opinião pública. Na Primavera de 1941 o ministro hitleriano da Propaganda reuniu os seus subordinados e fez-lhes o seguinte discurso:

— Meus senhores, sei que muitos de vós pensais que vamos atacar a Rússia; devo dizer-vos hoje que atacamos a Inglaterra. Estamos a um passo da invasão. Encaminhem os vossos trabalhos em conformidade com isso. O senhor, doutor Glasmeier, faça uma fanfarra nova contra a Inglaterra.

Por seu turno, Keitel organizou a 2 de Março de 1941 uma grande conferência de imprensa na qual Bate, um representante do OKW, usou da palavra... A exposição detalhada da sua declaração na imprensa soviética revela que ele se esforçava por demonstrar que o comando alemão não cometeria nunca mais o erro de combater em duas frentes, como o tinha feito Guilherme II. Bate apelidava semelhante guerra de «trágica», «oprimente». Evocou a batalha do Marne, em que a Alemanha tinha todas as possibilidades de vencer, não fora a ofensiva dos russos na Prússia oriental. A guerra em duas frentes, dizia ele, foi cada vez mais privando o comando alemão da sua liberdade de acção.

Bate atinge os cumes da ênfase ao proclamar que

«na história militar os russos são nitidamente subvalorizados. Nunca foi reconhecido até ao fim o que o soldado russo, o imenso exército russo fizeram em 1916 para os ingleses e os franceses... O avanço de Brussilov fez pesar sobre nós, no Leste, uma ameaça mortal».

A 6 de Junho de 1941, o Estado-Maior-General alemão procedeu a uma das ultimações finais da futura campanha. Keitel apresentou o plano cronológico das operações ofensivas contra a URSS. Vivíamos os últimos dias de paz. A 14 de Junho de 1941, na Chancelaria de Berlim, foi reunido um conselho onde foram examinados os últimos preparativos de agressão de acordo com o «Plano Barbarossa».

A 22 de Junho as tropas alemãs passam à ofensiva a todo o comprimento da frente. Keitel tem apenas tempo de deslocar as bandeiro- las no mapa. Está já a criar uma unidade de sapadores encarregados de destruir o Kremlin. Moscovo vai cair de um momento para o outro, pensa ele.

Na altura o chefe do OKW alardeava mais que nunca o seu devotamente ao Fuhrer. Parecia querer fazer perdoar as suas dúvidas de antes. Uma brilhante ocasião para fazer valer aos olhos de Hitler a certeza que ele tem da vitória sobre a Rússia depara-se-lhe a 16 de Julho. Nesse dia a camarilha hitleriana tinha reunido para estudar a questão dos territórios soviéticos a anexar. Keitel tomou parte activa nos debates. Mas agora, que está no banco dos réus de Nuremberga, todo se torce a pretender ter completamente esquecido a reunião de Julho. Rudenko refresca-lhe a memória:

— Mas o senhor lembra-se que já nessa altura, a 16 de Julho, foi posta a questão da anexação à Alemanha da Crimeia, dos Estados Bálticos, da região do Volga, da Ucrânia, da Bielorrússia e de outros territórios.

Keitel baixa os olhos. Não se lembra muito bem dessa conferência. Não assistiu a ela desde o princípio, tinha sido retido noutro lado e quando chegou já se falava de outra coisa.

— De questões de pessoal, de diversas personalidades que deviam ser afectadas a determinados cargos.

O réu não vê que se está a desmascarar. Não só estava ao corrente das projectadas anexações como sabia a partir de 16 de Julho de 1941 que se pensava em designar os governadores desses territórios.

As obras-primas de Himmler e as mentiras de Jodl

Keitel, tal como Jodl, compreendia perfeitamente a gravidade da inculpação que sobre ele pendia de ter preparado e feito guerras de agressão. Mas cairíamos em erro se pensássemos que era isso o que eles mais temiam. Diga-se o que se disser, o desencadeamento de uma guerra é um processo complexo no qual participa todo o aparelho de Estado. No fundo nem um único dos réus se podia eximir a responder por isso. E depois os seus advogados tinham tido a astúcia de contestar o carácter criminoso da agressão em si mesma.

Havia uma outra acusação que inquietava muito mais Keitel e Jodl. Uma acusação que não podia dizer-se que fosse contestável. Uma acusação que não dava azo a ser escamoteada.

Trata-se de crimes de guerra e de lesa-humanidade. Aí tudo é muito mais claro e mais simples. Neste ponto não existem decisões da Sociedade das Nações a rejeitar com o pretexto de que nunca foram ratificadas. Não havia também hipótese de referência ao pacto Briand-Kellog, que uns chamam «visão da paz universal» e outros baptizaram com o nome idílico de «beijo internacional». Existem, em contrapartida, convenções internacionais análogas aos códigos penais, que estabelecem quais são, de entre os actos de um Estado em guerra, do seu governo, aqueles que violam o Direito Internacional, isto é, que são crimes internacionais.

Mal Rudenko aflorou os crimes de guerra, Keitel sentiu-se como se estivesse a bordo de frágil esquife num oceano em fúria.

Saberá ele o que é o Direito Internacional, as convenções de Haia e de Genebra? Com certeza. E não o esconde ao Tribunal, não mais que os outros réus, de resto. Tenta mesmo defender que hoje em dia todo o conflito armado é acompanhado de violações das leis e dos usos e costumes da guerra. Os exércitos modernos compõem-se de milhões de homens: vá-se lá tentar tê-los a todos debaixo de olhos para impedir que um ou outro mate um prisioneiro num momento de excitação ou saqueie um civil por pura concupiscência. É também notório que as condições de combate mudaram totalmente; e essas novas condições são, ao que parece, um obstáculo à observância das leis. Os acordos proíbem matar ou ferir civis. Como evitar isso depois da invenção dos bombardeiros e da artilharia de longo alcance? A aviação atinge, para além das frentes dos exércitos, as fábricas e oficinas que por vezes se situam em cidades de forte densidade populacional. Será possível poupar os civis nestas condições? E quem disse que para um Estado comprometido numa guerra total o soldado é mais perigoso do que, digamos, o metalúrgico que faz a blindagem dos tanques?

Era com grande carga desta bagagem «teórica» que os chefes da Wehrmacht culpados dos piores crimes tentavam inocentar-se. Invocavam igualmente o facto de as leis e os usos terem sido infringidos em guerras anteriores à agressão hitleriana.

Mas Keitel podia ter-se gabado de o OKW por ele chefiado ter introduzido na violação das leis e usos elementos absolutamente novos. Deu aos crimes um carácter oficial, sistemático. Keitel, como já vimos, não se imiscuía nunca no plano das operações: esse trabalho era o de Jodl, de Warlimont e de outros. A sua tarefa consistia antes de mais na elaboração de métodos de guerra que melhor servissem as finalidades políticas e militares da agressão. E neste campo ele foi inigualável.

Aquele que se tivesse posto ao serviço de Hitler não podia afastar-se das suas ideias e princípios fundamentais. Keitel sabia bem que Hitler pretendia o desenvolvimento da «técnica de extermínio dos homens». Pertencia também a Hitler a autoria da abominável palavra «despovoamento». Sem ser um teórico militar ou político, Keitel estava no entanto em condições de saber que o sistema «despovoamento» relevava da doutrina racial do nazismo. Por mais de uma vez assistiu a conciliábulos em que Hitler expunha o seu programa: destruir totalmente certos povos, como os polacos, os checos, os judeus, e enfraquecer biologicamente os outros. O chefe do OKW conhecia bem o «Plano Ost» que implicava a supressão de trinta milhões de eslavos. Hitler não dissimulava a intenção de colonizar vários países da Europa, incluindo a URSS.

Tendo compreendido isto, Keitel encarrega-se de emitir uma série de ordens de uma crueldade jamais vista na história das guerras. Especializa-se na planificação dos crimes de guerra.

A partir de Março de 1941 o OKW ordenou o massacre dos prisioneiros soviéticos. A 12 de Maio esse monstruoso documento foi completado com a ordem de executar sem excepção todos os comissários do Exército Vermelho.

Até o simples soldado alemão podia ter medo de um dia ser obrigado a responder por crimes que lhe tivessem sido ordenados. Keitel dava-se perfeitamente conta disso. A 13 de Maio de 1941 toma a previdência de assinar uma ordem que proibia a punição dos militares da Wehrmacht que tivessem infringido, fosse de que maneira fosse, as leis e usos da guerra.

Como justificar estas directrizes? Nem o retorcido espírito de Jodl nem, ainda menos, o espírito limitado de Keitel encontraram resposta para esta pergunta.

Na sala do processo de Nuremberga é projectado um filme sobre as atrocidades nazis.

Não e não, a Wehrmacht não sabia de nada! Nunca Keitel e Jodl tinham chafurdado nestes crimes...

Não negavam porém a sua autenticidade. Auschwitz e Maidanek, onde pereceram milhões de seres humanos, tinham com efeito podido existir. Mas, acreditem os senhores doutores juízes, os militares não podiam ter tido a mínima suspeita disso.

Jodl declarou ao Tribunal:

— O segredo guardado em volta da liquidação dos judeus e do que se passava nos campos de concentração era a obra-prima do génio. Era igualmente uma obra-prima do embuste de Himmler que nos mostrava fotografias tiradas por soldados e nos contava histórias sobre os jardins de Dachau e os ghettos de Varsóvia e de Theresienstadt, dando-nos a impressão de que se tratava de estabelecimentos de interesse altamente humanitário...

O chefe do Gabinete das Operações, qualquer que tenha sido o seu valor moral, era, repito-o, com certeza inteligente. Por isso muito mais me espantaram ainda as suas declarações. Como podia ele dizer semelhantes coisas perante o Tribunal Internacional, quando o Ministério Público estava na posse de inúmeras provas escritas demonstrando que Himmler não tinha qualquer preocupação de criar obras-primas de embuste destinadas a… Keitel e Jodl!

Na noite a seguir à mostra do filme sobre as atrocidades, o doutor Gilbert foi visitar Keitel na altura em que ele jantava na sua cela.

— É terrível, doutor — disse ele. — Quando vejo coisas destas tenho vergonha de ser alemão!

E pôs-se calorosamente a explicar que o Alto Comando não tinha nada a ver com isso. Claro, o filme é verídico. Em geral, tudo o que se diz das SS e da Gestapo é verdade. Trata-se de instituições infernais. Se querem saber, Keitel nada tem a censurar ao juiz de instrução, nem ao Ministério Público, nem aos juízes. Desde há muito que estava desabituado a ver um tribunal tão correcto, tão imparcial... Contudo foi cometida uma grave injustiça a seu respeito ao colocarem-no ao lado de Kaltenbrunner, esse demónio, essa personificação de Auschwitz e de Dachau! Keitel certifica que, ao desviar-se de Kaltenbrunner e ao recusar apertar-lhe a mão quando este fez a sua primeira aparição no banco dos réus, estava a ser sincero. Era a reacção natural já de um homem honesto que não quer manchar a sua reputação pelo contacto com um carrasco...

Os chefes da Wehrmacht representavam esta comédia o melhor que podiam. Mas isso não durou muito. O Ministério Público confundiu-os sem grande dificuldade.

O «Plano Ost» previa a supressão de trinta milhões de eslavos, sem falar da exterminação total do povo judeu. Quem devia realizar esse programa de morte? A questão foi debatida no decorrer de conversações entre o OKW e os Serviços Centrais de Segurança, as duas instituições cujos chefes se acharam precisamente lado a lado no banco dos réus. O OKW tinha delegado para as negociações o general Wagner; os RSHA (Serviços Centrais de Segurança do Reich), o seu chefe Heydrich, ao qual sucedeu Kaltenbrunner.

Keitel e Jodl não fizeram flores quando o Tribunal Internacional se ocupou de tirar a limpo os pormenores do acordo concluído quinze dias antes da agressão contra a URSS. Segundo esse acordo, o comando militar, informado da inclusão dos Einsatzgruppen e Einsatzkommanden nos exércitos e nos corpos de exército, comprometia-se a secundá-los no extermínio maciço dos soviéticos. Então estava fora de dúvida que Keitel tivesse medo de «manchar a sua reputação» ao lidar com os carrascos.

