Proposta para Discussão de um Programa de Soluções de Emergência - Contra a Fome, a Carestia e o Desemprego(1)

Luiz Carlos Prestes

Março de 1982
(Por ocasião do 60.° aniversário de fundação do PCB)


Fonte: Instituto Luiz Carlos Prestes.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo


Com o texto que se segue, apresentamos uma proposta para discussão de um programa de soluções de emergência contra a fome, a carestia e o desemprego, considerando ser esta a melhor maneira de, no atual momento político nacional, homenagear aqueles que no dia 25 de março de 1922 fundaram o PCB, assim como todos os comunistas que durante estes últimos 60 anos lutaram e morreram pela causa do socialismo em nossa pátria.

Com esta proposta para discussão, os comunistas que se alinham em torno das posições revolucionárias de Luiz Carlos Prestes, pretendem contribuir para um amplo debate, que está na hora de ser travado, entre todos aqueles que efetivamente se dispõem a lutar pela defesa dos interesses das classes trabalhadoras.

Como se assinala no texto proposto,

"apesar de considerarmos que as soluções definitivas e duradouras para os grandes e graves problemas sociais do Brasil são incompatíveis com a estrutura capitalista, nunca deixamos de lutar por medidas parciais, que possam melhorar, mesmo que temoorariamente, a situação econômica, política e cultural dos trabalhadores".

Trata-se, pois, de iniciar uma discussão de problemas bem concretos: o que fazer, agora, diante da situação desesperadora em que se encontram as massas trabalhadoras em nosso País.

I. Introdução: A Situação Atual

Em nosso País, a situação dos trabalhadores é cada dia mais angustiante. Com o desemprego generalizado, a escalada dos preços, a queda continuada dos salários reais, agrava-se, cada vez mais, o problema da fome de milhões de famílias trabalhadoras. Amplos setores da chamada classe média são também afetados pelas dificuldades económicas e o drástico achatamento do nível de vida.

Na base deste processo de deterioração das condições de vida do povo está a política económica do Governo, que visa descarregar os custos da crise económica nas costas dos trabalhadores e dos pequenos empresários. Com o livre aumento dos preços, as demissões em massa e a rotatividade no emprego, que reduz o nível dos salários, consegue o grande capital manter as altas taxas de lucros. O Governo, controlado por um condomínio de generais e super-burocratas — representando os grandes grupos económicos e o capital financeiro internacional —, assegura as condições políticas para que as elites proprietárias dos meios de produção possam dar continuidade ao processo de concentração de renda e de centralização acelerada do capital. A condição básica para isso está no baixo nível de consumo dos trabalhadores, que nem a demagógica política de salários, nem outras mistificações e disfarces, como por exemplo, a inflação, conseguem ocultar.

Do ponto de vista político, o Governo ditatorial multiplica as manobras e chantagens, destinadas à sua auto-sucessão; com esse objetivo, impede o estabelecimento de liberdades efetivas para os trabalhadores e bloqueia as reformas sociais que o intenso crescimento sócio-econõmico dos últimos decénios tornou inadiáveis. Ao mesmo tempo, encena uma farsa de pluralismo parlamentar, tentando garantir uma vitória eleitoral que legitime e mascare a ditadura do Poder Executivo.

Por tudo isso, as aparentes incoerências da "abertura", assim como as sucessivas improvisações da política económica, são, na realidade, perfeitamente coerentes com a mais desavergonhada defesa dos interesses do grande capital, o que implica na adaptação da política econômica interna às mudanças na conjuntura econômica internacional e na estratégia dos centros decisórios do imperialismo.

Dessa forma, a incompatibilidade entre o sistema dominante e as necessidades vitais da esmagadora maioria da população torna-se cada dia mais gritante. A tensão e os conflitos que assim são gerados não permitem que se prognostique qualquer melhora espontânea da situaçlo existente. A luta de classes — ou a luta política surge como o único caminho possfvel de resistência à ofensiva espoliadora do grande capital. A mobilização popular em torno das reivindicações mais sentidas das massas trabalhadoras apresenta uma variedade infinita de formas e de possibilidades de organização e de conscientização política.

Ao mesmo tempo, essa mobilização popular constitui o espaço propício para uma possível consolidação das forças e organizações políticas de esquerda. No que diz respeito a nós, consideramos essa prática um espaço insubstituível para o desenvolvimento de nossa capacidade de mobiiizaçío popular, para a prática de um tipo de política diferente da tradicional. A propria formação de um Partido Comunista efetivamente revolucionário dependerá da implantação, na prática, de dois princípios fundamentais: democracia efetiva para assegurar a produção de decisões programáticas e táticas e centralismo na atuaçâo organizada, baseado este na disciplina igual e rigorosa para todos os membros do PC.

