A Exploração Sexual de Meninas e Adolescentes: Aspectos Históricos e Conceituais

Heleieth Saffioti

29 de Março de 1995


Fonte: A Exploração Sexual de Meninas e Adolescentes no Brasil 1ª Edição: 1995- UNESCO - CECRIA

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Vou começar por uma imagem que, embora pareça bastante precária, a meu ver ajuda a compreender a sociedade. Seguramente, vocês todos conhecem um galinheiro. Entretanto, como há gente que sempre morou na cidade, eu vou explicar como é. Digamos que num galinheiro há 20 galinhas e um galo. O galo tem o direito de bicar todas as galinhas e as galinhas não têm o direito de bicar o galo. Depois, há uma galinha número 1, que é bicada pelo galo e bica todas as demais galinhas. A número 2, que é bicada pelo galo e pela número 1, bica todas as outras galinhas. A sociedade é bastante parecida com um galinheiro. É mais complexa, porque no galinheiro só existe uma ordem de bicadas, e na sociedade, existem três ordens básicas de bicadas e, depois, múltiplas ordens secundárias. Então, vamos ver essas três fundamentais, e pelo menos uma das que não têm a mesma natureza. Uma delas é a de classe. O rico pisa no pobre, explora o pobre. A ordem das bicadas no eixo das classes sociais nós já conhecemos muito bem. No eixo da raça-etnia, no caso brasileiro, o branco bica o negro. E, no eixo do gênero, as mulheres são discriminadas, espancadas, assassinadas por homens.

Nessas três ordens de bicadas temos relações contraditórias. Os interesses do pobre não coincidem com os interesses dos ricos. Ao contrário, eles se chocam. Isso acontece entre as raças, etnias e entre os gêneros também. Então, são relações contraditórias, ou seja, elas só poderão se alterar a partir do momento em que houver uma transformação fundamental na sociedade que modifique radicalmente essas três ordens. Digo mais: esses três eixos de distribuição — que corresponde a uma forma de conquista do poder — não estão isolados. Ao contrário, a meu ver, eles se fundiram historicamente formando um nó, e esse nó traz as contradições originárias potencializadas. Para mim, trabalhar com a ideia de nó é bastante fértil, na medida que a natureza do nó é diferente da natureza de cada uma dessas contradições, tomadas de per si, isoladamente.

Acredito que algumas experiências socialistas — algumas, eu digo, porque eu acho que em outras houve componentes mais fortes — como é o caso Cuba, por exemplo, essa componente de não se levar em consideração o nó, responde amplamente, ou respondeu — no caso de Cuba, responde ainda — feio insucesso da experiência socialista. Cuba atacou a questão do preconceito social e a questão feminina, mas não solucionou nenhuma delas Por quê? Por que as atacou isoladamente Não nessa fusão, nessa simbiose que essas três contradições constituíram ao longo da História Dentre os eixos secundários de distribuição/conquista do poder, quero mencionar um, que não é da mesma natureza dessas três contradições que eu mencionei, mas que deve ser levado em conta, sobretudo, num painel como este sobre prostituição ínfanto-juvenil Trata-se das relações inter-geracionais. Nós sabemos que o adulto tem poder sobre a criança e o adolescente. Mas, essencialmente, esse poder não é da mesma ordem que o poder que o rico tem sobre o pobre, o homem sobre a mulher e o branco sobre o negro. Porque a dominação do adulto sobre a criança e o adolescente é uma dominação transitória, enquanto que, nos outros casos, ela é permanente. É transitória porque a criança se toma adolescente, depois se toma adulta. À medida que esse processo vai se consistindo, ou seja, em que a criança vai-se transformando num adulto, o adulto vai-se tomando velho, e a dominação se inverte.

Há até uma peça que se chama “Uma relação tão delicada” que mostra a relação entre mãe e filha, exatamente nesse sentido. A filha enquanto adolescente mantinha uma dependência muito grande em relação à mãe Mas, à medida que a mãe vai envelhecendo e a filha vai se tomando adulta, a relação de independência se inverte. Porque o velho pode se tomar um dependente físico, um dependente emocional, econômico do adulto. Então, essa é uma relação de dominação provisória e com esta característica de inversão. Mas, é importante nós sabermos que os adultos exercem muito poder sobre as crianças. Porque nós vamos trabalhar hoje, fundamentalmente, com aquelas três contradições simbiotizadas, que eu mencionei, e mais a relação inter-geracional, ou seja, esse domínio que os adultos exercem sobre as crianças e os adolescentes.