Outro aborrecimento: no Tribunal é interrogado um tal Ohlendorf. Este general da SS, como já vimos, comandava o Einsatzgruppen «D» que massacrou 90 000 cidadãos soviéticos no sul da Ucrânia. Declara que os chefes da Wehrmacht colaboraram lealmente com ele. Foi graças à sua actividade comum que ele se ligou com o marechal-de-campo von Manstein, que estava à frente do XI exército. Ohlendorf especifica que tem grande estima pelo marechal-de-campo e que tinha de boa vontade acedido ao seu pedido de não efectuar as execuções em massa a menos de 200 quilómetros do seu Q.G. Ohlendorf tinha em conta estes caprichos de Manstein que, por seu lado, aceitava dos Einsatzgruppen centenas de relógios para os distribuir pelos seus oficiais. Manstein punha os seus soldados à disposição do massacrador que, em troca, lhe fornecia regularmente relógios e outros objectos de valor sacados às vítimas. O ex-marechal-de-campo acabou, em suma, por confessá-lo no seu depoimento. Os dois rapinantes eram sócios.

Keitel bem podia falar quanto quisesse desses «porcos de SS». Jodl podia insistir nessas «obras-primas de embuste» de Himmler. Tanto um como outro tinham sido apanhados com a boca na botija. E este primeiro golpe assestado aos chefes militares do nazismo não passou de um prelúdio.

É apresentado a Keitel um decreto com o sinistro título de «Noite e Nevoeiro», que custou a vida a centenas de milhares de pessoas: para intimidar as populações dos territórios ocupados, eram secretamente deportados para a Alemanha homens e mulheres que aí eram submetidos a um tratamento desumano antes de serem internados nos campos da morte. Perguntem a Keitel: qual a relação entre este bárbaro documento e a doutrina da guerra total em que são inevitáveis as hecatombes por causa do material aperfeiçoado? Ele não saberá responder-vos. Por que assinou então este homem «de velhas tradições cavaleirescas» esta feroz sentença contra centenas de milhares de inocentes?

Keitel reconhece ter compreendido a natureza criminosa do decreto. Teria mesmo tentado impedir que essa ordem viesse a lume, ou pelo menos atenuá-la.

— Mas em vão — acrescenta ele. — Ameaçavam-me...

Bem, Bem! Com que então Keitel agia sob ameaças! De que género de ameaças se tratava? A morte, o campo de concentração ou, pelo menos, a destituição? Nada disso.

— Ameaçavam-me de confiar a redacção desse decreto ao ministro da Justiça.

Terrível ameaça, na verdade! Keitel arriscava-se a perder a confiança do Fuhrer. E era tão simples manter essa confiança: bastava assinar o decreto «Noite e Nevoeiro». Foi o que ele fez sem grandes hesitações.

Centenas de milhares de mortos... Tanto pior! Em contrapartida, Keitel continuou de boas relações com o seu Fuhrer.

Era o que ele dizia a si mesmo nesse tempo. Mas como deve ter-se arrependido em Nuremberga!

Outubro de 1939. A canhonada da Wehrmacht acaba de chegar ao fim em território da Polónia mártir. Keitel conferencia com Hitler. Expõe-lhe as suas considerações sobre a política de ocupação na Polónia.

E de novo, mas que azar! o Tribunal Internacional está na posse de cópias estenografadas. Eis um extracto:

«É necessário evitar o despertar de uma intelectualidade polaca susceptível de dar origem a uma elite de chefes. O país deve ser mantido num plano de vida tão pouco elevado quanto possível. Não queremos lá recrutar senão mão-de-obra».

Keitel fala a Hitler em dizimar os intelectuais polacos, mandar fuzilar os seus melhores representantes. Querem privar o povo polaco das suas forças espirituais.

O réu não pode negar a autenticidade do estenograma, por maior que seja o seu desejo de sair desta desagradável situação. Atribui todas essas ideias apenas a Hitler e pretende que a Wehrmacht não sabia de nada. Mas logo a seguir tem de encaixar outro golpe: o representante da Acusação pergunta-lhe se durante esse período ele viu o almirante Canaris. Com certeza... O procurador diz então que tem a cópia estenografada das suas entrevistas. Parece que Canaris tinha informado o chefe do OKW das execuções em massa de polacos, da morte de grande número dos seus intelectuais. Fizera-o impassivelmente, sem qualquer remorso. Mas como era bastante inteligente e suficientemente esclarecido em matéria de Direito Internacional, o chefe dos serviços de informações alemão temia que «um belo dia o mundo torne a Wehrmacht responsável de todos os acontecimentos que se desenrolam a seus olhos».

Rudenko apresenta a Keitel a «Ordem sobre a jurisdição militar aplicável na zona «Barbarossa» e sobre as medidas especiais a ser tomadas pelas tropas». Esse documento, assinado pelo chefe do OKW seis semanas antes da invasão da URSS, prevê as piores sevícias a serem exercidas sobre os civis soviéticos. E eis um outro testemunho do cuidado que Keitel pôs na aplicação até ao fim do programa hitleriano. O procurador-geral soviético lê a ordem do OKW datada de 16 de Setembro de 1941 em que é dito abertamente que no Leste «uma vida humana vale menos que nada». Keitel, que tanto teria gostado de convencer o Tribunal de que a Wehrmacht estava fora de causa, exige nesse texto:

«Para compensar a vida de um só soldado alemão é preciso, em princípio, condenar à morte cinquenta a cem comunistas. Este método deve reforçar o efeito da medida de intimidação».

Teria Keitel esquecido ou completamente renegado a dita ordem? Mas não! Ele apenas contesta os números. Citemos uma passagem do estenograma do interrogatório:

«Keitel. Assinei essa ordem, mas os números que lá constam são resultado de modificações feitas pelo próprio Hitler.

Rudenko. Quais foram os números que o senhor propôs a Hitler?

Keitel. Primeiramente os números eram de 5 a 10.

Rudenko. Por outras palavras, as divergências de pontos de vista entre o senhor e Hitler diziam apenas respeito aos números e não ao espírito do documento?

Keitel. A ideia era que o único meio de intimidação consistia em exigir várias vítimas para compensar a vida de um só soldado alemão».

Era assim que, sob o peso de documentos irrefutáveis, a linha de defesa de Keitel se ia desmoronando e, com ela, a linha geral de todos os que tentavam ilibar o militarismo alemão atribuindo as atrocidades ao aperfeiçoamento do material de guerra.

O mesmo aconteceu com uma outra «linha de defesa». Até então tinha sido possível atirar com todas as culpas para cima das SS e da Gestapo, e sustentar que «a Wehrmacht não tinha nada a ver com isso». Mas quando os documentos demolidores para o OKW e para Keitel em pessoa se começaram a amontoar, como que jorrando de uma cornucópia, o ex-marechal-de-campo foi cada vez mais recorrendo à banal e primária justificação do homem às ordens que mais não teria feito do que obedecer ao seu chefe. Segundo ele, o princípio supremo da Alemanha nacional-socialista foi o da obediência absoluta. Isto não é novo. Emmanuel Kant tinha já estabelecido o princípio do dever supremo. Keitel pretende que a cega obediência se tinha tornado uma característica nacional dos alemães. Então o mundo não tem sempre visto que os alemães agem sem se preocuparem com os fins a atingir?

Keitel gostaria de convencer o Tribunal de que tinha, como os outros alemães, servido Hitler, seu suserano. Estava pronto a considerar má a causa que servira. Mas colocava-se na posição de servidor consciencioso que executava as ordens sem discutir, mesmo que não estivesse de acordo com elas. Uma ordem é uma ordem, é esse o código de honra de um militar de velha cepa. Que pena não se poder apelar para a arbitragem do filósofo de Koenigsberg!

— Mais não fiz do que pôr no papel um decreto do Fuhrer — disse ele respondendo à pergunta de Rudenko sobre a directriz do OKW que previa a supressão da Jugoslávia como Estado.

— Essa ordem foi-me dada por Hitler. Ele tinha emitido essa ordem e eu subscrevia-a — repete obstinadamente o ex-marechal-de-campo ao falar da ordem que autorizava os oficiais alemães a mandar fuzilar sem outras formalidades os cidadãos soviéticos «suspeitos».

— Transmiti simplesmente as ordens recebidas do Fuhrer — declara ainda, quando Rudenko o desmascara como cúmplice de Goering na publicação das directrizes sobre a pilhagem nas regiões ocupadas da URSS.

Será que ele nunca teve de tomar uma decisão por sua própria iniciativa, sem a sanção de Hitler? Keitel esfrega a testa. Está «honestamente» a fazer um esforço de memória, mas debalde, infelizmente!

O Ministério Público, uma vez mais, vai em seu auxílio. Primeiro é-lhe recordado que os sátrapas nazis, quando estavam embaraçados pelo problema da escolha das sevícias, lhe pediam sempre conselho a ele, Keitel. E ele dava-lhe as suas instruções. Foram numerosas, mas o cérebro deste discípulo de Kant é assim, esquece-se logo das suas decisões, mal seca a tinta no papel. Quando lhe leram algumas dessas suas decisões em Tribunal, acabou por se ir completamente abaixo. Tal como Goering, invocou a «excitação momentânea», o ambiente no qual essas ordens eram muitas vezes redigidas. Mas nem ele nem Goering puderam citar um único caso em que a «excitação momentânea» os levasse a fazer algo de bom.

As decisões saídas da pena de Keitel só podiam emanar de um homem seguro de estar a ser favorecido pela sorte. Se um dia elas viessem a entrar no conhecimento do público isso apenas poderia passar-se no museu da glória militar, que perpetuaria a excepcional energia deste artesão da vitória.

Azar! O destino pregou-lhe uma partida. Em vez do museu da glória militar, ele e as suas decisões ornaram o museu da eterna desonra.

...Na frente Leste a esquadrilha «Normandia-Niémen» luta contra o fascismo ao lado das tropas soviéticas. Os aviadores franceses combatem com valentia, sabendo que isso é uma maneira de reconquistar a independência e a liberdade do seu país. Keitel não pode «deitar a mão» a esses rapazes. Mas sabe que as suas famílias vivem em território ocupado e ordena inquéritos pormenorizados «junto das famílias dos franceses que combatem para os russos». Ele, que em Nuremberga falou «desses porcos sujos de SS», tinha prescrito ao comandante-em-chefe das tropas de ocupação em França que ajudasse as SS e a polícia a perseguir as famílias de antifascistas. O procurador inglês Sir Maxwell-Fyfe lê-lhe essa ordem e pergunta:

— Pode imaginar algo de pior que estas severas medidas contra uma mãe que ajudou o seu filho a ir combater com os aliados do seu país? Pode imaginar algo de mais desprezível?

Keitel faz um compasso de espera, depois responde:

— Posso imaginar uma tragédia maior, porque perdi os seus próprios filhos na guerra.

Maxwell-Fyfe reduz a nada essa tentativa de iludir a questão.

— Veja a diferença... Perder os filhos na guerra é uma terrível tragédia. Tomar medidas severas contra a mãe de um rapaz que quer ir combater com os aliados do seu país é um acto desprezível. No primeiro caso trata-se de uma tragédia, o segundo do cúmulo da brutalidade.

O procurador passa um outro documento a Keitel. Este olha para a assinatura. É de Terboven, governador alemão da Noruega.

Ter-lhe-ia Keitel escrito algo de interesse para o Tribunal de Nuremberga? Com certeza. Terboven informa Berlim que recebeu o telegrama de Keitel

«no qual pede a promulgação de um decreto que torna os membros do pessoal e, se for necessário, as suas famílias, colectivamente responsáveis pelos actos de sabotagem cometidos nas empresas».

Terboven sugere que o único castigo a infligir aos suspeitos e às suas famílias seja a pena de morte.

O procurador chama a atenção de Keitel para a sua decisão.

«Sim. É o melhor método. Keitel».

Terboven obteve do chefe do OKW o que queria: a autorização de fuzilar sem julgamento os patriotas que faziam a guerrilha, e mesmo os seus familiares.

Face a estas irrefutáveis provas, Keitel confessa:

— Fiz esta anotação e reconheço-a.

A palavra «resolução» não é do seu gosto. Prefere «anotação»: é mais anódina...

Keitel sabia muito bem que o Direito Internacional proíbe maltratar e matar os prisioneiros de guerra. Mas a 8 de Setembro de 1941 assina uma nova ordem sobre a exterminação dos prisioneiros soviéticos. O próprio almirante Canaris, chefe do serviço de informações, protesta contra essas medidas, com medo de que o inimigo faça a mesma coisa aos prisioneiros de guerra alemães. Assinala a Keitel que desde o século XVIII os princípios gerais do Direito Internacional quanto ao tratamento dos prisioneiros

«se foram a pouco e pouco desenvolvendo tendo em consideração o facto de a condição dos prisioneiros de guerra não resultar nem de uma vingança nem de uma punição, mas constituir apenas uma detenção de segurança cuja finalidade é a de impedi-los de continuarem a tomar parte na guerra. Estes princípios desenvolveram-se de acordo com o ponto de vista adoptado por todos os exércitos, segundo o qual é contrário à tradição militar matar ou ferir pessoas sem defesa... Os processos em questão sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra soviéticos decorrem de um ponto de vista diametralmente oposto».