A propósito, é importante reiterar que a legislação do PCB só tem sentido e só pode ser concebida como parte integrante da luta pela conquista de liberdades políticas para as classes trabalhadores. A legalização não se compra em conchavos de cúpula, em troca de uma sócio-democratização pervertida do PC.

II. A Necessidade de um Programa de Soluções de Emergência Contra a Fome, a Carestia e o Desemprego Generalizado

Visando superar as dificuldades atuais, consideramos necessário abrir uma ampla discussão sobre a situação nacional e as tarefas dos comunistas na defesa dos interesses das classes trabalhadoras. De início, é necessário reiterar algumas teses simples, porém absolutamente corretas, que continuam a ser referências fundamentais para uma estratégia de progresso e de emancipação social.

Apesar de considerarmos que as soluções definitivas e duradouras para os grandes e graves problemas sociais do Brasil são incompatíveis com a estrutura capitalista, nunca deixamos de lutar por medidas parciais, que possam melhorar, mesmo que temporariamente, a situação econômica, política e cultural dos trabalhadores.

O Governo insiste, em que a sua política econômica (assim como seu esquema de "abertura" administrado pelo Planalto) é a única possível. Mas a verdade é que as medidas de liberação dos preços e dos juros, assim como a sua mistificadora lei salarial, representam instrumentos fundamentais de uma política de classe, essencialmente favorável ao grande capital, uma vez que descarrega os custos da crise econômica nas costas das classes oprimidas.

Essa política de defesa dos interesses das classes privilegiadas não é uma fatalidade, nem algo inevitável. É possível outra política. Essa possibilidade de uma outra alternativa não é um problema técnico, mas uma questão basicamente política, porque depende da mobilização das grandes maiorias, vitimadas pela atual política reacionária, depende da organização e da unidade de todos aqueles que reivindicam ou podem reivindicar soluções satisfatórias para seus problemas de sobrevivência, de autêntica cidadania e de uma vida civilizada.

Com vistas à dinamização e à convergência dos mais amplos setores populares para formar uma vontade comum de mudança, consideramos necessário e útil reunir as reivindicações mais urgentes num programa de soluções de emergência contra a fome, a carestia e o desemprego generalizado. A ideia de concretizar essa síntese vem sendo sugerida por inúmeras organizações sindicais e políticas. Chegou a hora de confrontar as propostas e de somar esforços para colocar as necessidades vitais da maioria esmagadora no centro da luta política e, especialmente, como bandeira principal da campanha pelas liberdades democráticas, campanha esta na qual as eleições representam uma etapa importante, mas apenas uma etapa na longa luta contra a ditadura.

Nosso ponto de vista é que o programa de emergência contra a fome, a carestia e o desemprego deve incluir três tipos de medidas:

  1. Medidas para garantir o fornecimento imediato de alimentos a mais de 30 milhões de brasileiros que passam fome;
  2. Um plano nacional de emprego, cuja primeira providência seja o estabelecimento de um subsídio-desemprego, geral e completo; e
  3. Medidas para estabilizar, num nível condizente com os salários reais da maioria dos trabalhadores, os preços dos bens e serviços de primeira necessidade.

Essas medidas visam defender e elevar o poder aquisitivo do salário dos trabalhadores empregados, do subsídio-desemprego reivindicado, das aposentadorias e pensões, assim como dos rendimentos dos trabalhadores rurais.

A formulação concreta de cada medida deve partir das organizações sindicais e políticas comprometidas com a defesa do programa de emergência. Sem dúvida, essas medidas têm caráter apenas defensivo, pois não mudam as causas da exploração e da desigualdade econômica e social: a propriedade capitalista dos meios de produção e de distribuição. Visam somente barrar a ofensiva do grande capital e do Governo contra o nível de vida do povo. As soluções de emergência contribuem para conscientizar e organizar as classes trabalhadoras, preparando, dessa maneira, as condições necessárias para mudanças substantivas nas estruturas capitalistas e autoritárias, num sentido socialista.

III. A Política Fiscal e a Inflação

O necessário incremento dos recursos estatais, visando atender aos critérios de justiça social, deve basear-se na dinamização da receita fiscal, objetivando reduzir as violentas desigualdades na distribuição da renda. E isto pode ser alcançado sem a necessidade de criar novos tributos; bastará eliminar a sonegação fiscal dos grandes proprietários e especuladores e aplicar taxas progressivas sobre as mais-valias financeiras e o superlucros dos grandes capitalistas. A política fiscal assume um caráter democrático quando funciona como instrumento corretor das iniquidades sociais, o que, em princípio, significa dar ênfase aos impostos diretos, personalizados e com o taxamento progressivo e eliminar o caráter socialmente regressivo dos impostos indiretos.

