Amílcar Cabral
A arma da teoria

Carlos Comitini


Capítulo V - A cultura nacional
Amílcar Cabral


Observação: Os destaques em negrito são de Carlos Comitini

I. Libertação nacional e cultura

capa

Estamos muito felizes por poder participar nesta cerimônia realizada em homenagem ao nosso companheiro de luta e digno filho, o saudoso Dr. Eduardo Mondlane, antigo Presidente da Frelimo, covardemente assassinado pelos colonialistas portugueses e pelos seus aliados em 3 de Fevereiro de 1969 em Dar-Es-Salaam.

Queremos agradecer à Universidade de Siracusa e particularmente, ao Programa de Estudos sobre a África de Leste dirigido pelo erudito professor Marshall Segall, esta iniciativa. É uma prova não apenas do respeito e da admiração que sentem em relação a inesquecível personalidade do Dr. Eduardo Mondlane, mas também da solidariedade para com a luta heróica do povo moçambicano e de todos os povos da África pela libertação nacional e o progresso.

Ao aceitar o vosso convite — que consideramos dirigido ao nosso povo e aos nossos combatentes - quisemos uma vez mais demonstrar a nossa amizade militante e a nossa solidariedade ao Povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado colonialismo, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo.

Outros oradores já traçaram o retrato e fizeram o elogio bem merecido do Dr. Eduardo Mondlane. Queríamos apenas reafirmar a nossa admiração pela figura de africano patriota e de eminente homem de cultura que ele foi. Quereríamos igualmente afirmar que o grande mérito de Eduardo Mondlane não foi a sua decisão de lutar pelo seu povo, mas sim de ter sabido integrar-se na realidade do seu país, identificar-se com o seu povo e aculturar-se pela luta que dirigiu com coragem, inteligência e determinação.

Eduardo Chivambo Mondlane, homem africano originário de um meio rural, filho de camponeses e de um chefe tribal, criança educada por missionários, aluno negro das escolas brancas do Moçambique colonial, estudante universitário na racista África do Sul, auxiliado na juventude por uma fundação americana, bolsista de uma Universidade dos Estados Unidos, doutor pela Northwestern University, alto funcionário das Nações Unidas, professor na Universidade de Siracusa, presidente da Frente de Libertação de Moçambique, caído como combatente pela liberdade do seu povo.

A vida de Eduardo Mondlane é, com efeito, particularmente rica de experiências. Se considerarmos o breve período durante o qual trabalhou como operário estagiário numa exploração agrícola, verificamos que o seu ciclo de vida engloba praticamente todas as categorias da sociedade africana colonial: do campesinato à "pequena burguesia" assimilada e, no plano cultural, do universo rural a uma cultura universal, aberta para o mundo, para os seus problemas, para as suas contradições e perspectivas de evolução.

O importante é que, depois desse longo trajeto, Eduardo Mondlane foi capaz de realizar o regresso à aldeia, na personalidade de um combatente pela libertação e pelo progresso do seu povo, enriquecido pelas experiências quantas vezes perturbadoras do mundo de hoje. Deu assim um exemplo fecundo: enfrentando todas as dificuldades, fugindo às tentações, libertando-se dos compromissos de alienação cultural (e, portanto, política), soube reencontrar as suas próprias raízes, identificar-se com o seu povo e dedicar-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram.

Em vez de nos limitarmos a problemas mais ou menos importantes da luta comum contra os colonialistas portugueses, centraremos a nossa conferência num problema essencial: as relações de dependência e de reciprocidade entre a luta de libertação nacional e a cultura.

Se conseguirmos convencer os combatentes da libertação africana e todos os que se interessam pela liberdade e pelo progresso dos povos africanos da importância decisiva deste problema no processo da luta, teremos rendido uma significativa homenagem a Eduardo Mondlane.

UM CRUEL DILEMA PARA O COLONIALISMO: LIQUIDAR OU ASSIMILAR?

Quando Goebbels, o cérebro da propaganda nazi, ouvia falar de cultura, empunhava a pistola. Isso demonstra que os nazis — que foram e são a expressão mais trágica do imperialismo e da sede de domínio — mesmo sendo todos tarados como Hitler, tinham uma clara noção do valor da cultura como fator de resistência ao domínio estrangeiro.

A história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas ensina-se igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir definitivamente a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada.

Com efeito, pegar em armas para dominar um povo é, acima de tudo, pegar em armas para destruir ou, pelo menos, para Neutralizar e paralisar a sua vida cultural. E que, enquanto existir uma parte desse povo que possa ter uma vida cultural, o domínio estrangeiro não poderá estar seguro da sua perpetuação. Num determinado momento, que depende dos fatores internos e externos que determinam a evolução da sociedade em questão, a resistência cultural (indestrutível) poderá assumir formas novas políticas, econômicas, armadas) para contestar com vigor o domínio estrangeiro.

O ideal, para esse domínio, imperialista ou não, seria uma destas alternativas:

A primeira hipótese implica o genocídio da população indígena e cria um vácuo que rouba ao domínio estrangeiro conteúdo e objeto: o povo dominado. A segunda hipótese não foi até hoje confirmada pela história. A grande experiência da humanidade permite admitir que não tem viabilidade prática: não é possível harmonizar o domínio econômico e político de um povo, seja qual for o grau do seu desenvolvimento.

Para fugir a esta alternativa — que poderia ser chamada o dilema da resistência cultural — o domínio colonial imperialista tentou criar teorias que, de fato, não passam de grosseiras formulações do racismo e se traduzem, na prática, por u m permanente estado de sítio para as populações nativas, baseado n u m a ditadura (ou democracia) racista.

É, por exemplo, o caso da pretensa teoria da assimilação progressiva das populações nativas, que não passa de um a tentativa, mais ou menos violenta, de negar a cultura do povo em questão. O nítido fracasso desta "teoria", posta em pratica por algumas potências coloniais, entre as quais Portugal, é a prova mais evidente da sua inviabilidade, senão mesmo do seu caráter desumano. No caso português, em que Salazar afirma que a África não existe, atinge mesmo o mais elevado grau de absurdo.

É igualmente o caso da pretensa teoria do apartheid, criada, aplicada e desenvolvida com base no domínio econômico e político do povo da África Austral por uma minoria racista com todos os crimes de lesa-humanidade que isso comporta, A prática do apartheid traduz-se por uma exploração desenfreada da forca de trabalho das massas africanas, encarceradas e reprimidas no mais cínico e mais vasto campo de concentração que a humanidade jamais conheceu.

A LIBERTAÇÃO NACIONAL, ATO DE CULTURA

Estes fatos dão bem a medida do drama do domínio estrangeiro perante a realidade cultural do povo dominado. Demonstram igualmente a íntima ligação, de dependência e reciprocidade que existe entre o fato cultural e o fato econômico (e político) no comportamento das sociedades humanas. Com efeito, em cada momento da vida de uma sociedade (aberta ou fechada), a cultura é a resultante mais ou menos conscientizada das atividades econômicas e políticas, a expressão mais ou menos dinâmica do tipo de relações que prevalecem no seio dessa sociedade, por um lado, entre o homem (considerado individual ou coletivamente) e a natureza, e, por outro, entre os indivíduos, os grupos de indivíduos, as camadas sociais ou as classes.

O valor da cultura como elemento de resistência ao domínio estrangeiro reside no fato de ela ser a manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idealista, da realidade material e histórica da sociedade dominada ou a dominar. Fruto da história de um povo, a cultura determina simultaneamente a história pela influência positiva ou negativa que exerce sobre a evolução das relações entre o homem e o seu meio e entre os homens ou grupos humanos no seio de uma sociedade, assim como entre sociedades diferentes. A ignorância desse fato poderia explicar tanto o fracasso de diversas tentativas de domínio estrangeiro como o de alguns movimentos de libertação nacional.

Vejamos o que é a libertação nacional. Consideremos esse fenômeno da história no seu contexto contemporâneo, ou seja, a libertação nacional perante o domínio imperialista. Como é sabido, este é, tanto nas formas como no conteúdo, diferente dos outros tipos de domínio estrangeiro que o precederam (tribal, aristocrato-militar, feudal e capitalista do tempo da livre concorrência).

A característica principal, como em qualquer espécie de domínio imperialista, é a negação do processo histórico do povo dominado por meio da usurpação violenta da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas. Ora, numa dada sociedade, o nível de desenvolvimento das torças produtivas e o regime de utilização social dessas forças (regime de propriedade) determinam o modo de produção. Quanto a nós, o modo de produção, cujas contradições se manifestam com maior ou menor intensidade por meio da luta de classes, é o fator principal da história de cada conjunto humano, sendo o nível das forças produtivas a verdadeira e permanente força motriz da história.

O nível das forças produtivas indica, em cada sociedade, em cada conjunto humano considerado como um todo em movimento, o estado em que se encontra essa sociedade e cada um dos seus componentes face à natureza, a sua capacidade de agir ou de reagir conscientemente em relação à natureza. Indica e condiciona o tipo de relações materiais (expressas objetiva ou subjetivamente) existentes entre o homem e o seu meio.

O modo de produção, que representa, em cada fase da história, o resultado da pesquisa incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças, indica o estado em que se encontra uma sociedade e cada um dos seus componentes, perante ela mesma e perante a história. Indica e condiciona, por outro lado, o tipo de relações materiais (expressa objetiva ou subjetivamente) existentes entre os diversos elementos ou os diversos conjuntos que formam a sociedade em questão: relações e tipos de relações entre o homem e a natureza, entre o homem e o seu meio; relações e tipos de relações entre os componentes individuais ou coletivos de uma sociedade. Falar disso é falar de história, mas é igualmente falar de cultura.

A cultura, sejam quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações, é assim um elemento essencial da história de um povo. É talvez, a resultante dessa história como a flor é a resultante de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no humus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflete a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por fatores externos. Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilíbrios e dos conflitos (econômicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso.

Como sucede com a flor numa planta, é na cultura que reside a capacidade (ou a responsabilidade) da elaboração e da fecundação do germe que garante a continuidade da história, garantindo, simultaneamente, as perspectivas da evolução e do progresso da sociedade em questão. Compreende-se assim que, sendo o domínio imperialista a negação do processo histórico próprio do povo dominado, seja necessariamente a negação do seu processo cultural. Compreende-se ainda a razão pela qual a prática do domínio imperialista, como qualquer outro domínio estrangeiro, exige, como fator de segurança*' a opressão cultural e a tentativa de liquidação, direta ou indireta, dos dados essenciais da cultura do povo dominado.