Keitel apôs neste documento a seguinte «anotação»:

«Estas objecções são resultado das concepções de guerra cavaleiresca. Trata-se aqui da destruição da ideologia. Por isso aprovo estas medidas e apoio-as com a minha autoridade».

Depois de ter apresentado estes textos, Rudenko dirige-se a Keitel:

— Pergunto-lhe, réu Keitel, ao senhor que era marechal-de-campo e que, perante este Tribunal, por reiteradas vezes se tem intitulado soldado, pergunto-lhe se confirmou e sancionou através da sua sangrenta resolução de Setembro de 1941 o assassínio de soldados desarmados que capturou? Isso é verdade?

Keitel ficou por muito tempo silencioso. Já nem sequer pode invocar o «dever supremo», a ordem de Hitler. Forçoso lhe é declarar:

— Assinei os dois decretos e, consequentemente, por força das minhas funções sou o responsável: essa responsabilidade, assumo-a.

Uma vez mais lhe cai aos pés a armadura de imaginário cavaleiro e em lugar do herói do Canto dos Nibelungos em que se armava o ex-marechal-de-campo, os juízes têm diante de si um triste indivíduo que trocou a sua honra de oficial pela insígnia de ouro do partido nazi.

Um simples soldado pode por vezes alegar que executava as ordens do seu superior sem se dar conta do carácter criminoso dos seus actos. Mas com que direito o faziam Keitel e Jodl? Eles, que se encontravam no cume da hierarquia militar, será que não eram capazes de compreender a natureza das ordens que Hitler lhes dava?

O Ministério Público achou por bem recordar-lhe o artigo 47° do código penal militar de 1940, que imputava como cúmplice o executor de um crime se ele tivesse consciência de estar a cometê-lo ou se tivesse ultrapassado as ordens.

E de seguida outra lembrança foi avivada: os líderes da Alemanha hitleriana, quando isso lhes trazia vantagens, não tentavam justificar os seus actos com a pretensão de terem «executado uma ordem». Não o fizeram em 1940, quando a sua aviação, aproveitando uma esmagadora superioridade, bombardeou selvaticamente as pacíficas cidades da Europa. Goering e Keitel esfregavam as mãos ao tomarem conhecimento, através dos comunicados, da destruição de dezenas de cidades e do massacre de milhares de habitantes. Varsóvia e Belgrado, Roterdão e Londres sofreram os actos criminosos da Força Aérea hitleriana. A cidade inglesa de Coventry foi arrasada, daí o odioso neologismo «coventrar», divulgado pelos nazis.

Mas eis que surge o ano de 1944. A Luftwaffe perdeu a supremacia. A despeito das promessas de Goering fechar à aviação inimiga o acesso ao céu alemão, centenas de aviões americanos e ingleses bombardeiam noite e dia as cidades da Alemanha. Keitel e Goering são incapazes de obstar a isso. Goebbels vem em seu socorro. A 28 de Maio de 1944 publica no Volkischer Deobachter um artigo a estigmatizar os aviadores americanos. Escreve a propósito dos que, entre eles, foram sujeitos a uma morte atroz quando feitos prisioneiros.

«Os aviadores não podem invocar que obedeciam às ordens na sua qualidade de soldados. Nenhuma lei de guerra prevê a impunidade do soldado por um crime odioso que ele tiver cometido sob pretexto de obedecer às ordens do seu chefe, se essas ordens forem absolutamente contrárias aos princípios de humanidade e aos usos internacionais».

À medida que o Ministério Público enumera estes argumentos, Keitel vai compreendendo melhor a inutilidade de se referir ao postulado do «dever supremo». Aparentemente, o filósofo de Koenigsberg não ficaria lá muito encantado com semelhante intérprete da sua doutrina, porque o «imperativo categórico» de Kant exigia de cada um o comportamento que este teria adoptado para si mesmo. Era esse o sentido da máxima kantiana. E Keitel estava bem longe dela, para já não falar de Goebbels.

Por fim vem o golpe de misericórdia: um dos procuradores faz Keitel chegar aos acontecimentos de 1944.

A conspiração contra Hitler fracassara. Os conjurados, entre os quais muitos generais, comparecem perante um dito tribunal do povo. Alguns tentam salvar a pele declarando ter agido por ordem dos seus superiores. O juiz hitleriano Freisler fulmina, martela a mesa às punhadas (a cena foi filmada) e grita aos acusados:

— Quem permitiu que vos escondêsseis por detrás de uma ordem para vos ilibardes de um crime monstruoso, de uma conspiração contra o chefe do Estado? Nenhuma ordem justifica os crimes mais graves.

E foi Hitler em pessoa quem homologou a sentença.

Esta evocação não é de molde a reconfortar Keitel. De nada lhe serviu proclamar que a obediência cega às ordens é uma «característica nacional» dos alemães, um traço de carácter permanente, se bem que lamentável. Já Johann Wolfgang Goethe censurava com indignação aos filisteus alemães o

«submeterem-se ingenuamente a qualquer celerado demente que faz apelo aos seus mais baixos instintos, que os confirma por meio dos seus vícios e os ensina a conceber o nacionalismo como sendo isolamento e brutalidade».

Keitel compreendeu por fim que apostar nas «ordens vindas de cima» era absurdo. Ninguém iria acreditar que um homem que ocupava um cargo tão elevado estivesse efectivamente manietado pelas «ordens emanadas do alto».

Keitel e Jodl arriscam então uma nova manobra. A invenção é de Jodl, bem entendido. É o primeiro a declarar ao Tribunal de Nuremberga que ele e Keitel se davam conta da natureza desumana, criminosa, das ordens dadas por Hitler e que recorriam, por consequência, a uma forma camuflada de sabotagem. De que se tratava? Ao mesmo tempo que assinavam, juntamente com Hitler, as ordens, davam no entanto a entender às autoridades locais que não insistiam sobre a sua execução. Com essa finalidade eram inseridas no texto frases como:

«Era a firme vontade do Fuhrer», ou «As directrizes acima mencionadas são conformes à maneira de ver do Fuhrer».

A escapatória não era famosa. Não obstante, o Dr. Nelte agarrou-a com unhas e dentes. Declarou na sua defesa:

«Os que recebiam tais notas ficavam a saber por meio desta fórmula que se tratava, uma vez mais de uma ordem irrevogável do Fuhrer, e tiravam daí a conclusão de que deviam aplicar essa ordem com toda a clemência possível».

Mas nem o advogado nem os seus constituintes puderam demonstrar que as «frases convencionais» tenham, por pouco que fosse, travado ou abrandado o efeito dessas monstruosas ordens.

Carrasco que arma em Filantropo

Passou-me recentemente pelas mãos um livro intitulado Decisões Fatais. Trata-se das memórias de guerra de um grupo de generais alemães.

Os autores não se cansam de repetir que se a Wehrmacht infringiu por vezes a ética de guerra no Leste, no Ocidente comportou-se com toda a cortesia do tempo dos cavaleiros. Mais os factos apresentados a Keitel e Jodl pelo Ministério Público de Nuremberga desmentem completamente este género de asserções. Eis um desses factos.

Campo de concentração hitleriano de Sagan. Entre os detidos há aviadores ingleses. As condições do campo são medonhas. Morre-se aí todos os dias. Os aviadores concebem o projecto de se evadirem. Em pouco tempo cavam túneis que dão para além do recinto. Este titânico labor é terminado em Março de 1944. Cinquenta prisioneiros evadem-se.

O comando do campo alerta Berlim. Toda a polícia do Reich está de prevenção. São passados a pente fino todos os recantos da Alemanha. Os fugitivos são presos com excepção de três deles. A maioria estava na Silésia. Alguns tinham atingido Kiel e Estrasburgo. Os ingleses são agrilhoados e levados debaixo de forte escolta para a prisão de Goerlitz.

Keitel reúne de urgência o seu conselho. As medidas que propõe são tão duras que alguns dos seus subordinados se lhe opõem, com receio de um dia mais tarde terem de vir a responder por isso. Mas o marechal-de-campo não cede:

— Meus senhores, é preciso acabar com isso. Não podemos tolerar que semelhante coisa volte a acontecer. Os oficiais evadidos serão fuzilados. Posso informar-vos que a maior parte deles já morreu.

O general von Graevenitz, que assistia à reunião, replica:

— Mas, senhor Marechal, a evasão não é um acto desonroso. É o que especifica a Convenção de Genebra.

Keitel não tem necessidade dessas explicações. Sabia muito bem que o Direito Internacional que considera o cativeiro de guerra como uma medida de segurança, destinada a impedir o prisioneiro de retomar o combate, proíbe punir a evasão como sendo um crime. Pelo contrário, toda a tentativa de o prisioneiro entrar nas fileiras das suas tropas sempre foi vista por toda a gente como o cumprimento de um dever patriótico. A objecção de Graevenitz exasperou, porém, Keitel:

— Serão fuzilados! — gritou o chefe do OKW. — E o senhor afixará nos campos um aviso informando todos os prisioneiros da decisão tomada neste, caso, a fim de evitar qualquer outra tentativa de evasão.

E como lhe lembrassem de novo, timidamente, a Convenção de Genebra, ele perdeu todo o controlo e pronunciou as palavras que o iriam perseguir durante todo o processo de Nuremberga:

— Diabos me... que tenho eu a ver com isso! Já discutimos a coisa na presença do Fuhrer e nada mais há a fazer.

Keitel sempre pretendia dar aos seus subordinados a impressão de segurança em si próprio e de total devotamento ao Fuhrer. Na realidade, o que se passava era que em 1944 as dúvidas já começavam a roê-lo, e o marechal-de-campo hitleriano decidiu à cautela deixar o mínimo de rastos da sua actividade criminosa. Prova disto é o episódio que segue. O general Westhoff, antes de afixar nos campos o aviso de que todo o prisioneiro que tentasse evadir-se seria fuzilado, quis ter a confirmação por escrito do chefe do OKW. Mas para o fim da guerra Keitel tinha-se tomado mais prudente, para não dizer medroso. Escreveu à margem do relatório de Westhoff:

«Não disse expressamente «a fuzilar»; disse «a entregar à polícia ou à Gestapo».

Que hipocrisia! Como se Keitel ignorasse que a «Kugelbefehl» («Ordem de fogo») estava há muito em vigor, e que preconizava que os prisioneiros de guerra evadidos eram entregues à Gestapo para serem passados pelas armas. É certo que a princípio a «Kugelbefehl» dizia unicamente respeito aos prisoneiros soviéticos. A nova prescrição de Keitel estendia-a aos prisioneiros dos países ocidentais.

A história dos aviadores ingleses teve grande repercussão em Nuremberga. A emoção apoderou-se do banco dos réus, sobretudo dos seus representantes militares. Keitel, Jodl, Goering e Doenitz, que tanto tinham falado no Tribunal das nobres tradições de guerra, compreenderam perfeitamente que golpe tinha assestado à sua demagogia o massacre de prisioneiros sem defesa.

O advogado-geral britânico Roberts pergunta a Jodl:

— Está de acordo comigo (não vou empregar uma expressão demasiado forte) em que a execução desses aviadores era um assassinato?

E Jodl, esquecendo a sua solidariedade com o chefe, responde:

— Estou inteiramente de acordo consigo; considero que é um assassinato puro e simples.

Keitel lança-lhe um olhar furibundo, ao mesmo tempo que se dava conta do difícil que era de facto qualificar de outro modo o acto de que ele era responsável.

De súbito, Goering mete-se ao barulho. O antigo «ás» do Kaiser de modo nenhum se queria ver implicado no assassínio a frio de aviadores prisioneiros. Seria de perguntar que importância podia ter a supressão de alguns homens mais, depois dos terríveis crimes perpetrados pelo ex-Reichsmarschall em pessoa! Mas o velho comediante, que tinha desde o início do processo assimilado o seu papel, teria antes preferido confessar o extermínio de milhões de russos, de judeus, de polacos, de checos, do que o assassínio de aviadores ingleses, seus «companheiros de armas».

Ao testemunhar sobre a reunião com Hitler, onde a sorte desses infelizes tinha sido decidida, Keitel disse que Goering estava presente. A coisa não agradou a Goering. Na suspensão da audiência chamou Keitel de lado. Depois gabou-se de lhe «ter dado a volta». Keitel prometeu portanto fazer um desmentido, e foi o que fez, mas com uma rigidez desajeitada.

— Devo aqui dizer que o Marechal do Reich, Goering, não estava lá. Se duvidei um pouco disso durante o meu interrogatório, foi porque me tinham dito que havia testemunhas que tinham certificado a sua presença. Mas sempre achei que isso era improvável. Era efectivamente inexacto.