Ao colocar o problema das fontes de financiamento das mudanças requeridas pela política de combate à fome, ao desemprego e à carestia, não se pode esquecer a necessidade de contrapor-se a dois fatores de peso:

  1. O poder de decisão do capital financeiro, que impõe o mais pesado tributo à economia nacional; e
  2. O papel da inflação, de distorcer e mistificar, encobrindo as relações arbitrárias de distribuição e redistribuição do produto.

O progressivo aumento da quota de operações especulativas (especulação com dólares e outras moedas fortes; operações no mercado de futuros; operações no mercado aberto — open market; operações com "bens refúgio": ouro, pedras preciosas, terras) no conjunto de operações dos grandes grupos económicos vem acompanhando a substituição gradual do capital de risco pelo capital de crédito na esfera produtiva, o que, além de reforçar o papel dos intermediários financeiros, favorece o crescimento desigual do próprio capital financeiro privado, principalmente dos bancos associados ao capital internacional. Esta proeminência do capital financeiro especulativo e o consequente desestímulo ao capital produtivo somente poderão ser contrabalançados e combatidos pelo Estado, através de medidas de intervenção financeira e de eventuais nacionalizações, cujo sentido social tem que ser o contrário do que hoje preside a política oficial de créditos subsidiados (com taxas inferiores à da inflação), a política de subsídios fiscais ou de tarifas ferroviárias baixas — formas através das quais o Estado (isto é, o povo contribuinte) assume parte do "custo do dinheiro" e dos "custos de produção" das grandes empresas privadas.

É sabido que a eficácia de qualquer medida de controle de preços dos bens de primeira necessidade ou de aumento dos salários depende do poder aquisitivo do cruzeiro, medido pelo nível da inflação. A inflação galopante, atuando como se fosse uma lei de gravidade na esfera econômica, achata continuamente os salários e os rendimentos fixos em geral. O resultado é que a inflação opera uma redistribuição da renda nacional em benefício dos agentes do capital, que estão em condições de transferir os aumentos de custos para os seus preços de venda, sendo que estes são sempre aumentados para garantir lucros elevados. Dessa maneira, desenvolve-se a espiral inflacionária dos preços, que é puxada, principalmente, pelos altos juros, pelos preços oligopólicos e pela pressão fiscal. Estes sâo os trés aspectos a atacar prioritariamente por qualquer política socialmente progressista que pretenda combater a inflação.

A inflação não é — deve-se insistir — um fenómeno sobrenatural ou puramente externo. Hoje é um instrumento da política econômica do Governo, que é empregado pelas classes dominantes para aumentar sua fatia na renda nacional. Ao mesmo tempo, a inflação tem um forte poder mistificador. Por meio da inflação, que consiste na variação permanente e decrescente do valor do cruzeiro, é possível disfarçar a queda do salário real. Como a variação da sua expressão nominal (quantidade de cruzeiros) produz uma primeira impressão de aumento, esta aparência é manipulada pelo Governo e pelos empresários, que falam em política de "aumento" de salários.

A distribuição desigual da renda, que esta aparência tenta encobrir, fica evidente quando verificamos o "excelente desempenho" dos bancos e das grandes empresas, que, apesar da crise econômica , continuam registrando lucros fabulosos e desfrutando de uma verdadeira orgia de concentração e centralização de capitais.

As altas taxas de lucro das grandes empresas estão ligadas a um grau de dominação oligopólica dos mercados, que certamente não encontra analogia em nenhum outro país do mundo. Esse poder monopolista se sustenta principalmente graças ao Estado autoritário, complemento direto da estrutura monopolista que nos domina.

Contrariando os fatos, os porta-vozes do grande capital (vários ex-ministros, ministros atuais, superburocratas e líderes empresariais) tentam, com a ajuda da grande imprensa reacionária, vender a ideia de que a política de reajustes salariais provocaria inflação e incentivaria o desemprego. A hipocrisia dessa afirmação só encontra explicação na arrogância de uma classe que não admite taxas de lucros inferiores a 100% ao ano, pois considera a espoliação dos trabalhadores um direito adquirido, natural e inegociável.

O programa de medidas contra a fome, o desemprego e a carestia, pelo seu caráter limitado e defensivo, não pode, evidentemente, pretender superar as causas dos desequilíbrios financeiros e de outros mais profundos do esquema de reprodução do capital, mas também não deve contribuir para aprofundá-los. Ao contrário, pode e deve ajudar a bloquear alguns desses desequilíbrios básicos, como a redução do consumo popular, e gerar uma dinâmica nova — socialmente progressista —, capaz de ir preparando as condições para uma mudança das bases estruturais da inflação, dos desequilíbrios reprodutivos e das crises.