O estudo da história das lutas de libertação demonstra que são em geral precedidas por uma intensificação das manifestações culturais, que se concretizam progressivamente por uma tentativa, vitoriosa ou não, da afirmação da personalidade cultural do povo dominado como ato de negação da cultura do opressor. Sejam quais forem as condições de sujeição de um povo ao domínio estrangeiro e a influência dos fatores econômicos, políticos e sociais na prática desse domínio, é em geral no fato cultural que se situa o germe da contestação, levando à estruturação e ao desenvolvimento do movimento de libertação.

Quanto a nós, o fundamento da libertação nacional reside no direito inalienável que tem qualquer povo, sejam quais forem as fórmulas adotadas ao nível do direito internacional, de ter a sua própria história. O objetivo da libertação nacional é, portanto, a reconquista desse direito, usurpado pelo domínio imperialista, ou seja: a libertação do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Há assim libertação nacional quando e apenas quando, as forças produtivas nacionais são totalmente libertadas de qualquer espécie de domínio estrangeiro. A libertação das forças produtivas e, consequentemente, a faculdade de determinar livremente o modo de produção mais adequado à evolução do povo libertado, abre necessariamente perspectivas novas ao processo cultural da sociedade em questão, conferindo-lhe toda a sua capacidade de criar o progresso.

Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância das contribuições positivas da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura, que se alimente da realidade do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras. Vemos assim que, se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é necessariamente, um ato de cultura.

O CARÁTER DE CLASSE DA CULTURA

Com base no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertação como a expressão política organizada da cultura do povo em luta. A direção desse movimento deve assim ter uma noção clara do valor da cultura no âmbito da luta e conhecer profundamente a cultura do seu povo, seja qual for o nível do seu desenvolvimento econômico.

Atualmente, tornou-se um lugar comum afirmar que cada povo tem a sua cultura. Já lá vai o tempo em que, numa tentativa para perpetuar o domínio dos povos, a cultura era considerada como apanágio de povos ou nações privilegiadas e em que, por ignorância ou má-fé, se confundia cultura e tecnicidade, senão mesmo cultura e cor da pele ou forma dos olhos. O movimento de libertação, representante e defensor da cultura do povo, deve ter consciência do fato que, sejam quais forem as condições materiais da sociedade que representa, esta é portadora e criadora de cultura, e deve, por outro lado, compreender o caráter de massa, o caráter popular da cultura, que não é, nem poderia ser, apanágio de um ou de alguns setores da sociedade.

Numa análise profunda da estrutura social que qualquer movimento de libertação deve ser capaz de fazer em função dos imperativos da luta, as características culturais de cada categoria tem um lugar de primordial importância. Pois embora a cultura tenha um caráter de massa, não é contudo uniforme não se desenvolve igualmente em todos os setores da sociedade. A atitude de cada categoria social perante a luta é ditada pelos seus interesses econômicos, mas também profundamente influenciada pela sua cultura. Podemos mesmo admitir que são as diferenças de níveis de cultura que explicam os diferentes comportamentos dos indivíduos de uma mesma categoria socioeconómica face ao movimento de libertação. E é aí que a cultura atinge todo o seu significado para cada indivíduo: compreensão e integração no seu meio, identificação com os problemas fundamentais e as aspirações da sociedade, aceitação da possibilidade de modificação no sentido do progresso.

Nas condições específicas do nosso país — e diríamos mesmo de África — a distribuição horizontal e vertical dos níveis de cultura tem uma certa complexidade. Com efeito, das aldeias às cidades, de um grupo étnico a outro, do camponês ao operário ou ao intelectual indígena mais ou menos assimilado, de uma classe social a outra, e mesmo, como afirmamos, de indivíduo para indivíduo, dentro da mesma categoria social, há variações significativas do nível quantitativo e qualificativo de cultura. Ter esses fatos em consideração é uma questão de primordial importância para o movimento de libertação.

Se, nas sociedades de estrutura horizontal, como a sociedade balanta, por exemplo, a distribuição dos níveis da cultura é mais ou menos uniforme, estando as variações apenas ligadas às características individuais e aos grupos etários, nas sociedades de estrutura vertical, como a dos Fulas, por exemplo, há variações importantes desde o cimo à base da pirâmide social. Isso demonstra uma vez mais a íntima ligação entre o fator cultural e o fator econômico e explica também as diferenças do comportamento global ou setorial desses dois grupos étnicos face ao movimento de libertação.

É certo que a multiplicidade das categorias sociais e étnicas cria uma certa complexidade na determinação do papel da cultura no movimento de libertação, mas é indispensável não perder de vista a importância decisiva do caráter de classe da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação, mesmo nos casos em que em que esta categoria está ou parece estar ainda embrionária.

A experiência do domínio colonial demonstra que, na tentativa de perpetuar a exploração, o colonizador não só cria um perfeito sistema de repressão da vida cultural do povo colonizado, como ainda provoca e desenvolve a alienação cultural de parte da população, quer por meio da pretensa assimilação dos indígenas, quer pela criação de um abismo social entre as elites autóctones e as massas populares. Como resultado desse processo de divisão ou de aprofundamento das divisões no seio da sociedade, sucede que parte considerável da população, especialmente a "pequena burguesia" urbana ou campesina, assimila a mentalidade do colonizador e considera-se como culturalmente superior ao povo a que pertence e cujos valores culturais ignora ou despreza. Esta situação, característica da maioria dos intelectuais colonizados, vai cristalizando à medida que aumentam os privilégios sociais do grupo assimilado ou alienado, tendo implicações diretas no comportamento dos indivíduos desse grupo perante o movimento de libertação. Revela-se assim indispensável uma reconversão dos espíritos - das mentalidades - para a sua verdadeira integração no movimento de libertação. Essa reconversão reafricanização, no nosso caso — pode verificar-se antes da luta, mas só se completa no decurso desta, no contato quotidiano com as massas populares e na comunhão de sacrifícios que a luta exige.

É preciso, no entanto, tomar em consideração o fato que, perante a perspectiva de independência política, a ambição e o oportunismo que afetam em geral o movimento de libertação podem levar à luta indivíduos não reconvertidos. Estes, com base no seu nível de instrução, nos seus conhecimentos científicos ou técnicos, e sem perderem em nada os seus preconceitos culturais de classe, podem atingir os postos mais elevados do movimento de libertação. Isto revela como a vigilância é indispensável, tanto no plano da cultura como no da política. Nas condições concretas e bastante complexas do processo do fenômeno do movimento de libertação, nem tudo o que brilha é ouro: dirigentes políticos mesmo os mais célebres — podem ser alienados culturais.

Mas o caráter de classe da cultura é ainda mais sensível no comportamento das categorias privilegiadas do meio rural, especialmente no que se refere às etnias que dispõem de uma estrutura social vertical onde, no entanto, as influências da assimilação ou alienação cultural são nulas ou praticamente nulas. É, por exemplo, o caso da classe dirigente fula. Sob o domínio colonial, a autoridade política dessa classe (chefes tradicionais, famílias nobres, dirigentes religiosos) é puramente nominal e as massas populares têm consciência que a verdadeira autoridade reside e age nas administrações coloniais. Contudo, a classe dirigente mantém, no essencial, a sua autoridade cultural sobre as massas populares do grupo, com implicações políticas de grande importância.

Consciente desta realidade, o colonialismo que reprime ou inibe pela raiz as manifestações culturais significativas da parte das massas populares, apoia e protege, na cúpula, o prestígio e a influencia cultural da classe dirigente. Instala chefes que gozem da sua confiança e sejam mais ou menos aceitos pelas populações, concede-lhes vários privilégios materiais, incluindo a edução dos filhos mais velhos, cria postos de chefe onde não existiam, estabelece e incrementa relações de cordialidade com os dirigentes religiosos, constrói mesquitas, organiza viagens a Meca, etc. E, acima de tudo, garante, por intermédio dos órgãos repressivos da administração colonial, os privilégios econômicos e sociais da classe dirigente em relação às massas populares. Mas nem tudo isto torna impossível que, entre essas classes dirigentes, haja indivíduos ou grupos de indivíduos que adiram ao movimento de libertação, embora menos frequentemente do que no caso da pequena burguesia assimilada. Vários chefes tradicionais e religiosos integram-se na luta desde o inicio ou no seu decurso, dando uma contribuição entusiasta à causa da libertação. Mas ainda neste caso a vigilância é indispensável: mantendo bem firmes os seus preconceitos culturais de classe, os indivíduos desta categoria vêem em geral no movimento de libertação o único processo válido para, servindo-se dos sacrifícios das massas populares, conseguirem eliminar a opressão colonial sobre a sua própria classe e restabelecerem assim o seu domínio político e cultural absoluto sobre o povo.

No âmbito geral da contestação do domínio colonial imperialista e nas condições concretas a que nos referimos, verifica-se que, entre os mais fiéis aliados do opressor se encontram alguns altos funcionários e intelectuais de profissão liberal, assimilados, e um elevado número de representantes da classe dirigente dos meios rurais. Se esse fato dá uma medida da influência (negativa ou positiva) da cultura e dos preconceitos culturais no problema da opção política face ao movimento de libertação, revela igualmente os limites dessa influência e a supremacia do fator classe no comportamento das diversas categorias sociais. O alto funcionário ou o intelectual assimilado, caracterizado por uma total alienação cultural, identifica-se, na opção política, com o chefe tradicional ou religioso, que não sofreu qualquer influência cultural significativa estrangeira. É que essas duas categorias colocam acima de todos os dados ou solicitações de natureza cultural — e contra as aspirações do povo - os seus privilégios econômicos e sociais os seus interesses de classe. Eis uma verdade que o movimento de libertação não pode ignorar sob pena de trair os objetivos econômicos, políticos, sociais e culturais da luta.

Definir progressivamente uma cultura nacional

Tal como no plano político e, sem minimizar a contribuição positiva que as classes ou camadas privilegiadas podem dar à luta, o movimento de libertação deve, no plano cultural, basear a sua ação na cultura popular, seja qual for a diversidade dos níveis de cultura no país. A contestação cultural do domínio colonial – fase primária do movimento de libertação — só pode ser encarada eficazmente com base na cultura das massas trabalhadoras dos campos e das cidades, incluindo a "pequena burguesia" nacionalista (revolucionária), reafricanizada ou disponível para uma reconversão cultural. Seja qual for a complexidade desse panorama cultural de base, o movimento de libertação deve ser capaz de nele distinguir o essencial do secundário; o positivo do negativo, o progressista do reacionário, para caracterizar a linha mestra da definição progressiva de uma cultura nacional.

Para que a cultura possa desempenhar o papel importante que lhe compete no âmbito do desenvolvimento do movimento de libertação, este deve saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão — a dimensão nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação é, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.

