“Perestroika” de M. Gorbatchov

Francisco Martins Rodrigues

Abril de 1998


Primeira Edição: Política Operária nº 14, Mar-Abr 1998
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

capa

Com a crítica à segunda parte do livro de Gorbatchov, intitulada “O novo pensamento no mundo”, concluímos estas notas de leitura, iniciadas na PO n.°12, de Novembro-Dezembro de 1987.

Jogos Olímpicos da Paz

Como vê o marxista Gorbatchov a luta de classes internacional? Pensa simplesmente que ela se apagou em face da ameaça de destruição nuclear:

“Até épocas muito recentes – escreve – a luta de classes permaneceu como eixo do desenvolvimento social“. “Mas agora, com o aparecimento de armas de destruição maciça, quer dizer, universal, surgiu um limite objectivo para a confrontação de classes na arena internacional” (pág. 163).

Esta ideia bizarra de que a luta de classes teria passado a segundo plano, suplantada pelo imperativo da coexistência, já fora lançada por Kruchov, há 30 anos. Mas agora é levada a uma etapa superior: já nem se deve dizer sequer que a coexistência pacífica seja uma “forma específica da luta de classes”; essa tese do 20° Congresso do PCUS também envelheceu e deve ser rejeitada (pág. 163). Agora a coexistência tem que passar a reinar soberanamente sobre a luta de classes.

O mundo deixa portanto de ser explicado pelo antagonismo de interesses entre proletariado e burguesia. Tempos novos exigem novos critérios. Quando está em jogo a sobrevivência da espécie humana,

“tornou-se uma exigência vital basear a política internacional em normas morais e éticas comuns a todos os seres humanos e humanizar as relações entre os Estados” (pág.157). “Todos devem repensar o seu papel neste mundo e comportar-se responsavelmente” (pág. 155).

Uma vez aceite esta filosofia do humano, as relações internacionais tornar-se-ão como que uns grandiosos jogos olímpicos da paz. Se os chefes políticos “se erguerem acima dos interesses mesquinhos”, reinará finalmente o diálogo alargado em busca do bem comum, não haverá mais agressões nem interferências mútuas.

“Que cada nação decida qual o melhor sistema e qual a melhor ideologia. Que isto seja decidido por competição pacífica, que cada sistema prove a sua capacidade de corresponder às necessidades e interesses do homem” (pág. 164).

Assim, o “novo pensamento” encaminhará o mundo para uma nova era “de prosperidade, de bem-estar, de felicidade” (pág. 280).

E, para aqueles que possam desconfiar que este “novo pensamento” é um abandono do marxismo, Gorbatchov esclarece que ele fora já abraçado por Lenine. Exactamente! Porque Lenine, embora fosse o chefe do partido do proletariado, “conseguia ultrapassar os limites impostos pela classe” (!!) e divisar o valor mais alto que se levantava acima da revolução proletária, “os interesses comuns a toda a humanidade”(pág. 162).

Arauto da Pequena Burguesia

Gorbatchov é o chefe de uma das maiores potências do mundo, não é um lunático evangélico. Com este catálogo de sentenciosas baboseiras pacifistas, que fins políticos espera ele atingir?

Decerto, não lhe passa pela cabeça converter os chefes do imperialismo. Ninguém em seu juízo perfeito acreditaria que Reagan, Thatcher ou Mitterrand possam ser sensíveis a exortações destas. Toda a gente sabe, até mesmo Gorbatchov deve saber, que o comportamento político dos imperialistas – cínico, agressivo, espoliador – não pode ser corrigido porque corresponde às próprias leis internas do capitalismo. A necessidade de acumular e concentrar o capital reina acima de tudo e a bomba atómica é mais um dos seus instrumentos. Se alguma coisa o perigo de destruição nuclear trouxe de novo ao imperialismo foi um ainda maior gangsterismo e espírito de aventura.

Para quê então estas pregações, que só podem adormecer a vigilância dos trabalhadores e que os imperialistas não deixarão de interpretar como sinal de medo e fraqueza? Não aumentam elas ainda mais o perigo de confrontação nuclear?

Gorbatchov não é tão tolo como parece. Obviamente, quando apela aos bons sentimentos dos chefes imperialistas, ele está a dirigir-se às massas pequeno-burguesas de todo o mundo, às burguesias dependentes, a todas as forças intermédias excluídas da chefia do campo capitalista ocidental.

Na lógica dos actuais dirigentes soviéticos, o poderio temível do campo imperialista não deixa outra alternativa senão a luta por reformas – e nisso, todos sabem que a pequena burguesia é especialista.

É a ela que Gorbatchov pretende seduzir com os seus sermões de concórdia universal, para com ela formar uma frente comum pacifista-humanista-reformista, capaz de limitar o campo de acção do imperialismo. A formação de uma frente comum do reformismo internacional – tal é a essência política e de classe do “novo pensamento” gorbatchoviano.

Se bem que esta política não seja uma novidade – pois já tinha sido proclamada por Kruchov no 20.° Congresso e as suas raízes vêm de mais de trás ainda, das “frentes populares” do 7° Congresso da Internacional Comunista – é agora que ela ganha um corpo ideológico e político acabado com o solene manifesto pacifista de Gorbatchov. Passado meio século, o humanismo antifascista de Dimitrov desabrocha enfim no humanismo puramente humano de Gorbatchov. A lógica da luta para ganhar a pequena burguesia é levada às suas últimas consequências.

Aposta Necessária

Poderá perguntar-se se não é cegueira querer fundar uma política externa na aliança com forças tão incoerentes, cobardes e traiçoeiras como são as pequenas burguesias e as burguesias dependentes. Mas isto é não ter em conta que essa escolha é a única possível para a burguesia soviética, pelo menos enquanto durar a actual correlação de forças mundial.

É bem compreensível que a burguesia no poder na URSS veja nas camadas burguesas intermédias do Ocidente o seu aliado natural. Há muitos interesses que as aproximam. Movendo-se em campos diferentes, ambas precisam para sobreviver de moderar o apetite insaciável do grande capital monopolista, negociar um espaço no mercado mundial, tentar adiar embates.

Ambas temem as consequências imprevisíveis das aventuras militares do imperialismo. Ambas são impelidas pela sua posição subalterna para o sonho de reformar o capitalismo, de impor normas éticas de convivência aos centros financeiros.

E, embora Gorbatchov assegure que “o socialismo não vai ser reabsorvido”, embora exiba um optimismo postiço quanto à possibilidade de a URSS manter indefinidamente a paridade na corrida aos armamentos, “duplicar e mesmo triplicar a produtividade até ao ano 2000” (pág. 184), incentivar o “espírito empresarial socialista” (pág. 186), ele sabe que as realidades não são risonhas.

Assim, se ele fala como um vulgar pacifista pequeno-burguês, cheio de boas intenções ocas, não é por simples demagogia mas porque os valores da sua classe tendem a identificar-se nesta fase com os de todas as camadas burguesas dependentes dos monopólios.

Com a glasnost, ele espera demonstrar à pequena burguesia de todo o mundo que já nada tem a temer da URSS, que esta já não está “hipnotizada por mitos ideológicos” como no passado (pág. 235), que o papão totalitário acabou e que pode confiar definitivamente na boa-fé do humanismo soviético.

Se o apelo fosse ouvido, quem sabe, chegaria o dia em que os burgueses honestos de ambos os campos poderiam meter na ordem os centros do complexo militar-financeiro do Ocidente e o mundo inteiro passaria gradualmente a um “socialismo” semelhante ao da União Soviética…

Classe Operária - Força de Reserva

Isto não quer dizer, naturalmente, que os governantes soviéticos percam de vista o papel da classe operária internacional na luta para conter o imperialismo. Mas, para eles, a classe operária só conta como força primária, sem cabeça própria. A lição que tiraram destes últimos decénios é que o meio mais seguro, mais viável e eficaz de mobilizar as massas operárias é através da tutela da pequena burguesia reformista.

Ganhar a pequena burguesia como aliado privilegiado e, por seu intermédio, a classe operária como força de reserva – assim se poderia formular esta nova estratégia internacional da classe dirigente soviética.

Esta é uma outra confirmação da transformação social que se operou na URSS. No tempo de Lenine, o poder revolucionário instaurado na Rússia dirigia-se audaciosamente aos operários de todo o mundo, por cima das cabeças das suas burguesias, e apelava sem disfarces à revolução proletária para destruir o imperialismo. Era a única estratégia possível para o governo dos operários e camponeses.

Hoje, o realismo impõe que se esqueçam as declarações de guerra ao capital. Hoje, o ponto de apoio externo que o regime da URSS procura já não é a luta do proletariado internacional pela revolução. A URSS, explica Gorbatchov, não tem propósitos subversivos, não pretende “exportar a revolução” (págs. 165-168), não pretende “provocar o caos nas relações internacionais” (pág. 232). Ou seja, muito simplesmente: a URSS actual já não deseja ver surgir em qualquer ponto do mundo uma revolução proletária, que só serviria para desestabilizar as suas relações com o imperialismo.

Em vez disso, aposta numa solução muito menos arriscada – a mobilização dos contingentes operários de cada país pelas suas pequenas burguesias, em torno de bandeiras democráticas, patrióticas, pacifistas, antimonopolistas, cingindo-se às formas de acção legais e parlamentares.

É essa a grande tarefa atribuída aos partidos “comunistas”, mas não só; Gorbatchov dirige-se com particular calor aos partidos social-democratas, a todas as personalidades democráticas. A conquista da pequena burguesia reformista exige uma perspectiva ampla. O PCUS não hesitará em passar por cima dos seus fiéis porta-vozes “comunistas” no exterior sempre que eles se mostrem incapazes para materializar a grande aliança que busca.