IV. Os Salários

A crise castiga duplamente as classes trabalhadoras: primeiro, pelo desemprego generalizado; segundo, pela escalada dos preços, que achata continuamente o salário real. Além disso, a inexistência de qualquer forma de subsídio ou assistência aos desempregados toma desesperadora a situação dos trabalhadores.

Nestas condições, é realmente escandalosa a tentativa de acabar com o reajuste semestral dos salários, usando o argumento de que esse reajuste alimentaria a inflação, quebraria o ritmo da produção e geraria desemprego.

Na verdade, todo mundo sabe que a lei dos reajustes semestrais dos salários foi promulgada pelo Governo com a evidente intenção de liquidar a combatividade dos trabalhadores, impondo o controle burocrático das reivindicações através desse instrumento legal. Apesar dessa intenção desmobilizadora e das inúmeras limitações da lei salarial, a ideia e a prática dos reajustes semestrais não deixam de ser uma conquista dos trabalhadores, ainda que parcial e incompleta. E, assim sendo, não se pode admitir a sua anulação. Ao contrário, é necessário lutar pelo aperfeiçoamento dos mecanismos dos reajustes salariais, adequando-os ao índice real do custo de vida, ao mesmo tempo, em que deve ser introduzido um sistema legal de garantias efetivas de estabilidade no emprego — com um seguro, geral e completo, de desemprego — e, principalmente, com a efetiva mudança da atual estrutura sindical, atrelada ao Estado e aos patrões.

Essa nova ofensiva patronal contra a bastante moderada lei dos reajustes semestrais, como sempre, baseada em argumentos falsos, representa uma reedição da antiga lenda referente à "espiral" salários-preços. Lenda esta que visa dar fundamento a uma suposta inutilidade da luta por aumentos salariais, afirmando que esses aumentos levariam inevitavelmente a aumentos concomitantes dos preços. Na verdade, essa "explicação" confunde causa e efeito, pois os aumentos salariais são consequência, e não causa, do aumento dos preços. Como é de conhecimento geral, os salários aumentam menos e depois de terem subido os preços dos bens de subsistência. Este simples fato joga por terra todos os "argumentos" dos que tentam atribuir um efeito inflacionário aos reajustes semestrais dos salários.

Em síntese, o que a grande burguesia pretende, com a revisão da lei salarial, é reduzir ainda mais os custos do trabalho para, tirando proveito da débil resistência dos assalariados nesta fase da crise econômica aguda, manter a "vantagem" principal do capitalismo selvagem: a mão-de-obra abundante, barata e subjugada.

V. A Crise Económica

À arbitrariedade da exploração na esfera produtiva soma-se a arbitrariedade da espoliação na esfera comercial, na relação vendedor-comprador. Neste período de crise, quando a demanda geral — e, em particular, dos assalariados — é comprimida, determinando a queda das vendas e da produção, os monopólios, numa clara demonstração de seu Poder totalitário, lideram violentos aumentos de preços. Dessa maneira, apropriam-se da parte do leão do produto da sociedade, o que, em termos económicos, significa que os grupos exploradores se apropriam não só de todo o excedente — na proporção da força de cada um — como também, e em medida crescente, da parte do "fundo necessário" para a reprodução da força de trabalho. Como consequência lógica, verifica-se a depauperização e a fome generalizada.

Por outro lado, a retração da demanda de bens de consumo acarreta a queda da produção, paralisando os investimentos na esfera produtiva, o que acelera a tendência ao desvio de recursos monetários para as atividades especulativas. Ao mesmo tempo, muitas dessas operações são incentivadas por isenções fiscais. Esse é o caso da compra de terras isenta do Imposto de Renda e incentivada por créditos a juros negativos, quando empregada como base de projetos agropecuários, que têm amparo na política oficial de exportar a qualquer preço.

Essas distorções dos mecanismos econômicos, que favorecem as operações financeiras e especulativas, aceleram a concentração da propriedade financeira e fundiária pelos grupos mais parasitários, levando, ao mesmo tempo, à descapitalização e falência das pequenas empresas produtivas, incapazes de resistir à pressão espoliadora do capital financeiro (a começar pelas extorsivas taxas de juros).

A crise econômica atual vem confirmar a incapacidade do mercado de bens de consumo durável (com o automóvel como carro-chefe) para garantir uma expansão econômica continuada. A razão disto reside na estrutura social que se encontra por trás desse mercado, nas modificações nela ocorridas, assim como no jogo de relações de Poder que surgiu dai.

