Sejamos marxistas

José Carlos Rates

15 de julho de 1923


Primeira Edição: O presente artigo foi publicado no nº 4 do quinzenário ‘O Comunista’, de 15 de Julho de 1923. Representa, porventura, o primeiro testemunho claro de encontro entre o marxismo e o movimento operário português da I República.

Fonte: O Comuneiro - https://ocomuneiro.com/paginas_m_rates_Sejamosmarxistas_1923.html

HTML: Fernando Araújo.


O Partido Comunista Português foi criado por simpatia para com a Revolução Russa e constituído na sua quase totalidade por antigos anarco-sindicalistas. Daí o facto de em mais de três anos de existência o PC não ter feito educação comunista, tal como preceitua e entende a IC. Muitos filiados do PC não têm o menor rebuço em proclamar o seu anarquismo, sem se aperceberem do abismo profundo que separa as duas ideologias - a marxista e a anarquista - e sem sentirem que as teorias de Moscou se baseiam nas doutrinas do grande mestre que foi Carlos Marx.

O facto é que existe um antagonismo profundo entre o comunismo marxista e o comunismo anarquista, senão na finalidade, pelo menos nos meios de atingi-Ia.

Estas duas tendências opostas hão-de inevitavelmente chocar-se na revolução que nos espreita.

Os anarquistas partem do princípio de que são os homens e as ideias que produzem os acontecimentos; nós, os marxistas, partimos do princípio oposto, isto é, estamos convencidos que são os acontecimentos que arrastam os homens e fazem brotar as ideias.

Para os anarquistas, a Revolução francesa será obra dos enciclopedistas, de Voltaire, de Rousseau, de Marat, de Danton e de Robespierre. Para nós, os marxistas, a Grande Revolução tem origens bem mais profundas. É o triunfo de uma classe cujas condições materiais de desenvolvimento se vinha operando desde há séculos. O trabalho servo não comportava, já em 1789, as necessidades do consumo e do comércio. A Revolução tornou-se por isso inevitável.

Decerto, a nossa filosofia da história não indica que é inútil a acção humana, que essa acção se deva excluir. O que nós queremos é que essa acção corresponda aos factos materiais existentes para não resultar ineficaz.

Os marxistas fazem brotar o comunismo não como um produto das suas imaginações mas como uma consequência necessária dos seguintes factos: 1.º - A evolução capitalista conduz à concentração das forças económicas e estimula as invenções científicas que utiliza para aumentar a produção; 2.º - A concentração das forças económicas faz nascer o proletariado cujo antagonismo de interesses com os seus exploradores gera o agrupamento das forças rivais e a luta de classes; 3.º - O desenvolvimento das forças produtoras exige a extensão dos mercados, quer para colocação dos produtos excedentes, quer para o fornecimento de matérias-primas; 4.º - A necessidade de expansão do capitalismo cria o imperialismo, ou seja a absorção pelos Estados mais vigorosos dos Estados mais débeis; 5.º - As tendências imperialistas dos Estados mais vigorosos chocam-se, arrastando guerras, crises e devastações cujas consequências determinam o exacerbamento da luta de classes e a aparição duma nova forma social - o comunismo.

Da mesma forma que o capitalismo não saiu de um jacto do feudalismo, sendo mister que a burguesia se apoderasse revolucionariamente do poder para assegurar as suas conquistas anteriores e prosseguir em novas conquistas, assim tambem o proletariado terá de proceder. O comunismo, isto é, o consumo à vontade, só é realizável depois de intensificar ao máximo os meios de produção, de dar todo o desenvolvimento à maquinaria moderna e o possível aproveitamento às riquezas naturais, coisas estas que o capitalismo não pode fazer por se oporem aos seus interesses. De facto, o capitalismo só tem interesse no aumento de produção até ao limite da capacidade de compra que se manifesta nos mercados. Uma superprodução além dos limites daquela capacidade, é-lhe prejudicial porque leva à paralisação das forças de produção e por consequência à restrição da possibilidade dos lucros.

Para os anarquistas não há que ter em conta estes factores. O homem por si só fará tudo. É verdade que eles se contradizem quando aceitam o determinismo e preconizam que é necessário modificar o ambiente para modificar o indivíduo. Frequentemente nós ouvimos dizer aos anarquistas que o proletariado poderia ter conquistado a sua liberdade completa em 1789 se não se deixasse guiar pelos Danton e Robespierre.

Ora os anarquistas sabem tão bem como nós que não há liberdade política sem liberdade económica. Como poderia o proletariado nesses tempos conquistar a liberdade completa se o proletariado nem como classe existia, por assim dizer? Lyon, que era então o maior centro manufactureiro, não contava mais de 80 000 operários; Paris tinha 16 000; Bordéus e Marselha menos ainda. Onde estava o elemento propulsor e factor da revolução, como a concebem os anarquistas? E não existindo ainda a máquina a vapor, como tornar efectivas a abundância e a circulação dos produtos que asseguram a todos o maior bem-estar?

E ainda mais: - o comunismo é essencialmente internacionalista. Desde que subsistam as barreiras fiscais subsistirão as rivalidades económicas e por consequência os exércitos.

Com que apoio externo contaria em França, em 1789, uma revolução que se abalançasse a suprimir todo o direito de propriedade privada, se a simples queda do feudalismo concitou contra a França a Europa inteira? A Inglaterra? Mas a Inglaterra dos fins do século XVIII não tinha proletariado. Era um país agrícola e comerciante. É nos princípios do século XIX, com a descoberta do vapor e o desenvolvimento da maquinaria, que ela pode dar aplicação aos seus vastos e ricos jazigos de hulha e ferro, convertendo-se de país agrícola em país industrial.

Estes factos essenciais não os querem os anarquistas tomar em consideração. E eles são tudo.

Para os anarquistas, a Revolução é o corolário da revolução psicológica dos povos. A educação é tudo. E eles, olhando as massas, vendo o seu atraso mental, não acreditam, não podem acreditar no triunfo da Revolução. Mas as massas sindicais acreditam na Revolução e actuam nesse sentido! É que não são anarquistas, muito pelo contrário, são comunistas sem o saberem. Só a filosofia marxista nos faz ver a inevitabilidade da Revolução, só ela nos dá a fé que é indispensável para remover montanhas.

Sejamos marxistas!


Inclusão: 05/01/2022