O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Molotovs no Palácio de Cristal
Rogério Dias de Sousa, pintor da construção civil, 43 anos


capa

A primeira imagem que tenho do 25 de Abril é um bocado caricata. Vinha eu a descer a Rua da Fábrica e deparo com dois polícias a correr. A primeira reacção foi tentar ver quem é que fugia à frente deles, que era o costume. Mas não havia ninguém: eram eles que fugiam! Percebi tudo quando, chegado à praça, deparo com uma multidão enorme, uma coisa incrível, toda a gente excitadíssima a falar de política. Parecia um sonho. Foi assim que tomei conhecimento do 25 de Abril.

Nessa altura eu era simpatizante da OCMLP, que nessa noite reuniu uma espécie de “quartel general” de rapazes meus conhecidos para formarmos uma célula. Ninguém percebia nada do que se estava a passar e o que era o golpe. Estávamos todos com medo que fosse um golpe da extrema-direita. O responsável da célula ordenou que preparássemos uns cocktails-molotov, umas bandeiras vermelhas, e que ficássemos atentos e preparados para a eventualidade de os ultras tomarem posse da situação.

No dia lº de Maio, com uma multidão imensa — nunca vi a praça tão cheia — lá aparecemos nós, feitos parolos, de saquinhos de plástico com os cocktails-molotov, prontos para o que desse e viesse... Logo percebemos que estávamos desfasados.

Os molotovs acabaram por ser usados muitos meses mais tarde, em 25 de Janeiro de 1975, no boicote ao congresso do CDS. Aí, sim, tínhamos a extrema-direita diante de nós. Não se tem falado muito desse dia, mas foi uma manifestação de ódio ao fascismo como nunca vi. A concentração começou por volta das três da tarde, juntando gente do PS, do PC, da extrema-esquerda, da meia-esquerda... tudo! Fomos todos lá para cima, para o Palácio de Cristal, boicotar o congresso. Injuriávamos os gajos que entravam, a polícia que os defendia, e por aí fora. Durante toda a noite houve cargas da polícia, a que nós respondíamos à pedrada. Foi aí que os cocktails-molotov foram estoirados. Foi um mimo. Isto durou até às três da manhã, com carros incendiados, polícias em fuga, etc., até que veio a tropa evacuar os fachos. No dia seguinte, o PC, pela voz do Octávio Pato, disse que o boicote tinha sido uma provocação ao serviço da CIA. O costume...

O 25 de Abril mudou completamente o rumo da minha vida. Nunca mais voltei a ser o mesmo indivíduo. A aprendizagem política provocou uma revolução dentro de mim. Tinha ficado desempregado em Março de 74. Depois do fascismo cair, pior ainda: os empregos começaram a escassear, pois os patrões estavam cheios de cagaço. Diziam que aquilo era tudo comunismo. Arranjar emprego na construção civil era quase impossível. Durante muito tempo fiquei sem emprego certo. Mas isso não me afligiu nada. Trabalhei quatro meses na Sacor. Volta, não volta, havia greve por melhores salários e melhores condições. Enquanto estive houve mais de meia dúzia. Parava-se e não se voltava a trabalhar enquanto não viessem os aumentos.

Também estive em Lisboa, numa empresa de electricidade. Os empreiteiros, que eram franceses, queriam obrigar-nos a trabalhar e nós dizíamos que sem mais dinheiro não trabalhávamos e se não se sentissem bem, que regressassem à sua terra. Que tivessem calma e para “baixarem a bolinha” porque quem mandava éramos nós.

Para quem nunca tinha vivido a política, foi uma experiência única. Eu sentia-me nos píncaros da lua. Convivíamos com trabalhadores estrangeiros que vinham ver o que se estava a passar. Foi o maior processo de educação política que houve no nosso país. Toda a gente discutia. Lembro-me de sair do trabalho e ver a praça cheia de gente a discutir; grupos de pcs, de esquerdistas, etc., tudo a discutir política. Nós, os maoístas, víamo-nos às vezes atrapalhados para explicar a política externa da China, mas nas questões políticas de cá ficávamos por cima dos pcs. Tínhamos convicções e ideais fortes e mais certezas e confiança que eles porque defendíamos o avanço dos trabalhadores sem peias, enquanto eles punham-se a mastigar. Percebia-se que principalmente os funcionários não tinham aquela fome de aprender e divulgar que nós tínhamos.

Penso que o movimento revolucionário de 74/75 se pode dividir em duas fases:

Por isso, a partir de Agosto de 75, pelo menos aqui no Porto, a fase de acumulação de forças acabou e a coisa começou a esvaziar. O 25 de Novembro já apanhou o movimento revolucionário em queda.

Por que teve que ser assim? Talvez porque não houve dirigentes políticos como na Rússia, em Outubro de 1917, capazes de aglutinarem, unirem o povo e levá-lo adiante. Não tenho boas recordações dos dirigentes que conheci. Sempre me pareceram mais preocupados em dar nas vistas que em dirigir. Sempre gostei mais das pessoas dos organismos intermédios, que tinham mais vontade e ideais. E não percebia como é que gente que tinha qualidades e já havia dado provas durante a ditadura não era promovida à direcção. Gente modesta, com espírito de sacríficio e capacidade política. Mas este mal não era só dos “m-l”. A chamada “esquerda marginal” também sofria do mesmo. E também não tinham nenhuma percepção do futuro.

Apesar de já terem passado 20 anos e de estar tudo a correr mal, hoje já não existe aquela reverência dos pobres face aos doutores, patrões e autoridades. As feridas não foram todas saradas. Por isso, o 25 de Abril continua a incomodar a burguesia.

★★★

17.45h — Um dos portões do Palácio de Cristal é forçado pelos manifestantes convocados pelos GAAFs (Grupos de Acção Antifascista). Cerca de 70 elementos da PSP respondem com os cassetetes, granadas de gás lacrimogéneo e de fumo e carregam sobre a multidão, disparando.

17.55hChegam soldados que são recebidos com aplausos. Os agentes da PSP refugiam-se nos jardins do Palácio, só voltando a sair de manhã, depois de evacuados os congressistas do CDS. No exterior, verifica-se, entretanto, uma verdadeira aliança entre o povo e os soldados. Trocam-se sandes e cigarros.

2.00hA GNR investe a cavalo contra a multidão, distribuindo golpes de sabre e fazendo feridos. Os manifestantes respondem com pedras. Chega a haver recontros entre soldados e GNRs. Um soldado é ferido. São disparadas rajadas de metralhadora. A multidão não arreda pé.

6.00h - Os pára-quedistas acabados de chegar, vindos do aeroporto de Pedras Rubras, põem em prática o sistema de evacuação dos congressistas do CDS”.

(Comércio do Funchal, 6/2/75)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018