Cruzada Contra Castro

Francisco Martins Rodrigues

Abril de 1994


Primeira Edição: Política Operária nº 44 Mar/Abr 1994

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 Em sintonia com Mário Soares, que acaba de prefaciar o livro dum ex-comunista brasileiro reciclado denunciando Fidel Castro, censura Torcato Sepúlveda, numa crónica no Público de 19 de Fevereiro, “a esquerda bem pensante, os comunistas e sobretudo a extrema-esquerda”, por fazerem silêncio em torno das denúncias do regime cubano. E cita dois livros, um deles editado em Portugal, que considera “libelo terrível sobre a tirania que Fidel Castro exerce sobre o seu povo”.

Uma vez que a extrema-esquerda é chamada à pedra por T.S., devemos, pela parte que nos toca, como comunistas revolucionários, responder à pergunta porque se ocupa tão pouco a Política Operária com o movimento de oposição a Castro?

Poderíamos simplesmente observar que o actual amor pelos direitos democráticos dos cubanos não passa dum pretexto para popularizar a campanha que verdadeiramente interessa aos meios governantes mundiais: obrigar o regime castrista a respeitar o “direito humano” à livre iniciativa capitalista e à economia de mercado aberto. É por isso e não por quaisquer razões humanitárias que Cuba está submetida a um bloqueio comercial pelos Estados Unidos, bloqueio que origina privações inauditas ao seu povo e mergulha a economia do país no caos.

Esta infâmia, só por si, é razão suficiente para não querermos nada com os campeões do anticastrismo. Mas não só. Se repudiamos a farsa da “democracia socialista” propagandeada pelo regime de Castro, na qual não existe liberdade de expressão, de reunião, de organização em partidos, etc. elementos insubstituíveis da democracia —, não perdemos de vista que se trata duma ditadura muito menos repressiva do que os regimes tirânicos e sanguinários implantados em dezenas de países, mas piedosamente poupados pela grande imprensa apenas porque exibem o mérito de uma grande “abertura democrática” aos capitais estrangeiros e aos programas do FMI. Se nos ocupássemos a combater a ausência de democracia em Cuba, quantos artigos deveríamos escrever em cada número da P.O. sobre o Peru, a Colômbia, o Equador, a Turquia, a Argélia, o Irão, a Coreia do Sul, a Indonésia ou Taiwan? Devolvemos portanto a censura: porque não se empenha Torcato Sepúlveda na denúncia desses regimes, incomparavelmente mais repressivos do que o de Cuba?

Dir-se-á que o caso do castrismo é diferente, visto que se cobre com uma máscara “socialista” que lhe deve ser arrancada. Parece-nos fraco argumento. Depois que o bloco soviético caiu, o “socialismo” cubano (na realidade um abortivo capitalismo estatal) ficou reduzido a uma curiosidade histórica, agonizante, condenada a vegetar e a desintegrar-se a breve prazo. Pode Torcato Sepúlveda tranquilizar-se; mesmo sem o nosso apoio, a cruzada anticastrista está antecipadamente ganha.

Mas não é tudo. O regime castrista não vem à cabeça nas nossas listas acusatórias porque é também incomparavelmente menos explorador que a maioria das “democracias pluralistas” que lhe reclamam cinicamente “respeito pelos direitos humanos”. Se é verdade que em Cuba há desigualdades sociais crescentes, minorias privilegiadas e corrupção, elas estão longe de atingir as proporções da “livre” França (ou da Suécia, ou de Portugal), onde a voracidade sem peias dos capitalistas lança milhões na pobreza e na decomposição social e reduz as apregoadas liberdades democráticas a uma caricatura (e amanhã, não tenhamos dúvida, a um banho de sangue, se por acaso tentarmos tomá-las à letra).

Com isto, não pretendemos dizer que o regime castrista conserve quaisquer traços revolucionários. Mas, com a sua decadência, corrupção e degeneração actuais, ele não conseguiu ainda suprimir por completo as conquistas populares que instituiu na sua primeira fase revolucionária. Porque houve em Cuba uma autêntica revolução e é isso que T.S. parece ignorar. Ou será que é isso que ele não tolera em Cuba os vestígios da revolução?

Confessamos pois o pecado que nos é imputado: não nos apetece entrar no coro anti-Castro, mesmo que isso nos valha ser apontados a dedo pelos comissários políticos de serviço. Gostamos de denunciar os regimes que nos parecem mais ferozmente opressores e exploradores e não aqueles que a moda democrático-imperialista a cada momento escolhe como alvos a abater. Embirramos com as pressões para nos fazer erigir em “combatentes da liberdade” os sujeitos que a CIA patrocina, quer se chamem Armando Valadares ou Reinaldo Arenas.

Se T.S. tem pressa em ver o povo cubano “libertado” à maneira do povo das favelas de Bogotá, de Caracas ou S. Paulo, nós não. Temos pressa em ver os trabalhadores cubanos repudiarem Castro pela esquerda e orientarem-se para uma luta de classe independente, o que não tem nada a ver com a “democracia” que lhe cozinham em Washington. Corremos o risco de bater pouco no castrismo? É possível. Antes isso do que fazer de inocentes intencionais ao serviço da campanha dos capitalistas americanos para recuperar a Cuba dos seus sonhos: um casino e um bordel.


Inclusão 06/09/2018