Num rápido exame da estrutura social, a primeira coisa que chama a atenção é a disparidade gritante entre as rendas dos estratos superiores e as da grande maioria dos assalariados, excluídos do mercado de bens duráveis. Esses estratos privilegiados não estio hoje aplicando grande parte de suas altas rendas e superlucros na acumulação do capital reprodutivo devido justamente ao maior atrativo que para eles representam os investimentos especulativos (afora a parte que dedicam ao consumo dc luxo). A insuficiente acumulação do capital reprodutivo impede a absorção da mão-de-obra disponível, cuja grandeza é determinada, também, pelas elevadas taxas de crescimento demográfico. Esse excedente de mão-de-obra, com qualificação insuficiente ou nula, acaba marginalizado na estrutura social. Situação esta que é agravada não só pelas altas taxas de crescimento populacional, como, principalmente, pela descapitalização resultante da sucção de recursos pelos credores e investidores estrangeiros.

VI. É Necessário Mudar a Orientação Social da Intervenção do Estado na Economia

a) A Reforma Agrária

As soluções almejadas para os graves problemas de sobrevivência física, de emprego e de salário condizente, só serão possíveis se mudar a orientação social da intervenção do Estado na economia. O que implica, entre outras coisas, na reorientação dos investimentos públicos para projetos geradores de novos empregos e que, ao mesmo tempo, atendam às necessidades prementes de alimentação, moradia popular, obras públicas de proteção civil contra enchentes e secas, serviços de transportes e outros.

Para combater a miséria, é fundamental garantir o acesso efetivo dos trabalhadores rurais à terra e aos demais meios de produção e gestão econômica, isto é, aos recursos financeiros para custeio, assistência técnica rural e condições de comercialização que protejam tanto os pequenos produtores rurais, como os consumidores urbanos da espoliação dos monopólios agroindustriais e comerciais.

A reforma agrária e demais reformas concomitantes, indispensáveis para retirar da miséria e da opressão mais infame milhões de famílias camponesas, representam objetivos sociais da maior atualidade e importância nacional. Num sentido democrático moderno, a reforma agrária deve incluir, além da posse da terra por aqueles que a cultivam, outras condições de vida e de trabalho, que impliquem numa reforma econômica, social e política do meio rural. Esta concepção abrangente é compartilhada pela maioria das forças opositoras, sindicais e políticas, do campo e da cidade. Levando isso em conta, é que o Governo promete, ainda neste ano eleitoral, entregar meio milhão de títulos a posseiros, tendo como base uma nova lei de usucapião. Esta nova operação política vem engrossar a volumosa coleção de leis, promulgadas pelos governos oligárquicos, com o propósito evidente de sufocar as legítimas reivindicações rurais no confuso pântano burocrático legal. A eficiência dessas leis, na verdade, é inversamente proporcional â sua abundância e complexidade.

Na realidade, o Governo tenta apresentar uma "face social", quando, de fato, intensifica a repressão contra os trabalhadores rurais e fabrica um "complô" contra dois missionários franceses identificados com a justa luta dos posseiros, numa tentativa desesperada de esmagar os movimentos reivindicatórios de milhões de camponeses sem terra e sem voz. Tudo indica, portanto, que a estratégia oficial para o campo, longe de ter mudado, está se consolidando ao estimular uma nova onda de colonização que intensifica a concentração da propriedade e gera um autêntico neo-latifundismo, personificado nos grandes grupos monopolistas locais e multinacionais. Com o objetivo de financiar um único projeto — o Jari, em que o capital financeiro internacionalizado mascara seu poder associando-se com os grupos econômicos mais bem sucedidos do País —, o Governo vai investir quase o dobro do dinheiro previsto para financiar a entrega dos 500 mil títulos prometidos pela propaganda eleitoral do general-presidente.

b) O Capital Estrangeiro

A curto e médio prazo, reconhecemos a necessidade de recorrer aos financiamentos estrangeiros, mas defendemos uma relação diferente entre os credores estrangeiros e a economia nacional. Defendemos um tipo de relação compatível com os objetivos sociais que almejamos, contrário, portanto, às relações atualmente existentes, que concedem aos banqueiros e as multinacionais um grande poder decisório que, de fato, determina o sentido do processo reprodutivo global e, na verdade, as estruturas produtoras da economia nacional. Através dos investimentos, do monopólio da tecnologia moderna e do controle dos mercados de dinheiro e de mercadorias, o grande capital (conglomerado de grupos locais e multinacionais) determina o direcionamento dos investimentos produtivos, os tipos de tecnologia, as principais produções (exportáveis), de onde decorrem a distribuição da renda desigual e a concentração do Poder.