A unidade política e moral do movimento de libertação e do povo que ele representa e dirige implica a realização da unidade cultural das categorias sociais fundamentais para a luta. Essa unidade traduz-se, por um lado, por uma identificação total do movimento com a realidade do meio e com os problemas e as aspirações fundamentais do povo e, por outro, por uma identificação cultural progressiva das diversas categorias sociais que participam na luta. O processo desta deve harmonizar os interesses divergentes, resolver as contradições e definir os objetivos comuns, procurando a liberdade e o progresso. A tomada de consciência desses objetivos por amplas camadas da população, refletida na determinação perante todas as dificuldades e todos os sacrifícios, é uma grande vitória política e moral. Assim, trata-se igualmente de uma realização cultural decisiva para o desenvolvimento ulterior e o êxito do movimento de libertação.

A DERROTA CULTURAL DO COLONIALISMO

Quanto maiores são as diferenças entre a cultura do povo dominado e a do opressor mais possível se torna essa vitória. A história mostra que é menos difícil dominar do que preservar o domínio sobre um povo de cultura semelhante ou análoga à do conquistador. Talvez se possa mesmo afirmar que a derrota de Napoleão, fossem quais fossem as motivações económicas e políticas das suas guerras de conquista, foi não ter sabido (ou podido) limitar as suas ambições ao domínio dos povos cuja cultura era mais ou menos semelhante à da França. O mesmo se poderia dizer de outros impérios, antigos, modernos ou contemporâneos.

Um dos erros mais graves, senão mesmo o mais grave, cometido pelas potências coloniais em África, terá sido ignorar ou subestimar a força cultural dos povos africanos. Esta atitude é particularmente evidente no que se refere ao domínio cultural português, que se não contentou em negar absolutamente a existência dos valores culturais do africano e a sua condição de ser social, como ainda teimou em proibir-lhe qualquer espécie de atividade política. O povo de Portugal, que não gozou as riquezas usurpadas aos povos africanos pelo colonialismo português, mas que assimilou, na sua maioria, a mentalidade imperialista das classes dirigentes do seu país, paga hoje muito caro, em três guerras coloniais, o erro de subestimar a nossa realidade cultural.

A resistência política e armada dos povos das colônias portuguesas, tal como dos outros países ou regiões de África, foi esmagada pela superioridade técnica do conquistador imperialista, com a cumplicidade ou a traição de algumas classes dirigentes indígenas. As elites fiéis à história e à cultura do povo foram destruídas. Foram massacradas populações inteiras. A era colonial instalou-se com todos os crimes da exploração que a caracterizam. Mas a resistência cultural do povo africano não foi destruída. Reprimida, perseguida, traída por algumas categorias sociais comprometidas com o colonialismo, a cultura africana sobreviveu a todas as tempestades refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito de gerações vítimas do colonialismo.

Como a semente que espera durante muito tempo as condições propícias à germinação para preservar a continuidade da espécie e garantir a sua evolução, a cultura dos povos africanos desabrocha hoje de novo, através de todo o continente, nas lutas de libertação nacional. Sejam quais forem as formas dessas lutas, os seus êxitos ou fracassos e a duração da sua evolução, elas marcam o início de uma nova fase da história do continente e são, tanto na forma como no conteúdo, o fato cultural mais importante da vida dos povos africanos. Fruto e prova de vigor cultural, a luta de libertação dos povos de África abre novas perspectivas ao desenvolvimento da cultura, ao serviço do progresso.

RIQUEZA CULTURAL DA ÁFRICA

Passou já o tempo em que era necessário procurar argumentos para provar a maturidade cultural dos povos africanos. A irracionalidade das "teorias" racistas de um Gobineau ou de um Levy Bruhl não interessam nem convencem senão os racistas. Apesar do domínio colonial (e talvez por causa desse domínio), a África soube impor o respeito pelos seus valores culturais. Revelou-se mesmo como sendo um dos continentes mais ricos em valores culturais. De Cartago ou Guizeh ao Zimbabwe, de Meroé a Benin e Ifé, do Saara ou de Tombuctu a Kilwa, através da imensidade e da diversidade das condições naturais do continente, a cultura dos povos africanos é um fato inegável: tanto nas obras de arte como nas tradições orais e escritas, nas concepções cosmogônicas como na música e nas danças, nas religiões e crenças como no equilíbrio dinâmico das estruturas econômicas, políticas e sociais que o homem africano soube criar.

Se o valor universal da cultura africana é, presentemente, um fato incontestável, não devemos no entanto esquecer que o homem africano, cujas mãos, como diz o poeta, “colocaram pedras nos alicerces do mundo”, a desenvolveu em condições, senão sempre, pelo menos frequentemente, hostis: dos desertos às florestas equatoriais, dos pântanos do litoral às margens dos grandes rios sujeitos a cheias frequentes, através e contra todas as dificuldades, incluindo os flagelos destruidores não só das plantas e dos animais como também do homem. Pode dizer-se, de acordo com Basil Davidson e outros historiadores das sociedades e das culturas africanas, que as realizações do gênio africano, nos planos econômico, político, social e cultural, face ao caráter pouco hospitaleiro do meio, são uma epopeia comparável aos maiores exemplos históricos da grandeza do homem.

A DINÂMICA DA CULTURA

Como é óbvio, esta realidade constitui um motivo de orgulho e um elemento estimulante para os que lutam pela liberdade e o progresso dos povos africanos. Mas importa não perder de vista que nenhuma cultura é um todo perfeito e acabado. A cultura, tal como a história, é necessariamente um fenômeno em expansão, em desenvolvimento. Mais importante ainda é ter em consideração o fato que a característica fundamental de uma cultura e a sua íntima ligação, de dependência e reciprocidade, com a realidade econômica e social do meio, com o nível de forças produtivas e o modo de produção da sociedade que a cria.

A cultura, fruto da história, reflete, a cada momento, a realidade material e espiritual da sociedade, do homem-indivíduo e do homem-ser social, face aos conflitos que os opõem à natureza e aos imperativos da vida em comum. Daí que qualquer cultura comporte elementos essenciais e secundários, forças e fraquezas, virtudes e defeitos, aspectos positivos e negativos, fatores de progresso estagnação ou regressão. Daí igualmente que a cultura criação da sociedade e síntese dos equilíbrios e soluções que elabora para resolver os conflitos que a caracterizam em cada fase da história — seja uma realidade social independente da vontade dos homens, da cor da pele ou da forma dos olhos.

Numa análise mais profunda da realidade cultural, não se pode pretender que existem culturas continentais ou raciais. E isso porque, como a história, a cultura se desenvolve num processo desigual, ao nível de um continente, de uma "raça" ou mesmo de uma sociedade. As coordenadas da cultura, tal como as de qualquer fenômeno em evolução, variam no espaço e no tempo, quer sejam materiais (físicas) ou humanas (biológicas e sociais). O fato de reconhecer a existência de traços comuns e específicos nas culturas dos povos africanos, independentemente da cor da sua pele, não implica necessariamente que exista uma única cultura no continente: da mesma forma que, do ponto de vista econômico e político, se verifica a existência de várias Áfricas, há também várias culturas africanas.

É fora de dúvida que a subestimação dos valores culturais dos povos africanos, baseada nos sentimentos raciais e na intenção de perpetuar a sua exploração pelo estrangeiro, fez muito mal a África. Mas, face à necessidade vital do progresso, os seguintes fatos ou comportamentos não são menos prejudiciais: os elogios não seletivos; a exaltação sistemática das virtudes sem condenar os defeitos; a cega aceitação dos valores da cultura sem considerar o que ela tem ou pode ter de negativo, de reacionário ou de regressivo; a confusão entre o que é a expressão de uma realidade histórica objetiva e material e o que parece ser uma criação do espirito ou o resultado de uma natureza específica; a ligação absurda das criações artísticas, sejam válidas ou não, a pretensas características de uma raça; finalmente, a apreciação crítica, não científica ou a-científica, do fenômeno cultural.

Da mesma forma, o que importa não é perder tempo em discussões mais ou menos bizantinas sobre a especificidade ou não especificidade dos valores culturais africanos, mas sim encarar esses valores como uma conquista de uma parte da humanidade para o patrimônio comum a toda a humanidade, realizada numa ou em diversas fases da sua evolução. O que interessa é proceder à análise crítica das culturas africanas face ao movimento de libertação e às exigências do progresso — face a esta nova etapa da história da África. Poderemos assim ter consciência do seu valor no quadro da civilização universal, mas comparar este valor com os das outras culturas, não para determinar a sua superioridade ou inferioridade, mas para determinar, no âmbito geral da luta pelo progresso, qual é a contribuição que deu e deve dar e quais são as contribuições que pode e deve receber.

O movimento de libertação deve, como já dissemos, basear a sua ação no conhecimento profundo da cultura do povo e saber apreciar, pelo seu justo valor, os elementos dessa cultura, assim como os diversos níveis que atinge em cada categoria social. Deve igualmente ser capaz de distinguir*no conjunto dos valores culturais do povo, o essencial e o secundário, o positivo e o negativo, o progressista e o reacionário, as forças e as fraquezas, tudo isso em função das exigências da luta e para poder centrar a sua ação no essencial sem esquecer o secundário, provocar o desenvolvimento dos elementos positivos e progressistas e combater, com diplomacia mas rigorosamente, os elementos negativos e reacionários; e, finalmente, para que possa utilizar eficazmente as forças e eliminar as fraquezas, ou transformá-las em forças.

A CULTURA NACIONAL. CONDIÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DA LUTA

Quanto mais tomamos consciência de que a principal finalidade do movimento de libertação ultrapassa a conquista da independência política para se situar no plano superior da libertação total das forças produtivas e da construção do progresso econômico, social e cultural do povo, mais evidente se torna a necessidade de proceder a uma análise seletiva dos valores da cultura no âmbito da luta. Os valores negativos da cultura são, em geral, um obstáculo ao desenvolvimento da luta e à construção desse progresso. Tal necessidade torna-se mais aguda nos casos em que, para enfrentar a violência colonialista, o movimento de libertação tem de mobilizar e organizar o povo, sob a direção de uma organização política sólida e disciplinada, a fim de recorrer à violência libertadora a luta armada de libertação nacional.

Nesta perspectiva, o movimento de libertação deve ser capaz, para além da análise acima exposta, de efetuar, passo a passo mas solidamente, no decurso da evolução da sua ação política, a confluência dos níveis de cultura das diversas categorias sociais disponíveis à luta e transformá-los na força cultural nacional que serve de base ao desenvolvimento da luta armada e que é a sua condição. Convém notar que a análise da realidade cultural dá já uma medida das forças e das fraquezas do povo face às exigências da luta e representa, portanto, uma contribuição valiosa para a estratégia e as táticas a seguir, tanto no plano político como militar. Mas só no decurso da luta, desencadeada a partir de uma base satisfatória de unidade política e moral, a complexidade dos problemas culturais surge em toda a sua amplitude. Isso obriga com frequência a adaptações sucessivas da estratégia e das táticas às realidades que só a luta pode revelar. A experiência da luta demonstra como é utópico e absurdo pretender aplicar esquemas utilizados por outros povos durante a sua luta de libertação e soluções por eles encontradas para os problemas que tiveram que enfrentar, sem considerar a realidade local (e, especialmente, a realidade cultural).