Não é de excluir, aliás, que Keitel tenha usado de manha. Ao desmentir desta maneira o seu primeiro depoimento, queria talvez dar a entender que Goering o tinha influenciado.

E agora outro exemplo da sua «filantropia».

Está a ser interrogada a testemunha Maurice Lampe. (O rosto macilento e o doloroso olhar deste antigo prisioneiro de Mauthausen vêm-me até hoje assediando. Durante o seu depoimento reinava na sala um silêncio angustiado. A Defesa não ousou fazer-lhe perguntas). Lampe conta que no dia 6 de Setembro de 1944 chegou ao campo da morte uma leva de quarenta e sete oficiais americanos, ingleses e holandeses. Eram também aviadores abatidos em combate que desceram em para-quedas e foram feitos prisioneiros. Foram metidos na prisão do campo. Depois o comandante anunciou-lhes que tinham sido todos condenados à morte. Um dos oficiais americanos pediu para ser executado como soldado. O chefe do campo respondeu-lhe:

— Sereis espancados até à morte. A chicotada, chicotadas por todo o lado...

Os quarenta e sete homens foram para a pedreira em roupa interior e descalços. O seu suplício ficou gravado na memória de todos os sobreviventes de Mauthausen. Era um quadro digno do Inferno de Dante. Ao fundo da escada carregavam-lhe pedras aos ombros que eles deviam levar até cima. Na primeira subida tiveram de carregar pesos de 25 a 35 quilos. Faziam-nos avançar à chicotada... Na segunda, na terceira e quarta vezes as pedras eram cada vez mais pesadas e às chicotadas juntavam-se os pontapés e golpes de matraca. Atiravam-lhes mesmo pedras.

— Isso durou dois dias — dizia Lampe. — À noite, quando subia ao Kommando, ao qual continuava afectado, o caminho que levava ao campo era um caminho de sangue. Juncavam a estrada vinte e um cadáveres. Os outros vinte e seis morreram no dia seguinte de manhã.

«Operação Gustav»
Jantar de Jodl e Keitel na prisão
Jantar à maneira de Nuremberga. À mesa estão Jodl e Keitel
(clique na foto para maior resolução)

No decorrer do processo, como já foi visto, muitos réus entravam em conflito e acabavam mesmo por se denunciar uns aos outros. Keitel e Jodl, neste aspecto, parece que eram uma excepção. Só uma única vez Jodl, que almoçava sempre à mesma mesa com Keitel (a chamada «mesa do comando») se recusou a sentar-se ao lado do seu antigo chefe.

Como se veio depois a saber, esse gesto foi motivado pelo exame do «caso Giraud» pelo Tribunal. Um dia Keitel pensa ter conhecimento de que o general Weygand, de Vichy, se propunha prejudicar os hitlerianos. Aliás era bem possível que Weygand, que traíra os interesses da França em proveito de Berlim e do próprio Keitel, julgasse oportuno tomar as suas precauções perante a derrota iminente da Alemanha.

Tendo dado conta das suas apreensões a Canaris e ao seu adjunto, o general Lahousen, Keitel ordena a eliminação de Weygand.

Outro aborrecimento: o general Giraud evade-se do campo de prisioneiros de Koenigstein. Quem o teria achado capaz de, com mais de sessenta anos, descer por uma corda de uma altura de 45 metros!...

Durante o interrogatório de Lahousen, o procurador pergunta-lhe o que significa o nome «Gustav».

Lahousen explica:

— «Gustav» era utilizado pelo chefe do OKW como um nome de código a empregar nas conversas relativas ao general Giraud... A directriz era eliminar Giraud da mesma maneira que Weygand.

Acusador. Quando emprega o termo «eliminar» o que quer dizer?

Lahousen. Quero dizer a mesma coisa que para o general Weygand: era preciso matá-lo...

O processo trouxe a lume o engenho do plano da captura e assassínio de Giraud elaborado por Keitel. O que era tudo menos agradável para o ex-marechal-de-campo. Ele, que tinha a certeza de poder justificar pelas «condições de guerra» o massacre dos prisioneiros, sentiu-se muito pouco à vontade quando o Tribunal se interessou pela «eliminação» projectada de Weygand e de Giraud. Diga-se o que se disser, ele era acusado de ter querido assassinar (e sem qualquer «ordem vinda de cima») pessoas da sua casta. Não havia hipóteses, desta vez, de invocar as tradições cavaleirescas.

À noite, depois do interrogatório de Lahousen, Gilbert entra na cela de Keitel e encontra-o transtornado.

— Este «caso Giraud»... — murmura Keitel. — Enfim, eu sabia o que ia acontecer... Mas que posso dizer? Sei que um cavalheiro e oficial como o senhor deve ficar espantado. Há coisas que mexem com a minha própria honra de oficial... Pouco me importa que me acusem de ter começado a guerra: cumpria apenas o meu dever e obedecia a ordens. Mas estas histórias de assassínio... Não sei bem como pude ver-me metido nisso.

No dia seguinte Keitel chocou com a manifesta reprovação dos seus co-réus: a «mesa do comando» onde, durante meses, tinha tido por companheiros Goering, Jodl, Raeder e Doenitz, estava vazia. Nenhum deles tinha até esse momento tido a ideia de votar ao ostracismo um dos seus companheiros quando de súbito se veio a verificar, no Tribunal, que um deles tinha exterminado milhões de prisioneiros dos campos de concentração (Goering), estoutro tinha afundado barcos civis no alto mar (Doenitz) aqueloutro tinha esquartejado resistentes prisioneiros (Jodl). Foi só depois de saberem que Keitel tinha urdido o assassínio dos generais franceses Weygand e Giraud que todos se desviaram dele.

Gilbert tocou delicadamente no assunto a Jodl.

— Há certas coisas que são incompatíveis com a honra de um oficial — disse este.

Como o assassinato — sugeriu Gilbert.

Jodl hesitou por momentos e respondeu sem levantar a voz.

— Naturalmente, isso é incompatível com a honra de um oficial. Keitel tinha-me dito que Giraud estava sob vigilância...mas nunca me disse uma palavra a propósito de assassinato...Oh, tem havido coisas semelhantes na história militar. . . Mas nunca pensei que um dos nossos próprios generais...

Jodl baixou os olhos sem acabar a frase.

— Notei que o senhor já não comia à «mesa do comando» — continuou Gilbert.

Ah, o senhor reparou nisso? ... Pois bem, eu não quero bater num homem caído por terra, sobretudo quando estamos todos metidos no mesmo barco...

É inútil atribuir importância a estas considerações. Mas por que razão Jodl finge espantar-se por «um dos generais» da Wehrmacht se ter metido na sórdida «operação Gustav»? Como se todas as outras provocações de Keitel e do próprio Jodl contra povos inteiros, que causaram milhões de mortos, tivessem sido mais compatíveis com a famosa «honra de oficial» deles!

O importante é que Keitel e Jodl, embora metidos «no mesmo barco», se acharam no fim dos debates em situações diferentes. Keitel tinha feito confissões alegando as ordens de Hitler. E quando em juízo alegou a não culpabilidade, a desconcertante ingenuidade da sua argumentação não passava de uma prova mais da sua culpa.

Jodl, quanto a ele, revelou-se mais retorcido, mais cauteloso.

«Ulisses» do século XX

Jodl era defendido por Exner, professor de Direito Internacional, um dos raros advogados de toga violeta. Eu estava surpreendido por este velho sábio, como ele gostava de se intitular, ter escolhido como constituinte o chefe do Gabinete de Operações que mais não era, no fundo, que o estado-maior particular de Hitler.

O próprio Exner parecia ter sentido a necessidade de explicar os seus motivos ao Tribunal. Mas por amarga, para não dizer sórdida, ironia, desligou-se do caso no decurso do processo!

O início da sua defesa não deixava de ter nível:

— Conheci-o em Viena, há cerca de vinte e cinco anos, na casa do seu tio, o filósofo Friedrich Jodl. Tive com ele uma conversa sobre a formação do oficial de carreira. O que o jovem capitão então me disse era animado de uma tal seriedade, de tal sentido moral, tão longe de tudo o que se chamava militarismo, que as suas palavras me ficaram gravadas na memória. Nunca mais voltei a ter qualquer contacto com ele até ao Outono passado quando fui, para minha grande surpresa, designado para vir aqui defendê-lo. O meu primeiro pensamento foi o de que era preciso vir em socorro deste valente soldado. Mas hesitava em aceitar, porque não sou advogado de profissão. Contudo, quando o encontrei pela primeira vez no Palácio da Justiça, ele disse-me uma palavra que dissipou todas as minhas dúvidas: «Fique certo, senhor Professor, — disse-me ele — que se eu sentisse em mim a mais leve centelha de culpa, não era a si que teria escolhido para me defender». Meus senhores, isto são palavras de um homem de honra e não de um criminoso!

O «homem de honra» Alfred Jodl foi, durante a Primeira Guerra Mundial, artilheiro e depois oficial do Estado-Maior-General. Muito dotado, subiu de posto rapidamente. Nomeado para o cargo, especialmente instituído para ele, de chefe do Gabinete de Operações do OKW, o incansável general dirigiu o estudo de todas as operações da Wehrmacht.

Incisivo, mordaz, suficientemente erudito no seu campo para não ter papas na língua, usou um método de defesa totalmente diferente do de Keitel. Bem decidido a nada confessar, nunca deu razão a Keitel por este fazer confissões, por parciais que fossem.

Disse já que na balança da Justiça de Nuremberga a culpa de Jodl, longe de ser inferior à de Keitel, ultrapassava-a mesmo em certos aspectos. Um inimigo inteligente é sempre mais temível. É em Jodl que os povos de todo o mundo deviam ver o principal organizador das aventuras de guerra da Alemanha hitleriana. Foi na sua cabeça que germinaram os pormenorizados planos de agressão contra os outros países. Foi ele quem preparou a invasão da Áustria, da Checoslováquia, da Grécia, da Jugoslávia. É a ele, em primeiro lugar, que os povos soviéticos são «credores» do «Plano Barbarossa».

Não obstante, ele esforçou-se por fazer crer, por meio das suas declarações, que não passava de um estratego e nada tinha a ver com os crimes do nazismo. Teria mesmo feito os possíveis por impedi-los.

Bastante versado em história militar, recorria a ela com frequência para provar que muitas provocações (ditas «manhas de guerra») às quais recorreu o Alto Comando das Forças do Terceiro Reich já eram conhecidas anteriormente. Quando é questão das manobras provocatórias organizadas pelo OKW contra a Áustria, Keitel invoca as ordens de Hitler e Jodl refere-se à História.

— Parece-me — declara ele — que tais manobras não são ilegítimas. Em geral, na casa de jogo da história, tal como na política e na guerra, utilizam-se sempre cartas marcadas.

O velho professor Exner, amigo do filósofo Friedrich Jodl, apressa-se a apoiar o seu constituinte. Segundo ele, «semelhantes manhas» sempre foram um costume, a partir do dia em que os gregos construíram o seu «cavalo de Troia». Ulisses, autor dessa ideia, viu-lhe ser concedido pelo poeta antigo o honroso título de homem «rico em manhas», e nunca dele fizeram um criminoso.

— Eu próprio nada vejo de imoral na atitude de Jodl — continua Exner... — Nas relações entre Estados reinam outros princípios de moral que não os das instituições cristãs de raparigas.

O único mérito das sentenças de Jodl e do seu advogado é o de poderem prescindir de comentários.

Jodl, interrogado sobre as provocações contra a Checoslováquia, tem o cinismo de as apelidar de meros «incidentes», de «considerações do Estado-Maior-General», às quais ele próprio não teria dado qualquer importância se tivessem emanado, digamos, dos franceses.

Tudo, menos reconhecer-se culpado...Via-lhe o rosto a caretear de raiva quando Keitel era obrigado a fazer confissões. Jodl tinha a convicção de que não era esse o melhor meio de defesa. Claro, o Ministério Público estava na posse de muitos documentos assinados por ele. Mas ele sempre tinha sido mais esperto, mais previdente que Keitel e não tinha caído na asneira de lançar preto no branco resoluções tão explícitas como o eram as do marechal-de-campo.

Acusam-no de ter mandado fuzilar resistentes caídos prisioneiros, o procurador cita extractos de ordem do Estado-Maior em que é dito, e nomeadamente, que toda a resistência deve ser «punida não por meio de procedimentos legais, mas pela prática de um sistema de terror tal que suprima radicalmente toda a veleidade de resistência». É seguidamente, apresentado um outro documento em que Jodl exige que se intensifique a luta contra os «bandos», isto é, os guerrilheiros. Ordena «que sejam utilizados para esse fim o Serviço de Segurança e a polícia militar secreta», e que se tomem medidas colectivas contra a «população rural, inclusive a destruição das localidades pelo fogo».

