A Ruptura com o PCP em 1964-1965 (2)

Francisco Martins Rodrigues

2007


Primeira Edição: Texto inacabado, inédito, possivelmente de 2007

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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A saída do capitalismo só pode ser encontrada pelo proletariado

A crítica de 1964 pôs o dedo na ferida do reformismo que submetia o proletariado à burguesia liberal, em nome das exigências do antifascismo. Faltou-lhe muito, porém, para ser uma plataforma comunista coerente e essa falta esteve na origem dos problemas que levaram o movimento nascente dos marxistas-leninistas a desagregar-se, duas décadas mais tarde.

Sem dúvida, os artigos da Revolução Popular não se limitavam a denunciar a fraude da “revolução” de Cunhal. Diziam que a mistificação não era inevitável e que o proletariado podia fazer da queda da ditadura o primeiro passo de uma verdadeira revolução, desde que, apoiado nesse poderoso aliado externo que eram os povos coloniais em rebelião, tomasse a iniciativa da insurreição antifascista, chamando para o seu lado os camponeses pobres. Dizia que essa insurreição seria possível desde que os trabalhadores combinassem as lutas de massas, as greves e manifestações com a sabotagem do esforço de guerra, os atentados e outras acções de grupos armados, de modo a desorganizar o aparelho de poder.

Esta perspectiva, todavia, assentava no pressuposto (falso) de que estaria em curso nas fileiras do Partido Comunista e da classe operária uma radicalização revolucionária imparável. No primeiro dos artigos citados, “Luta pacífica e luta armada no nosso movimento”, invocando a situação da Rússia nas vésperas da revolução de 1905 como termo de comparação com a situação portuguesa dos anos 60, desenhava-se a crise do fascismo português pelo modelo da crise do czarismo e pretendia-se que o proletariado português, depois de ter percorrido diversas etapas na resistência à ditadura, atingira um nível de combatividade superior desde 1958 e estava consciencializado para passar à luta armada.: “No nosso país, as forças revolucionárias e as forças contra-revolucionárias encontram-se hoje alinhadas frente a frente e fazem os últimos preparativos para a grande batalha”, etc.

Para levar até ao fim a crítica do reformismo de Cunhal teria sido necessário reconhecer que essa linha política se implantara profundamente no proletariado ao longo de várias décadas. Depois da derrota do 18 de Janeiro e a dispersão dos núcleos proletários avançados, as “frentes populares” de corte democrático-burguês do VII Congresso da IC.

Este erro de análise, induzido pela premência de encetar a luta contra as guerras coloniais, de tornar patente de imediato a diferença entre a linha revolucionária e a linha reformista e de assegurar a presença de uma força revolucionária no processo de queda da ditadura, levou contudo a uma postura “vanguardista”, sob a influência do guevarismo então dominante na juventude radical. Na realidade, a tónica posta nas acções armadas preparatórias da insurreição não correspondia nem ao estado de espírito dos militantes nem ao estado de espírito das massas.

Ou melhor, correspondia a uma confluência de movimentos limitados: por um lado, a necessidade de romper com a inércia do PCP, sempre temeroso dos “perigos do aventureirismo”, e passar a formas mais radicais de luta contra a ditadura; por outro lado, o entusiasmo que entre as camadas radicalizadas da juventude despertava a revolução cubana e, mais tarde, a revolução cultural chinesa. Eram dois factores positivos, mas só por si não eram suficientes para dar corpo ao essencial – a separação do proletariado em relação à burguesia democrática. Por isso, a ruptura política anunciada nas páginas da Revolução Popular não teve seguimento e o movimento [...]

Criou-se um fosso entre as ambições de intervenção revolucionária imediata e a ausência de implantação no proletariado ou, sequer, de uma estrutura organizativa mínima. A fraqueza e a precipitação do primeiro núcleo marxista-leninista que levou ao seu desmantelamento precoce não podem ser desligados da falta de base de apoio para criar uma corrente política efectiva. Para que um novo Partido Comunista emergisse, capaz de trocar a tradicional dependência face à “oposição democrática” por uma aliança combativa dos milhões de pobres e oprimidos, a caminho de uma insurreição; para que os trabalhadores combinassem as lutas de massas, as greves e manifestações com a sabotagem do esforço de guerra, os atentados e outras acções de grupos armados, de modo a desorganizar o aparelho de poder, fazendo da queda do fascismo um golpe profundo na burguesia e um trampolim para históricas conquistas revolucionárias neste país – para que tudo isto fosse possível seria necessário um período de maturação da nova corrente política que as circunstâncias já não consentiam.

Os grupos M-L moveram-se ao longo dos dez anos seguintes num vazio programático, combinando proclamações insurreccionistas com tímidas tentativas de agitação autónoma.