Pode dizer-se que, no início da luta, seja qual for o seu grau de preparação, nem a direção do movimento de libertação nem as massas militantes e populares têm uma consciência nítida do peso da influência dos valores culturais na evolução dessa mesma luta: quais as possibilidades que cria, quais os limites que impõe e, principalmente, como e quanto a cultura é, para d povo, uma fonte inesgotável de coragem, de meios materiais e morais, de energia física e psíquica, que lhe permite aceitar sacrifícios e mesmo fazer "milagres"; e, igualmente, sob alguns aspectos, como pode ser uma fonte de obstáculos e dificuldades, de concepções erradas da realidade, de desvios no cumprimento do dever e de limitação do ritmo e da eficácia da luta face às exigências políticas, técnicas e científicas da guerra.

A LUTA ARMADA, INSTRUMENTO DE UNIFICAÇÃO E DE PROGRESSO CULTURAL

A luta armada de libertação, desencadeada como resposta à agressão do opressor colonialista, revela-se como um instrumento doloroso mas eficaz para o desenvolvimento do nível cultural, tanto das camadas dirigentes do movimento de libertação como das diversas categorias sociais que participam da luta.

Os dirigentes do movimento de libertação, originários da “pequena burguesia” (intelectuais, empregados) ou dos meios trabalhadores das cidades (operários, motoristas, assalariados em geral), tendo de viver quotidianamente com as diversas camadas camponesas, no seio das populações rurais, acabam por melhor conhecer o povo, descobrem, na própria fonte a riqueza dos seus valores culturais (filosóficos, políticos, artísticos, sociais e morais), adquirem uma consciência mais nítida das realidades econômicas do país, dos problemas, sofrimentos e aspirações das massas populares. Constatam, não sem um certo espanto, a riqueza de espírito, a capacidade de argumentação e de exposição clara das ideias, a facilidade de compreensão e assimilação dos conceitos por parte das populações ainda ontem esquecidas e mesmo desprezadas e consideradas pelo colonizador, e até por alguns nacionais, como seres incapazes. Os dirigentes enriquecem assim a sua cultura - cultivam-se e libertam-se de complexos, reforçando a capacidade de servir o movimento, ao serviço do povo.

Por seu lado, as massas trabalhadoras e, em especial, os camponeses, geralmente analfabetos e que nunca ultrapassaram os limites da aldeia ou da região, perdem, nos contatos com outras categorias, os complexos que os limitavam nas relações com outros grupos étnicos e sociais; compreendem a sua condição de elementos determinantes da luta; quebram as grilhetas do universo da aldeia para se integrarem progressivamente no país e no mundo; adquirem uma infinidade de novos conhecimentos, úteis a sua atividade imediata e futura no âmbito da luta; reforçam a consciência política, assimilando os princípios da revolução nacional e social postulada pela luta. Tornam-se mais aptos assim para desempenhar o papel decisivo de força principal do movimento de libertação.

Como é sabido, a luta armada de libertação exige a mobilização e a organização de uma maioria significativa da população, a unidade política e moral das diversas categorias sociais, o uso eficaz de armas modernas e de outros meios de guerra, a liquidação progressiva dos restos de mentalidade tribal, a recusa das regras e dos tabus sociais e religiosos contrários ao desenvolvimento da luta (gerontocracia, nepotismo, inferioridade social da mulher, ritos e práticas incompatíveis com o caráter racional e nacional da luta, etc.) e opera ainda muitas outras modificações profundas na vida das populações. A luta armada de libertação implica, portanto, uma verdadeira marcha forçada no caminho do progresso cultural.

Se aliarmos a estes fatos, inerentes a uma luta armada de libertação, a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a responsabilidade crescente das populações na gestão da sua vida, a alfabetização, a criação de escolas e de assistência sanitária, a formação de quadros originários dos meios rurais e operários — assim como outras realizações - veremos que a luta armada de libertação é não apenas um fato cultural mas também um fator de cultural Essa é, sem dúvida alguma, para o povo, a primeira compensação aos esforços e sacrifícios que são o preço da guerra. Perante esta perspectiva, compete ao movimento de libertação definir claramente os objetivos da resistência cultural, parte integrante e determinante da luta.

OS OBJETIVOS DA RESISTÊNCIA CULTURAL

De tudo o que acabamos de dizer pode concluir-se que, no quadro da conquista da independência nacional e na perspectiva da construção do progresso econômico e social do povo, esses objetivos podem ser, pelo menos, os seguintes:

A realização destes objetivos é, com efeito, possível, pois a luta armada de libertação, nas condições concretas da vida dos povos africanos, enfrentando o desafio imperialista, é um ato de fecundação da história, a expressão máxima da nossa cultura e da nossa africanidade. Deve traduzir-se, no momento da vitória, por um salto em frente significativo da cultura do povo que se liberta.

Se tal não se verificar, então os esforços e sacrifícios realizados no decurso da luta terão sido vãos. Esta terá falhado os seus objetivos e o povo terá perdido uma oportunidade de progresso no âmbito geral da história.

Ao celebrar com esta cerimônia a memória do Dr. Eduardo Mondlane, prestamos homenagem ao homem político, ao combatente da liberdade e, especialmente, ao homem de cultura. Não apenas da cultura adquirida no decurso da sua vida pessoal e nos bancos da universidade, mas principalmente no seio do seu povo, no quadro da luta de libertação do seu povo.

Pode dizer-se que Eduardo Mondlane foi selvaticamente assassinado porque foi capaz de se identificar com a cultura do seu povo, com as suas mais profundas aspirações, através e contra todas as tentativas ou tentações de alienação da sua personalidade de africano e moçambicano. Por ter forjado u m a cultura nova na luta, caiu como um combatente. É evidentemente fácil acusar os colonialistas portugueses e os agentes do imperialismo, seus aliados, do crime abominável cometido contra a pessoa de Eduardo Mondlane, contra o povo de Moçambique e contra a África. Foram eles que covardemente o assassinaram. É no entanto necessário que todos os homens de cultura, todos os combatentes da liberdade, todos os espíritos sedentos de paz e de progresso — todos os inimigos do colonialismo e do racismo — tenham a coragem de tomar sobre os seus ombros a parte de responsabilidade que lhes compete nessa morte trágica. Porque, se o colonialismo português e os agentes imperialistas podem ainda assassinar impunemente um homem como o Dr. Eduardo Mondlane, é porque algo de podre continua a vegetar no seio da humanidade: o domínio imperialista. É porque os homens de boa vontade, defensores da cultura dos povos, ainda não realizaram o seu dever à superfície do planeta.

Quanto a nós, isso dá bem a medida das responsabilidades dos que nos ouvem, neste templo da cultura, em relação ao movimento de libertação dos povos oprimidos.

II. O papel da cultura na luta pela independência(1)

Prólogo

Apenas o desejo consciente de corresponder ao amável convite da UNESCO e uma profunda convicção da importância do tema que nos foi proposto permitiram a elaboração deste modesto trabalho, numa altura em que as nossas obrigações, no âmbito da difícil luta de libertação do nosso povo, exigem uma mobilização de todo o nosso tempo para o estudo e a solução dos problemas nacionais.

Em vez de explorar exaustivamente os diversos pontos propostos à discussão, sem lhes minimizar de forma alguma o interesse e a acuidade, preferimos centrar a nossa atenção na importância do papel da cultura no movimento de pré-independência ou de libertação. Não dispondo, evidentemente, de tempo para manusear livros e documentos que nos teriam com certeza permitido fundamentar e enriquecer o conteúdo do nosso trabalho, limitamo-nos praticamente a transmitir o resultado da nossa experiência e das nossas observações, tanto no âmbito da nossa luta como no estudo das outras lutas contra o domínio imperialista. Na parte que especificamente se refere ao papel da cultura no movimento de libertação, utilizamos e desenvolvemos algumas das ideias e das considerações contidas na conferência que fizemos, em Fevereiro de 1970, na Universidade de Siracusa (EUA), subordinada ao tema "libertação nacional e cultura".

É inútil recordar que as condições em que este trabalho foi escrito, aliadas às limitações dos nossos conhecimentos, fazem com que tenha deficiências que a generosidade do leitor saberá, senão desculpar, pelo menos compreender. No entanto, se conseguirmos convencê-lo (ou reforçar as suas convicções) da importância decisiva da cultura na evolução do movimento de libertação, este trabalho terá sido útil.

Pessoalmente, esperamos que a UNESCO não tenha cometido um grave erro confundindo corajosamente o Combatente e o investigador. O combate pela libertação e o progresso do povo é também, ou deve ser, um estudo permanente nos campos da educação, da ciência e da cultura.

Junho de 1972

INTRODUÇÃO

A luta dos povos pela libertação nacional e pela independência, contra o domínio imperialista, tornou-se uma forca imensa de progresso para a humanidade e constitui, sem dúvida, um dos traços essenciais da história do nosso tempo.

Uma análise objetiva e sem paixão do imperialismo, enquanto fato ou fenômeno histórico "natural", ou seja, "necessário" no contexto do tipo de evolução econômico-política duma grande parte da humanidade, revela que o domínio imperialista, com todo o seu cortejo de misérias, de pilhagens, de crimes e de destruição de valores humanos e culturais, não foi senão uma realidade negativa. A imensa acumulação monopolista do capital numa meia dúzia de países do hemisfério norte, como resultado da pirataria do saque dos bens de outros povos e da exploração desenfreada do trabalho desses povos provocou o monopólio das colônias, a partilha do mundo e o domínio imperialista.

Nos países ricos, o capital imperialista, sempre à procura de mais-valia, aumentou a capacidade criadora do homem, operou uma profunda transformação dos meios de produção (forças produtivas materiais) graças aos progressos acelerados da ciência da técnica e da tecnologia, acentuou a socialização do trabalho e permitiu em considerável escala o ascenso de vastas camadas da população. Nos países colonizados, onde a colonização bloqueou em geral, o processo histórico do desenvolvimento dos povos dominados, quando não procedeu à sua eliminação radical ou progressiva, o capital imperialista impôs novos tipos de relações no seio da sociedade autóctone, cuja estrutura se tornou mais complexa, suscitou, fomentou, envenenou ou resolveu contradições e conflitos sociais, introduziu particularmente com o ciclo da moeda e o desenvolvimento do mercado interno e externo novos elementos na economia; levou, sob a influência de uni novo tipo de dominação de classe (colonialista e racista) ao nascimento de novas nações a partir de grupos humanos e de povos que se encontravam em estados diversos de desenvolvimento histórico.

