Os «Erros Fabulosos» do Marxismo segundo Borges de Macedo

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 1993


Primeira Edição: Política Operária  nº 36, Set-Out 1993

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Mais uma pedra para a sepultura do marxismo: está averiguado que a defunta teoria que tanto mal causou ao mundo cometeu «erros fabulosos» em matéria histórica. O corajoso desmistificador do «dogma marxista» é neste caso o Prof. Borges de Macedo, conceituado reaccionário da nossa praça ou, como agora se diz com mais educação, «figura polémica», num extenso ensaio, travestido de entrevista, que saiu em dois números sucessivos do Jornal de Letras, Artes e Ideias (9 e 16 de Junho).

Protegido atrás de um cerrado calão académico e amparado nos louvores dos venerandos dinossauros Joaquim Veríssimo Serrão e Gonçalves Rodrigues, o texto deve ter impressionado as almas simples, a ponto de não lhes permitir notar que os tais «erros fabulosos» do marxismo não chegam a ser enunciados. Certamente para não cansar o público com espinhosos problemas de interpretação histórica, Borges de Macedo limítou-se a revelar-nos a sua péssima opinião sobre o marxismo.

Peça demagógica, portanto. Mas isso que importância tem? Hoje em dia, tudo o que se diga em desabono do marxismo é acolhido como a evidência mesma pelos espíritos desempoeirados… os mesmos que há trinta anos engoliam como a hóstia sagrada tudo o que cheirasse a marxista!

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Borges de Macedo acha que a historiografia marxista é coisa que verdadeiramente nunca existiu. O marxismo, assegura, «pouco adiantou» à investigação histórica: limitou-se a falar em lutas sociais, como se fosse uma grande descoberta, para vender o «dogma» de que um novo modo de produção com uma nova classe dirigente iria tomar o lugar do capitalismo «condenado». O «Manifesto Comunista», esse «texto litúrgico», quis traçar um finalismo obrigatório à História, que teria que desaguar no comunismo. Resultou daqui uma «menorização do homem, frente ao universo envolvente». Mas a História, «pesquisa de responsabilidade científica», não pode ser submetida a messianismos…

Não está mal. Se o nosso catedrático fosse mais imaginativo poderia adubar o seu caldo com algumas outras acusações, tais como: a «redução obsessiva da História ao conflito entre classes antagónicas», a «demonização da propriedade», uma «lógica jacobina e terrorista», o «desconhecimento da dimensão espiritual do homem»… Poderia mesmo concluir, com Popper, Aron, Hannah Arendt, que as teorias sociais dos marxistas são comparáveis às teorias rácicas dos nazis, visto que ambos pregam o estabelecimento de uma ordem totalitária e não aceitam a «sociedade aberta»…

Bater no marxismo, porque não? Se Borges de Macedo, entusiasmado pela demolição do marxismo, se atira à dialéctica e considera subversivo todo o ataque à metafísica, quem somos nós para o criticar? Quem somos nós para negar o direito de os catedráticos recuarem para a idade das cavernas, se eles se sentem aí mais abrigados para prosseguir a sua «pesquisa científica»?

E compreensível. O «estudo objectivo da História» não pode tolerar uma teoria que divide os seres humanos em produtores e parasitas, convence o homem da rua que ele é o sujeito da História, anuncia o derrubamento da ordem estabelecida, descreve a democracia moderna como capitalismo em putrefacção…

O marxismo é de facto péssimo. Mas adiantou tanto ou tão pouco ao estudo da História que esta não voltou a ser o que era. Mesmo historiadores da escola dos «Annales» (que Borges de Macedo não se atreve a atacar reconhecem ter aprendido nele a relação entre o sistema económico e o político, o jogo das contradições de classes, as fontes sociais da ideologia. Mesmo o prof. José Mattoso, insuspeito de esquerdismo, já sentiu a necessidade de se demarcar das excomunhões. O nosso catedrático fundamentalista é que não vai nessa. Fogo para cima dos infiéis!

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O artigo não é contudo um exercício gratuito. Não é bem a teoria da História que preocupa Borges de Macedo. Ele quer, muito simplesmente, ajustar contas com os intelectuais culpados de simpatia ou tolerância no passado para com o marxismo. Ele acusa: «A resistência ao marxismo-leninismo-stalinismo em Portugal foi muito limitada». Aponta os que, nos anos trinta e quarenta, «se converteram ao marxismo, farejando o vencedor?». E lembra que contra essa maré avassaladora se levantou a «resistência» abnegada do escol dos intelectuais portugueses (entre os quais enfileirava já então… Borges Macedo, exactamente!).