A nova corrente comunista balbuciante viu-se confrontada com a fase final da ditadura e não chegou a sair do meio estudantil onde lançara algumas raízes. A luta contra a guerra colonial e, no plano internacional, a crítica da política da URSS (crítica na época muito mal vista na esquerda por ser aplaudida pela direita) consumiram o essencial dos seus esforços. Ao chegar o 25 de Abril, a implantação no proletariado tinha feito progressos escassíssimos.

Ao entrar-se na crise revolucionária de 1974-75, pouco restava aos grupos “m-l” da intenção inicial de enquadrar a luta antifascista nos interesses próprios do proletariado, demarcando-se das outras classes, construindo a sua independência política. A vanguarda proletária consciente só teria saído de uma crítica afincada, dia a dia, a cada força política com influência no mundo proletário, do PCP ao MFA, do MES ao PRP, aos anarquistas, etc., do desfibrar das suas propostas políticas e palavras de ordem, para a materialização de uma outra corrente. Não que tenham faltado as críticas dos m-l ao PCP, mas eram quase sempre críticas toscas ao seu “social-fascismo”, incapazes de pôr a claro as motivações pequeno-burguesas da sua política e de fornecer uma alternativa independente ao proletariado.

O que tem algum interesse histórico, mas sobretudo um interesse actual. De facto, na crítica há 40 anos feita ao PCP está já contido o essencial da opção que hoje se coloca aos militantes anticapitalistas: o campo de acção próprio do proletariado reduz-se à luta económica pela melhoria das suas condições de vida, subordinando-se no terreno político aos interesses dos sectores críticos da burguesia, ou pode e deve o proletariado formular os seus objectivos de luta política a partir dos seus próprios interesses de classe e só deles?

A verdade é de classe

[...] foi que meteu, em lugar do paternalista elogio do povo e das suas causas autoevidentes, a compreensão do rumo da luta de classes no próprio campo da oposição à ditadura. Vista segundo os interesses do proletariado mas não fazendo concessões ao imediato para “provar” a sua fidelidade à causa dos trabalhadores. Isto representa uma grande ruptura: passar da adulação dos trabalhadores para a consciencialização.

Escolhendo a linha aparentemente mais fácil das reivindicações razoáveis (do ponto de vista da ordem burguesa), da associação ao movimento da pequena burguesia, o proletariado tem afinal tornado mais difícil, mais prolongada e mais dolorosa a caminhada para a sua meta revolucionária. E mais que tempo de se descolar dessa posição subalterna e de se lançar à sua própria luta pelo socialismo, pela revolução.

O comunismo, para voltar a existir como corrente política em Portugal, precisa de respostas novas. Mas alguma coisa permanece actual da crítica de há 40 anos: a consciência de que a saída do capitalismo só pode ser encontrada pelo proletariado – o que significa a necessidade de este se guiar pelos seus interesses próprios de classe, se não quiser ser um mero joguete deste ou daquele sector da burguesia. Essa conclusão, óbvia à luz do marxismo, e contudo tremendamente difícil de aplicar na política prática porque todos os dias a dinâmica das relações de classe estabelecidas, empurra o proletariado para o lugar de instrumento

O marxismo-leninismo surgia contudo, em Portugal como no resto da Europa e um pouco por todo o mundo, em resultado da dissidência do Partido Comunista da China e da sua ruptura com a União Soviética. E foi sem dúvida um mérito do Comité Marxista-Leninista Português e de Revolução Popular o facto de ter introduzido no nosso país a crítica do revisionismo moderno então lançada pelo Partido Comunista da China.

Rompendo o tabu que proibia ao campo da esquerda qualquer crítica ao “socialismo” em vigor na União Soviética e aos partidos comunistas, a revista desmontou como puro e simples abandono do marxismo as “inovações” então em moda sobre a “coexistência pacífica” e a “passagem pacífica e parlamentar ao socialismo”. E, o que é importante, denunciou-os não em nome dos valores da “democracia” como faziam os social-democratas, em coro com a CIA, mas em nome da fidelidade à grande revolução de 1917 e ao leninismo; não para esbater a oposição ao imperialismo, mas para reavivar a luta sem tréguas contra ele. E, deve-se sublinhá-lo, Revolução Popularnão se limitou a reproduzir os tópicos lançados pelo PC da China e pelo PT da Albânia, como aconteceu com tantos outros grupos “M-L” nos anos seguintes; preocupou-se em discutir a sociedade portuguesa e procurar uma política independente para o proletariado português.

O facto é que esse alinhamento internacional empurrou para segundo plano a questão formulada nos artigos iniciais da Revolução Popular: a busca de uma via para o derrubamento revolucionário da ditadura fascista. Rotulados como “pró-chineses” e “maoístas”, vimos apagar-se o enraizamento da nossa crítica na luta de classes nacional.