Existem situações muito extremas no caso da prostituição infanto- juvenil, que eu faço questão de separar da prostituição adulta, porque ninguém tem o direito de falar por adultos, mas a categoria de adultos deve ser o seu próprio porta-voz. Digo isso porque, em matéria de prostituição, muita gente se arvora em porta-voz de prostitutas e eu penso que prostituta adulta deve saber muito bem o que é melhor para ela. Então, ninguém deve se arvorar em reivindicador daquilo que será o bem da prostituta. Ela é capaz de definir aquilo que lhe convém e aquilo que não lhe convém. E em muitos países isso vem acontecendo, inclusive no nosso, de as prostitutas imporem a sua voz e dizerem “Não. Basta de visão religiosa a respeito da prostituição. Nós somos adultas e sabemos aquilo que nos convém e vamos lutar por isso.” Temos a Associação Nacional de Prostitutas no Brasil, que vem desempenhando um papel bastante ativo e mudando quanto a correlação de forças nessa área.

No que tange, no entanto, à prostituição infanto-juvenil, as coisas são diferentes. É claro que, como o adulto exerce um poder muito grande sobre a criança, a criança está na mão do adulto, não existe prostituição infantil sem que haja um adulto responsável. Ou ele é cliente ou é o explorador que se beneficia do ponto de vista econômico com a prostituição dessa criança, ou ele se beneficia de uma outra forma, não economicamente, porque é ele próprio que explora os serviços sexuais dessa criança. Enfim, o problema da prostituição infantil é um problema dos adultos e não da criança. As crianças não têm discernimento para decidirem aquilo que é melhor para elas. As crianças são tuteladas pelos adultos até os 18 anos. Por isso é que devemos defender as crianças. Então, eu penso que essa trama de relações de exploração em relação às crianças só pode ser rompida pelo adulto. Nós não podemos esperar um movimento social constituído por crianças levantando bandeiras. As crianças não têm essa capacidade. No caso das crianças de rua, isso é diferente. Mesmo assim, nós sabemos que o Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua contém um sem-número de adultos que auxiliam essas crianças a levarem adiante as suas reivindicações.

No que tange à prostituição infanto-juvenil penso que o adulto deva tomar todas as providências para garantir o direito a ter direitos respeitados — acho que nós já passamos daquela fase da reivindicação de direitos civis, políticos e sociais e estamos na fase da reivindicação do direito a ter direitos. E a criança está também nesse caso. Eu não gosto muito de trabalhar com a ideia da violência como tudo aquilo que fere a integridade física, sexual, emocional e até moral das pessoas, porque isso varia individualmente. Eu prefiro trabalhar com a noção de direitos humanos, que, pelo menos, varia por subestruturas, de classe para classe, de raça para raça, de gênero para gênero, mas não varia individualmente. Parece que o conceito de violência não encontra um lugar ontológico, por isso é impossível definir violência, enquanto os direitos humanos encontram esse lugar, e é possível trabalhar com eles, inclusive porque a classe, a raça-etnia e o gênero constituem parâmetros que nos permitem mensurar as variações de concepção de direitos humanos.

A criança, tanto quanto o adulto, é titular dos direitos humanos e esses direitos devem ser respeitados. E toda pessoa tem direito a um desenvolvimento equilibrado, integrado, sem interrupções, sem grandes choques, sem traumas. Essa é uma das razões pelas quais eu penso que nós, adultos, é que devemos romper essa cadeia de exploração em relação à criança. Diferenciados esses dois tipos de prostituição, eu diria o seguinte: com a prostituição infantil há sempre algum adulto ganhando. Ou ele ganha em prazer, porque é ele próprio que explora a criança, ou ele ganha em dinheiro, porque está usando a criança para fins prostitucionais, pornográficos. Enfim, sempre há um adulto faturando quando uma criança está sendo sexualmente vitimizada. Agora, dizer que existem interesses econômicos investidos na situação prostitucional de crianças é uma coisa diferente do que dizer que a prostituição infantil resulta sempre de condições econômicas deploráveis. Admito, e existem provas disso, no nosso País e em outros onde a desigualdade sócio-econômica é muito profunda, existem famílias excessivamente pobres que, num ato de desespero, vendem as crianças, alugam as crianças, sobretudo meninas, mas os meninos também são objetos de prostituição, de forma que eu prefiro sempre dizer criança, embora as meninas compareçam com um contingente muito maior do que o de meninos.

