Quando Abril acabou em Novembro

Ana Barradas

15 de dezembro de 2018


Fonte: Bandeira Vermelha - https://bandeiravermelhablog1.wordpress.com/2018/12/15/quando-abril-acabou-em-novembro/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


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A derrocada do Estado Novo e do império colonial provocaram uma explosão de energia eufórica que levou os trabalhadores à rua, num processo espontâneo em que a consciência das liberdades recém-adquiridas os induziu a reivindicar activamente os seus direitos. A crise que se instalou no golpe de 25 de Abril de 1974 levou o país a um processo de características pré-revolucionárias.

Surgiram então à luz do dia as organizações radicais de esquerda até ai clandestinas e assistiu-se ao nascimento de formas de organização popular inéditas: sindicatos, comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados, de mulheres, de pais, de saneamento de fascistas, comissões contra a guerra colonial, etc.

Os grupos políticos mais radicais à esquerda do PCP apoiaram e envolveram-se nessa efervescência popular. A esquerda mais moderada, que apostava tudo na aliança Povo-MFA, apelou à calma, apelidou as greves de “selvagens”, acusou os activistas de serem agentes da CIA ou infiltrados ao serviço da reacção, chegou a propor aos trabalhadores jornadas nacionalistas da Batalha da Produção, à custa de um dia sem salário.

Os poderes dominantes, representados no Conselho da Revolução e nos sucessivos e instáveis executivos, davam cobertura ou afrouxavam a vigilância a acontecimentos como a fuga da prisão dos agentes da PIDE, os atentados bombistas do ELP, as manobras e conluios do embaixador norte-americano Carlucci. Ao mesmo tempo, procuravam conter os ímpetos revolucionários para conferir estabilidade à governação. Disse mais tarde o ex-embaixador dos USA, numa entrevista ao Público, em 23-9-2006:

«Madrid era o ponto de encontro dos opositores à Revolução dos Cravos, onde se urdiam as conspirações do ELP (“Exército de Libertação de Portugal”), do pide Barbieri Cardoso, e do MDLP (“Movimento Democrático de Libertação de Portugal”) do general Spínola, que queriam “libertar” a terra-pátria, supostamente dominada pelos “comunas”. «O doutor Soares e eu passávamos muitas horas em Lisboa a conversar sobre os problemas políticos portugueses» (Carlucci).

A 11 de Março de 1975 o general Spínola falha o golpe militar que planeara. Seguiu-se a agitação social e política do Verão Quente, como contraponto aos padres que pregarem contra os “vermelhos”, do rebentamento à bomba do emissor da Rádio Renascença transformada em rádio popular, ao terrorismo das bombas do ELP e do MDLP a incendiarem e matarem à esquerda, como foi o caso do assassinato de Maria de Lurdes e o Padre Max.

Dos incêndios às sedes dos que eram considerados pelos terroristas de direita como partidos da revolução, até à manifestação antipopular da Fonte Luminosa em Lisboa, foi um passo que pôs em sintonia os interesses dos vários sectores da burguesia em luta pelo poder. Tudo isto enquadrado na chamada «cumplicidade estratégica essencial» de Carlucci com M[ário] Soares, forjada «numa pequena cúpula do telhado da embaixada», longe dos olhares dos portugueses.

Finalmente a ala esquerda da burguesia, em busca de uma saída democrática e constitucional para a crise do regime, decidiu pôr termo à situação promovendo as negociações com a direita para o golpe do 25 de Novembro, que recorreu à força das armas. Depois, uma vez ultrapassada a crise de poder, foi possível impor um novo modelo político-económico. O movimento operário baixou os braços e perdeu a combatividade. A relação de forças não era propícia para a execução do seu programa. Faltou um verdadeiro partido operário unificador da luta contra o oportunismo pequeno-burguês, batalha indispensável para a independência política do proletariado. Na sua ausência, a palavra de ordem surgida no 25 de Novembro “não à guerra civil” teve um conteúdo capitulacionista.

Assim passou à categoria de utopia esse projecto de independência de classe e da capacidade de o proletariado um dia passar ao exercício do poder sobre a burguesia, subalternizando-a e privando-a do seu papel de gestora dos interesses capitalistas.