Isto implicava necessariamente a criação de uma nova organização, de um novo partido comunista. À excepção do primeiro artigo, “Luta pacífica e luta armada no nosso movimento”, que foi uma exortação aos militantes para que criticassem ou destituíssem os dirigentes oportunistas e repusessem a linha revolucionária (resultado das minhas ilusões no momento de romper com o partido – em 1963 este era um apelo a um partido inexistente, já que o PCP há muito se consolidara como um bloco reformista e se tornara cego para perspectivas revolucionárias), nos artigos seguintes, publicados em Revolução Popular, essa ilusão foi abandonada e passou-se a defender a necessidade da reconstrução do partido comunista.

Com esse alvo declarado, fundaram-se nos anos seguintes, na esteira do CMLP, diversos grupos marxistas-leninistas, com uma acção apreciável na resistência ao fascismo e às guerras coloniais, os quais, logo a seguir ao 25 de Abril, encetaram a sua unificação. Nessa altura, os artigos da Revolução Popular ressurgidos, em reedição fotocopiada por iniciativa de um grupo de activistas comunistas, contribuíram para a consolidação da corrente que viria, meses mais tarde, a agrupar-se na UDP e depois no PCP(R), separando no então chamado “movimento M-L”, a ala esquerda, leninista, da ala direita, abertamente social-democrata, que seguiu os dirigentes do PC da China em toda a sua deriva nacionalista, sob a bandeira do “anti-social- imperialismo”.

A existência de uma corrente à esquerda do PCP ao longo da década de 70, antes e após o 25 de Abril, com uma crescente implantação de massas, é um facto que hoje não interessa a quase ninguém reconhecer mas que nem por isso deixou de marcar com a sua presença a luta de classes no nosso país.

Isto, que aos chefes do PCP parecia de uma lógica elementar, era a rejeição, pura e simples, do leninismo, que o PCP não se cansava de reverenciar em palavras. Imagine-se os bolcheviques na Rússia czarista a actuar segundo os princípios da unidade democrática: teriam feito causa comum com mencheviques e socialistas-revolucionários, neutralizando à partida a crise revolucionária de 1917! Foi só devido ao rigor com que Lenine e os bolcheviques desfibravam os interesses das diversas classes na luta contra a autocracia, adoptando os interesses exclusivos do proletariado como guia, que eles conseguiram libertar todas as energias deste no momento da crise revolucionária, varrendo a Rússia por uma vaga proletária revolucionária de profundidade nunca vista.

Mas Lenine e a revolução russa estavam certíssimos, diziam todos – desde que os deixassem estar no seu nicho, como manipanços para ser adorados. A situação agora era outra, o alvo era agora derrubar o fascismo:

E ainda há quem mate a cabeça à procura das causas do “trágico definhamento” do PCP! O PCP definha e morre, não apenas porque viu desabar como um castelo de cartas a União Soviética, essa sociedade que apregoava como modelo de socialismo, mas porque também desabou como outro castelo de cartas a estratégia que vendera ao proletariado, de uma pretensa “revolução democrática e nacional”, “primeiro passo a caminho do socialismo”. As “explicações” que a direcção do PCP ainda hoje apresenta para esse duplo descalabro são tão néscias que embrutecem a cabeça de qualquer militante. Que partido resistiria a dois erros deste calibre? É o que nos permite dizer que, historicamente, o PCP está morto há bons vinte ou trinta anos, por muito que os seus militantes continuem a agitar-se na melhor das intenções. Quanto mais cedo o proletariado o perceber e iniciar o seu reagrupamento noutras bases, mais depressa porá termo à crise em que foi mergulhado pela “revolução” inexistente.

Pensam alguns que as polémicas de há 40 anos já nada tem a ver com o mundo actual. É verdade que já não temos as guerras coloniais, mas o chauvinismo então apontado manifesta-se agora nas relações do proletariado com os proletários imigrados. É verdade que o fascismo passou à história mas o percurso pouco glorioso da corrente M-L ao longo dos anos 70, coroado pela autodissolução do PC(R), terá contribuído para associar à plataforma da Revolução Popular uma ideia de fracasso. Mas houve desde sempre uma grande distância entre uma coisa e a outra. As propostas políticas da RP não chegaram a ser assumidas por nenhum grupo político. E isto porque a corrente M-L portuguesa, como as de todo o mundo, formou-se ao influxo do maoísmo. E se havia, em ambas as correntes, uma busca de regresso ao leninismo, [...]

Anos mais tarde, retomei esta ideia num outro trabalho que também não teve grandes repercussões, a crítica ao dimitrovismo [...]

continua>>>
Inclusão 12/11/2018