Se tivessem apresentado a Keitel semelhante documento, ele nada teria dito ou então pretenderia ter agido no cumprimento de ordens.

As suas respostas eram sempre previsíveis, estereotipadas:

— Assinei o decreto porque me deram essa ordem.

Ou então:

— Assinei-o e reconheço-o.

Ou ainda:

— Tudo o que posso dizer-lhe é que assinei este documento e que assim assumi a minha parte de responsabilidade.

Jodl agia de outro modo. Nunca perde a ocasião de discutir e as suas réplicas atestam bastante bons conhecimentos em Direito Internacional (o seu advogado Dr. Exner deve tê-lo instruído nesse campo durante o processo).

Depois de ter lido o decreto sobre a repressão de resistentes prisioneiros, o acusador pergunta a Jodl:

— Então isto não é uma ordem terrível?

— Não, senhor procurador — responde Jodl — não é de modo nenhum terrível. Porque a Direito Internacional dispõe que os habitantes de um território ocupado se devem conformar às ordens e instruções da autoridade ocupante e que toda a amotinação e toda a resistência contra o Exército que ocupa o território são proibidas; é o que se chama a guerra de guerrilha. E o Direito Internacional não especifica as regras segundo as quais se deve combatê-los. O princípio de semelhante luta é «olho por olho, dente por dente», e não o é só para os alemães.

Por mais odiosa, por mais impudente que seja esta tirada, ela denota que Jodl está ao corrente do que se chama a doutrina do Direito Internacional. Os juristas burgueses tinham demoradamente debatido a questão de saber se a Convenção de Haia autorizava a guerrilha nas regiões ocupadas. E foi a escola alemã de Direito Internacional, porta-voz dos conquistadores prussianos, que se pronunciou a favor da colocação da lei dos resistentes. Daí o pretexto, para Jodl, de entrar em discussão.

Mas, apesar de toda a sua astúcia, acontece-lhe também cometer erros. Ainda há pouco ele queria justificar o assassínio de resistentes prisioneiros afirmando que eram amotinados a fuzilar. É uma atitude puramente policial, mas consequente. E agora dá uma reviravolta: o procurador passa a outros pontos. Prova-se que Jodl sistematicamente subscreveu decretos que violavam o Direito Internacional. Estas novas acusações afastaram-lhe do espírito a argumentação anterior. Na sua defesa tenta lembrar-se dos casos em que respeitou as leis e os usos da guerra. E tem boa memória. Não é sem razão que Keitel tantas vezes repetiu no decorrer dos interrogatórios:

— Já não me lembro. Pergunte a Jodl, ele tem melhor memória.

Jodl lembra-se que após a execução dos aviadores ingleses

«decidiu acabar de uma vez por todas com as violações flagrantes e ostensivas do Direito Internacional».

No Verão de 1944 elabora um documento intitulado «Memorando sobre a Luta contra os Bandos» onde é prescrito considerar os resistentes como soldados do exército regular e tratá-los em conformidade, no caso de serem feitos prisioneiros.

— Não submeti esta directriz nem à aprovação do marechal-de-campo Keitel nem à do Fuhrer, porque ela contradizia todas as ordens dadas até então — fanfarrona Jodl.

Emprega toda a sua habilidade para mostrar que na Alemanha, nazi era ele, e só ele, a preocupar-se com as noções humanas do direito.

— Depois do 1º de Maio de 1944... o serviço «Canaris» tinha sido dissolvido por essa data e, por esse facto, a secção Ausland bem como o serviço jurídico de Direito Internacional tinham transitado para as minhas ordens. Estava decidido a não tolerar e a não participar em qualquer violação do Direito Internacional por nossa parte e foi assim que agi a partir desse dia e até ao fim da guerra. Nessa ordem (o «Memorando sobre a Luta contra os Bandos» — A. P.) declarava, que todos os resistentes e os que os apoiavam, mesmo que vestissem à civil, deviam ser considerados como tropas regulares e tratados como prisioneiros de guerra...

Jodl esperava tirar proveito desse documento no processo. Porque, enfim, o «Memorando» era assinado mesmo por ele. Mas que arriscava o Estado-Maior em publicá-lo?

O movimento de guerrilha, como se sabe, tinha atingido o seu máximo de força nas regiões ocupadas da URSS. No Verão de 1944, por confissão do próprio Jodl, «as zonas onde operavam os resistentes russos estavam próximas da frente». Por outras palavras, a maior parte dos territórios soviéticos momentaneamente ocupados estava liberta e a maior parte dos resistentes tinha-se juntado ao exército regular. Praticamente (Jodl reconheceu-o), o «Memorando» dizia respeito «aos bandos que existiam então em França e na Jugoslávia». Ora, em França, as divisões alemãs batiam em retirada após o desembarque dos Aliados. A mesma coisa se passou pouco depois na Jugoslávia, donde os agressores eram corridos pelos esforços conjuntos do Exército Soviético e do Exército Popular de Libertação jugoslavo. Assim, o «Memorando» de Jodl estava caduco. Não abolia nem modificava coisa nenhuma, e não pôde portanto desempenhar qualquer papel na situação de Jodl no processo. Ao evocá-lo, o réu mais não fez do que revelar, uma vez mais, a sua previdência e subtileza. Nas mais complicadas, circunstâncias o chefe do Gabinete de Operações do OKW nunca se esquecia de apagar o seu rasto. É o que o diferenciava de Keitel, cujo espírito muito mais tacanho nunca teria concebido semelhante subterfúgio.

Temos já conhecimento da ordem de Keitel de 12 de Maio de 1941 sobre a execução de todos os comissários e instrutores políticos do Exército Vermelho. Uns e outros eram, porém, militares. Usavam uniforme e, em caso de captura, deveriam ter sido tratados como prisioneiros de guerra. Keitel, segundo a sua própria expressão, «estava-se nas tintas».

Jodl não se mostrou mais clemente para com esta categoria de oficiais soviéticos. Lembrou mesmo que a Alemanha tinha sofrido por conta própria a actividade dos comissários no tempo da República da Baviera(17). Mas, com medo de que os russos usassem de represálias para com os aviadores alemães, Jodl propôs que não se publicasse esse decreto. Achava mais ajuizado fuzilar os comissários sem directrizes escritas, como represália às violações do Direito Internacional pretensamente cometidas pelos russos. O lobo encontra sempre uma presa. E foi descoberta nos arquivos uma ordem de Jodl que com certeza a Defesa teria utilizado para confirmar a sua aversão em fuzilar os comissários.

Estes álibis preparados de antemão e essa competência em matéria de Direito Internacional foram-lhe seguramente de certa utilidade no processo.

Não penso que nos nossos dias alguém se permita justificar a tomada de reféns. O refém é uma pessoa inocente que será executada por crimes cometidos por outrem ou para intimidação dos que se não submeteram aos ocupantes. Este costume selvagem é condenado no mundo civilizado.

Quando foram apresentadas a Keitel as ordens do OKW sobre a execução dos reféns, ele guardou um silêncio que parecia nunca mais acabar, depois debitou a sua ladainha:

— Ordens são ordens.

E Jodl? Como reagiu ele a essa inculpação? Por sua própria iniciativa ou por conselho do seu advogado, discutiu a questão de saber se a tomada de reféns e a sua execução são proibidas pelo Direito Internacional. Não posso deixar de citar um pequeno extracto da cópia estenografada:

Roberts (advogado-geral britânico). Já que levanta esse problema, acho que o Direito Internacional nunca legalizou a execução de reféns.

Jodl. Sim, mas a sua proibição nunca foi expressamente estipulada.

Por mais bizarro que isso pareça, ambos tinham razão. Roberts no fundo, Jodl na forma. Sem me lançar numa análise jurídica, direi apenas que uma interpretação minimamente conscienciosa da quarta disposição de Haia (1907) permite concluir da ilegalidade do sistema de reféns(18).

E eis um outro exemplo da maneira como Jodl aproveitava a mínima lacuna do Direito Internacional para justificar os seus crimes.

A 18 de Outubro de 1942 o OKW emite sob a assinatura de Hitler e de Keitel a ordem de executar, in loco e sem julgamento, os comandos.

Estes, descidos em para-quedas ou desembarcados pelos Aliados para efectuarem actos de sabotagem em território ocupado, usavam uniforme e deviam portanto ser considerados soldados. Não obstante, Keitel assinou a sua sentença de morte.

E Jodl? Que pensava ele disso? Também aqui ele tomou as suas precauções. Antes de publicar o decreto, o seu estado-maior tinha, ao que parece, apresentado a Keitel uma nota que sugeria a necessidade de elucidar previamente certos pontos:

  1. Temos nós próprios a intenção de nos servirmos de tropas de sabotagem, seja nas retaguardas do inimigo, seja mesmo na retaguarda das linhas?
  2. Quem disporá de mais tropas de sabotagem, o inimigo ou nós?

Jodl tenta convencer o Tribunal de que tinha, uma vez mais, feito frente aos seus superiores, por respeito ao Direito Internacional. Mas o princípio «quem disporá de mais tropas de sabotagem?» será o critério supremo da legalidade das represálias?

Diz-se que quem se está a afogar até a uma palha se agarra. Jodl, no derradeiro momento, descobre a palha salvadora no documento atrás citado. Insistindo no facto do que desaprovava a ordem de executar sem mais formalidades as tropas de sabotagem, o ex-chefe do Gabinete de Operações do OKW invoca o seguinte parágrafo da sua nota:

«Damos nós importância ao arresto prévio dos membros do grupo em questão, para fins de interrogatório pela contra-espionagem, sem os matarmos imediatamente?»

Assim, Jodl recomendava instantemente que se interrogassem os prisioneiros, que se fizessem falar antes de os supliciar.

E é para se inocentar que ele lembra isto aos juízes!

19 de Fevereiro de 1945. O Exército Soviético aproxima-se de Berlim. Cresce de dia para dia a raiva dos nazis. Há reunião no Q.G. de Hitler. Discute-se se a Alemanha não devia denunciar abertamente a Convenção de Genebra. Mas que engraçada questão! Quem ignora que o comando alemão se marimbou, desde o início da guerra, em todas as convenções susceptíveis de o incomodarem?

Segundo a acta, os participantes na reunião entendiam por «Convenção de Genebra» o conjunto do Direito Internacional. Doenitz e Jodl falavam da guerra marítima, do torpedeamento de navios mercantes sem aviso e compulsavam a Convenção de Genebra que no entanto não trata senão do regime dos prisioneiros e feridos. Mas não é disso que se trata. Vejamos qual era então a posição de Jodl.

O leitor lembra-se que ele tinha assinalado ao Tribunal a sua decisão, após o assassínio dos aviadores ingleses, de não tolerar mais qualquer violação do Direito Internacional. E em Fevereiro de 1945 ele opôs-se efectivamente à recusa categórica de respeitar as suas leis. Explicou a Hitler que a Alemanha não tinha sido previdente. Em 1914, por exemplo...

«Era já um erro declarar solenemente guerra a todos os Estados...assumindo desse modo toda a culpa da guerra aos olhos da opinião pública mundial...»

Jodl achava que era preciso encontrar sempre um pretexto para atribuir a iniciativa do conflito ao país vítima da agressão. Tendo exposto este credo, conclui que

«seria também hoje (em 1945 — A. P.) um erro renunciar abertamente às obrigações de Direito Internacional que nós aceitámos, fazendo assim figura de culpados aos olhos do público de todo o mundo».

E para dissipar as últimas dúvidas quanto ao seu ponto de vista pessoal, Jodl precisa:

«A adesão às obrigações reconhecidas não exige de modo nenhum que imponhamos a nós próprios restrições susceptíveis de dificultar a condução da guerra».

Por outras palavras, «denuncie-se a Convenção de Genebra mas que o mundo se não aperceba disso». Nestes termos Doenitz caracterizou a teoria de Jodl, e o manhoso general confirma perante o Tribunal que o outro o tinha compreendido muito bem.

Foi esta, na prática, a «luta» de Jodl pela observância do Direito Internacional.

Já descrevi o comportamento de Ribbentrop em Nuremberga, a sua repugnante obsequiosidade perante o Ministério Público. Esse «grande mestre da política realista» tinha-se convencido de que, se se comportasse desse modo durante os dez meses do processo, os procuradores enternecidos lhe perdoariam dez anos de crimes.