É certo que o imperialismo, como capital em ação, não cumpriu, nos países estrangeiros dominados, a missão histórica que realizou nos países ricos. Não é defender o domínio imperialista reconhecer que deu novos mundos ao mundo, cujas dimensões reduziu, que revelou novas fases de desenvolvimento das sociedades humanas e a despeito ou por causa dos preconceitos, das discriminações e dos crimes aos quais deu lugar, contribuiu para dar um conhecimento mais profundo da humanidade como um todo em movimento, como uma unidade na diversidade complexa das características do seu desenvolvimento.

O domínio imperialista sobre diversos continentes favoreceu uma confrontação multilateral e progressiva (por vezes abrupta) não só entre homens diferentes mas também entre sociedades diferentes, tanto pelas características somáticas das populações como, principalmente, pelo grau e tipo de desenvolvimento histórico, pelo nível das forças produtivas, pelos dados essenciais da estrutura social e pela cultura. A prática do domínio imperialista a sua afirmação ou a sua negação - exigiu (e exige ainda) o conhecimento mais ou menos correto do objeto dominado e da realidade histórica (econômica, social e cultural) no seio da qual ele se move conhecimento esse que se exprime necessariamente em termos de comparação com o sujeito dominador e com a sua própria realidade histórica. Um tal conhecimento é uma necessidade imperiosa da prática do domínio imperialista, que resulta da confrontação, em geral violenta, de duas identidades distintas no seu conteúdo histórico e antagônicas nas suas funções. A procura de um tal conhecimento, tanto para defender como para contestar o domínio imperialista, contribuiu para um enriquecimento geral das ciências humanas e sociais, apesar do caráter unilateral, subjetivo e muitas vezes imbuído de preconceitos da maior parte das abordagens e dos resultados obtidos nesta procura.

Na realidade, nunca o homem se interessou tanto pelo conhecimento de outros homens e de outras sociedades como no decurso deste século do imperialismo e do domínio imperialista uma quantidade sem precedentes de informações, hipóteses e teorias acumulou-se assim, especialmente nos domínios da história, da etnologia, da etnografia, da sociologia e da cultura relativas aos povos ou aos grupos humanos submetidos ao domínio imperialista Os conceitos de raça, casta, etnia, tribo, nação, cultura identidade, dignidade e tantos outros ainda, tornaram-se alvo de uma atenção crescente por parte dos qua estudam o homem e as sociedades ditas "primitivas" ou em “evolução” Mais recentemente, com o incremento da luta pela libertação, que é a negação do domínio imperialista, surgiu a necessidade de analisar e conhecer as características dessas sociedades em função da luta e determinar os fatores que provocam ou travam essa luta exercendo uma influência positiva ou negativa sobre a sua evolução. Os investigadores concordam em geral que, neste contexto a cultura se reveste de uma importância especial. Pode-se portanto admitir que qualquer tentativa visando o esclarecimento do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação (pré-independência) pode ser um contributo útil para a luta geral dos povos contra o domínio imperialista.

I

O fato de os movimentos de independência serem em geral marcados, logo na sua fase inicial, por um surto de manifestações de caráter cultural, fez admitir que esses movimentos são precedidos por um "renascimento cultural" do povo dominado. Vai-se mesmo mais longe, admitindo que a cultura é um método de mobilização de grupo e até uma arma na luta pela independência.

A partir da experiência da nossa própria luta, e poder-se-ia dizer, de toda a África, julgamos que se trata de uma concepção demasiado limitada, senão mesmo errônea, do papel primordial da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação. Essa limitação ou esse erro provêm, pensamos, de uma generalização incorreta de um fenômeno real mas restrito, que se situa a um determinado nível das elites ou das diásporas coloniais. Generalização essa que ignora ou negligencia o dado essencial do problema: o caráter indestrutível da resistência cultural do povo – das massas populares — face ao domínio estrangeiro.

A prática do domínio imperialista exige, como fator de segurança, a opressão cultural e a tentativa de liquidação, direta ou indireta, dos dados essenciais da cultura do povo dominado. Mas este só pode criar e desenvolver o movimento de libertação por guardar bem viva a sua cultura, apesar da repressão permanente e organizada da sua vida cultural; por, anulada a sua resistência político-militar, continuar a resistir culturalmente. E é a resistência cultural que, num determinado momento, de acordo com os fatores internos e externos que condicionam a evolução da sociedade em questão, assim como as suas relações com a potência colonial, pode assumir novas formas (políticas, econômicas, armadas) para contestar o domínio estrangeiro.

Com exceção dos casos de genocídio das populações autóctones ou da sua redução violenta a um mínimo social e culturalmente insignificante, o tempo de colonização não foi suficiente para permitir, pelo menos em África, uma destruição ou uma depreciação significativas dos elementos essenciais da cultura e das tradições do povo colonizado. A experiência colonial do domínio imperialista em África revela que (excetuando o genocídio, a segregação racial e o "apartheid") a única solução pretensa- mente positiva encontrada pelo poderio colonial para negar a resistência cultural do povo colonizado é a assimilação. Mas o insucesso total da política de "assimilação progressiva" das populações nativas é a prova evidente tanto da falsidade desta teoria como da capacidade de resistência dos povos dominados a uma tentativa de destruição ou depreciação do seu patrimônio cultural.(2)

Por outro lado, mesmo nas colônias de povoamento, onde a grande maioria da população continua composta por autóctones, a expansão da ocupação colonial e, especialmente, da ocupação cultural, está em geral reduzida às zonas costeiras e a algumas zonas restritas do interior. A influência da cultura da potência colonial é quase nula na estrutura horizontal da sociedade dominada, para além dos limites da capital e de outros centros urbanos. Só e sentida de maneira significativa na vertical da pirâmide social colonial — a que o próprio colonialista criou — e exerce-se especialmente sobre o que se pode chamar a “pequena burguesia autóctone" e sobre um número muito reduzido de trabalhadores dos centros urbanos.

Constata-se, portanto, que as grandes massas rurais, assim como uma fração importante da população urbana, num total de mais de 99 por cento da população indígena(3) permanecem livres, ou quase, de qualquer influência cultural da potência colonial. Esta situação é originada, por um lado, pelo caráter necessariamente obscurantista do domínio imperialista que, desprezando e reprimindo a cultura do povo dominado, não tem qualquer interesse em promover a aculturação das massas populares, fonte de mão-de-obra para os trabalhos forçados e principal alvo da exploração; por outro lado, a eficácia da resistência cultural dessas massas que, submetidas ao domínio político e à exploração econômica, encontram na sua própria cultura o único reduto susceptível de preservar a sua identidade. Esta defesa do patrimônio cultural é ainda reforçada, nos casos em que a sociedade autóctone tem uma estrutura vertical, pelo interesse que a potência colonial tem em proteger e reforçar a influência cultural das classes dominantes, suas aliadas.

O que se disse anteriormente implica que, não só para as massas populares do país dominado — para as classes ou camadas sociais trabalhadoras do campo e das cidades -, mas também para as classes dominantes autóctones (chefes tradicionais, famílias nobres, autoridades religiosas), não há, em geral, destruição ou depreciação significativa da cultura o das tradições. Reprimida, perseguida, humilhada, traída por um certo número de categorias sociais comprometidas com o estrangeiro, refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito das gerações vítimas de dominação, a cultura sobrevive a todas as tempestades para retomar graças as lutas de libertação, toda a sua faculdade de desenvolvimento. Eis porque o problema de um "retorno às fontes" ou de um renascimento cultural" não se põe nem poderia pôr-se para as massas populares, visto que elas são portadoras da sua cultura própria, são a fonte da cultura e, ao mesmo tempo, a única entidade verdadeiramente capaz de preservar e de criar a cultura – de fazer a história.

Para uma apreciação correta do verdadeiro papel da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação é preciso portanto (pelo menos em África), fazer a distinção entre a situação das massas populares, que preservam a sua cultura, e a das categorias sociais mais ou menos assimiladas, desenraizadas e culturalmente alienadas ou simplesmente desprovidas de qualquer elemento nativo no processo da sua formação cultural. Ao contrário do que se verifica com as massas populares, as elites coloniais autóctones, forjadas pelo processo de colonização, apesar de serem portadoras de um certo número de elementos culturais próprios da sociedade autóctone, vivem material e espiritualmente a cultura do estrangeiro colonialista, com o qual procuram identificar-se progressivamente, quer no comportamento social, quer na própria apreciação dos valores culturais indígenas.

Ao longo de duas ou três gerações de colonizados, forma-se uma camada social constituída por funcionários do Estado e por empregados dos diversos ramos da economia (especialmente do comércio), assim como por membros das profissões liberais e por alguns proprietários urbanos e agrícolas. Esta nova classe — a pequena burguesia autóctone —, forjada pelo domínio estrangeiro e indispensável ao sistema de exploração colonial, situa-se entre as massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos e a minoria de representantes locais da classe dominante estrangeira. Ainda que possa ter relações mais ou menos desenvolvidas com as massas populares ou com os chefes tradicionais, aspira, em geral, a um estilo de vida semelhante, senão idêntico, ao da minoria estrangeira; simultaneamente, enquanto limita as suas relações com as massas, tenta integrar-se nessa minoria, ainda que muitas vezes em detrimento dos laços familiares ou étnicos e sempre graças a esforços individuais. Mas não chega, quaisquer que sejam as exceções aparentes, a franquear as barreiras impostas pelo sistema: está prisioneira das contradições da realidade cultural e social em que vive, porque não pode fugir, na paz colonial, a sua condição de classe marginal ou "marginalizada" Esta marginalidade" constitui, tanto localmente como no seio das diásporas implantadas na metrópole colonialista, o drama sócio- cultural das elites coloniais ou da pequena burguesia indígena, vivido mais ou menos intensamente segundo as circunstâncias materiais e o nível de aculturação, mas sempre no plano individual, não coletivo.

É no contexto desse drama quotidiano, sobre o pano de fundo da confrontação geralmente violenta entre as massas populares e a classe colonial dominante, que surge e se desenvolve na pequena burguesia indígena um sentimento de amargura ou um complexo de frustração e, paralelamente, uma necessidade urgente, de que ela toma pouco a pouco consciência, de contestar a sua marginalidade e de descobrir uma identidade. Resultante do fracasso da tentativa de identificação com a classe dominante estrangeira, para a qual é impulsionada tanto pelos elementos essenciais da sua formação cultural como pelas suas aspirações sociais, esta necessidade de libertação do complexo de frustração e da marginalidade leva a pequena burguesia autóctone a voltar-se para o outro pólo do conflito sociocultural no seio do qual vive – as massas populares indígenas —, procurando uma identidade. Como vimos, a sociedade dominada (por estar vencida, oprimida e reprimida nos planos econômico e político) preserva, apesar de todas as tentativas de destruição da parte da potência colonial, o essencial da sua cultura e continua a sua resistência cultural, que é indestrutível. Só no domínio cultural a pequena burguesia autóctone pode tentar satisfazer essa necessidade de libertação e de conquista de uma identidade.

Dai o "retorno ás fontes", que parece tanto mais imperioso quanto o isolamento da pequena burguesia (ou das elites nativas) for grande e quanto o seu sentimento ou complexo de frustração for agudo, como em relação às diásporas africanas implantadas nas metrópoles colonialistas e racistas. Não é pois por acaso que teorias ou movimentos" tais como o pan-africanismo e a negritude, duas expressões pertinentes do "regresso às fontes" - baseadas principalmente no postulado da identidade cultural de todos os africanos negros — foram concebidas em espaços culturais distintos dos da África negra. Mais recentemente, a reivindicação, feita pelos negros americanos, de uma identidade africana, e outra manifestação, talvez desesperada, de uma tentativa de "retorno às fontes", embora nitidamente influenciada por uma realidade nova – a conquista da independência política pela grande maioria dos povos africanos. Caracteriza-se principalmente, nos seus aspectos visíveis, pela manifestação, muitas vezes ostentatória, de um desejo mais ou menos consciente de identificação cultural.

Mas o retorno às fontes" não é, nem pode ser, em si próprio, um ato de luta contra o domínio estrangeiro (colonialista e/ou racista) e já não significa necessariamente um retorno às tradições. E a negação, pela pequena burguesia indígena, da pretensa supremacia da cultura da potência dominante sobre a do povo dominado, com o qual tem necessidade de se identificar para resolver o conflito sociocultural em que se debate procurando uma identidade. O "retorno às fontes" não é pois uma démarche voluntária, mas a única resposta viável à solicitação imperiosa de uma necessidade concreta, histórica, determinada pela contradição irredutível que opõe a sociedade colonizada à potência colonial, as massas populares exploradas à classe estrangeira exploradora, contradição em relação à qual cada camada social ou classe indígena é obrigada a definir uma posição.

Quando o "retorno às fontes" ultrapassa o caso individual para se exprimir através de "grupos" ou de "movimentos" os fatores que condicionam, tanto interna como externamente, a evolução político-econômica da sociedade, atingiram já o nível em que esta contradição se transforma em conflito (velado ou aberto), prelúdio do movimento de pré-independência ou da luta pela libertação do jugo estrangeiro. Assim, o "retorno às fontes" só e historicamente consequente se implicar não apenas um comprometimento real na luta pela independência, mas também uma identificação total e definitiva com as aspirações das massas populares, que não contestam somente a cultura do estrangeiro mas ainda, globalmente, o domínio estrangeiro. Doutro modo, o "retorno as fontes" não é mais do que uma solução que pretende obter vantagens temporárias, uma forma, consciente ou inconsciente, de oportunismo político da parte da pequena burguesia.

É preciso notar que o fenômeno do "retorno às fontes" quer seja aparente ou real, não se produz de maneira global simultânea e uniforme, no seio da pequena burguesia autóctone. É um processo lento, descontínuo e desigual, cujo desenvolvimento, ao nível de cada indivíduo, depende do grau de aculturação, das condições materiais de existência, da formação ideológica e da própria história enquanto ser social.

Esta desigualdade está na base da cisão da pequena burguesia autóctone em três grupos distintos, face ao movimento de libertação:

  1. uma primeira minoria que, apesar de desejar o fim da dominação estrangeira, se prende à classe colonial dominante e se opõe abertamente a esse movimento para defender a sua segurança social;
  2. uma maioria de elementos hesitantes ou indecisos;
  3. uma segunda minoria cujos elementos participam na criação e na direção do movimento de libertação, de que são o principal elemento de fecundação.

Mas este último grupo, que desempenha um papel decisivo no desenvolvimento do movimento de pré-independência, não consegue identificar-se verdadeiramente com as massas populares (com a sua cultura e as suas aspirações) senão através da luta, dependendo o grau dessa identificação da forma ou das formas de luta, do conteúdo ideológico do movimento e do nível de consciência moral e política de cada indivíduo.

II

O principal problema do movimento de libertação — o da identificação de uma parte da pequena burguesia nativa com as massas populares — pressupõe uma condição essencial: que, contra a ação destrutiva do domínio imperialista, as massas populares preservem a sua identidade, diferente e distinta da da potência colonial. Parece, portanto, interessante determinar em que casos esta preservação é possível; por que, quando e a que níveis da sociedade dominada se põe o problema da perda ou da ausência de identidade e, portanto, a necessidade de afirmar ou de reafirmar, no âmbito do movimento de pré-independência, uma identidade diferente e distinta da da potência colonial.

A identidade de um indivíduo ou de um determinado grupo humano é uma qualidade biossociológica, independente da vontade desse indivíduo ou desse grupo, mas que só tem significado ao ser expressa em relação a outros indivíduos ou a outros grupos humanos. A natureza dialética da identidade reside no fato de que ela identifica e distingue, porque um indivíduo (ou um grupo humano) não é idêntico a determinados indivíduos (ou grupos) senão se for distinto de outros indivíduos (ou grupos humanos). A definição de uma identidade, individual ou coletiva, é portanto, simultaneamente, a afirmação e a negação de um determinado número de características que definem indivíduos ou coletividades em função de coordenadas históricas (biológicas e sociológicas), em dado momento da sua evolução. Com efeito, a identidade não é uma qualidade imutável, precisamente porque os dados biológicos e sociológicos que a definem estão em permanente evolução. Quer biológica, quer sociologicamente, não existem, no tempo, dois seres (individuais ou coletivos) absolutamente idênticos, ou absolutamente distintos, porque é sempre possível encontrar características qua os distinguam ou que os identifiquem. Da mesma forma, a identidade de um ser é sempre uma qualidade relativa, não exata, mesmo circunstancial, porque a sua definição exige uma seleção mais ou menos rigorosa ou restritiva das características biológicas e sociológicas do ser em questão.

É preciso notar que, no binômio fundamental da definição da identidade, o sociológico é mais determinante do que o biológico. Com efeito, se é certo que o elemento biológico (o patrimônio genético) é a base material indispensável à existência e a continuidade evolutiva da identidade, não deixa de ser um fato que o elemento sociológico é o fator que, dando-lhe um conteúdo e uma forma, imprime significado objetivo a essa qualidade, permitindo a confrontação ou a comparação entre indivíduos ou entre grupos de indivíduos. Para uma definição integral da identidade, a caracterização do elemento biológico é indispensável, mas não implica uma identificação no plano sociológico, enquanto que dois seres ou mais, sociologicamente idênticos, têm necessariamente uma identidade semelhante no plano biológico.

Este fato revela, por um lado, a supremacia da vida social sobre a vida individual, porque a sociedade (humana, por exemplo) é uma forma superior de vida; sugere, por outro lado, a necessidade de não confundir, na apreciação da identidade, a identidade original, em que o elemento biológico é a determinante principal, com a identidade atual, na qual a determinante principal é o elemento sociológico. É evidente que a identidade que é necessário ter em consideração num determinado momento da evolução de um ser (individual ou coletivo) é a identidade atual e qualquer apreciação desse ser feita unicamente com base na sua identidade original está incompleta, parcial e imbuída de preconceitos, tendo em conta que esquece ou ignora a influência decisiva da realidade social (material e espiritual) sobre o conteúdo e a forma da identidade.

Na formação e desenvolvimento da identidade individual ou coletiva, a realidade social é um agente objetivo, resultante dos fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que caracterizam a evolução ou a história da sociedade em questão. Se considerarmos que, entre esses fatores, o econômico é fundamental, podemos afirmar que a identidade é, de certa maneira, a expressão de uma realidade econômica. Essa realidade — sejam quais forem os meios geográficos e a via de desenvolvimento da sociedade — é definida pelo nível das forças produtivas (relação entre o homem e a natureza) e pelo modo de produção (relações entre os homens ou as categorias de homens no seio da mesma sociedade). Mas, se admitirmos que a cultura é a síntese dinâmica da realidade material e espiritual da sociedade e exprime as relações tanto entre o homem e a natureza como entre as diferentes categorias de homens no seio de uma mesma sociedade, podemos afirmar que a identidade é, a nível individual ou coletivo e para além da realidade econômica, a expressão de uma cultura. É por isso que atribuir, reconhecer ou afirmar a identidade de um indivíduo ou de um grupo humano é, acima de tudo, situar esse indivíduo ou grupo no âmbito de uma cultura. Ora, como todos sabem, a base principal da cultura é, em todas as sociedades, a estrutura social. Parece mais licito concluir que a possibilidade de um determinado grupo humano preservar (ou perder) a sua identidade face ao dominio estrangeiro depende do grau de destruição verificada na sua estrutura social por esse mesmo domínio.

Quanto à ação e aos efeitos do domínio imperialista sobre a estrutura social do povo dominado, importa considerar aqui o caso do colonialismo clássico de que o movimento de pré-independência e a contestação. Nesse caso, seja qual for o grau de desenvolvimento histórico da sociedade dominada, a estrutura social pode sofrer as seguintes ações e efeitos:

  1. destruição total, com a liquidação imediata ou progressiva da população indígena e a sua substituição consequente por uma população alógena;
  2. destruição parcial, com fixação de uma população alógena mais ou menos numerosa;
  3. conservação aparente, condicionada pela reclusão da sociedade autóctone em zonas geográficas ou reservas próprias, geralmente desprovidas de possibilidades de vida, com implantação maciça de uma população alógena.

A experiência do domínio imperialista demonstra que a destruição completa da estrutura social, que implica a perda de identidade, só e possível com a liquidação total da população indígena ou pela sua redução a um mínimo social e culturalmente insignificante. Em contrapartida, nos dois últimos casos, que são os que interessa considerar em África, há a possibilidade de preservação da cultura e, portanto, da identidade, mesmo que a estrutura social sofra uma importante destruição parcial. Como é natural, esta possibilidade varia com os tipos e os tempos de colonização. Podemos no entanto afirmar que o domínio político, a exploração econômica e a repressão cultural praticadas pela potência colonial provocaram uma "cristalização" da cultura e uma sobrestimação" da identidade por parte dos grupos dominados, como principal efeito do bloqueamento do seu processo histórico pelo domínio imperialista.

O caráter fundamentalmente horizontal da estrutura social dos povos africanos — multiplicidade ou profusão de grupos étnicos — faz com que a resistência cultural e o grau de preservação da identidade não sejam uniformes. Desta forma, se é um fato que os grupos étnicos conseguiram, de uma forma geral, preservar a sua identidade e, portanto, não há perda dessa qualidade na horizontal social, verifica-se que os grupos mais resistentes são os que mais violentos choques tiveram com a potência colonial na fase da ocupação efetiva(4) ou então aqueles que, devido à sua localização geográfica, tiveram menos contatos com a potência estrangeira(5).

Convém notar que a potência colonial defronta, de forma insolúvel, uma contradição no seu comportamento face aos grupos étnicos: por um lado, tem necessidade de dividir ou de manter a divisão para reinar e, por isso, mantém e fomenta a separação e mesmo as querelas entre os grupos étnicos; por outro lado, para tentar garantir a perpetuação do seu domínio, precisa de destruir a estrutura social desses grupos, a sua cultura e, portanto, a sua identidade. Além disso, é forçada a adotar uma política de proteção da estrutura social e de defesa das classes dirigentes dos grupos que (como, por exemplo, a etnia ou a nação fula, no nosso país) apoiarem decisivamente as suas guerras de conquista colonial — política que favorece a preservação da identidade do grupo.

Como já dissemos, de uma maneira geral, não se verificam modificações importantes no referente à cultura, na vertical da pirâmide ou das pirâmides sociais indígenas (grupos ou sociedades com um Estado). Cada camada ou classe mantém a sua identidade, tanto nos centros urbanos como em algumas zonas do interior do país onde a influência cultural da potência colonial é sensível, o problema da identidade é mais complexo. Enquanto que a base e o topo da pirâmide social (respectivamente, a maioria das massas populares trabalhadoras, constituída por indivíduos de etnias diferentes, e a classe estrangeira dominante) mantêm as suas identidades, a zona central dessa pirâmide (a pequena burguesia autóctone), culturalmente desenraizada, alienada ou mais ou menos assimilada, debate-se num conflito sociocultural, procurando uma identidade. É preciso notar ainda que, embora solidamente ligada por uma nova identidade — a da potência colonial — a classe dominante estrangeira não consegue libertar-se das contradições e dos limites da sua própria sociedade, que transfere para a área de colonização.

Quando, por ação de uma minoria da pequena burguesia autóctone aliada às massas populares indígenas, se desencadeia o movimento de pré-independência, essas massas não têm qualquer necessidade de afirmar ou reafirmar a sua identidade, que nunca confundiram nem poderiam confundir com a da potência colonial. Essa necessidade só surge ao nível da pequena burguesia autóctone (elites) que, nesta fase da evolução das contradições do processo de colonização, é forçada a tomar posição face ao conflito que opõe as massas populares à potência colonial. No entanto, como sucede nos casos de necessidade de uma identificação cultural, a reafirmação de uma identidade distinta da da potência colonial não é um fato generalizado no seio da pequena burguesia. Só uma minoria reafirma essa diferença, enquanto que outra minoria afirma, quantas vezes de forma espalhafatosa, a sua identificação com a classe estrangeira dominante, e a maioria, silenciosa, se debate na indecisão.

É importante observar ainda que, mesmo no seio da parte da pequena burguesia que reafirma uma identidade distinta da da potência colonial e, portanto, idêntica à das massas populares, essa reafirmação nem sempre se realiza da mesma forma. Parte dessa minoria, integrada no movimento de pré-independência, utiliza dados culturais estrangeiros para exprimir, recorrendo principalmente à literatura e às artes, mais a descoberta da sua identidade do que as aspirações e os sofrimentos das massas populares que lhe servem de tema. E como utiliza precisamente para essa expressão a linguagem e a língua da potência colonial, só excepcionalmente consegue influenciar as massas populares em geral iletradas e familiarizadas com outras formas de expressão artística. Esse fato, todavia, não diminui o valor da contribuição dessa minoria pequeno-burguesa no processo de desenvolvimento da luta, pois consegue influenciar, com a sua reafirmação de identidade, tanto parte dos indecisos e retardatários da sua própria categoria social como um importante setor da opinião pública da metrópole colonial, principalmente intelectuais.

A outra parte da pequena burguesia, que se empenha ab initio no movimento de pré-independência, descobre na participação imediata na luta de libertação e na integração nas massas populares a melhor forma de exprimir uma identidade distinta da da potência colonial.

É por isso que a identificação com as massas populares e a reafirmação da identidade podem ser temporárias ou definitivas, apenas aparentes ou reais, face aos esforços e aos sacrifícios quotidianos exigidos pela própria luta que, sendo uma expressão política organizada de cultura, é também, e necessariamente, uma prova não apenas de identidade, mas ainda de dignidade.

Durante o processo de domínio colonialista, as massas populares, sejam quais forem as características da estrutura social do grupo a que pertencem, não deixam de resistir à potência colonial. Numa primeira fase — a da conquista, cinicamente denominada "pacificação" — resistem, de armas na mão, à ocupação estrangeira(6). Numa segunda fase — a idade de ouro do colonialismo triunfante — opõem ao domínio estrangeiro uma resistência passiva, quase silenciosa, mas muitas vezes esmaltada de rebeliões, geralmente individuais, raramente coletivas, especialmente no âmbito do trabalho, do pagamento de impostos, mesmo no contato social com os representantes estrangeiros ou autóctones da potência colonial. Numa terceira fase — a da luta de libertação — são as massas populares que constituem a força principal para a resistência política ou armada que conteste e liquide o domínio estrangeiro. Essa resistência, longa e multi- forme, só é possível porque, preservando a sua cultura e a sua identidade, as massas populares mantêm intacto o sentimento de dignidade individual e coletiva, apesar dos vexames, das humilhações e das sevícias de que são tantas vezes alvo. Isto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que os indivíduos ou as categorias sociais que se põem "voluntariamente" ao serviço da potência colonial o fazem, consciente ou inconscientemente, em benefício de interesses de grupos ou de classes contrários aos da esmagadora maioria das massas populares.

A afirmação ou a reafirmação de uma identidade distinta da da potência colonial por parte da pequena burguesia autóctone contribui, portanto, unicamente para restituir um sentimento de dignidade a essa mesma categoria social. Ainda nesse plano, é conveniente observar que o sentimento de dignidade no seio da pequena burguesia depende do comportamento objetivo, moral e social, de cada indivíduo, do grau de subjetividade da sua atitude face aos dois polos do conflito colonial, entre os quais é obrigado a viver o drama quotidiano da colonização. Esse drama é tanto mais intenso quanto é um fato que, no âmbito profissional, a pequena burguesia, no desempenho das suas funções, é forçada a uma confrontação permanente, tanto com a classe estrangeira dominante, como com as massas populares. Esta situação faz com que, por um lado, o elemento pequeno-burguês seja alvo de frequentes humilhações, quase quotidianas, da parte dos estrangeiros e que, por outro lado, tome nítida consciência, tanto das injustiças a que estão sujeitas as massas populares, como da sua resistência e do seu espírito de revolta. Daí deriva este paradoxo aparente da contestação do domínio colonial: é no seio da pequena burguesia autóctone, categoria social nascida da própria colonização, que surgem as primeiras iniciativas consequentes visando a mobilização e a organização das massas populares para a luta contra a potência colonial.

Essa luta, através de todas as vicissitudes e sejam quais forem as formas que assume, reflete a consciência ou a tomada de consciência de uma identidade própria, generaliza e consolida o sentimento de dignidade, reforçado pelo desenvolvimento da consciência política, e vai beber à cultura ou às culturas das massas populares em revolta uma das suas principais forças.

III

Uma apreciação correta do papel da cultura no movimento da pré-independência ou da libertação exige que se faça uma nítida distinção entre cultura e manifestações culturais. A cultura é a síntese dinâmica, ao nível da consciência do indivíduo ou da coletividade, da realidade histórica, material e espiritual, duma sociedade ou dum grupo humano, das relações existentes entre o homem e a natureza, como entre os homens e as categorias sociais. As manifestações culturais são as diferentes formas pelas quais esta síntese se exprime, individual ou coletivamente, em cada etapa da evolução da sociedade ou do grupo humano em questão.

Verificou-se que a cultura é a verdadeira base do movimento de libertação, e que as únicas sociedades que podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra o domínio estrangeiro são as que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as características ideológicas ou idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico. É nela que reside a capacidade (ou a responsabilidade) de elaborar ou de fecundar elementos que assegurem a continuidade da história e determinem, ao mesmo tempo, as possibilidades de progresso ou de regressão da sociedade.

Compreende-se assim que, sendo o domínio imperialista a negação do processo histórico da sociedade dominada, é necessariamente a negação do seu processo cultural. Também — e porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma os caminhos ascendentes da sua própria cultura — a luta de libertação é, antes de mais, um ato de cultura.

A luta de libertação é um fato essencialmente político. Por conseguinte, só podem ser utilizados métodos políticos (incluindo o uso da violência para liquidar a violência, sempre armada, do domínio imperialista) no decurso do seu desenvolvimento. A cultura não é, pois, nem poderá ser, uma arma ou um método de mobilização de grupo contra o domínio estrangeiro. Ela é bem mais do que isso. Com efeito, é no conhecimento concreto da realidade local, em especial da realidade cultural, que se fundamenta a escolha, a estruturação e o desenvolvimento dos métodos mais adequados para a luta. Daí a necessidade, para o movimento de libertação, de conceder uma importância primordial não só às características gerais da cultura da sociedade dominada, mas também às de cada categoria social. Embora tenha um caráter de massa, a cultura não é uniforme, não se desenvolve igualmente em todos os setores, horizontais ou verticais, da sociedade.

A atitude e o comportamento de cada categoria ou de cada indivíduo face à luta e ao seu desenvolvimento são, certamente, ditados pelos seus interesses econômicos e também profundamente influenciados pela sua cultura. Pode-se mesmo afirmar que é a diferença dos níveis de cultura que explica os diferentes comportamentos dos indivíduos duma mesma categoria social face ao movimento de libertação. É neste plano, portanto, que a cultura atinge todo o seu significado para cada indivíduo: compreensão e integração no meio social, identificação com os problemas fundamentais e as aspirações da sociedade, aceitação ou negação da possibilidade duma transformação no sentido do progresso.

É evidente que a multiplicidade de categorias sociais, em especial de etnias, torna mais complexa a definição do papel da cultura no movimento de libertação. Mas esta complexidade não pode nem deve diminuir a importância decisiva, no desenvolvimento desse movimento, do caráter de classe da cultura, muito mais sensível nas categorias urbanas e nas sociedades rurais de estrutura vertical (Estado), mas que não deve deixar de ser tomada em consideração mesmo nos casos em que o fenômeno de classe surge ainda no estado embrionário. A experiência demonstra que, perante a necessidade de uma opção política exigida pela contestação do domínio estrangeiro, as categorias privilegiadas, na sua maioria, colocam os seus interesses imediatos de classe acima dos interesses do grupo ou da sociedade, contra as aspirações das massas populares.

