Cinco Meses Mudaram Portugal

Otelo Saraiva de Carvalho


8 — A atitude política da renúncia do General Spínola


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CADERNOS PORTUGÁLIA — Mudando um pouco o assunto, queremos fazer-lhe outra pergunta: o general Spínola, quando renunciou à Presidência da República, falou em «caos económico»foi um discurso tremendo, quase terrorista...

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Foi das maiores «agressões ideológicas» que nós já sofremos...

CADERNOS PORTUGÁLIACreio que lhe vamos fazer uma pergunta que ainda não foi feita: porque é que. o Movimento das Forças Armadas — para compreender bem a razão da nossa pergunta, devemos dizer-lhe que lemos o «Portugal e o Futuro» e ficámos bastante desiludidos, achámos um péssimo livro, deu-nos a ideia que era um livro escrito por um aluno do 7.° ano de Organização Política e Administrativa da Nação, com aqueles limites todos que tal curso dava no 7.º ano do nosso tempo a uma pessoa com aquela preparação, digamos «filosófica», foi realmente essa a impressão que nos deu o livro, mas se a impressão que tínhamos do general Spínola, que apenas conhecíamos de nome, não era para nós muito cativante, já o nome do general Costa Gomes, apesar de vivermos retirados das coisas militares, nos incutia realmente outro respeito, quer dizer, se fôssemos militares, se tivéssemos essa honra, e se tivéssemos então a honra enormíssima de participar no vosso Movimento, temos a impressão de que quando se falasse no nome do general Spínola para ser escolhido para Presidente da República, batíamos tremendamente o pé e votávamos imediatamente no general Costa Gomesportanto, perguntamos, porque é que as coisas aconteceram ao contrário desta que estamos aqui a sugerir?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Em verdade, devo dizer que foi precisamente o general Costa Gomes o escolhido, pois tinha perante nós mais prestígio do que o general Spínola. Numa reunião feita em Óbidos, em 1 de Dezembro do ano passado, reunião essa em que também foi eleita a Comissão Coordenadora do Movimento, fez-se o apuramento dos votos, já recolhidos nas unidades do Exército pelos delegados respectivos, para a escolha dos três generais que queríamos para nossos chefes. Feita a contagem, verificou-se que o general Costa Gomes era o mais votado, seguindo-se o general Spínola e, depois, pasmem oh! gentes!, o general Kaulza de Arriaga! Dada a profunda diferença de ideologia política que sabíamos existir entre Kaulza de Arriaga e os outros dois generais, tivemos que o pôr imediatamente de lado. Embora lhe reconhecêssemos profundas qualidades de inteligência, dinamismo e acção, havia nele algo que nos levava a não o querer, pois não partilhávamos da corrente ideológica em que incluíamos Kaulza de Arriaga. Posteriormente, a Comissão Redactora do Programa teve que assumir a responsabilidade da escolha do terceiro elemento do Exército para a formação da Junta de Salvação Nacional, (a princípio, prevíamos apenas seis elementos, dois do Exército, dois da Marinha, dois da Força Aérea). Porém, chegámos à conclusão que devíamos ter mais um elemento do Exército, porque dos dois já escolhidos, um tinha que ser o futuro Presidente da República e outro seria o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas — e disto o Exército não abdicava, visto termos sido nós a desenvolver todo o esforço conducente ao 25 de Abril — a assumir as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército. Essa escolha, (tremendamente infeliz como se verificou mais tarde...) foi feita com base numa lista que o nosso general Spínola, a nosso pedido, nos enviou pelo meu intermédio (eu era o elemento de ligação da Comissão de Redacção do Programa com o General) antecedida da pergunta: «Mas tem que ser mesmo um general?». Não havia dúvida de que a escolha era difícil... Presas da nossa ingenuidade e do nosso espírito de profunda hierarquização militar, deliberámos que devia ser um oficial-general. E então, da lista que era encabeçada por Silvino Silvério Marques e que incluía Jaime Silvério Marques, Rosa Garoupa e, se não estou em erro, o brigadeiro Nunes da Silva, oficiais-generais que, segundo parecia, não tinham participado na manifestação de «vassalagem» dos generais a Marcelo Caetano nas vésperas do acontecimento das Caldas da Rainha e que, só por isso, apareciam mencionados, a Comissão de Redacção do Programa, apreciados os prós e os contras, escolheu o brigadeiro Jaime Silvério Marques. Na distribuição de funções dos oficiais-generais do Exército, Costa Gomes foi indigitado para a presidência da República, Spínola para Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e Jaime Silvério Marques para Chefe do Estado- -Maior do Exército. Qual não foi o meu espanto quando, à uma e meia da manhã de 26 de Abril, vi aparecer na televisão a Junta de Salvação Nacional presidida pelo general António de Spínola que, consequentemente, seria o Presidente da República! Em conclusão, essa escolha foi feita só ao nível da Junta de Salvação Nacional e o principal impulsionador do general Spínola para a Presidência foi precisamente o general Costa Gomes, que desconhecia ser o nosso eleito e que nós nunca admitimos, cingidos ao nosso conceito de hierarquia, que fosse ultrapassado pelo general Spínola.

CADERNOS PORTUGÁLIA — Porque é que os seus contactos foram sempre com o general Spínola e não com o general Costa Gomes?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Porque eu não conhecia pessoalmente o general Costa Gomes. A primeira vez que com ele contactei foi já depois do 25 de Abril. Eu prestei três anos de serviço no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, tendo o general Spínola como Comandante-Chefe. Embora as minhas relações com ele tivessem sido sempre muito distantes, porque eu não pertencia ao seu círculo de amigos, sempre admirei nele um conjunto de excepcionais virtudes de chefe militar a par de deploráveis defeitos. Nunca nos demos bem. Mas o caminho da Revolução aproximou-nos e ele aceitou-me pelo facto de eu lhe aparecer como o elo de ligação com o Movimento das Forças Armadas.


Inclusão 06/06/2019