Jodl, quanto a ele, raciocinava de outra maneira. Apesar das habilidades da Defesa, apesar dos seus engenhosos álibis, ele sabia que o seu destino não dependia do tom das suas respostas ao Ministério Público, da dignidade ou humildade da sua atitude. Optou pela primeira solução e sempre que pôde aplicou a «táctica ofensiva». A sua linha de defesa lembrava muito a de Schacht. Tal como Schacht explorou os elementos muniquenses da política da Inglaterra e da França, Jodl soube tirar partido das acções nem sempre correctas das forças anglo-americanas.

O advogado-geral britânico Roberts acusa-o do bombardeamento bárbaro de Belgrado. Mas ao abordar esta questão ele não teve em conta uma coisa que o réu tinha desde há muito anotado: a circunspecção de que o procurador-geral americano Jackson deu provas ao interrogar Goering. Jackson tinha durante vários dias massacrado o réu n° 1, mas sem nunca dizer nada dos raids totais da Luftwaffe.

Isso chocara-me. Depois do interrogatório perguntei a Jackson por que era que, de entre as numerosas acusações imputadas ao ex-marechal do Reich, não figurava a de ter mandado bombardear cidades pacíficas pela aviação alemã? Ao que ele me respondeu:

— Vejamos, é despropositado censurar os bombardeamentos aos alemães aqui, em Nuremberga, onde o Palácio da Justiça é quase o único edifício que ficou de pé.

Sim, é evidente que na última fase da guerra a aviação anglo-americana bombardeou sem necessidade muitas cidades alemãs, o que custou a vida a centenas de milhares de civis. Só o bombardeamento de Dresden fez milhares de mortos. Jackson achava que os piores crimes dos nazis deviam ser postos na balança de Témis com «mãos limpas».

O advogado-geral inglês Roberts cometeu a imprudência de colocar a questão a Jodl:

— Segundo o senhor, quantos milhões de civis foram mortos no bombardeamento de surpresa a Belgrado?

Jodl respondeu taco-a-taco:

— Não posso dizer-lho, mas com certeza a décima parte do número de mortos que houve em Dresden, quando vocês já tinham ganho a guerra.

Jodl conseguiu aproveitar-se de um outro deslize de Roberts, e foi quando este exibiu um documento branco intitulado «Prosseguimento da Guerra contra a Inglaterra». O seu autor, Jodl, tinha lá escrito:

«Se os meios políticos não derem resultado, ser-nos-á necessário triturar pela força a vontade de resistência da Inglaterra...»

E entre as medidas a empregar, o ex-chefe do Gabinete de Operações propunha

«ataques terroristas contra os centros populacionais ingleses».

Depois de ler o texto, Roberts pergunta a Jodl:

— Ataques terroristas contra os centros populacionais ingleses...Pode dizer-me algo que justifique esta frase?

— Sim — retorquiu Jodl — reconheço ter formulado aqui uma ideia que a aviação anglo-americana concretizou, depois, na perfeição.

Estas contundentes respostas permitiram a Jodl — momentaneamente, é certo — desviar a atenção do Tribunal do facto de a aviação alemã ter devastado cidades pacíficas muito tempo antes da aviação aliada. Foram, para o réu, instantes de triunfo tanto mais preciosos quanto foram raros.

Jodl «Lamenta Muito»

Mas ao advogado-geral inglês sucede o vogal soviético Pokrovski. Apresenta ao Tribunal Internacional um documento do OKW que prescreve

«arrasar Leninegrado, destruí-la de alto-a-baixo por meio da aviação e da artilharia».

O documento é assinado por Hitler e Jodl.

Keitel, se tivesse sido ele o signatário, teria declarado ao Ministério Público que reprovava esse acto bárbaro mas que a ordem do Fuhrer era sem apelo. Quanto a Jodl, também ele se mantém fiel à sua táctica. Procura uma explicação. E encontra-a.

Encorajado pelo êxito das suas respostas a Roberts (que, diga-se de passagem, tinha agradado muito a Goering), prepara-se para contra-atacar Pokrovski. Dá-se início ao duelo.

Pokrovski procurador soviético
I. Pokrovski, procurador-geral adjunto da URSS

Ponho-me a observar Jodl. Os seus olhos brilham. De vez em quando lança um olhar aos seus co-réus. Pokrovski mantém-se calmo, se bem que saiba que o adversário é coriáceo. Jodl explica para começar que o projecto de aniquilar Leninegrado não foi de geração espontânea: os alemães nunca teriam essa ideia se uma infeliz circunstância os não tivesse obrigado a isso. Jodl gostaria de lembrar ao senhor procurador soviético os acontecimentos, funestos para os alemães, da sua entrada em Kiev. Depois de terem ocupado a capital da Ucrânia, as tropas alemãs dispuseram os seus P.C. e os seus escritórios no centro da cidade. De súbito, esses edifícios (e não os outros) foram pelos ares. «Bolcheviques fanatizados» tinham, ao que parece, minado uma quantidade de edifícios, fazendo da cidade uma ratoeira.

Dito isto, uma discussão se inicia entre Pokrovski e Jodl a propósito da data da tomada de Kiev pelos alemães. Eu não estava muito bem a ver aonde eles queriam chegar.

Jodl diz que o Alto Comando alemão fora informado das explosões de Kiev pelo marechal-de-campo von Leeb em princípios de Setembro. Pokrovski logo lhe demonstra que ele alterou a verdade: como Kiev foi tomada mais tarde, o relatório de von Leeb não poderia ter sido recebido na época indicada. Jodl insiste:

— Se a memória me não falha, Kiev foi ocupada em fins de Agosto, aproximadamente a vinte e cinco, creio.

Pokrovski. Lembra-se da data em que Hitler declarou que Leninegrado devia ser completamente arrasada?

Jodl. Peço desculpa, senhor procurador, estive sempre enganado a propósito dessa data. A ordem do Fuhrer traz a data de 7 de outubro. Evidentemente que o seu reparo é correcto. Enganei-me num mês. Efectivamente Kiev foi tomada em fins de Setembro e o relatório que recebemos de von Leeb chegou-nos às mãos nos primeiros dias de Outubro. Lamento muito, enganei-me.

Podíamos ser levados a acreditar que Pokrovski apenas censurava a Jodl o facto de ele ignorar a data da tomada de Kiev. Claro que não era disso que se tratava.

Jodl está pronto a aceitar que a ordem de destruir Leninegrado foi assinada a 7 de Outubro de 1941. Diga-se o que se disser, o 7 de Outubro é posterior à tomada de Kiev, o que permite invocar as minagens desta cidade. Pokrovski cita esse documento sem se fazer rogar. Com efeito o Fuhrer disse que

«a rendição de Leninegrado e mais tarde a de Moscovo não devem ser aceites no caso de o inimigo as propor».

Antes de essas cidades serem ocupadas

«devem ser transformadas em escombros pelo fogo de artilharia e pelos bombardeamentos aéreos».

Uma só palavra compromete Jodl. A ordem de aniquilar Moscovo e Leninegrado começa assim:

«O Fuhrer lembra de novo que a rendição...».

De novo! O que houve então antes, e quando?

Pokrovski refresca-lhe a memória. Apresenta em juízo o documento L-221: a acta da reunião realizada no gabinete de Hitler a 16 de Julho de 1941. É já do conhecimento do leitor que foi aí que se procedeu à partilha dos territórios soviéticos. Os finlandeses reclamavam a região de Leninegrado, diz-nos o texto. Depois lá está, preto no branco, a ordem de Hitler de não ser entregue Leninegrado aos finlandeses senão depois de completamente arrasada.

Pokrovski passa a acta a Jodl que a examina atentamente. O procurador pergunta-lhe se encontrou a passagem e se viu que isso era muito anterior aos acontecimentos de Kiev.

Jodl. Sim, era três meses antes.

Pokrovski. Era também muito antes de ter havido explosões e incêndios em Kiev. É exacto?

Jodl. Perfeitamente exacto.

Confissão que testemunhava uma esmagadora derrota. Jodl tinha sido apanhado com a boca na botija, como um vulgar ratoneiro. Talvez isso lhe tenha recordado que o mentiroso deve ter uma memória excelente, talvez até melhor que a do ex-chefe do Gabinete de Operações. Depois deste fiasco ele deve ter achado a táctica de Keitel menos má. Em todo o caso compreendeu que Pokrovski o tinha demolido. E não foi a primeira nem a última vez, longe disso.

Desfilou pela barra do Tribunal Internacional um sem-número de testemunhas, algumas das quais inspiravam confiança aos réus. Mas já assinalei curiosas situações, resultantes por vezes de um excesso de zelo das testemunhas de defesa. Foi o caso de Milch, de Bodenschatz. Algo de semelhante aconteceu com uma testemunha que queria ilibar Jodl.

Era o general de blindados von Vormann, que tinha outrora prestado serviço com Jodl no Estado-Maior das Forças Terrestres. Desejoso de ir em auxílio do seu antigo colega, revelou que antes da tomada do poder por Hitler Jodl lhe confiara a sua aversão pelo Fuhrer, qualificando-o de «charlatão», de «criminoso». A testemunha exprimiu a esperança de que o Tribunal tomaria em consideração o espírito «anti-hitleriano» de Jodl.

O Dr. Exner, citando determinadas passagens do depoimento de Vormann, passou intencionalmente por cima da passagem em que Jodl denegria Hitler. Mas Pokrovski logrou-lhe os intentos. No decorrer do interrogatório lembrou a Jodl a passagem em questão e perguntou se a testemunha tinha dito a verdade. Jodl tentou tergiversar.

— Estou convencido que ele confundiu duas coisas. Repeti muitas vezes, é verdade, que considerava Hitler um charlatão. Mas não tinha qualquer motivo para o considerar criminoso. O termo «criminoso», empreguei-o com frequência, mas em relação a Roehm. A esse qualifiquei-o de criminoso por mais de uma vez porque era essa a minha opinião.

— Sendo assim, o senhor considera Roehm como criminoso e Hitler como charlatão? É mesmo disso que se trata? — reata Pokrovski.

Jodl. Sim, era essa a minha opinião.

Acusador. Então como explica que tenha aceitado cargos de primeiro plano na máquina militar do Reich, após a chegada ao poder de um homem a quem o senhor apelidava de «charlatão»?

Jodl. Porque cheguei à conclusão, nos anos que se seguiram, de que não se tratava de um charlatão mas sim de uma notável personalidade...

Assim, Jodl qualificava Hitler de charlatão em 1933. Vieram de seguida, como se sabe, o esmagamento da democracia na Alemanha, a criação dos campos de prisioneiros, as execuções em massa dos patriotas alemães, a preparação dos planos de agressão, a invasão de numerosos países, o terror monstruoso nas regiões ocupadas. Foram estas, aparentemente, as circunstâncias que fizeram Jodl mudar de opinião e ver em Hitler uma «notável personalidade». Coisa lógica, aliás, visto que se tratava do «charlatão» e da «notável personalidade» de que os militaristas prussianos tinham necessidade.

Geoffrey Knox, presidente da Comissão Internacional do Sarre, tinha decididamente razão ao declarar:

— É preciso notar que o partido nazi, antes de ter sido recolhido pelos dirigentes da soldadesca prussiana, não passava de uma corja de alcoviteiros e vagabundos sem importância.

Knox esquece o nefasto papel representado neste caso pelos chefes dos monopólios alemães, mas é verdade que sem Ludendorf, Blomberg, Keitel, Jodl e quejandos, o mundo não teria sido obrigado a suportar Hitler. Jodl apelidava-o de charlatão, mas logo que o charlatão teve a sorte de subir ao poder ele apressou-se a juntar-se a ele.

Ainda o vamos ver desenganado ao ponto de tratar o seu Fuhrer de criminoso. Keitel e Jodl vão ficar extremamente irritados por terem de responder em Tribunal pelos crimes cometidos, pretensamente, só por Hitler.

«Ele Enganou-nos, Abandonou-nos»

A 8 de Agosto de 1945 Keitel falava ao juiz de instrução do seu devotamento a Hitler, às ideias do seu partido. Mas durante o processo virou a casaca e pôs-se a cobrir de injúrias o seu Fuhrer, cujo suicídio, sobretudo, o revoltava.

— Se Hitler queria ser o comandante-em-chefe — disse ele a Gilbert — devia sê-lo até ao fim. Dava-nos ordens. Dizia: «Eu tomo a responsabilidade!» E depois, quando chegou a hora de enfrentar as responsabilidades, abandonou-nos.

Seguiam-se as lamúrias:

— É desleal... Ele enganou-nos! Não nos disse a verdade. É a minha absoluta convicção, e ninguém me fará mudar de ideias! Foi com deliberado propósito que ele nos levou a combater com falsas ideias!...

Monstruosa mescla de hipocrisia e histeria! Hitler enganou o crédulo Keitel! Esse mesmo Keitel que exigia o massacre de centenas de milhares de homens e que, como resposta aos alertas dos seus subordinados, gritava:

«Não quero saber disso!»