Uma nova relação da economia nacional com o capital estrangeiro pressupõe uma nova orientação e vontade política que direcione o potencial econômico (recursos naturais, humanos, técnicos e financeiros) em função das necessidades populares e, conseqüentemente, parta para a renegociação das relações econômicas com o exterior de acordo com as novas prioridades sociais. As medidas de emergência sugeridas, medidas que implicam num relançamento da produção, não têm por que exigir novos aumentos da dívida externa. Ao contrário, podem e devem ser alimentadas por uma utilização mais eficiente das capacidades produtivas e dos recursos financeiros existentes. Poderão até propiciar — se aplicadas conseqüentemente em setores de alta densidade de recursos próprios —, uma redução relativa das importações e garantir, ao mesmo tempo, a manutenção de um nível elevado de exportações.

c) A Moralização da Gestão Publica

Um problema que se coloca é o de como compatibilizar as medidas de defesa do nível de vida do povo — medidas de efeito imediato na redistribuição da renda — com a necessidade de relançar o desenvolvimento para superar a crise. O caráter de emergência das medidas sugeridas implica também em formas extraordinárias de mobilização de recursos. Neste aspecto, consideramos que as dimensões atingidas pelo setor público, somadas ao volume de recursos financeiros controlados pelo Estado brasileiro, oferecem uma margem de manobra suficiente para garantir — através da reorientação dos investimentos, dos créditos e dos diversos subsídios — uma parte substancial dos recursos financeiros exigidos pelas novas medidas sociais. E trata-se não tanto de aumentar a receita fiscal, quanto de elevar substancialmente o grau de eficiência dos recursos atuais, eliminando, para isso, os gastos irracionais, as sonegações e roubalheiras monumentais, que hoje consomem grande parte dos gastos públicos. A moralização dos gastos (e da gestão) públicos surge, assim, como uma premissa econômica e, ao mesmo tempo, como condição e conseqüência, das mudanças políticas, cujo real conteúdo democrático será medido pelo grau de participação nas decisões dos cidadãos, em todas as esferas da vida social.

A moralização da gestão pública implica também em publicidade e livre acesso dos cidadãos às informações, sem o que a participação democrática não pode ser efetiva. Uma situação democrática deverá permitir uma mudança profunda no caráter dos investimentos públicos, principalmente, daqueles que estão voltados para projetos faraônicos, como o Plano Nuclear, a indústria de armamentos, as gigantescas hidroelétricas, o Jari, o Pró-Álcool e outros planos que estão a serviço de operações de enriquecimento ilícito de empreiteiras, de superburocratas, de empresários influentes e de todo tipo de agentes especuladores ligados ao Poder. A forma autoritária de governar impede que o Parlamento e a opinião pública conheçam as dimensões exatas dos gastos públicos e os nomes dos beneficiários da generosidade dos burocratas. Uma mudança democrática só terá realmente um caráter democrático quando for garantida a publicidade em torno da gestão pública, como condição para a participação dos cidadãos nas decisões dos problemas que lhes dizem respeito.

Resumidamente, entendemos por reorientação do setor público a mudança de suas prioridades sociais no sentido de passar a sustentar:

  1. as atividades produtivas geradoras de emprego, de preferência nos lugares aonde é mais grave o problema do desemprego;
  2. as formas de trabalho e de produção coletiva (familiar e associativa) que, além de garantir emprego e meios de sustento para as pessoas diretamente implicadas, contribuam para a ampliação relativa da oferta de bens de primeira necessidade;
  3. as capacidades produtivas e obras sociais específicas nas regiões subdesenvolvidas do Nordeste.

VII. O Modelo Econômico Atual e o Estado Autoritário

Para modificar esta situação seria preciso mudar a natureza social do agente econômico que formalmente representa a sociedade: o Estado; para, através deste, mudar todo o mecanismo de funcionamento da economia. No entanto, a dinâmica do sistema dominado pelos monopólios resiste a qualquer alteração que possa ameaçar esse predomínio. Esta é exatamente a razão pela qual o Governo atual rejeita qualquer mudança no modelo econômico. Pelo contrário, nesta fase de crise econômica, quando se agravam todos os problemas sociais e aumentam as tensões e conflitos, as classes dominantes procuram reforçar o modelo concentrador da renda, apelando para isso às estruturas políticas autoritárias. Dessa maneira, a dinâmica do sistema político está condicionada pela rigidez do modelo econômico.

Nestas condições, nada indica que seja possível um pacto social baseado num suposto consenso entre os grupos econômicos dominantes e os setores assalariados com um mínimo de representatividade. O atual sistema de acumulação monopolista, baseado em salários depauperantes e no achatamento do nível de vida das classes médias, não é compatível com liberdades democráticas efetivas, pois não consegue conviver com a livre manifestação do descontentamento e das inúmeras e angustiantes reivindicações das massas trabalhadoras.

As classes exploradoras defrontam-se com um dilema. Para manter sob controle a crescente pressão social, precisam reforçar os aparelhos de dominação coercitiva. Mas, para administrar a crise, intensificando a centralização de capitais e estabelecendo vínculos ainda mais estreitos com o capitalismo multinacional, precisam intensificar a privatização da economia e a intervenção do Estado na economia, de maneira que isso lhes permita aumentar seu poder decisório, limitando a autonomia relativa e o poder tutelar do Executivo.