Paulatinamente foram revertidas as nacionalizações, a reforma agrária, a legislação laboral, foi reposta a normalidade constitucional e postos em execução códigos de investimento que garantiram mobilidade ao capital e ao trabalho, a reconstrução do poder financeiro, a concentração da produção e a centralização dos capitais. Tudo isto enquadrado num processo de integração dependente que preparou o processo de adesão ao espaço económico europeu.

A extrema-esquerda, diminuta embora, animou naqueles quase 20 meses de crise pré-revolucionária, de Abril de 1974 a Novembro de 1975, uma onda avançada como Portugal há muito não conhecia e promoveu a redescoberta exaltante do marxismo como uma imensa liberdade crítica ao serviço dos despossuídos.

Todas as correntes oportunistas apontavam ao proletariado um vasto campo de aliados. Das derrotas do processo revolucionário tiraram como lição a falta de um campo mais vasto de apoio ao movimento popular, desejando o apoio de sectores da burguesia que não fossem monopolistas ou estivessem ligados ao desenvolvimento do mercado nacional. Propunham um esquema de alianças onde cabiam também os inimigos. Na busca de aliados para o proletariado acabaram por abdicar da revolução, levando as massas populares a constituírem-se como apoio ao desenvolvimento nacional capitalista.

O processo revolucionário foi extraordinariamente construtivo e complexo e um momento de grande aprendizagem e evolução para os que se organizavam em formações partidárias, sindicais ou outras. Os que queriam transformações radicais sabiam que não iam estar todos de acordo e que haveria conflitos e contradições, mas compreendiam que as revoluções são assim mesmo, e tivessem paciência os que gostavam que tudo se passasse na melhor das pazes.

Os que se envolviam no movimento sentiam ser seu dever aproveitar esse momento oportuno e efémero para levar o mais longe possível a luta de classes, enquanto podiam estar uma posição de vantagem. Um partido progressista que se quer popular que não entre neste espírito está perdido, porque a alternativa que lhe resta é classificar os actos revolucionários como excessos e esquerdismo, aliar-se às forças intermédias que se lhe opõem e deixar que se recorra à repressão sobre as massas mais radicalizadas.

Apesar da derrota, o caso da nossa pré-revolução de 1974 foi tão interessante quanto inesperado. Hoje sabemos que não poderia vingar por ter ficado isolada (se a transição em Espanha tivesse sido a sério, outra situação mais favorável estaria criada) e que só foi possível por causa da posição periférica de Portugal e da profundidade das contradições burguesas, acentuadas por efeito das guerras coloniais.

A grande lição do processo revolucionário do 25 de Abril é que, por muitas e profundas crises que o sistema venha a conhecer, por muitos e amplos movimentos de massas que se venham a verificar, tudo vai depender da existência ou não de um partido radical solidamente implantado no proletariado. Só assim se garantirá a independência política da classe operária, bem como o seu papel de vanguarda do movimento. Apoiado nos seus órgãos de vontade popular, o processo revolucionário não poderá ser contido se tiver um estado-maior que não deixe o movimento contentar-se e autoconsumir-se com conquistas parciais. Não se trata aqui de um partido para asfixiar a luta de massas ou cortar o espírito espontâneo do movimento, mas sim para unir e orientar num sentido revolucionário todas as lutas parciais. Uma terceira via será impossível.

Hoje torna-se necessária uma avaliação política reflectida desse período, para assim romper com a prática do silêncio e da calúnia gratuita que por aí se fazem ao que de mais radical Abril produziu. Há que destrinçar entre o que nele foi autenticamente revolucionário e o que foi folclore “revolucionarista” pequeno-burguês. Por exemplo, o assalto à embaixada de Espanha não foi nenhuma “anarqueirada estudantil”, antes constituiu a única manifestação de repúdio e protesto em Portugal à execução pelo garrote dos jovens revolucionários antifranquistas, replicada noutras capitais da Europa. Este foi um dos raros actos violentos, inteiramente justificado, aliás, dada a barbaridade do crime franquista. De resto, a escassez de acções de confronto com a ordem que todo o processo revolucionário registou faz pensar que houve um desastroso excesso de moderação.

Tudo ponderado, uma coisa é certa: embora ainda por cumprir, a herança revolucionária do Abril radical permanece como memória histórica, rica de ensinamentos para o futuro.


Inclusão: