A Ruptura com o PCP em 1964-1965 (1)

Francisco Martins Rodrigues

2007


Primeira Edição: Texto inacabado, inédito, possivelmente de 2007

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Duas linhas opostas na luta contra a ditadura de Salazar

Este texto recupera um conjunto de artigos escritos quando do meu abandono do PCP em 1963, já lá vão 40 anos. Editados no ano seguinte em Paris, na revista Revolução Popular, do Comité Marxista-Leninista Português (à excepção do primeiro, publicado em panfleto nos finais de 1963), há muito esquecidos, tiveram contudo na altura, apesar da circulação reduzida, uma influência indiscutível nos meios mais radicalizados da resistência, sobretudo entre a juventude. Basicamente, abriram a discussão sobre qual deveria ser a política comunista para o derrubamento da ditadura fascista, quando o início das guerras coloniais anunciava a crise final desta.

A política do “levantamento nacional” adoptada pelo PCP — afirmava a Revolução Popular, em comentário ao Rumo à Vitória de Cunhal — conduzia o proletariado a ser usado como “força de choque” pela burguesia democrática, ajudando esta a fazer uma transição controlada para um regime capitalista modernizado. “Se não se diz que a ditadura fascista de Salazar é a conclusão e o produto superior da República burguesa de 1910-26, que ‘salazarismo’ quer dizer simplesmente ‘capitalismo português’ — então contribui-se para alimentar no proletariado e nas massas populares a ideia de que é possível voltar a estabelecer em Portugal um regime burguês democrático e não-monopolista, ajuda-se a burguesia a preparar tranquilamente a modernização do seu poder sob a capa da ‘liberalização’.” Donde se concluía que “a via defendida pelos dirigentes do Partido só pode facilitar o triunfo de um golpe militar e o escamoteamento da revolução pela burguesia” — o que de facto aconteceu, como hoje todos sabem.

Pode pois dizer-se sem exagero que a Revolução Popular previu, com dez anos de antecedência, o rumo da malfadada “Revolução dos cravos”, da aparente vitória popular pacífica no 25 de Abril à frustrante derrota sem combate, dezanove meses mais tarde.

Os artigos chegavam a esta conclusão (na época olhada pelos meios afectos ao PCP como “sectária” e “aventureira”, senão “provocatória”) porque encaravam a luta antifascista do ponto de vista dos interesses próprios do proletariado e não segundo a ideologia democrático-unitária que até aí era norma na política do partido. A lógica intuitiva dos informes de Cunhal — “unidade, garantia da vitória”, “valorizar tudo o que nos une, pôr de lado tudo o que nos divide”, “contra um inimigo que oprime todas as classes, é preciso um movimento único” — esquecia que o antifascismo dos operários não podia ser igual ao dos democratas burgueses. Para cada classe o fascismo representava um grilhão diferente; cada uma tinha os seus horizontes próprios para lá da queda do fascismo; cada uma tinha portanto que encontrar a sua estratégia própria de lhe fazer frente. Para adquirir a sua identidade política própria, o proletariado tinha que se diferençar em relação aos outros — o que significava criticá-los, rejeitar os seus pontos de vista, denunciar a subjugação a que eles procuravam submetê-lo. Só a partir desta atitude de independência política se poderia pensar numa conjugação eficaz de esforços com outros sectores. A aspiração altruísta de fabricar um único ideal antifascista comum a todo o povo democrata podia conseguir a adesão espontânea da maioria dos activistas, ansiosos pelo fim da ditadura, mas era uma armadilha porque privava o proletariado de afirmar os seus interesses próprios, punha-o ao serviço do antifascismo burguês — catalogado como o único antifascismo possível — e com isso chegava a um resultado oposto ao desejado: nivelava o movimento antifascista pelo calculismo manhoso da burguesia liberal, interessada em assegurar que a queda da ditadura não poria em causa a submissão do proletariado; em vez de apressar a chegada da liberdade popular, atrasava-a; em vez de deslocar o proletariado para a posição mais favorável no momento em que a ditadura caísse, privava-o de consciência própria e de objectivos próprios. Em vez de construir a vitória, preparava a derrota.

Assim, ao olhar a luta antifascista na perspectiva exclusiva do proletariado e não de um mítico e difuso “povo português” superclassista, a Revolução Popular descobriu, onde até então os activistas viam a única opção óbvia e normal para a resistência, cedências desastrosas para os explorados:

Esta submissão política do proletariado ao democratismo burguês, que se fazia passar por uma exigência da etapa antifascista da luta, salientava a Revolução Popular, não resultava de um mero erro de análise: era a aceitação pelos dirigentes do PCP da continuidade necessária do regime burguês para lá da queda da ditadura; significava uma rejeição camuflada do horizonte revolucionário; porque o fim do fascismo, na ausência de uma real convulsão revolucionária, serviria “para modernizar a ditadura burguesa, libertando-a das suas actuais dificuldades, para a burguesia se apoiar nos monopólios nacionalizados e recomeçar livremente o seu ciclo de concentração”.

Obviamente, estas não eram grandes descobertas na história da política comunista. Inspiravam-se na clássica linha leninista da independência política e da hegemonia do proletariado na luta pela democracia. Mas só o facto de se tentar aplicar os princípios do leninismo às condições do nosso país constituía uma ruptura com longos anos de tacanho democratismo que, em nome da sagrada “unidade de todos os portugueses honrados”, abolira todo o pensamento político em termos de luta de classes e reduzira o proletariado a mera força de reserva ao serviço da burguesia liberal, ao mesmo tempo que nunca se esquecia de proclamar aos quatro ventos “o papel determinante do proletariado e do seu partido”.

Assim, a Revolução Popular deu os primeiros passos para pôr em causa o marxismo de via reduzida que, desde meados dos anos 30, orientava o PCP (e que, compreendemo-lo mais tarde, era a tradução para português da “viragem unitária antifascista” do VII Congresso da Internacional Comunista). Ao lançar abertamente a pergunta “Luta de classes ou unidade dos portugueses honrados?”, os artigos da Revolução Popular romperam o tabu que até aí impedia o debate no campo comunista, pelo receio de “favorecer o fascismo”. Demonstraram que justamente a ausência desse debate estava a favorecer o fascismo, na medida em que castrava a consciência dos comunistas. Deram a tónica para uma forma inteiramente nova de conceber a política comunista, há longo tempo soterrada sob espessas camadas de preconceitos reformistas. Lançaram pistas para uma nova forma de encarar a luta política em Portugal e inspiraram o surgimento de uma nova corrente de ideias políticas: os marxistas-leninistas.

Prova de que os dirigentes do PCP entenderam muito bem o alcance da crítica que lhes era feita foi a determinação com que trataram de a enterrar. No muito divulgado Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, escrito pouco tempo depois, Álvaro Cunhal rebateu com grande desenvolvimento uma série de críticas que lhe vinham a ser feitas nos meios da emigração (na generalidade dos casos pouco consistentes, quando não abertamente social-democratas) mas não fez qualquer referência directa aos argumentos desenvolvidos na Revolução Popular, que contudo conhecia bem. Usou o velho expediente oportunista de rebater as críticas que lhe eram feitas pela direita para mais facilmente silenciar as que lhe eram feitas pela esquerda. Anos mais tarde, quando não pôde continuar a ignorar essa crítica, coleccionou uma série dc argumentos para uso interno do partido, editados depois do 25 de Abril no volume Acção Revolucionária, Capitulação e Aventura, a .......... documentos do PCP foi reconhecida sequer a existência da plataforma de 1964. “querem avançar directamente para o socialismo”, “verbalismo esquerdista” Por uma série de “fintas” ideológicas, as oito tarefas da sua “Revolução Democrática e Nacional” omitiam a questão essencial do poder. Mesmo as suas reivindicações aparentemente mais avançadas, como a nacionalização dos monopólios e a reforma agrária, serviriam.

Dizem ainda hoje os dirigentes do PCP que a crítica de 1964 se demonstrou errada, já que o movimento antifascista foi de facto conduzido ao triunfo pela política então traçada:

“O fascismo caiu, tal como se previra em Rumo à Vitória, pela conjugação do movimento popular, da luta dos povos coloniais e da acção dos democratas e dos militares patriotas”.

Isto é falso em dois aspectos. Primeiro, a fórmula da “conjugação” de várias forças oculta que o factor de longe decisivo para a queda do fascismo foi o levantamento em armas dos povos africanos, os quais suportaram sem vacilar treze anos de bárbara guerra colonial; o contributo da luta nacional para o derrube da ditadura foi lateral e auxiliar, mesmo quando o PCP enveredou (tardiamente e sob pressão externa) pela sabotagem do esforço de guerra; sem a ameaça de derrota militar em África, o mais certo era a “gesta dos capitães” nunca ter visto a luz do dia. E foi essa mesma participação secundária da resistência antifascista na queda da ditadura que ditou a imaturidade política do movimento popular que se lhe seguiu.

Houve uma explosão de iniciativa das massas, um momento de desconcerto e pânico da burguesia, que abriram enormes potencialidades, mas quando o PCP apregoava o cumprimento do programa da “Revolução Democrática e Nacional”, com a liberdade, as nacionalizações, a reforma agrária e Cunhal sentado no Conselho de Estado, o que veio a seguir não foi a prometida “democracia avançada a caminho do socialismo” mas a impreparação do proletariado para fazer frente à contra-ofensiva dos “portugueses honrados”, aliados aos adversários fascistas da véspera para “acabar com o terror anarco-populista” e “repor a ordem”. A triste derrota de 25 de Novembro estava programada: as oito tarefas da “Revolução Democrática e Nacional” tinham “esquecido” a questão essencial — o poder. Como havia o proletariado de captar as linhas de força da luta declasses em curso quando os seus dirigentes lhe vendiam diariamente a mística da “aliança Povo-MFA”, tal como no passado o tinham amarrado à “unidade, garantia da vitória”? Foi dc tal ordem a derrota causada pela mistificação da “Revolução Democrática e Nacional” que, ainda hoje, passados trinta anos, o proletariado não sabe como reagir à chafurdice desta insolente democracia capitalista, reedição modernizada mas não menos sórdida das relações de classe do fascismo.

Razão tinha pois a Revolução Popular quando afirmava, dez anos antes dos acontecimentos, que “a Revolução Democrática e Nacional defendida em Rumo à Vitória é a teoria e a prática da passagem de Portugal dum regime capitalista antiquado a um capitalismo moderno”. O 25 de Abril, se o despirmos dos mitos democrático-lírico-chauvinistas habituais e olharmos para a sua lógica social interna, foi orientado de modo a permitir a modernização do regime burguês anquilosado; o papel do PCP foi assegurar, com promessas miríficas de “revoluções” imaginárias, que a impaciência e a revolta dos explorados não comprometeriam esse período delicado de transição entre os dois tipos de governo burguês — da ditadura para a democracia.

continua>>>
Inclusão 12/11/2018