Com o golpe reacionário de 64 e os subseqüentes desdobramentos deste, os grupos econômicos dominantes mostraram ter clara consciência de que seu destino histórico está inseparavelmente ligado ao Poder autoritário. Sabem que numa sociedade, como o Brasil de hoje, com violentas desigualdades sociais, é impossível conciliar os privilégios escandalosos dos super-ricos com liberdades autênticas, que permitam à maioria oprimida lutar organizadamente pelas suas reivindicações. Só um Estado autoritário, sob o comando de um condomínio de generais e superburocratas, pode garantir a dominação dos grandes grupos econômicos e assegurar a efetivação das adaptações necessárias na política econômica e social interna, de acordo com as exigências da conjuntura internacional.

A predominância dos instrumentos coercitivos em relação aos mecanismos de dominação consensual ficou provada pelo emprego dosado das técnicas terroristas (bombas na OAB, no Riocentro, na Assembléia do RJ, em bancas de jornais, etc.), pelas ameaças de "recrudescimento", pelos freqüentes enquadramentos na Lei de Segurança Nacional de deputados, líderes sindicais, jornalistas e membros do clero católico. As ameaças e punições não podem, entretanto, ser explicadas pela mentalidade ou caráter mais ou menos truculento dos governantes. Essas manifestações de força só têm explicação na pressão social que o Estado atual tem que absorver para garantir os interesses das minorias exploradoras.

Na realidade, inexistem bases para alimentar ilusões quanto à vocação democrática dos donos do Poder. Enquanto a pressão reivindicatória das massas não colocar em risco a dominação do grande capital, as ameaças de "fechamento" continuarão funcionando como um tipo de chantagem. Uma involução no sentido de renúncia às aparências de "abertura" democrática e de reedição do terrorismo de Estado, longe de facilitar a estratégia política e a solução dos problemas econômicos, poderá servir apenas paia complicar ainda mais o difícil equilíbrio entre o condomínio de generais da "comunidade de informações" e os demais grupos que administram o Estado. Semelhante eventualidade implicaria, certamente, em cisões e no estreitamento do aglomerado de clientelas que representam a base social do regime.

VIII. Por uma Alternativa Efetivamente Renovadora, que abra Caminho para as Transformações Socialistas

Ao tentar focalizar o nosso campo, isto é, a situação das classes oprimidas, deve-se, em primeiro lugar, registrar o nível insuficiente de conscientização e de organização política dos trabalhadores e dos setores populares. Entretanto, esta situação não deve servir de pretexto para justificar atitudes oportunistas, de passividade e conciliação, como as do atual Comitê Central do PCB e de seu jornal "Voz da Unidade".

De início, é indispensável rejeitar a idéia de que pensar e atuar em função de uma visão de classe possa significar "radicalizar". Ser radical — no sentido verdadeiro da palavra — significa procurar a raiz dos problemas. Mas há quem pense — ou pretenda fazer pensar — que ser "radical" seja sinônimo de precipitação e aventureirismo, atitudes que, em lugar de fortalecer, aniquilam as forças populares.

Consideramos que uma postura radical — ou marxista — exige sensibilidade em relação às mais diversas situações de injustiça, assim como para compreender os diversos níveis de conflito presentes na sociedade, e, principalmente, um alto grau de identificação com os interesses dos trabalhadores. Nisto nos distinguimos profundamente — ou, pelo menos, procuramos nos distinguir — dos burocratas rotineiros que se aglutinam no CC do PCB. Para estes, "fazer política" significa apenas rejeitar em palavras o capitalismo, ruminando poucas e sumárias noções ideológicas em mistura com as fórmulas de ocasião ou da "moda", e prestar homenagens retóricas à Revolução, numa tentativa de apresentar algum parentesco com o marxismo e o socialismo. Entretanto, essa maneira de "fazer política" não chega a superar a esterilidade rotineira; para impulsionar o movimento é preciso mover-se.

Uma atuação política efetivamente comunista deve identificar-se com os mais profundos interesses e as reivindicações concretas das classes oprimidas, o que, hoje, significa apoiar as bandeiras mais inadiáveis dos que passam fome, dos desempregados, de todo o povo, impiedosamente esmagado pelos capitalistas e pelo Estado, tendo, ao mesmo tempo, consciência de que estes só farão concessões quando se sentirem pressionados pela luta unitária das classes exploradas e oprimidas.