É óbvio que condições econômicas muito precárias induzem pais e mães a venderem ou alugarem seus filhos para fins prostitucionais. Mas, se nós ficássemos apenas com essa ideia, estaríamos reduzindo excessivamente a realidade. Isso existe, mas são situações extremas, como é o caso do garimpo. A situação descrita pelo Gilberto Dimenstein no livro das meninas é uma situação extrema. São meninas escravas, mesmo, que dificilmente sairão de lá. Precisaria uma política pública dirigida a essas meninas, porque também fazer a denúncia depois deixar as meninas ao deus-dará não resolve coisa nenhuma. E preciso formular e implementar uma política pública que dê conta de encaminhar essas meninas. Tirá-las do garimpo e encaminhá-las, porque só tirá-las do garimpo significa que, uma semana depois, elas estarão no garimpo novamente.

Quero tratar de um outro fenômeno que encaminha muitas meninas, sobretudo, para a prostituição, que é a sagrada instituição da família. A família, eu costumo dizer, é muito mais um vespeiro do que um ninho de amor. Na família se dá a competição, a inveja, a trapaça, a rasteira, enfim, a família é, realmente, um embrião de uma série de condutas não muito elogiáveis em que a pessoa pode se empenhar no seu futuro de adulto. Não estou me referindo especificamente à prostituição, porque acho que não me cabe fazer nenhum juízo moral a respeito da prostituição, sobretudo nesse momento em que estamos tratando de prostituição infantil. Quero dizer, se alguém merece reprovação é o adulto que explora a criança, mas a criança não merece, absolutamente, nenhuma reprimenda. Eu não gostaria de me colocar como empresária moral, porque não é por aí que nós vamos resolver o problema. Por que eu digo que a família empurra meninas, sobretudo, para a prostituição? Porque, na família, existe muita violência.

A violência física pode ser vista através de alguns dados nacionais que estão publicados num livro que se chama “A participação sócio-política”, editado em dois volumes, um deles se chama “Justiça e Vitimizaçção”, suplemento da PNAD de 88, publicado em 90, pelo IBGE. Temos agressão física, os dados desagregados por faixas etárias das vítimas, por relação entre o agressor e a vítima... Então, é possível separar a violência intrafamiliar daquela que é praticada por conhecidos, por desconhecidos. E eu digo a vocês que essa violência é imensa. É interessante verificar o seguinte: nas faixas etárias mais baixas das vitimas, a violência física é bastante pequena. Ela vai aumentando à medida que a vítima — a vítima aqui é mulher — vai chegando aos 20, 25 anos, e atinge percentuais da ordem de quase 40. Por exemplo, na faixa de 20 a 29 anos, temos cerca de 38%, arredondando. Na faixa de 30 a 49 anos, o percentual de violência física contra a mulher ultrapassa a casa dos 40, 43,4%, se não me engano. Isso significa que o homem é mais violento enquanto marido do que enquanto pai. É exatamente nas faixas etárias em que a mulher está, com toda certeza, casada, que a pancadaria é maior.

Outra coisa é que há uma rotinização da violência. Nessa pesquisa que o IBGE fez, verificou-se o número de vezes que a vítima era espancada, no caso das mulheres; no caso dos homens é muito mais frequente que ele seja espancado uma única vez. As mulheres sofrem muito mais a violência doméstica do que a praticada por desconhecidos ou amigos, enfim, por pessoas que não são parentes. O homem sofre em geral uma agressão e a mulher sofre três agressões, mais de três agressões. Toma-se uma coisa crônica, o que caracteriza muito a relação violenta conjugal. Se, por um lado, o homem é mais violento como marido do que como pai no que tange à violência física, quando se toma a violência sexual é uma brutalidade. Na pesquisa que eu realizei em São Paulo sobre abuso incestuoso, dentre os agressores, eu detectei 71,1% de pais biológicos e mais 11,5% de padrastos. Os dois somados perfaziam 82,6%. Contrariamente ao que se pensa, o número de padrastos é bem menor do que o de pais biológicos. Isso também não quer dizer muito porque nós não sabemos qual é o número de famílias no Brasil com presença de padrastos. É bastante provável que esse número seja grande, na medida que houve uma liberalização dos costumes sexuais, e hoje é uma prática corrente casais se separarem e reconstituírem suas vidas com outras pessoas. É muito provável que os padrastos estejam sub-representados nessa história de violência sexual contra as enteadas ou os enteados. Porque parece que, pela literatura internacional, a figura do pai biológico é aquela que agride mais sexualmente, que vitimiza mais sexualmente.

Quero trazer a vocês essa experiência que eu tenho com o tema da vitimização sexual em família, mostrando como esse fenômeno é altamente responsável pela prostituição, mormente de meninas, porque incide muito mais sobre elas do que sobre meninos. O percentual de meninos vitimizados em família, do ponto de vista sexual, internacionalmente, é da ordem de 13. No Brasil, é bem menor o número encontrado. Eu encontrei 4,8. Mas acredito que, no Brasil, dado o grau de machismo, seja muito difícil denunciar a vitimização sexual do menino, porque na cabeça da família, se alguém souber, já vai chamar o menino de bicha, já vai dizer: “Esse aí não escapa, vai ser homossexual.” Então, para não estigmatizar o garoto, não se denuncia, não se publiciza. Já no caso da menina, é difícil descobrir, denunciar, mas é mais fácil. Só para dar um exemplo, tenho um depoimento. O primeiro caso de abuso incestuoso que eu peguei foi de uma menina que estava grávida do pai, ela tem um filho do pai e agora tem um segundo filho do marido porque acabou se casando. Essa menina estava grávida e a mãe não sabia. Ela não conseguia contar para a mãe. A mãe levou a menina ao médico, que percebeu, pediu à mãe para sair da sala, conversou com a menina, fez ultrassonografia. A menina contou que o filho era do pai e, depois de terminada a consulta, o médico fez reintroduzir a mãe na sala e disse: “Olha, eu não tenho tempo de conversar com a senhora. A sua filha está grávida. Ela vai lhe contar quem é o autor dessa história. Eu só espero que a senhora tome todas as providências cabíveis porque eu quero ver o pai da criança transformado numa mulherzinha na cadeia.” Vocês sabem qual é a lei da cadeia, não é? Estuprou, é currado na cadeia. Tanto que, para que isso não ocorra, atualmente, em algumas prisões toma-se a providência de colocar o recém-chegado estuprador numa solitária, que é a única maneira de preservá-lo do estupro. Então, vejam vocês o discurso do médico. Ele disse que queria ver aquele homem transformado não numa mulher, mas numa mulherzinha. Porque ser penetrado é uma coisa de mulher, e quem penetra é o homem. Se o menino é penetrado por um outro homem, ele é transformado numa mulherzinha, e isso, obviamente, não fica bem que os outros saibam, porque o menino ficará estigmatizado. Calculo que o percentual de meninos sexualmente vitimizados em família seja muito maior do que aquele que temos encontrado, exatamente em razão dessas coordenadas que eu estou apresentando.

Frequentemente, aponta-se para o alcoolismo como a causa, seja do espancamento, seja da violência sexual praticada por homens dentro da família. Quero afastar totalmente o álcool como causa. Ele pode ser um fator detonador da violência, um fator imediato, porque alcoolizada, a pessoa executa coisas que não executaria se não estivesse alcoolizada. Acontece que o que a pessoa é capaz de executar é aquilo que está lá dentro. Eu, por exemplo, se tomar uma gota além do que eu posso tomar, simplesmente durmo. Não bato em ninguém, não agrido, não dou risada. Cada pessoa reage de uma maneira, com aquilo que traz dentro. Como os homens contam com a complacência da sociedade, até da família — porque se o pai convive maritalmente com a filha, isso é uma vergonha e deve ser encoberto. Então, o vizinho não pode saber. O resto da família tampouco. Os amigos também não. Aquilo é fechado, e se forma uma conspiração do silêncio em tomo daquele fenômeno. A filha continua a ser vitimizada sexualmente pelo pai, pelo tio, pelo avô, pelo cunhado, enfim, por “n” parentes que convivem ou não na mesma casa.

Vamos examinar rapidamente porque esse fenômeno é altamente responsável pela prostituição infanto-juvenil. De um lado, a menina pode fugir de casa para escapar à violência que sofre em família. Então, ela vai para as ruas e, aí, se junta o outro lado da história. Ela tenta sobreviver nas ruas. De que maneira? Da maneira como ela foi ensinada. Ela foi ensinada que o uso do corpo é a única maneira de que ela dispõe para obter atenção, “afeto”, enfim, ela aprende que o corpo é uma coisa mais ou menos assim como uma mercadoria, com a qual ela pode transacionar. E ela vai executar exatamente isso que ela aprendeu em casa. Só que, ao invés de fazer a mesma coisa gratuitamente em casa, ela vai fazer por dinheiro nas ruas. Mesmo porque nas ruas ela não vai encontrar muitas formas de sobrevivência. Ou ela pratica pequenos furtos ou se prostitui porque, obviamente, se ela for se empregar como trabalhadora doméstica vai ser vítima novamente da mesma violência de que fora vitima na família. Vai ser o filho do patrão ou o próprio patrão que vai abusar dela sexualmente. Então, ela vai fazer por dinheiro uma coisa que ela vinha fazendo já a contragosto, gratuitamente.

O fato é que a criança aprende a usar o corpo para conseguir outras coisas. Na conspiração do silêncio que se forma na família há todo um jogo entre a criança e o adulto. Eu encontro algumas diferenças porque isso ocorre em todas as famílias — nas famílias ricas, nas famílias de classe média, nas famílias pobres, nas miseráveis, nas mais miseráveis ainda, ocorre em todas elas. Não pensem que violência sexual intrafamiliar é característica de pobre, não. Aliás, ainda ontem à noite eu conversava com algumas amigas, dizendo: “Para mim, é muito mais fácil entender a violência sexual, o abuso incestuoso quando as pessoas moram num cortiço, ou numa favela, em que nem mesmo um lençol existe para separar os corpos, do que entender esse fenômeno em famílias nas quais cada pessoa tem o seu próprio dormitório. Mas ocorre e muito. Só que a visibilidade desse fenômeno é muito menor do que a visibilidade que tem o mesmo fenômeno nas camadas mais baixas.”

Uma diferença que eu encontro, que é uma diferença de classe, no abuso incestuoso é a seguinte: nas classes mais pobres, o pai joga a filha numa cama, põe uma faca, um canivete, um revólver, a arma que tiver, ao lado da cama e estupra a filha e diz: “Se você abrir a boca, eu mato você, mato sua mãe, todos os seus irmãos.” A menina vive sob ameaça concreta. Agora, é muito pior nas camadas privilegiadas. Não se ameaça com revólver nem com faca. Não há ameaça. 0 que há é um processo de sedução que, a meu ver, é muito mais deletério para a saúde emocional da criança do que a ameaça grave. Porque o pai vai seduzindo, ele vai avançando nas carícias — eu digo o pai porque é a figura mais frequente, mas isso não impede que seja o avô, o tio, o primo, o irmão, etc. — e é muito difícil para uma criança pequena distinguir entre a ternura e o afago com fins genitais. Porque o prazer é sexual de maneira geral. Entendemos a sexualidade como a definiu Freud. Todo prazer é sexual, de alguma forma. Mas, a sexualidade da criança não é generalizada como a do adulto. E o adulto vai generalizando seus afagos na criança, e a criança não se dá conta. E, quando ela percebe, já está envolvida.

Aproveito aqui para dar uma pincelada na política brasileira. Estamos vivendo agora a era do neoliberalismo que está fundado no mesmo pecado que o liberalismo, porque, afinal, não há muita diferença entre eles. A premissa sobre a qual se assentam o liberalismo e o neoliberalismo é absolutamente falsa, que consiste em apresentar como dispondo da mesma parcela de poder patrões e empregados, ricos e pobres. O empregado consentiria, segundo essa ideologia, em ganhar salário mínimo, quando, na verdade, ele não tem capacidade para consentir, porque depende do patrão e do emprego. A mesma coisa ocorre com as mulheres, adultas também. Nós não desfrutamos do mesmo poder que os homens. Então se uma mulher é ameaçada por um homem na rua ou mesmo intrafamiliarmente com um revólver apontado para sua cabeça, ela não consente em ser estuprada, ela cede ao estuprador, porque ela quer preservar o bem maior que é a vida. Mas ela não consentiu no estupro.

Do mesmo modo, a criança não pode consentir, porque não tem capacidade de discernir. Então, o que vai acontecendo com a criança é um envolvimento emocional crescente, e, é claro, de prazer também. Nós precisamos deixar de lado o preconceito, dizendo que a menina que sofre abuso sexual é uma sofredora de cabo a rabo, ou seja, que não sente prazer nenhum. Isto não é verdade. Existem depoimentos publicados de meninas que tiveram vida marital com o próprio pai e que desfrutavam de um enorme prazer. Agora, sabiam que essa relação era proibida. O que acontece com essa menina ou com a criança que foi aos pouquinhos sendo seduzida pelo adulto? Num certo momento, ela percebe que aquela relação está se encaminhando para um sentido que é proibido, que é tabu, mas já está tão envolvida que não se percebe mais como vítima e sim como copartícipe daquela relação. Aí, vem a culpa.

Há no livro de uma americana um depoimento: nesse caso específico, não foi o pai biológico, foi o padrasto que abusou da menina quando ela era muito criança e, depois, a coisa foi progredindo e eles viveram maritalmente durante muito tempo. Ela sentia tanto prazer na relação — e sabia que isso era proibido. Então, a culpa crescia a cada instante, porque, cada vez que ela sentia prazer, a culpa aumentava. Então, ela decidiu que, cada vez que tivesse relação com o padrasto, ela faria uma sessão de masturbação, com a expectativa de que não fosse sentir prazer com o padrasto. Mas, ainda, sentia. A masturbação piorou ainda o quadro porque a culpa aumentou. Na pesquisa que eu fiz obtive provas de que a sedução é um processo muito mais traumatizante do que a ameaça bruta, com armas ou tapas.

A vitimização sexual intrafamiliar deve ser pensada como um fator importantíssimo no encaminhamento da criança e do adolescente para a prostituição. Não penso que a prostituição constitua um fenômeno pontual — vamos lá e fazemos uma intervenção e resolvemos. Não. O problema tem raízes em muitas instituições. Uma delas, talvez a mais fundamental, seja exatamente a “santa família”. E toda vez que a gente fala mal da família — e são poucas as famílias que nos permitem falar bem — entra a religião, entra o deixa-disso. “Não mexe com esse vespeiro, porque isso só causa problema.” Mas enquanto nós não reestruturarmos a família, vai acontecer esse fenômeno. O homem destrói o seu próprio fruto. Digo o homem porque a mulher é raramente uma agressora sexual. Não que ela não possa extrair prazer de uma relação com uma criança. Pode e muito. Não é o sexo feminino que impede isso. Existem muitas formas de fazer isso. Mas, internacionalmente, as estimativas de agres- soras sexuais ficam entre 1% e 3%, ou seja, no mínimo 97% dos agressores sexuais são homens.

E preciso reestruturar a família e, junto com isso, reformular as relações de gênero. Enquanto formos fazendo isso, a longo prazo, temos que estabelecer, com o Estado, uma nova relação. Nós, sociedade civil, precisamos interferir de modo a ter o direito de formular e implementar ou, pelo menos, exercer a vigilância da implementação de políticas públicas que proíbam a violência sexual contra a criança. Existe também a violência sexual contra crianças praticadas por estranhos, mas é tão pequena em relação àquela que os membros da família perpetram, que eu até a deixei de lado. Primeiro, porque é menos grave, causa menos traumas, segundo porque ocorre em muito menos quantidade.

A minha proposta para discussão é a seguinte: eu não vou entrar numa série de questões como tráfico de crianças, exportação de crianças para fins pornográficos e/ou prostitucionais. Não vou entrar na questão da droga. Porque, é claro que se a criança foge de casa porque está escapando da violência física ou sexual, ela pode entrar na droga, na rua, e daí, para conseguir dinheiro para comprar droga, ela faz qualquer coisa, inclusive, prostitui-se. Estou deixando de lado uma série de problemas, não porque eu não queira falar sobre eles, mas porque já extrapolei bastante meu tempo, e não é justo entrar no tempo das outras pessoas da Mesa. Convido-os então a entrar nas questões fundamentais da família, das relações de gênero e das relações entre a sociedade civil e o Estado.


Inclusão 12/09/2019