Keitel e Jodl defenderam-se cada um à sua maneira. Mas ambos sustentaram que os anos de colaboração com Hitler foram para eles uma sequência de trágicas contradições, de arrojadas tentativas de atenuar as pesadas consequências das suas ordens.

Por que é que estes generosos Siegfried não se tinham demitido? O Dr. Nelte informou o Tribunal que Keitel teria tentado, por cinco vezes, ir para a reforma; uma vez até se quis suicidar. Mas o processo de Nuremberga provou irrevogavelmente que Keitel nunca pensou nisso.

Li muito mais tarde, nas obras do historiador alemão ocidental Goerlitz, que Keitel não ousava pedir a demissão com medo de que as SS se apoderassem do comando da Wehrmacht. Vergonhosa mentira! Absurdo que nem o próprio Keitel formulou em Nuremberga, há que fazer-lhe justiça. De resto não podia fazê-lo. Por que tinha sido ele, em suma, quem encarregara o general Wagner de assinar em nome do OKW o acordo de cooperação com as SS para o extermínio dos soviéticos...

Jodl também gostaria de ter feito crer que tinha enfrentado Hitler a propósito desta ou daquela ordem. Afirma nunca ter tido medo de discutir com ele, de o contrariar:

— Fi-lo várias vezes com vigor.

Mas, como de propósito, acontece que as suas discussões sempre disseram respeito a problemas de estratégia.

Em Agosto de 1942, Jodl assumiu perante Hitler a defesa do general Halder. Aí também, como confessou Jodl, «era questão de um problema militar». Só conseguiu enraivecer Hitler e — horror! — «a partir desse dia Hitler nunca mais veio jantar» com ele. Além disso:

— Doravante um oficial SS devia assistir a todos os relatórios sobre a situação. Oito estenógrafos tinham a missão de registar cada palavra dita. O Fuhrer não me estendia a mão; já não me cumprimentava ou fazia-o muito pouco. Fez-me saber por intermédio do marechal-de-campo Keitel que já não podia trabalhar em colaboração comigo e que eu seria substituído pelo general Paulus logo que este tivesse tomado Stalinegrado.

Que desgraça! Mas quanto tempo durou? A espada de Dâmocles pendeu por muito tempo sabre a cabeça do chefe do estado-maior particular de Hitler? Jodl responde de boa vontade:

— Esse estado de coisas durou até 30 de Janeiro de 1943.

Que data sacramental era essa? Por Deus! era a do décimo aniversário do advento de Hitler! O 30 de Janeiro era dia feriado na Alemanha nazi. Nesse dia Hitler condecorava os seus homens de confiança. Entre eles figurava Jodl, que pretensamente teria feito frente a Hitler a ponto de suscitar o seu ódio e se expor à exoneração. A 30 de Janeiro de 1943 o Fuhrer agraciou o general Jodl com a insígnia de ouro nazi (condecoração máxima do partido e não do exército, especifiquemo-lo).

Jodl não tinha boa cara na altura em que teve de reconhecer isso. Os argumentos de que anteriormente se servira para se justificar, como que se esbateram repentinamente. E alguns começaram a parecer pura e simplesmente ridículos.

Foram interrogados muitos generais nazis no processo de Nuremberga. Mas nenhum deles, fosse qual fosse o seu zelo em defenderem Keitel e Jodl, negou que estes tinham sido até ao fim os oficiais mais nas boas graças de Hitler. Aquando do atentado falhado de 20 de Julho, Jodl foi um dos primeiros a felicitar calorosamente Hitler por se ter miraculosamente salvo. E agora, em Nuremberga, este mesmo Jodl tem a pretensão de sempre se ter sentido desenraizado no Q. G. do Fuhrer. Porquê?

— Porque era um Q.G. civil em que nós, os soldados, não passávamos de convidados. E não é fácil ser-se convidado durante cinco anos e meio.

Ao escutar estas «revelações» de Jodl, ao escutar Keitel, perguntava eu a mim próprio em que momento estes dois «cavaleiros teutões» deixaram de acreditar na vitória da Alemanha.

— A guerra estava manifestamente perdida a partir da derrota de Stalinegrado — declara Jodl no seu depoimento.

Quanto a Keitel, esse fez a mesma triste constatação ainda mais cedo, ao que parece. Depois da derrota às portas de Moscovo, ele sabia que a guerra já não poderia ser ganha por «meios puramente militares». ,

Como se comportaram depois disso os dois estrategos? Aconselharam Hitler (com o qual Jodl «se permitia, discutir») a cessar a efusão de sangue e assim serem salvos de uma morte inútil milhões de homens? Não, não fizeram isso. Ambos continuaram na grande jogada enganando os seus compatriotas e votando os outros povos a indizíveis sofrimentos. Pessoas como Rosenberg, Streicher, Goering ainda podiam esperar um milagre (não era sem motivo que este último engolia pastilhas de heroína às mancheias: a droga proporcionava-lhe visões de triunfo). Mas Keitel e Jodl eram bastante lúcidos e competentes para preverem com muita antecedência o avanço da inelutável catástrofe. Mas nem por isso deixaram de empurrar centenas de milhares de alemães para a fogueira de uma guerra perdida.

Perguntaram a Jodl por que teria ele querido prolongar a matança, bater-se até ao último homem? Esse pensamento tinha-o, ao que parece, «preocupado» a si próprio. Já trazia a resposta engatilhada. A camarilha hitleriana (da qual Jodl se excluía, bem entendido) tinha cometido atrozes crimes de guerra (Jodl só no processo teria sabido dos pormenores) e tinha suscitado o ódio do mundo inteiro.

— Pois bem, naturalmente que — dizia Jodl — com tudo o que Hitler e Goebbels tinham na consciência, não era de espantar que eles insistissem para que se combatesse até ao fim. Agora vejo a coisa claramente. Estavam decididos a suicidar-se em caso de derrota porque de qualquer modo os enforcariam. Nessas condições era muito mais fácil continuar a pedir que a luta prosseguisse até à destruição total.

Sem dúvida que isto se aplica a Hitler e Goebbels. Mas quanto a Jodl?

A 7 de Novembro de 1943, quando o Exército Vermelho expulsou os nazis de Kiev, houve conferência dos Gauleiter em Munique. O general Jodl, chefe do Gabinete de Operações do OKW, pronunciou aí um discurso. O seu auditório era constituído pelos grandes chefes regionais do partido. Tinham-nos convocado para os informarem sobre a situação nas frentes, por um lado, e para os instruírem, por outro, sobre a maneira de combaterem os «elementos nocivos» que faziam «sabotagem» nas retaguardas. Não é curioso que não tenham sido escolhidos para instrutores nem Goering nem Goebbels, nem Kaltenbrunner, mas precisamente Jodl?

Que disse ele aos Gauleiter? O seguinte:

— É nas vossas regiões e entre os seus habitantes que se concentra toda a propaganda inimiga, o derrotismo e os rumores mentirosos, para tentar espalhá-los no nosso povo. O demónio da destruição percorre o país de uma ponta à outra. Todos os cobardes tentam encontrar uma saída ou — como eles dizem — uma solução política. Pretendem que devemos negociar enquanto temos ainda alguma coisa na mão, e é com todas estas palavras de ordem que é atacada a convicção espontânea do povo que sabe que esta guerra não pode ser senão uma luta de morte. Uma capitulação seria o fim da nação, o fim da Alemanha.

A cópia estenografada deste discurso prestou um mau serviço a Jodl no Tribunal de Nuremberga. Desmascarou uma vez mais a sua falsidade, o seu fariseísmo, a sua natureza de criminoso de guerra endurecido.

A História faz o balanço

Terminou finalmente o exame das provas para os casos de Keitel e Jodl. Os réus, não tendo já de se ocupar da defesa, podem dedicar-se ao seu exame, entregar-se às recordações.

Hess durante um interrogatório
Rudolf Hess durante um interrogatório
(clique na foto para maior resolução)

Coisa singular, quase todos eles relembraram ou chamaram a palco de preferência os seus esforços visando um entendimento com o Ocidente. Goering formulou por mais de uma vez o desgosto de não ter conseguido pôr-se de acordo com certos meios dos EUA. Foi a confiança nas «democracias ocidentais» que o levou a constituir-se prisioneiro dos americanos. Hess explicava pelo seu apego ao Ocidente o facto de se ter dirigido a partir de 1941 aos reaccionários ingleses. Ribbentrop repetia a cada passo que o seu mais acalentado sonho era a amizade anglo-alemã e que a sua última carta foi para Winston Churchill, porque considerava a Inglaterra como sua segunda pátria. Quanto a Kaltenbrunner, declarou abertamente ter estado em contacto com o serviço de informações americano.

Jodl achou por bem lembrar aos ocidentais os seus próprios méritos. Eis o que a propósito disse ao doutor Gilbert.

A 7 de Maio de 1945, ao assinar em Reims a acta de capitulação com as potências ocidentais, propôs levar para Ocidente as tropas alemãs da frente Leste, para que elas se rendessem «aos Aliados e não aos russos» e pediu quatro dias de prazo entre a assinatura da acta e a sua entrada em vigor, a fim de que as tropas pudessem «retirar-se em boa ordem para as zonas inglesa e americana».

Segundo Jodl, só lhe teriam concedido quarenta e oito horas. Entrementes, um coronel do Estado-Maior-General alemão, em cima de um tanque americano, percorria a primeira linha da frente Leste para dar às tropas a ordem de retirada.

— Evitei assim que setecentos mil homens fossem feitos prisioneiros pelos russos. Se tivéssemos tido os quatro dias pedidos, podia ter salvado mais.

Seja dito de passagem que eu próprio tive ocasião de ver esta «táctica» de Jodl e de constatar a «lealdade» do comando americano» Estava-se a 8 de Maio de 1945. O general de batedores cossacos Metalnikov convocou-me de urgência ao seu P.G. com dois outros oficiais. Informou-me que o comando alemão tinha assinado a acta de capitulação em Reims e que as hostilidades cessariam nessa noite a partir, das 23 horas em ponto. As tropas colocadas defronte da nossa divisa deviam capitular no dia seguinte de manhã. O general encarregou-me de aceitar a capitulação no sector do 36° regimento de atiradores.

Dirigi-me aos locais nessa mesma noite. Pusemos tudo em ordem com o coronel Orlov que comandava o regimento e terminámos os preparativos de manhã. Mas os delegados do inimigo não se apresentaram à hora marcada. Soubemos que as unidades alemãs se tinham secretamente retirado para Oeste. O mensageiro de Jodl devia ter passado por lá.

Para os réus chegou o momento de fazerem a sua última declaração.

Keitel começa por chamar a atenção do Tribunal para o facto de que «reconheceu a sua responsabilidade no quadro das suas funções». No que respeita à sua participação pessoal nos crimes do fascismo alemão, o ex-marechal-de-campo disse:

— Longe de mim a intenção de minimizar a minha participação no que se passou.

Mas logo ensaia um desajeitado esforço para atenuar a sua culpa.

«A vida humana nos territórios ocupados valia menos que nada...»

Reconhecendo ter dito isto e dado as consequentes instruções aos seus subordinados, Keitel qualifica essas palavras de «terríveis», mas sustenta que elas mais não eram do que a essência das ordens de Hitler.

Seja como for, o ex-chefe do OKW foi um dos raros réus a constituir-se como culpado. Na sua última declaração perante o Tribunal manifestou bastante claramente o seu ponto de vista, o balanço das suas meditações em Nuremberga.

Anteriormente, como o seu defensor lhe perguntasse se ele teria recusado a sua parte dos louros em caso de vitória, o ex-marechal-de-campo respondeu:

— Não, com certeza que teria orgulho disso.

Outra pergunta do Dr. Nelte:

— Como teria agido se se encontrasse numa situação análoga?

— Teria antes escolhido a morte do que deixar-me arrastar na rede desses perniciosos métodos.

Não obstante, na sua última declaração, Keitel colocou-se na posição de executante dócil de ordens recebidas.

— É trágico ter de reconhecer que o melhor que eu tinha a dar como soldado — a obediência e a fidelidade — tenha sido explorado com intenções imprevisíveis e que eu não tenha divisado os limites que fazem igualmente parte do dever do soldado. É esta a minha sorte.

Para avaliar da hipocrisia destas palavras, na aparência sinceras, imaginei o que teria acontecido se a hipótese contida na primeira pergunta do advogado se tornasse realidade. Era fácil prever o comportamento de Keitel, esse ambicioso inteiramente devotado ao seu Fuhrer, que assinava sem pestanejar os mais selvagens decretos. Consciência? Vamos lá! O Fuhrer afirmava que a consciência não passava de uma quimera, e Keitel tinha há muito atirado com a sua para o cesto.