Quanto á atividade parlamentar — com as limitações hoje conhecidas em nosso País —, é inteiramente insuficiente para mudar a política de opressão política e de exploração selvagem do grande capital. A pressão das oposições no Parlamento tem importância, na medida em que se apoie nos movimentos populares, levantando suas reivindicações mais sentidas. Sempre apoiamos e continuaremos a apoiar a atuação dos parlamentares efetivamente comprometidos com a defesa dos direitos e dos interesses dos trabalhadores das cidades e do campo. Entretanto, o Governo teme a convergência da pressão do povo, que reivindica e se organiza, e dos setores mais progressistas do Parlamento. Justamente por isso, está tentando montar uma farsa eleitoral com atores selecionados entre os homens de sua confiança. Ao mesmo tempo, procura reduzir ao mínimo o espaço de atuação dos sindicatos dos trabalhadores e das organizações políticas que se identificam com estes.

Cabe à classe operária, aos assalariados e aos oprimidos em geral assumir a defesa e a representação de seus próprios interesses, unindo-se nos sindicatos, nos centros de ensino e de moradia e integrando-se em partidos políticos, com o objetivo de construir e fazer avançar uma alternativa efetivamente renovadora. Certamente, semelhante alternativa — no sentido de uma solução completa e duradoura — só poderá existir numa perspectiva socialista. Esta convicção é que serve de base à existência do Partido Comunista, que justifica sua história. Este postulado óbvio precisa ser lembrado por que constitui a referência fundamental para qualquer reflexão crítica da experiência do PCB. Reflexão crítica dos fatos, o que representa uma atitude oposta ao silêncio cúmplice dos que, entrincheirados em formulações genéricas de tipo determinista (como: "a experiência mostra que a verdade está de nosso lado...", etc.), praticam o mais primário oportunismo, fazendo alianças com "pelegos" e hipotecando solidariedade a quem possa obter mais votos, sem levar em conta os objetivos de classe dos elementos que apoiam.

Ao criticar essa postura de renúncia aos critérios e atitudes das mais elementares de uma militância efetivamente comunista, é necessário estarmos alertas em relação a um erro persistente, que inúmeras vezes cometemos no passado. Trata-se da separação entre os objetivos finais e as metas imediatas da luta, o que leva a que os primeiros desapareçam, ficando apenas as tarefas imediatas. Com isso desaparece, também, qualquer visão estratégica, qualquer projeto global para o futuro, que passa a ser adiado, tendo como pretexto as múltiplas tarefas e os inúmeros conchavos táticos. O resultado é a manutenção do status quo, tanto no Partido, como fora dele. Seguidamente, isso independe da intenção subjetiva dos homens envolvidos nessa dinâmica de circuito fechado. Em outros casos, a força da rotina, a política imediatista, acriticamente praticada, transformam-se numa segunda natureza dos indivíduos, passando estes a considerar os cargos como a única meta de militância. Opera-se, assim, uma degenerescência do Partido: a organização, de instrumento para a emancipação dos trabalhadores, passa a ser objeto de medíocres finalidades de carreira política.


Nota:

(1) Artigo de Luiz Carlos Prestes, hoje pouco conhecido, publicado na revista clandestina do PCB, Estudos, nº 2, de março de 1971, no auge da ditadura militar, em pleno Governo Médici, durante o qual a repressão contra os comunistas foi extremamente violenta. O PCB continuava atuante, apesar da rigorosa ilegalidade a que era submetido. A revista teórica do partido era editada em mimeógrafo; sua distribuição, feita de mão em mão.
O artigo de Prestes tem como tema central o combate às concepções “subjetivistas”, segundo as quais o processo revolucionário no Brasil deveria seguir modelos pré-existentes das experiências de outros países, como URSS, China, Vietnam ou Cuba. O então secretário-geral do PCB, ao fazer a defesa das resoluções do VI Congresso do partido, realizado em 1967 – embora já divergisse de alguns aspectos dessas resoluções, como se evidenciaria mais tarde –, mostra preocupação com a “tendência à transposição mecânica a nosso país da experiência de outros povos”.
O artigo é particularmente interessante, pois revelador da atenção dispensada por Prestes à caracterização do Estado brasileiro, por ele qualificado como “fortaleza da reação” e “muralha reacionária.” O secretário-geral do PCB adverte que os comunistas haviam deixado de lado “o poderio do Estado” no Brasil, “poderio que não é apenas econômico, mas também político e – o que é mais importante – apoiado numa tradição reacionária, de instrumento de opressão, de violência e de arbítrio contra a maioria da nação”.
A análise histórica do Estado brasileiro feita por Prestes neste artigo se mantém atual e, em grande parte, válida para nossos dias e para todos aqueles que se preocupam com as possíveis vias da revolução brasileira. (retornar ao texto)

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Inclusão 25/03/2010
Última alteração 26/05/2010