Ficamos a saber que os inconformistas e defensores da liberdade crítica não eram investigadores como António José Saraiva ou Óscar Lopes; eram os professores que seguiam a cartilha fascista, como Damião Peres ou Lopes de Almeida. Quem «farejava o vencedor» não eram os que faziam carreira vergando a espinha à ditadura, mas os que se lhe opunham, arriscando emprego e liberdade! A resistência dos intelectuais não era contra a Censura, a vigilância da Pide, o espírito fradesco do ensino. Não. Os verdadeiros intelectuais estavam em luta contra o «predomínio marxista»! As obras válidas não eram as que denunciavam a desgraça de um povo faminto, ajoelhado sob o domínio dos caciques, mas as que estigmatizavam a «desumanidade do marxismo ateu». A opressão vinha do marxismo, não do fascismo!

Opressão tremenda, por estranho que pareça hoje, e Borges de Macedo explica porquê: é que os marxistas ocupavam lugares-chave na imprensa e daí enxovalhavam as pessoas honestas. (Não foi o caso, ressalva, de Mário Soares, pois, mesmo quando alinhou politicamente com os comunistas, pôs as suas reservas quanto ao primado da luta de classes. Por uma vez, estamos de acordo).

E quem vamos nós descobrir, fascinados, na galeria de honra dos resistentes à onda dissolvente do marxismo? Os próceres da «resistência oficial», como lhes chama. Entre eles, Moura e Sá, ideólogo fascista, e António Ferro, ministro da Propaganda do ditador! É verdade que Borges de Macedo lhes põe algumas reticências. Por serem entusiastas do fascismo? Que ideia! Apenas porque, «dado o empenhamento político paralelo, o seu eco era menor». Ou, dito em palavras mais grosseiras: o colaboracionismo militante com a ditadura não rendia porque era vomitado pela opinião pública…

Borges de Macedo, como é seu costume, excede-se. Ainda bem, porque nos permite apreciar-lhe a estatura moral. Paladino na renegação do marxismo, a que ficou a dever a sua carreira académica sob Salazar, afastado da universidade após o 25 de Abril — «vítima estóica de fanatismos perturbadores» lhe chama Gonçalves Rodrigues — reintegrado pela contra-revolução, coberto de honras, nomeado director da Torre do Tombo, encontrou agora a ocasião de se desforrar dos intelectuais que no passado o ostracizaram como «vendido». Mais vale tarde do que nunca.

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Com isto, não pretendemos dizer que a produção marxista deste século tenha sido uma maravilha. E indiscutível que a escola marxista em História sofreu o mesmo estrangulamento que rebaixou o marxismo em todos os terrenos, arrastado na decadência, agonia e decomposição do Estado soviético e do movimento comunista. É certo que o capitalismo «socialista» escravizou o marxismo, usando-o como uma vulgar arma de propaganda, negou durante longos anos a liberdade de pesquisa aos historiadores, manipulou a ciência histórica de acordo com as necessidades políticas do poder. E quando, na sua fase final, após o 20º Congresso do PCUS, enveredou pela «libertação dos dogmas» foi apenas para favorecer o florescimento dum revisionismo a caminhar mais e mais ao encontro do pensamento burguês.

No que se refere em particular ao nosso país e aos anos trinta e quarenta, é verdade que o marxismo foi acolhido como doutrina já feita, sem passado nem debate, cuja interpretação cabia à URSS, o que bloqueou a maturação duma corrente de pensamento marxista. Apesar da baixeza do seu escrito, Borges de Macedo nesse ponto acerta.

Mas o mal não veio de se ter posto a História ao serviço da «dialéctica da luta de classes» e do «dogma da revolução social», como ele acusa. Foi o contrário. Se a difusão do marxismo nos nossos meios intelectuais deixou muito poucos frutos, foi justamente porque o oportunismo que corroía o movimento comunista impedia um olhar aberto sobre as lições da luta de classes.

A opção do PCP pela democratização do capitalismo levou a distorções de toda a ordem na investigação histórica, sobretudo na história moderna: dissolveram-se os interesses próprios do proletariado nos de todo o povo e puseram-se em surdina os aspectos reaccionários da burguesia «patriótica», para se legitimar teoricamente a unidade nacional antifascista.

Mesmo assim, foi sob a inspiração do marxismo que se produziram os trabalhos de Barradas de Carvalho, Álvaro Cunhal, Armando Castro, Virgínia Rau, Miriam H. Pereira, César Oliveira, Fernando Rosas, Borges Coelho, Villaverde Cabral, Filomena Mónica — independentemente das opções que depois tenham tomado. Não são as eruditas e inócuas pesquisas da estagnada historiografia oficial, acorrentada às conveniências do poder, que lhes podem atirar pedras.

Deixemos que a actual febre revisionista da História produza as suas obras «realmente profundas», «emancipadas da tutela marxista», expurgadas de lutas sociais e outras obscenidades. Vai ser remédio santo: quando já ninguém suportar a vista dos abortos que aí vêm, o pensamento marxista ressurgirá com novo vigor.


Inclusão 10/06/2018