Não, o que ele viu na «obediência e fidelidade» ao Fuhrer não foi, como hoje o afirma, uma tragédia, mas o maior dos méritos, que teria podido valer-lhe novos favores de Hitler.

Mas, azar! a equipa de dinamitadores encarregados de fazer o Kremlin ir pelos ares está parada. A Alemanha está vencida. A Wehrmacht esmagada. Hitler morto. Keitel está no banco dos réus. Deve responder pelos seus crimes. Acossado por provas irrefutáveis, rendeu-se, capitulou tal como a Wehrmacht.

E Jodl?

Esse até na sua última declaração tem a audácia de mentir. Fala como se não tivesse havido Segunda Guerra Mundial, nem processo de Nuremberga, nem milhares de documentos reveladores, nem Auschwitz, nem Dachau, nem Oradour, nem Lídice:

— Senhor presidente, Meritíssimos juízes! Acredito com uma fé inabalável que os historiadores do futuro farão um julgamento equitativo e objectivo dos grandes chefes militares e seus adjuntos, porque eles se acharam, e com eles todo o exército alemão, perante uma tarefa insolúvel: a de conduzirem uma guerra que não tinham desejado, às ordens de um comando que não lhes fazia confiança e no qual eles próprios só depositavam uma confiança limitada...

Teríamos dificuldade em dizer o que prevalece na última declaração de Jodl: se a ênfase, se a hipocrisia. Ele teria de súbito compreendido que a guerra «decidia de existência da sua querida pátria». E contudo nada impedia a sua «querida pátria» de existir sem guerra. Havia necessidade da guerra para fazer perecer a pátria dos outros,

Jodl tenta convencer o Tribunal de que ele e os outros generais não tinham

«servido o Inferno ou um criminoso, mas o seu povo e a sua pátria».

Era uma mentira mais. Ele serviu a Hitler a quem tinha qualificado de charlatão e criminoso. Não se pode servir ao mesmo tempo um criminoso e o povo!

«Para que nasci eu!»

Já é do conhecimento do leitor que os juízes do Tribunal de Nuremberga não se puseram de acordo quanto às penas a infligir aos culpados. Mas essas divergências não disseram respeito a Keitel nem a Jodl. A condenação foi proporcional aos seus crimes. As ordens vindas de cima não podiam ser encaradas como circunstâncias atenuantes para os que, com conhecimento de causa, implacavelmente e sem necessidade alguma, fizeram derramar torrentes de sangue humano.

A sentença foi lavrada: morte por enforcamento. Levam Keitel. Depois Jodl.

Mas após a desaparição dos heróis deste vergonhoso e abominável drama, Goerlitz, abalizado historiador de Bona, lembra-se de sabotar o processo de Nuremberga. Pelo menos no que respeita a Keitel e Jodl.

«Os juízes de Nuremberga — escreve ele — procuraram descobrir a verdade. Quanto aos dois soldados que ele votaram à maldição, fica em suspenso a questão de saber se cabe a um tribunal deste mundo apreciar a maneira como eles cumpriram o seu dever ou se é o Juiz supremo dos Céus quem aí lavrava o seu insondável veredicto, tal como faz para todo e qualquer erro humano».

Todo o livro de Goerlitz é o grito de alma de um militarista convicto, desejoso de reabilitar a Wehrmacht hitleriana. Goerlitz fala em pormenor da «obediência do soldado», que Keitel achava ser a causa principal da sua «tragédia». Os editores foram ao ponto de pespegar este problema na cinta do livro:

«A sorte do marechal-de-campo alemão serve de exemplo para se compreender o sentido e os limites da fidelidade ao dever de soldado num século que continua a querer defender a disciplina, a ordem e o direito».

Foi uma sorte o processo de Nuremberga ter revelado a todo o mundo as origens e o verdadeiro sentido dessa fidelidade, ter mostrado que a «obediência» à maneira de Keitel consiste em montanhas de cadáveres, em cidades reduzidas a cinzas, em tormento e morte de milhões de inocentes.

Foi encontrada na cela de Keitel uma nota, com certeza destinada a ser utilizada na sua última declaração. O réu teria desejado dar uma qualquer explicação da sua «obediência».

«A tradição e sobretudo as inclinações dos alemães — escrevera ele — fizeram de nós uma nação militarista».

De que tradição, de que inclinações se tratava? Que tradição levou Keitel a executar as mais desumanas ordens?

O general Paul Winter recordou um dia a Keiltel esta citação de Marwitz:

«Escolhei a desobediência quando a obediência for desonrosa».

Mas isso não estava dentro das possibilidades de Keitel: ter-se-ia renegado a si próprio.

Que é o nacional-socialismo e a teoria racial? Um programa de agressão, de massacres, de exterminação de povos inteiros. Na nota encontrada na cela (Goerlitz menciona-a no seu livro) Keitel constatava:

«Nós, soldados, reconhecemos que as ideias nacional-socialistas contribuíam admiravelmente para a formação militar».

Fechou-se o círculo, é caso para dizer! Depois de um dia para ele particularmente penoso, que foi quando se leram as revelações de Raeder a seu respeito, o ex-chefe do OKW escreveu à noite, na sua cela, ao Dr. Nelte:

«Quero que saiba que depois de tudo o que ouviu a meu respeito eu não ficaria admirado se renunciasse à defesa de um homem tão comprometido. Tenho vergonha perante o senhor».

Keitel respondeu deste modo, claramente, em 1946, à pergunta que, no título do seu livro, Goerlitz vem de novo fazer em 1963: «Era o marechal-de-campo Keitel um criminoso ou um oficial?» Um criminoso, claro, se bem que hoje se tente ilibar o «velho marechal-de-campo alemão entregue ao carrasco».

No 1º de Outubro de 1946 entrou, pela última vez, o doutor Gilbert na sua cela. Keitel estava de pé, de costas voltadas para a porta. Depois andou de um lado ao outro e parou na outra ponta da cela, com o terror a encher-lhe os olhos.

— Morte por enforcamento — diz ele com voz rouca. — Tinha a esperança de que me poupariam.

Recusou voltar a ver a mulher:

— Não posso aparecer à frente dela.

Frente a quem podia o ex-marechal-de-campo aparecer? Aos seus filhos, mortos numa guerra em cuja preparação ele tanto se tinha aplicado? Ao povo alemão do qual milhões de filhos tinham sido mortos, nomeadamente para que o coronel Keitel se tornasse marechal-de-campo? Aos outros povos de Europa? Não tinha ele ordenado: «Alemanha, fogo!»? Tinha ficado encantado por ver a Wehrmacht abater numa «guerra-relâmpago» a Polónia, a Noruega, a Grécia, a Bélgica, a Holanda, a França. Regozijara-se ao ver correr o sangue de centenas de milhares de soviéticos. Desejava ardentemente instalar o seu P.C. no Kremlin de cúpulas douradas para de seguida atacar a Índia o Iraque e o mundo inteiro.

Gilbert descreve no seu diário a reacção de Jodl ao veredicto.

Na sua última declaração este tinha debitado, à maneira de Goering, as suas fanfarronices, pondo em acção todo o seu arsenal de hipocrisia e petulância. Declarou, entre outras coisas:

— Deixarei esta sala de audiências de cabeça tão levantada como quando há meses cá entrei.

Gilbert vai ter com ele à sua cela alguns minutos depois da leitura da sentença. Que é feito do seu charlatanismo, da sua ironia, do seu insolente sorriso de brilhante oficial do Estado-Maior-General?

— Morte por enforcamento! — grita ele tal como Keitel. — Isso, em todo o caso, eu não o merecia. Quanto à morte... Seja, é bem preciso que haja um responsável. Mas isto... — A boca torce-se-lhe e a voz sai-lhe estrangulada. — Isto de facto eu não o merecia!

Neste momento dramático ele teve mesmo assim a força de representar o seu papel. Ele, que recomendava friamente que se «esquartejasse e queimasse a fogo lento» os resistentes e que lia a mexer o café os relatórios sobre a destruição do ghetto de Varsóvia e sobre o massacre de milhares de crianças, tomou-se de repente sentimental.

Pôs uma fotografia em cima da mesa da cela. Era dele, mais a mãe, com a idade de um ano.

— Para que nasci eu? — pergunta ao barbeiro da prisão, olhando com ar pensativo para a foto. — Por que não morri em menino? Isso ter-me-ia evitado muitas desgraças... Por que vivi eu?...

Quando me relataram esta tirada filosófica, sem dúvida destinada à posteridade, senti o desejo de levar Jodl a Auschwitz para lhe mostrar os montes de sapatos e roupas de crianças, de chambrinhos, de bonecas com que os pequenos mártires brincaram até ao instante supremo.

E Keitel? Esse pediu ao médico da prisão, Pflucker, para dizer ao organista (havia um órgão na prisão) que não tocasse mais o Dorme, meu menino, dorme, porque essa melodia despertava nele dolorosas, recordações.

Recordações!... Não era isso que lhe faltava. A palavra «prussiano» tinha-se desde há muito tornado, na história militar, sinónimo de força bruta, de ferocidade. Os grandes escritores de França pintaram, as infames «proezas» dos prussianos durante a guerra de 1870. Os militaristas prussianos mostraram novamente as garras aquando da heroica insurreição do povo chinês em 1899-1901. E as atrocidades cometidas pelos prussianos na Primeira Guerra Mundial!...

Por que estou a repetir estas tão conhecidas verdades? Exclusivamente para mostrar que nenhum outro réu incarnava tão bem como Keitel e Jodl os detestáveis traços do militarismo prussiano.

É difícil adivinhar que quadros evocavam no espírito de Keitel o organista quando tocava o Dorme, meu menino, dorme. Talvez lhe trouxesse à memória os seus filhos mortos. Ou uma das numerosas fotografias mostradas no Tribunal: soldados alemães armados que levam para o suplício uma longa coluna de vítimas, e na primeira fila um garoto de cinco ou seis anos, de braços levantados, de olhos escancarados de pavor. Ainda há bem pouco tempo ele deve ter sido embalado por essa cantiga de ninar. E agora ali estava ele e os que lha tinham cantado a ser conduzidos para a morte pela soldadesca.

Sim, não erram evidentemente recordações, o que faltava a Keitel. Toda a sua «vida de soldado», até ao fim da guerra, foi marcada pela crueldade.

Últimos dias de guerra... Hitler já não é deste mundo. Mas Keitel continua a enviar para a matança milhares de alemães, quase crianças. O seu automóvel, que percorre a toda a velocidade a linha da frente extremamente encurtada, cruza com uma unidade em retirada. Keitel sabe perfeitamente que a guerra está perdida. Os soviéticos tomaram Berlim, doravante qualquer resistência é não só absurda como criminosa. Cada vida humana sacrificada em vésperas da derrocada do Terceiro Reich seria um novo crime do Alto Comando alemão. Mas Keitel para no meio da rua e invectiva os oficiais das tropas em retirada, ameaça-os com os piores castigos se os soldados não voltarem ao combate. Keitel tem diante dele, garotos que saíram há poucos dias de baixo das saias das mães. Especados no meio da estrada, observam com temor aquele «velho senhor de monóculo» em vias de increpar aqueles a quem eles devem obedecer sem discussão. Como eles gostariam, esses rapazinhos, que o marechal-de-campo lhes lançasse um olhar atento e lhes gritasse:

— Que fazeis aí, miúdos? Toca a andar para casa!

Pois bem, não: o marechal-de-campo manda essas crianças para o fogo, para a morte.

Não penso que o organista da prisão tenha despertado nele a piedade pelas inumeráveis vidas de crianças que ele destruiu ou mortificou. A ária e as palavras do Dorme, meu menino, dorme antes provocavam nele acessos de medo bestial. Incapaz de se dominar, pede ao músico que não toque mais.

Entrementes, na cela ao lado, Jodl contempla a sua fotografia. É esse o seu último acto de hipocrisia.

Wilhelm Keitel e Alfred Jodl foram enforcados a 16 de Outubro de 1946 por decisão do Tribunal da Humanidade.

A sentença não só a eles dois tinha chocado. Era a condenação histórica do militarismo alemão.


Notas de rodapé:

(16) Do alemão Lakei (lacaio). N. do T. (retornar ao texto)

(17) Trata-se da República Soviética da Baviera (13 de Abril a 1 de Maio de 1919). (retornar ao texto)

(18) A Convenção de Genebra de 1949 sobre a defesa dos civis durante a guerra tem em conta a experiência de Nuremberga: a tomada de reféns é aí proibida de maneira categórica e clara. (retornar ao texto)

Inclusão 16/09/2015
Última atualização 05/04/2016