O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Foi a minha universidade
Maria de Lurdes Torres, empregada, 42 anos


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Quando foi do 25 de Abril, eu e mais dois, lá no Casal Ventoso, estávamos num grupo de propaganda. Distribuíamos panfletos e fazíamos pinturas de madrugada por todo o bairro de Campo de Ourique, contra o fascismo, a guerra colonial, a exploração. Chegou a ir a PIDE lá a minha casa. O mais engraçado é que não sabíamos a que grupo pertencíamos. Só depois viemos a saber que era trotskista.

Logo a seguir, apareceu um grupo de jovens muito porreiro que nos apoiou e fiquei ligada a eles, era o CCR. Ocupámos o centro social e corremos com o padre que lá estava a gerir aquilo. Começou a aparecer gente para colaborar, fazíamos sessões de esclarecimento, para as pessoas se organizarem para cuidar dos idosos e das crianças que andavam por ali ao deus-dará. É verdade que o nosso trabalho nesse campo não foi muito bom, tínhamos falta de direcção política.

Mas aí começaram as ocupações. Em Campo de Ourique havia muita casa desabitada, casas boas, e fechadas. Formámos um grupo de trabalho ali no Casal Ventoso e começámos a ocupar, isto no Verão de 74. Fizemos uma lista das casas desocupadas e um inquérito aos vizinhos com mais necessidades. Levávamos para lá a família, para a sua nova casa, e formávamos piquete à porta do prédio, porque em muitos casos aparecia a polícia, chamada pelos senhorios, a querer-nos desalojar. Tivemos montes de problemas. Com a Polícia Militar não, mas a PSP mandava brigadas com carros cheios de tipos armados até aos dentes, agrediam os piquetes, conseguiram expulsar alguns, mas muitos outros ficaram. Uma vez comprámos quilos de pimenta e cada um do piquete atirava a pimenta para cima dos polícias. Muitos desses moradores conseguiram depois fazer contratos e ainda hoje habitam nessas casas. Quando lá passo lembro-me disso.

Falei em muitos comícios e sessões de esclarecimento, alguns camaradas até brincavam comigo, chamavam-me a “casas sim, barracas não”. O que fizemos foi bem feito, era tudo religiosamente respeitado. Dizíamos que a solução não era a autoconstrução, não era cada um a resolver o seu problema, o que interessava era dar um espírito colectivo às pessoas. Vim a pertencer à Intercomissões de Bairros de Lisboa, que abrangia todos os bairros de lata: da Curraleira, da Quinta dos Peixinhos, da Quinta da Calçada... Havia gente de todos os grupos de esquerda nestas comissões e havia muita rivalidade. Nós, no Casal Ventoso, dizíamos que aquilo ali era dos CCR; ainda lá tentaram entrar rapazes do MRPP e do CMLP mas não deixámos. Com o MRPP chegou a haver lutas físicas. Fora disso, fazíamos trabalho cultural, exposições, actuação de grupos musicais, para as pessoas saberem o que tinha sido o fascismo, a necessidade de se organizarem e consciencializarem. A AEPPA fez lá uma exposição sobre o Chile, foi um sucesso, as pessoas ficaram impressionadas.

Eu não parava. Todos os dias havia comícios, sessões, trabalhos. No emprego, fui eleita para a comissão de saneamento, com um elemento de cada sector, e organizámos os processos de várias pessoas que foram dali retiradas.

No congresso de fundação da UDP fui eleita para o Conselho Nacional, fiquei a pertencer até deixar a organização. Trabalhámos muito para a legalização da UDP, mobilizámos aquele bairro todo. Nas primeiras eleições, em 75, no Casal Ventoso houve uma votação muito grande na UDP porque nós estávamos ali reconhecidos.

No 11 de Março, formámos piquetes no viaduto Duarte Pacheco, bloqueámos aquela zona toda e fiscalizávamos quem vinha para dentro da cidade. Não era só gente da UDP, eram outros moradores que se juntavam a nós nas alturas em que havia luta. Dali foi uma data de gente para a casa do Spínola, espatifaram por lá o que apanharam à mão.

Quando foi do assalto à embaixada de Espanha, vem um soldado ter comigo: “Ó camarada, então isto é para protestar ou é para levar para casa?” “Porquê?” disse eu. “Então, vai ali um pela avenida abaixo com uma máquina de escrever!” Meti-me no jipe com ele e fomos ter com o indivíduo, ele ficou um bocado atrapalhado, tirei-lhe a máquina de escrever e pu-la no molho. Demos cabo daquilo tudo, mas não interessa, estávamos ali para protestar contra o fascismo, não era para roubar.

Entretanto, como a situação estava a aquecer no Norte, fui mandada pelos camaradas para o Porto, apesar de nessa altura já estar grávida. Quando foi da defesa da sede da UDP contra os fachos que a queriam assaltar, fui eu que fui à cadeia buscar os camaradas que a polícia tinha prendido. Dali fui para Braga, onde também incendiaram a sede da UDP, e apresentei um protesto em tribunal contra o vandalismo da direita.

Mas já não estávamos a aguentar a força da reacção. Veio o 25 de Novembro e tive que entrar na clandestinidade, porque não se sabia o que viria a seguir. Fui depois para Trás-os-Montes, onde vivi outras experiências naquelas aldeias, na altura em que mataram o padre Max.

O 25 de Abril foi a minha universidade, deu-me um enriquecimento muito grande. Foi o tempo mais importante da minha vida. Se deu para o torto, só temos que nos queixar do mau trabalho da esquerda, porque chegámos a ter quase tudo na mão, o povo estava connosco.

★★★

CASAS SIM! BARRACAS NÃO!

Refrão:

Casas sim! Barracas não!
As
casas são do povo!
Abaixo a exploração!

Vim do campo pr’á cidade
terra alheia é maldição
é morrer de sol a sol
por uma côdea de pão
que metade da colheita
vai p’rós bolsos do patrão

Estava farto de miséria
Ver os filhos a chorar
larguei tudo e vim-me embora
p’rá cidade trabalhar
sem dinheiro e sem ter casa
fui pr’ás barracas morar

Refrão

Dizem que quem nasce pobre
e sem dinheiro p’ra estudar
tem de andar sempre de canga
e tem que se sujeitar
ao que a sorte lhe trouxer
e às migalhas que apanhar

Essa sorte eu a renego
que só dá sorte ao patrão
é conversa de quem quer
continuar a exploração
vou lutar que a minha sorte
há-de sair da minha mão

Sou operário sou pedreiro
trabalho na construção
sou eu quem constrói as casas
p'rós burgueses p’ró patrão
dou palácios aos senhores
e vivo num barracão

A canalha que me explora
tem tudo o que quer à farta
chalés no campo e na praia
para a amante e para a gata
tudo à minha custa e enquanto
eu vivo num bairro da lata

Refrão

Mas já basta de miséria
isto agora vai ser diferente
não haja gente sem casa
enquanto houver casas sem gente
pelo fim da exploração
marchemos todos em frente

Todos bem organizados
partiremos à conquista
esmagaremos para sempre
a opressão capitalista
Liberdade para o Povo
numa pátria socialista

Refrão

continua>>>


Inclusão 23/11/2018