Atenção! Perigo de Explosão!

Igualmente reformista é a postura de Gorbatchov perante os sacrifícios tremendos a que os povos dos países dependentes são submetidos pela selvajaria do imperialismo. Depois de fazer uma vibrante condenação moral do neocolonialismo, ele tem o cuidado de frisar:

“Embora não aprovemos as características das actuais relações entre o Ocidente e os países subdesenvolvidos [não é uma forma educada de pôr a questão?], não incitamos à ruptura (pág. 156).

E as razões porque aqui também se impõe uma atitude “ponderada” e “responsável” são expostas com toda a franqueza. O grande problema com o Terceiro Mundo, segundo Gorbatchov, é que os capitalistas ocidentais, que há muito reconheceram a necessidade de condicionar a busca do lucro máximo às reivindicações do movimento operário, ainda não compreenderam a necessidade de uma limitação semelhante nas suas relações com as ex-colónias.

Daí a estagnação destas, a miséria das massas e a acumulação de dívidas externas monstruosas, o que é verdadeiramente brincar com o fogo. E avisa a burguesia:

“A divida dos países em vias de desenvolvimento transformou-se numa espécie de bomba-relógio. A detonação dessa bomba pode ter resultados catastróficos. Está a preparar-se uma explosão social com uma força destrutiva tremenda (pág. 192).

A revolução dos povos oprimidos contra o imperialismo, lançando ao mesmo tempo pelos ares as suas próprias burguesias “nacionais” traidoras, eis o grande perigo que Gorbatchov divisa para o seu plano de pacificação mundial. Para esse perigo alerta pedagogicamente todos os burgueses esclarecidos.

A URSS, pela sua parte, fará o que estiver ao seu alcance para evitar essa cafástrofe. E, como prova de boa-fé, Gorbatchov assegura que

“a União Soviética por princípio reprova o terrorismo e está disposta a colaborar energicamente com os outros Estados para a erradicação deste mal”, incluindo “acordos bilaterais especiais numa frente de combate comum ao terrorismo internaclonal(!) (págs. 193-194).

Numa época em que o terrorismo de Estado da burguesia atingiu níveis de banditismo inimagináveis algumas décadas atrás, oferecer a colaboração da URSS para combater o terrorismo anti-imperialista – pode haver confirmação mais obscena da degeneração burguesa do antigo país dos sovietes?

Recuo Estratégico

O “novo pensamento” de Gorbatchov é um produto dos sucessivos desaires sofridos pela URSS, da crise da sua economia, do declínio da sua influência internacional.

Durante 30 anos, após o 20° Congresso do PCUS, a burguesia soviética acalentou a ilusão de que o regime de capitalismo de Estado teria capacidade para competir com o campo imperialista em todas as frentes, desgastá-lo e acabar por conduzi-lo ao esgotamento. Agora chegou o momento em que já não é mais possível manter essa ficção.

Se a paridade em armamento nuclear foi mantida, o decorrer das últimas décadas demonstrou que a corrida com os EUA está a ser perdida em todos os outros terrenos. O sistema de planificação e o aparelho burocrático que o sustenta tornaram-se um autêntico colete de forças, que bloqueia o crescimento das forças produtivas e a modernização tecnológica. Sujeito a severas restrições à concorrência, o capitalismo soviético asfixia.

Como resultado desta crise interna, o auxílio económico e técnico com que a URSS tentava comprar a aliança das burguesias nacional-reformistas saldou-se por um fracasso. Por toda a parte – na Europa oriental e no Vietname, nos países árabes, em Angola e Moçambique, em Cuba – as classes governantes chegam à conclusão de que só do campo ocidental poderão obter capitais e tecnologia, mesmo à custa de se submeterem ao garrote do FMI. A “comunidade socialista” desagrega-se. As ambições imperialistas de Brejnev naufragam num aborto.

Chegou pois para os chefes da URSS a hora da autocrítica. Já não têm dúvidas de que é forçoso um recuo em toda a linha, para reconverter o sistema económico, começar a libertar a concorrência, recuperar do atraso em que se encontram.

Isto significa que, no campo externo, os regimes “populares” que eram a sua ponta de ataque vão ser abandonados à sua sorte. O que se está a passar no Afeganistão, na Nicarágua, em Moçambique, Angola, etc, é o começo de uma derrocada. A margem de manobra agressiva dos Estados Unidos aumenta de dia para dia.

Os pequeno-burgueses de todo o mundo que, com a cegueira habitual, se felicitam pela “abertura Gorbatchov” descobrirão, dentro de pouco tempo, o seu verdadeiro significado. É preciso que também os operários percam as últimas ilusões no bastião “socialista” e retomem a luta por sua própria conta — pela revolução proletária, banida desde há meio século como “impossível”.


Inclusão 07/11/2016