Na apreciação do papel da cultura no movimento de libertação, é conveniente não esquecer que a cultura, como resultante e determinante da história, comporta elementos essenciais e secundários, forças e fraquezas, virtudes e defeitos, aspectos positivos, fatores de progresso e de estagnação ou mesmo de regressão – em suma, contradições e mesmo conflitos. Seja qual for a complexidade desse panorama cultural, o movimento de libertação tem necessidade de nele localizar e definir os dados contraditórios para preservar os valores positivos, efetuar a confluência desses valores no sentido da luta e no âmbito de uma nova dimensão — a dimensão nacional. É preciso, no entanto, notar que só no decurso da luta a complexidade e a importância dos problemas culturais surgem em toda a sua vastidão, o que obriga frequentemente a adaptações e correções sucessivas da estratégia e das táticas em função de realidades que só a luta pode revelar. Da mesma forma, só a luta revela como e quanto a cultura é uma fonte inesgotável de coragem, de recursos materiais e morais, de energia física e psíquica para as massas populares, assim como também, sob determinados aspectos, de obstáculos e dificuldades, concepções erradas da realidade, desvios no cumprimento do dever e limitações do ritmo e da eficácia da luta perante as exigências políticas, técnicas e científicas que impõe.

Tudo isso implica uma permanente confrontação, tanto entre os diferentes elementos da cultura, como entre esta e as exigências da luta. Desenvolve-se assim uma ação recíproca entre a cultura e a luta. A cultura, base e fonte de inspiração da luta, começa a ser influenciada por esta, influência que se reflete de forma mais ou menos evidente, quer na evolução do comportamento das categorias sociais e dos indivíduos, quer no desenrolar da própria luta. Tanto os dirigentes do movimento de libertação, na sua maior parte originários dos centros urbanos (pequena burguesia e trabalhadores assalariados), como as massas populares (cuja esmagadora maioria é composta por camponeses), melhoram o seu nível cultural: maior conhecimento das realidades do país, libertação de complexos e preconceitos de classe, alargamento do universo no qual evoluem, destruição das barreiras étnicas, reforço da consciência política, integração no país e no mundo, etc.

Qualquer que seja a sua forma, a luta exige a mobilização e a organização de uma maioria signific0tiva da população, a unidade política e moral das diversas categorias sociais, a liquidação progressiva dos vestígios da mentalidade tribal e feudal, a recusa das regras e dos tabus sociais e religiosos incompatíveis com o caráter racional e nacional do movimento de libertação, e opera ainda muitas outras modificações profundas na vida das populações. Isto é tanto mais autêntico quanto é certo que a dinâmica da luta exige também a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a participação crescente das populações na gestão da sua vida, a alfabetização, a criação de escolas e de serviços sanitários, a formação de quadros vindos dos meios camponeses e operários, e muitas outras realizações que implicam uma verdadeira marcha forçada da sociedade no caminho do progresso cultural. Demonstra-se assim que a luta de libertação não é apenas um fato cultural, é também um fator de cultura.

No seio da sociedade indígena, as influências da luta refletem-se nos resultados multilaterais das realizações acima mencionadas, assim como no desenvolvimento e/ou sobre a consolidação da consciência nacional. A ação confluente do movimento de libertação no plano cultural leva à criação de uma lenta mas sólida unidade cultural, de natureza simbiótica, correspondente à unidade moral e política necessária à dinâmica da luta. Com a ruptura do hermetismo de grupo, a agressividade de caráter racial (tribal ou étnico) tende a desaparecer progressivamente para dar lugar à compreensão, à solidariedade e ao respeito mútuo entre os diversos setores horizontais da sociedade, unidos e identificados na luta e num destino comum face ao domínio estrangeiro — sentimentos esses de que as massas populares tomam facilmente consciência se o oportunismo político, característico das camadas sociais médias, não vier perturbar esse processo. Constata-se igualmente um reforço da identidade de grupo e um correspondente avivar da dignidade. Esses fatores em nada prejudicam a estruturação e o movimento do conjunto social no sentido de um avanço harmonioso e em função de novas coordenadas históricas — as da dimensão nacional — de que só uma ação política intensiva e eficaz, elemento essencial da luta, pode definir a trajetória e os limites e garantir a continuidade.

Entre os representantes do poder colonial e na opinião metropolitana, a luta de libertação — prova ativa da cultura, da identidade e da dignidade do povo da colônia — criou primeiro um sentimento geral de espanto, surpresa e incredulidade. Uma vez superado esse sentimento, que é fruto de preconceitos ou da deformação sistemática que caracteriza a informação colonialista, as reações variam segundo os interesses e as opções políticas e o grau de cristalização de uma mentalidade colonialista ou racista das diferentes categorias sociais, isto é, dos indivíduos. Os progressos da luta e os sacrifícios impostos pela necessidade de exercer uma repressão colonialista, policial e/ou militar, provocam na opinião metropolitana uma cisão que se traduz por tomadas de posição diferentes, ou até divergentes, e pela emergência de novas contradições políticas e sociais.

A partir do momento em que a luta se imponha como um fato irreversível, e mesmo que os meios utilizados para a dominar sejam muito grandes, opera-se uma mudança qualitativa na opinião metropolitana que, na sua maioria, aceita progressivamente a possibilidade, ou mesmo a fatalidade, da independência da colônia. Uma tal mudança traduz o reconhecimento, consciente ou não, do fato de o povo colonizado em luta ter uma identidade e uma cultura próprias. E isto apesar do fato de uma minoria ativa, agarrada aos seus interesses e aos seus preconceitos, continuar durante todo o conflito a recusar o direito à independência, a não admitir a equivalência das culturas que este direito implica. Equivalência que, numa etapa decisiva do conflito, é implicitamente reconhecida ou aceita, mesmo pela potência colonial, quando, para desviar a luta dos seus objetivos, aplica uma política demagógica de "promoção econômica e social", de "desenvolvimento cultural" baseado na personalidade própria do povo colonizado, recorrendo, no plano político, a novas formas de domínio. Com efeito, se o neocolonialismo é, acima de tudo, a continuação do domínio econômico imperialista disfarçado por uma direção política autóctone, é também o reconhecimento tácito, pela potência colonial, do fato do povo que ela domina e explora ter a sua própria identidade, a qual exige uma direção política própria, para a satisfação de uma necessidade cultural.

Deve-se notar também que, aceitando a existência de uma identidade e de uma cultura do povo colonizado,te portanto do seu direito inalienável à autodeterminação e à independência, a opinião metropolitana (ou, pelo menos, uma parte importante dessa opinião) reflete um progresso significativo de ordem cultural e liberta-se de um elemento negativo da sua cultura: o preconceito da supremacia da nação colonizadora sobre a nação colonizada. Este progresso pode ter consequências importantes, mesmo transcendentes, na via e na evolução política da potência imperialista ou colonial, como o provam alguns fatos da história recente ou mesmo atual da luta dos povos contra o domínio estrangeiro.

Algumas afinidades genético-somáticas e culturais entre vários grupos humanos de um ou de diversos continentes, assim como situações mais ou menos semelhantes em relação ao domínio colonial e/ou racista, levaram a formular teorias e a criar “movimentos” baseados na hipótese da existência de culturas raciais ou continentais. A importância do papel da cultura no movimento de libertação, geralmente reconhecida ou pressentida, contribuiu para dar a esta hipótese uma certa audiência. Sem pretender minimizar a importância que tais teorias ou "movimentos" tiveram ou têm enquanto tentativas, bem sucedidas ou não, de procura de uma identidade, e enquanto meio de contestação do domínio estrangeiro, podemos afirmar que uma análise objetiva da realidade cultural conduz a negar a importância de culturas raciais ou continentais. Em primeiro lugar, porque a cultura, tal como a história, é um fenômeno em expansão e intimamente ligado à realidade econômica e social do ambiente, ao nível das forças produtivas e ao modo de produção da sociedade que a criou. Em segundo lugar — mas não menos importante — porque o desenvolvimento da cultura prossegue de maneira desigual, ao nível de um continente, de uma "raça", mesmo de uma sociedade. Com efeito, as coordenadas da cultura, tal como as de qualquer fenômeno em desenvolvimento, variam no espaço e no tempo, sejam estes materiais (físicos) ou humanos (biológicos e sociológicos). Eis porque a cultura — criação da sociedade e síntese dos equilíbrios e das soluções que ela provoca para resolver os conflitos que a caracterizam em cada fase da história — é uma realidade social independente da vontade dos homens, da cor da pele, da forma dos olhos ou dos limites geográficos.

A apreciação correta do papel da cultura no movimento de libertação exige que sejam considerados globalmente e nas suas relações internas os fatores que a definem; que seja recusada a aceitação cega dos valores culturais sem ter em consideração o que podem ter de negativo, reacionário ou regressivo; que se evite qualquer confusão entre o que é expressão de uma realidade histórica e material e o que parece ser uma criação de espírito, separada dessa realidade, ou o resultado de uma natureza específica; que não seja estabelecida uma conexão absurda entre as criações artísticas, válidas ou não, e pretensas características psíquicas e somáticas de uma "raça"; finalmente, que se evite qualquer apreciação crítica, não científica ou acientífica, do fenômeno cultural.

Estas condições são tanto mais necessárias para que a cultura desempenhe convenientemente o papel que lhe compete no movimento de libertação, quanto forem claros os objetivos definidos por este na via da conquista do direito do povo, que representa e dirige, a ter a sua própria história e a dispor livremente das suas forças produtivas, tendo em vista o ulterior desenvolvimento de uma cultura mais rica, popular, nacional, científica e universal.

A luta de libertação, que é a mais complexa expressão do vigor cultural do povo, da sua identidade e da sua dignidade, enriquece a cultura e abre-lhe novas perspectivas de desenvolvimento. As manifestações culturais adquirem um novo conteúdo e novas formas de expressão, tornando-se assim um poderoso instrumento de informação e formação política, não apenas na luta pela independência como também na primordial batalha do progresso.


Notas de rodapé:

(1) Este texto foi lido, na ausência do seu autor, na Reunião de Peritos sobre noções de raça, identidade e dignidade. UNESCO, Paris, 3-7 de Julho de 1972. (retornar ao texto)

(2) A percentagem máxima de assimilados é de 0,3 por cento da população total da Guiné-Bissau, após 500 anos de presença "civilizadora" e 50 anos de "paz colonial". (retornar ao texto)

(3) Um mínimo de 99,7 por cento nas colônias portuguesas. (retornar ao texto)

(4) No nosso país, é o caso dos Manjacos, dos Papeis, dos Oincas, dos Balantas e dos Beafadas. (retornar ao texto)

(5) É o caso dos Pajadincas e de outras minorias do interior. (retornar ao texto)

(6) Meio século de resistência armada no nosso país. (retornar ao texto)

Inclusão: 08/05/2020